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HISTORIA DO BRASIL TV 3° ano de Histéria / UNIOESTE Professor Alexandre Blankl Batista FONTES, Virginia. Reflexées im-pertinentes: Historia e Capitalismo Contemporaneo. Rio de Janeiro: Bom Texto, 2005, p. 179-200 Ampliagio do Estado ¢ coer¢io no Brasil — democracia e nacionalizagio truncada (© DIP eo modelo da violéncia seletiva)! PROPAGANDA, PUBLICIDADE, ESTADO & MERCADO — PEQUENA DIGRESSAO a) Significados — as palavras propaganda e publicidade ‘Temos duas palavras com origens diferentes — a propaganda esté li gada a catequese e ao convencimento, enquanto a publicidade refere-se a tornar paiblico, remetendo ao que nao deve ser mantido em segredo, a0 que todos devem saber. Provavelmente no século XIX, segundo o Dicionério Houaiss, a palavra passa a significar “meios para divulgar um produto”, antincio.* Essa primeira distingéo é importante, pois a propaganda pode néo ser piiblica, isto é, ela nao supée a generalizacéio ampla de seus préprios Pressupostos, estando mais voltada diretamente para o convencimento, sob formas as mais variadas. Atransformagio da publicidade em propaganda — isto é, a mercan- tilizagao da difusio e da informacéo — faz parte da expanséo contem- pordnea do capitalismo, © fato de as palavras propaganda e publicidade * Palestra proferida no NPG — Niicleo Piratininga de Comunicagéo em 2002, © pos- {eriormente publieada em Waldo Ansaldi (coord.), Calidascopio latinoamericano. Imiigineshistricas para un debate vigente, (Buencs Aires: Ariel, 2004). 2A palavra propaganda deriva do latim congregatio de propaganda fide, ou seja, “congregacdo para propagacio da fe", instituida pelo papa Gregério XV em 1622, © esse caso a palavra significa 0 “que deve ser divulgado". Tratava-se de um colegiado ¢ardinalicid encarregado de balizar as normas sobre a difustio do Evangelho; o termo Incorporou-se a0 portugues j4 englobando a$ acepgées modemnas, provavelmente por Infuéncia do francés propagande (1792)...40 termo publicidade nos chega pelo frances Publicité (1694), “caréter do que é piiblco, do que nio é mantido secreto, propriedade ‘do que é conhecido”, adquirindo, em 1829, 0 sentido de “conjunto de melos utilizados Para tornar conhecido um produto, uma empresa industrial ou comercial", Defondrio Houaiss eletsOnico, 2001, etimologia. 180 REFLEXOES IM-PERTINENTES designarem hoje uma atuagéio de cunho mercantil — louvar produtos para vendé-los, de forma até mesmo cfnica ¢ amplamente descompro- ‘metida com 0 conjunto da vida social —nos exige esmiucar um pouco mais 05 pontos que esto mais ou menos ocultos sob essa primeira significagao. b) Estado, piblico e publicidade ‘As lutas sociais encabecadas pelos trabalhadores na Europa da rada do século XVIII para o XIX travaram-se em miultiplas fronteiras, inclusive na exigéncia da publicizagdo dos debates politicos, até entao reservados aos préprios pares; reivindicavam também a declaracio dos votos dos parlamentares. A publicidade — isto 6, tornar puiblico, socia- lizar informagées provenientes do Estado € dos governos — foi uma das conquistas dessas lutas dos trabalhadores e estes o fizeram, muitas, vezes, por meio de seus préprios jornais e’impressos (folhetins, pant. tos etc.). A Revolugio Francesa representou um momento forte nesse processo, inclusive pela abertura dos arquivos de proprietérios privados ¢ da hicrarquia eclesidstica, transformando-os em Arquivos Publicos (nacionais"), e tornando publica a documentac&o administrativa e a referente A propriedade. ‘Nao parece impertinente lembrar também que o tema da existéncia de um espago “piiblico” contém uma longa historia de muitos debates. E cldssica a questo: ¢ possivel existir uma dimensio efetivamente ptt blica em sociedades dominadas pelo capitalismo? O Estado pode vir a ser puiblico em sociedades de classe? Em que consistiria um ambito “pi blico” nessas condigées? O tema permanece sensivel na atualidade e é objeto de embates politicos, sociais e filoséficos. Para 0 escopo de nossa reflexdio, lembramos que as lutas populares incidem exatamente sobre a exigéncia de tornar piiblicos os processos sociais, no seu duplo sentido isto é, publicizar, divulgar, difundir, conhecer os processos institu- cionais e politicos e, no outro sentido, desprivatizar, socializar 0 émbito da politica, rompendo ou reduzindo os lagos diretos entre propriedade VirGinia Fontes e representacdo social e politica. © Estado capitalista néo é sindnimo de piblico (comum a todos ou conhecido de todos), mas ¢ certamente o local onde as lutas em prol de torn piblico (difundir e socializar) incidem de forma mais aberta e direta. No caso brasileiro, a identificagdo entre estatal e publico foi, nas sikimas décadas, contestada a partir de dois pontos de vista diametral- mente opostos — do ponto de vista ultraliberal, buscava-se privatizar © méximo de empreendimentos pertencentes ao Estado, acusando-se o Estado de ser “ineficiente” e de nao ter competéncia empresarial ou gerencial. Houve maciga propaganda, difundida pelos mais diversos meios de comunicagio, em prol de uma privatizacio generalizada que, finalmente, foi levada a cabo ao longo dos dois mandatos de eona Henrique Cardoso. Do ponto de vista das demandas sociais no Brasil, tratava-se, a0 contririo, de antiga reivindicagio pela desprivatizacio do Estado, ob- jetivando ampliar no Estado espacos que estivessem voltados ra ° piblico, para o conjunto da populagéo, com politicas le cunho univer- salizante e igualitarias, ) 0 Estado A questao do publico relaciona-se diretamente as definigdes de Es- tado com as quais estaremos trabalhando, Se o Estado néo se resume a ‘um aparato técnico e neutro — como gostariam de nos fazer crer certos. ‘eenocratas — nem ao “monopélio da violéncia legitima” como suge- ‘iu Weber (concepgtio que segue 0 caminho cléssico do pensamento liberal), é preciso, portanto, sair da dicotomizagéo que ambas as con- ‘psdes implicam, como se o Estado fosse uma entidade separada da soriedade, onde cada qual — Estado ¢ sociedacle — teria qualidades specificas e préprias. , ie eae como 0 mostrou Marx,? a forma pela qual se organiza perma cial, dominagdo que encontra sua base na existéncia le classes sociais e que néio existe historicamente a néo ser de forma 181 182 REFLEXOES IM~ ERTINENTES conflitiva e contraditoria, Assim, analisar o Estado exige investigar as condigées histdricas da sua existéncia social, néio podendo ele ser consi- derado como algo que encontrasse stia razo de ser em si proprio, numa racionalidade abstrata ou apenas na legitimagio do uso da violéncia, ‘Antonio Gramsci* aprofunda a andlise, permitindo pensar as formas pelas quais ocorre uma ampliacio do Estado & medida que o capitalis- mo se expande, devendo agora defrontar-se néo apenas com 0s con- flitos internos &s fragdes das classes dominantes, mas também com as reivindicagdes e press6es dos grupos subalternos. Estado ampliado nfo significa, entretanto, alguma suposigao de que este deixaria de ser de classes, como bem demostrou N. Poulantzas. Estado ampliado supée, em primeiro lugar, uma acomodagao complexa dos interesses das dife- rentes fragbes das classes doi numa crescente articulagio entre o Estado e as formas associativas que os proprios grupos dominantes empreendém (“aparelhos privados de hegemonia"). Essa “ampliagéo” implica a produgo de uma autonomia peculiar do Estado diante de cada uma dessas fragdes, sem a perda, entretanto, de seu carter de classe; a0 contririo, fortalece o cardter de antes, 0 que se realiza espraiando-se classe do Estado, ao permitir que as medidas por ele encaminhadas re- vistam-se de uma caracterizagao como “interesse geral” ou “nacional”. Fssa ampliagéio atinge também os grupos subalternos, na medida em que 0 Estado passa a conter em seu seio demandas provenientes dos ‘grupos sociais dominados, em estreita relagéo com sua capacidade de organizagio e de solidez de suas associagées. Esse processo traduz-se na introduc de elementos de democratizagao — esparsos ¢ tenden- cialmente subalternizados — e, por que néo, de alguma dimensio pi- blica, no Ambito do Estado. 2 Karl Marx e F Engels, La Idelogia alemana. +A, Gramsci, Maguiavel, a politica e o Estado moderno, 5, Poulantzas, O Estado, 0 poder e o socialism. Vincinia Pontes Trocando em mitidos, o Estado procura se apresentar como “técnico, neutro e acima dos interesses de cada grupo especifico” em fungao de duas raz6es principais. A primeira, porque comporta um volume cres- cente de demandas contraditérias provenientes das préprias classes do- minantes. Para assegurar 0 conjunto da dominagéo, para impedir que as Jutas internas entre tais fragdes coloquem sob risco a prépria do- minago, 0 Estado permeia-se desses conflitos, incorporando-os como imos e necessdirios.® A segunda, mais complexa, passa pela articula- fo entre essas disputas e as demais formas de organizagio social, seja porque fragdes das classes dominantes precisam convencer parcelas expressivas da populagdo e apresentam-se como encanagées do ver- dadeiro “interesse nacional”, seja porque as revoltas sociais tornam-se mais prementes e, portanto, impdem uma efetiva ampliagio — publi zacdo — desse Estado. 4d) A questo hist6rica da propaganda e do puiblico Ao longo dos séculos XIX e XX, os movimentos sociais, especialmente o dos trabalhadores (seja em sua vertente sindical ou partidéria), atua. ram fortemente no sentido de difundir uma visio de mundo contesta- dora daquela dominante. Isso implicava a produgio (redagéo ¢ divul- gag) de livros para leitura popular que pudessem contrapor-se as for- mas de propaganda dominante, traduzidas pela publicagio de folhetins disciplinadores, de literatura de ordem moralizante, de “catecismos” diversos, de cunho religioso ou laico. A atuagéo voltada para a contes- taclo precisava educar, alfabetizar, produzir conhecimento por todos os telos, da ciéncia a literatura, arte, misica, teatro, cinema. Tratava-se * Ainstauragéo do chamado Estado liberal, com a implantagio de formas representativas 40 longo dos séculos XVIII e XIX, demonstra como é possivel o estabelecimento de uma “democracia” de proprietérios, contando com um efetive espago de disputa e de ebate, ao lado do alijamento politico da maioria da populagéo, Ver, por exemplo, C. B. Macpherson, A democracia liberal: origens evolusdo, 183 184 REFLEXOES IM-PERTINENTES de descobrir 0 mundo do trabalho a partir dos préprios trabalhadores, de permitir 0 acesso & cultura de amplas massas dela alijadas inclusive por suas condigdes de existéncia,” de contrapor-se em todos os terrenos 4s formas de dominacao capitalista: no plano econémico, pela atuacio sindical; no plano social, pela protecao s criangas e aos idosos, pela mobilizagio de mulheres, pela Iuta pela educagio, pela qualidade de vida; no plano cultural, pela produgio e difusdo de textos em todos os, niveis (panfletos, literatura etc.); no plano politico, pela atuac&o dos partidos de cunho revoluciondtio. Alias, uma das primeiras preocupa- ‘Gées desses partidos (quer fossem anarquistas, socialistas ou marxis- tas) era exatamente a difuséio nao apenas de suas préprias palavras de ordem ou visSes de mundo, mas também de uma cultura mais ampla para as camadas populares. Assim, setores partidarios de “agit-prop” —agitagdo e propaganda — constituftam-se em formas de aprendizado social € de acesso a literatura, ao debate’ internacional, as discussées filosdficas ou econdmicas. De forma similar, as organizagées operdrias e/ou comunistas no Bra- sil tiveram também, ao longo do século XX, especialmente entre os anos 1910 € 1935, importante papel educativo. Atuavam para que tais temas, assim como a politica, nao ficassem mas se tornassem puiblicos, sociais, socializados. As lutas sociais jamais se restringiram a um terre- rrestritos a poucos “doutos” ou “iluminados no especifico, isolado, seja econdmico ou politico, incorporando sempre essa dimensdo cultural, ligada 4 sua prépria publicizagio. 2. A REFORMATAGAO DO ESTADO BRASILEIRO, OU A NAGAO TRUNCADA Ora, se pensar em propaganda politica exigiu localizar-nos em algumas questées gerais, de cunho teérico (0 que ¢ o Estado), voltemos agora 7 Sobre esse processo, veja-se o trabalho de J. Raneitre, La nuic des prolétaires. Archives du réve owwrier. Vincinta Fontes ao terreno histérico— estamos falando do Estado no Brasil, num deter- minado contexto internacional. O Estado Novo nao ocorre num “vazio” no plano nacional, nem esté isolado perante as experiéncias intena- cionais, implantando-se num momento em que as contradigées inter- nas sio potencializadas por suas conexdes com o Ambito internacional, cujas contradig6es conduzirdo & Segunda Guerra Mundial. A década de 1920 no Brasil caracterizou-se, como mostra Werne- ck Vianna,* por uma pressZo crescente das massas urbanas no sentido de uma efetiva democratizacdo, impulsionando 0 liberalismo restrito ento dominante em direco a uma ampliagéo do Estado, forgando-o a considerar como legitimas as organizagoes operdrias. Essa pressio, num contexto de grande crise econémica internacional ¢ de fragilizagao do modelo liberal, encontrava suporte tedrico e prético na expansao de economias socialistas — planificadas — as quais sugeriam a possibilida- de efetiva de transformagées soci figurando, em que pesem suas di- ficuldades especificas, como modelos tanto para o movimento popular e suas reivindicagdes, quanto para aqueles que, buscando contrapor-se 20 socialismo, deveriam levar em conta agora a questo social.” A planificagao e 0 reforgo do Estado apareciam como a forma de combater 0 mercado, no caso dos pafses socialistas, ou como a ma- neira de asseguré-lo, nos paises capitalistas (caso, por exemplo, dos Estados Unidos, época), sendo o mais importante tedrico dessa ver- tente 0 economista liberal inglés J. M. Keynes. As reacées antiliberais existentes no Ambito internacional terdo influéncia diversificada no caso brasileiro. A primeira e mais importante, no plano internacional, © nazi-fascismo (0 “nacional-socialismo”), encontraria ec nas formu- lagbes integralistas; a segunda, o reforgo da Doutrina Social da Igreja Catdlica, de viés profundamente antiliberal e anticomunista. A terceira, "LW. Vianna, Liberalismo e sindicato no Brasil "CE A.M. C. Gomes, “Confromto e compromisso no processo de constitucionalizagio 4930-1935)", 185 186 REFLEXOES 1M-PERTINENTES uma crescente legitimagao internacional de formas de intervengio do Estado apoiadas inclusive por setores liberais em alguns paises cen. trais. Finalmente, 0 crescimento da expresso do Partido Comunista _— PCB — atuava também no combate ao liberalismo. A crise do liberalismo restrito também encontrava aqui ratzes pré- prias, uma ver que a manutengio do regime de acumulagio — ou da reproducio das classes dominantes, al como vinha se realizando até entdéo — expunha claramente seus limites. A agroexportacao defron- tava-se com crises recorrentes no mercado internacional e assegurar a ampliagiio de sua acumulagao pressupunha diversificar 0 conjunto da pautta produtiva nacional, de forma a garantir a propria permanéncia da grande producto agricola de exportagio. As fissuras entre os grandes tornavam-se mais evidentes."® © setor industrial, proprietérios rurais ; ‘em expansio continuada, encontrava limites para superar suas fragili dades. Os conflitos no interior dos grupos dominantes aprofundavam: se; enquanto isso, 0s setores dominados ampliavam sua organizacio € suas exigéncias de participacao politica. A revolugdo de 1930 revelaria a impossibilidade de cada fragao de impor sua dominagio exclusiva ou de convencer as demais de uma di- recdo comum. Desde entio delineava-se uma “reformulacio da estru- tura de poder, néo pela substituicéo das elites tradicionais peles novas, elites em ascensio, mas pela acomodaciio entre os diferentes atores em confronto”."' A participagio crescente dos setores populares urbanos impulsionava na diregio de uma efetiva democratizacao; as demandas sociais se multiplicavam num contexto onde as antigas instituigées es- tavam derrotadas ¢ no qual se definia o perfil de uma nova institucio- nalidade, prefigurada pela Constituigio de 1934. Ver, a respeito, oesclarecedor trabalho de . R. Mendonga, O ruralismo brasileiro, 1888-1931. i * 1 Bi Diniz, “O Estado Novo: estrutura de poder, relagies de classe”, em B, Fausto (dis) Hiseéria geral da cilizagao brasileira, op. cit, p. 84. VinGinia, Fontes © termo “Estado Novo” dé conta, melhor do que costuma ser ava- liado, do processo que se aprofundar4 com o golpe de Estado de 1937: uma efetiva reorganizagio do Estado brasileiro, sobre a base do alija- mento prévio da participagéo popular e de sua incorporagao subordi- nada, Desde 1935, quando é votada a Lei de Seguranga Nacional apés a derrota dos levantes em Natal e no Rio de Janeiro, dirigidos pelo Partido Comunista, restringia-se drasticamente a atuacao popular, pela repressdo direta, alastrando-se um anticomunismo partilhado por pra- ticamente todas as frages dominantes e difundido por todos os meios, inclusive os fraudulentos (como Plano Cohen). Diante do risco das eleigdes (mareadas para 1° de janeiro de 1938), o golpe militar de novembro de 1937 foi longa e cuidadosamente urdi- do: “O lento e continuo preparo do golpe da a Getiilio Vargas seguranca ecerteza dos seus resultados”, poucos liberais se manifestarao contra ele; Sao Paulo, reduto liberal, apressa-se a declarar seu apoio ao golpe. 0 Estado Novo significa uma efetiva reconfiguragéo da dominagio de classes no Brasil, a partir da qual o Estado contara com uma nova caracteristica: ele deverd conter, internamente, espagos capazes de atu- alizar a recomposi¢ao dos conflitos que atravessam as préprias classes dominantes. Nao haverd cerceamentos maiores para as formas asso- ciativas empresariais (rurais ¢ urbanas) e, ao contririo, elas crescerao ao longo desse periodo (na sua forma corporativa ou nas organizagSes paralelas)."* Doravante, as diferentes fra ies da classe dominante contariam com um espaco institucionalizado para sua representacio, ampliando-se a ossatura do Estado para conté-las e para assegurar suas disputas inter- nas. Reduzia-se a possibilidade da imposicao, de forma unilateral, das " Garone, Edgard. O Estado Novo, p. 254, '"*(..) a originalidade do novo esquema consistiria na tentativa de transpor 0 conflito ‘enue 05 diferentes grupos dominantes para a prépria burocraciaestatal através da auto: ‘presentagio dos interesses nos érglos técnicos”. Eli Diniz, op. cit. p. 114, 187 188 REFLEXGES IM-PERTINENTES determinagoes de. um certo grupo de interesses especificos sobre todos os demais. Os conflitos entre esses segmentos no interior do Estado, o aprendi- zado de um novo modo, técnico, para sua expressdio, a elaboracio sobre os impasses derivados dos processos externos e a necessidade de fazer frente ao movimento social urbano conduziam a uma ampliagio do Estado voltada para a absorcéio desses grupos, realizada por meio de uma ordem centralizada capaz de assegurar a reproducio desse con- junto de classes dominantes composto por interesses bastante diferen- ciados. Vale lembrar que as divergéncias internas entre esses setores incidem, também, sobre o alcance e 0 escopo do Estado no tocante & atividade econdmica, o que permite compreender os embates entre “liberais” e “intervencionistas” e sua coexisténcia no interior do mes- mo Estado. A esse processo eu chamo “ampliagio limitada ou restrita do Esta- do” no Brasil. Constituiu-se um Estado enquanto monopélio da violéncia legitima, mas apenas entre as diferentes fragées das classes dominantes. A violéncia exercida por elas sobre os setores subordinados continuaria aberta ¢ ilimitada, mas seria regrada doravante no seu préprio interior. Em outras palavras, reforgava-se 0 conjunto do poder dos grupos domi- nantes em detrimento, em certa medida, do poderio inclusive militar de certos grupos regionais (quer fossem milicias de grandes proprietétios, quer fossem forgas policiais regionais). Centralizavam-se as agéncias, as formas e os procedimentos coerci- tivos (Exército, policias), de forma a reforcar 0 poder do Estado sobre ‘as massas populares (urbanas e rurais), mas assegurava-se que todas as fragdes (ou quase) da classe dominante tivessem assento em érgios agora interiorizados no Estado, tecnificando-se os foros de decisio. Fo- ram criados nesse periodo, além de imimeras agéncias estatais, 0 Con- selho Federal de Comércio Exterior (CFCE), a Coordenagao da Mobili- zagio Econdmica (CME), 0 Consclho Nacional de Politica Industrial Comercial (CNPIC) ¢ a Comissio de Planejamento Econémico. VIRGINIA FoNTES Essa “ampliagdo restrita” do Estado corresponde a uma nacionaliza- cdo também truncada, Por que chamamos de “nacionalizago” esse pro- cesso? Porque, nos apoiando em Gramsci, consideramos que o Estado, sendo relacio social, torna-se “nacional” na medida em que se amplia e, para tanto, mobiliza nao apenas os aparelhos coercitivos, mas também os de convencimento. O convencimento (ou 0 “consenso”) nao deriva de alguma razao ou impulso “interno” ao préprio Estado, mas dos em- bates sociais politicos nos quais o préprio Estado se constitui. Ele se tomara um espago ampliado, capaz de compor internamente os con- flitos entre fragdes das classes dominantes em disputa pela hegemonia (pela conducdo e diregdo do proceso econémico, politico e cultural). Esse espaco ampliado deverd, sobretudo, assegurar as formas de con- trole social. Mas também deverd responder as reivindicacées populares, que se expressam, elas também, por meio de formas associativas (sindi- «ais, estudantis, democriticas). Por que nacionalizagao “limitada” ou “truncada”? Por duas razdes principais: o “monopélio da violéncia legitima” nao se traduziria por sua generalizagio, limitando-se a sedimentar o conjunto da dominagao de classes no Brasil, centralizando o aparato repressive sem alterar 0 quadro do exercicio diteto da violéncia pelos grandes proprietirios de terras ou de capitais, quer essa violéncia se exerca no campo ou nos centros urbanos."* A outra razo fundamental é que a centralizagéo da coergao néio opera somente no nivel da violéncia brutal e aberta, mas também da ‘coer institucionalizada e normatizada. Setores policiais e/ou civis de “informagao” serdo organizados, a divulgacio cultural serd censurada e sistematizada, regulamentacdes ¢ restrigdes serio erigidas, objetivando desmantelar, de forma sistemética e “legal”, as iniciativas de organizagao popular, Em termos gramscianos, procurava-se obstaculizar a formacao "4, ibid, p.113. Ver, sobre esse perfodo, o elissico de Vitor Nunes Leal, Coronelismo, enxada e voto. 189 190 REFLEXOES IM-PERTINENTES. de aparelhos privados de hegemonia de cunho popular, ou, ainda, da sociedade civil na sua contraface popular, enquanto se incorporavam ao Estado as demandas provenientes da outra face da sociedade civil, composta pelas associagdes empresariais ou assemelhadas. Esta é a razo pela qual o Estado precisard ser permanentemente apresentado como “doador”, como origem de “concessdes” a0 povo e ‘como resposta coercitiva — 0 que de fato é — as reivindicagées efetivamente formuladas pelos diversos setores populares; 0 corpora- tivismo foi implantado por procedimentos fortemente coercitivos € so- mente dessa forma pode se manter ao longo do tempo. Sua condigio de instalagdo era a violéncia aberta contra as formas auténomas de organizacao.. © Estado, de fato, tornava-se “nacional”, ao agregar a multiplicidade dos grupos dominantes sob a forma da representagiio, por meio de as: sociagdes de interesses, nas instAncias e agéncias piiblicas. Mas esse na- clonal restava truncado, ao no admitir a incorporagio de organizagées auténomas dos grupos subalternos, mantidas sob estrita repressio. Essa hipétese da “nacionalizacao truncada” do Estado no Brasil talvez. nos permita avangar na compreensao de fendmenos econdmicos, politicos ¢, finalmente, das formas de expressio ideolégicas que se estruturam a partir da década de 1930 e seguem deixando suas marcas ao longo dos perfodos ulteriores. Essas marcas podem ser percebidas na imensa literatura que se pro- duziré, no Brasil, sobre a centralidade do Estado, o papel do Estado, 0 protagonismo do Estado... O Estado parece tornar-se um sujeito dotado de vontade prépria, erigindo-se em instancia central dos processos eco- némicos e sociais. O movimento hist6rico a partir do qual se consolida uma determinada forma de Estado no Brasil sera de tal modo incorpo- rado que inclusive seus criticos passardo a pensar o Estado tal como ele se apresenta, E como ele se apresenta, em seus primérdios? 0 discurso de Ge- uilio Vargas € ilustrativo, ao subsumir a nacdo ao Estado, eliminar a Vincinia Fontes 191 representagdo politica do sufragio ¢ assegurar as formas de “consulta” direta pela incorporagio dos grupos dominantes: “(...) 0 Estado ¢ a nagéo, € deve prescindir, por isso, dos intermedidios politicos, para manter contatos estreitos com o povo € consultar as suas aspiragées e necessidades”.*¢ Para uma tal nacionalizagdo limitada e truncada, a coergéo diante das reivindicagées populares era uma das condigdes centrais. Mas a coergao deveria exercer-se doravante sob mtltiplas formas: a) As reivindicages populares — sindicais, partidarias, associativas, culturais — jé tinham um cunho organizativo e, embora pudessem ser silenciadas pela violéncia, permaneciam em estado latente, tanto mais corrosivas quanto mais duramente se abate a repressio. b) No Ambito internacional, as principais vertentes politicas (liberal, catélica, nazi-fascista) empreendiam uma luta acirrada pela incorpo- ra¢o subordinada dos trabalhadores, forma encontrada para limitar sua auto-organizago, ao mesmo tempo em que difundiam uma intensa propaganda anticomunista. ©) Um Estado capaz de “pacificar” a luta interna, de cunho até mes- mo militar, entre os setores dominantes e de centralizar 0 conjunto dos elementos coercitivos poderia agora se tornar “nacional” para além das fronteiras estreitas de cada um dos grupos dominantes.. @) Para tanto, poderia contar com o apoio de uma parcela desses setores urbanos que, contraditoriamente, expandiam-se em fungéo da propria modernizagdo do aparato administrative. Uma carreita e as- censio social, reconhecimento e visibilidade, para além da insergo num projeto de cunho cultural e intelectual, operariam como formas de atraciio.%” Certamente, no estamos lidando com processos lineares “No limiar do ano de 1938", diseurso pronunciado em 31 de dezembro de 1937, Getilio Vargas, apud L. W. Vianna, op. cit, p. 265. Hi jé uma vasta produgio bibliogréfica sobre 0 tema, de que vale mencionar Sergio Micelli, Daniel Pecaut, Luciano Martins, Marcia Chuva, dentre outros. 192 REFLEXOES IM-PERTINENTES € essa insergio intelectual abrird espacos de diferenciactio posterior (¢ de conflitos) entre tais segmentos. Considerado esse contexto, 0 Departamento de Imprensa e Propa- ganda (DIP), organizado em plena ditadura estado-novista, em 1939, assume todo o seu relevo. 0 DIP parece corresponder exatamente a for- mulagdo de Gramsci: Os intelectuais sao os “comissdrios” do grupo dominante para 0 exercicio das fungGes subalternas da hegemonia social e do go- ‘verno politico, isto é: (1) do consenso “espontineo” dado pelas grandes massas da populagao & orientagio impressa pelo grupo fundamental dominante & vida social (...); (2) do aparato de coerco estatal que assegura “legalmente” a disciplina dos gr- pos que no “consentem”, nem ativa nem passivamente..."# © DIP cumpria as duas fungSes simuleaneamente: a repressiva, por meio do controle, censura e impedimento as formas de expresso de vozes dissonantes, ¢ a sistematizadora, envolvendo a producao de uma teflexio sobre o Estado, o Estado Novo, a cultura nacional, atuando ati- ‘vamente na constituigo do chamado “mito Vargas” e divulgando-o pela propaganda, exatamente como a divulgagio de uma mercadoria. A coercio se exercia aberta e diretamente pela estreita relacao entre 0 DIP e as Delegacias de Ordem Politica e Social, com seus correlatos nos Estadlos, os Deops. Desmantelavam-se as pequenas gréficas que produ- ziam e distribuiam textos criticos; livros eram apreendidos e quetmados publicamente; a censura atuava como uma verdadeira caga as bruxas, de perfil acenttadamente anticomunista."” O DIP centralizava a gestdo da ™ A, Gramsci. Os incelectuals ea organisagto da cultura, p. 11. ML L. Tucci Cameiro, Livros proibidos, ‘dias maldieas 0 Deops ¢ as minorias silencadas. Virginia Fontes informago nos dois sentidos: identificava as diversas tendéncias exis- tentes para repassd-las aos drgdios superiores e uniformizava as informa- ‘bes oficiais a serem divulgadas pelos meios de comunicagao. Vale lembrar que a censura, a violéncia e a coergéo nao podem ser pensadas unicamente em sua forma brutal e aberta. Elas também se cexercem de formas mais sofisticadas e discretas. Para além da persegui- «go direta e das prises, 0 DIP monitorava os veiculos de informagio, a partir da instalagao de uma censura permanente. A censura mais efetiva é a que vai além da proibigo e se exerce sobremaneira ali onde “parece permitir”: na definigao de quem, como ¢ em que condigdes teré acesso aos meios de comunicagio de massa. Assim, 0 DIP participou na definigdo das normas para a regulamentagio dos meios de comunicagéo de massa (imprensa, rédio, cinema, teatro) e fiscalizava a aplicagao de tais normas; realizava a cobranga de taxas e multas, distributa isengGes e favores, outorgava prémios e facilidades. Ta ainda além, ao interferir na propria administracio das empresas, por meio de seu cadastramento obrigatério e da barganha em torno da con- cessdo de subsidios (como o da importagao de papel). © DIP nao era, portanto, apenas mais um érgio policial. Concentra- va intelectuais voltados para a formulacao e difusdo de uma nova forma de pensar e de viver 0 Estado. Considerado como um “superministério” do Estado Novo, ele foi um dos locais de formagao de uma intelectu- alidade ligada a uma nova visio de mundo. Nao se pode reduzir essa visio de mundo simplesmente & adeso — ou ao reptidio — ao “mito” ‘Vargas, embora este tenha tido grande impacto e forga aglutinadora. Construfa-se um elo social, uma pritica e exigéncias no ambito do Esta- do que se diferenciavam das formas precedentes. Esses intelectuais dis- tanciavam-se de suas origens sociais,2" eram ressocializados em outra * Como o caso do préprio diretor mais importante do DIB conforme analisado em Sonia de Castro Lopes, Lourival Fontes. As duas faces do poder. 193 194 RerLexOes IM-PERTINENTES dindmica, viam-se e percebiam-se como falando em nome do “Estado” eda “Nagio". ‘Apesar de permanecerem apadrinhamentos, 0 fulero de legitimagiio das atividades no interior do Estado se modificava, nao mais respon: dendo apenas a uma dependéncia pessoal direta: a construgo e a con- solidagdo de novas competéncias técnicas/cientificas deveriam agora lastrear a ocupagio de postos, principalmente os mais reconhecidos. Essa nova base de legitimagio produzia “pensadores” da nagéo ¢ con- , como “formadores” do solidava sua intervengao como a voz da “na povo, como encarnacao do “piiblico” © DIP integrava uma vasta rede de transformacoes no Estado, nas quais a cultura passaria a ter papel fundamental, sobretudo se a consi- deramos em seu sentido pleno e no apenas no sentido “letrado”. A cul: tura é tomada aqui como o aprendizado de um certo modo de ser, como a interiorizagio de certos comportamentos é valores, como a integragio iversos momentos da vida social, como a criagao de articulada entre tum perfil especifico tanto para o Estado quanto para a ascensi social no seu interior. Esse processo articula e coliga o DIP & centralizagao das Forgas Armadas, & criagdo do DASP — Departamento Administrativo do Servigo Publico, 20 Ministério da Educagao, a criagdo do Instituto Nacional do Livro, do Servigo do Patriménio Historico Nacional, do Ser- vvigo Nacional do Teatro, da Casa Rui Barbosa, do Servigo de Radiodifu- so Educativa, da Biblioteca Nacional, do Museu Hist6rico, do Museu Nacional de Belas-Artes, do Instituto Nacional do Ginema Educativo, por exemplo. Buscava-se homogeneizar, pelo alto, o conjunto da produciio cultural ¢ educativa. Caberia doravante ao Estado — expressiio de uma nova correlagao de forgas entre os grupos dominantes — a tarefa de definir inclusive em que consiste 0 popular, por meio de prémios e de direcio- namentos impostos ditatorialmente. ‘A partir desse periodo, um certo segmento social, intelectual, sera levado a acreditar-se, de fato, acima do restante da populacao: pela sua Vircinia Fontes formagio, pelo seu cargo, pelo seu modo de falar e de comportar-se** Essa nagao “limitada” é seu alvo e referéncia e é em nome dos objetivos que esses grupos definem que a populagio deveria ser educada, dis ciplinada, organizada e preparada para que, um dia, assumisse 0 seu lugar, admitido agora como legitimo, mas postergado para um futuro incerto. Em que frentes atuava o DIP esse verdadeiro “intelectual coletivo” Considerado por alguns como um superministério, ele na pratica enfei- xou 0 monopdlio dos veiculos de informagdo, eensurando, garantindo a uniformidade entre as diversas publicagées e direcionando, num pti meiro momento, o conjunto dos érgdos de comunicagao. A censura nfo se limitava a cortar 0s textos, mas os alterava ¢ ajustava. Ele atuava também produzindo reflexes e difundindo-as, por meio de publica- es como, por exemplo, a revista Cultura Politica, revista oficial do DIR da qual participam os grandes intelectuais da época e que formulam e sistematizam o que seria a “inteligéncia brasileira”, enquanto outra revista, a Ciéncia Politica,” seguindo as orientagées do mesmo DIR des- tinava-se a “socializar um conjunto de conhecimentos metodicamente controlados e ‘sistematizados’, contribuindo para formar a consciéncia politica da nago”. Na Cultura Politica, estabeleciam-se os “problemas” as formas legitimas de pensé-los e encaminhar as respostas; na outra publicacdo, forjava-se uma “escola de patriotismo”, onde tais ensina- mentos se traduziriam em propostas de ages priticas ¢/ou comemora- tivas, Em ambas as revistas, as colaboragées eram bem pagas (em tomo Vale a leitura do excelente trabalho ce Marcia Chuva, Os arguitetos da meméria: a {onatagdo do patrimdniohistrioe attico nacional no Bras anos 30 40. A Cizncia Politica era publicada pelo recém-crindo Instituto Nacional de Ciéncia Po- te Monica Vlloo, “ulm e poder polit tual", * 1d, ibid, p. 76 ima configurago do campo inte- 195 196 REFLEXOES IM-PERTINENTES do dobro do que se praticava nas demais publicagées), constituindo-se assim em canal prestigioso e bem remunerado de divulgagio. Mas a difusdo de bens culturais nao se limitava a isso, como mos- ta pertinentemente Silvana Goulart Inclufa também a produgao de livros, cartazes, folhetos, revistas, programas de rddio, filmes e noticia rios. Atuava diretamente sobre 0 conjunto da imprensa, por intermédio da criagdo da Agéncia Nacional. Esta produzia um noticiério de cunho nacional, incorporando correspondentes regionais e distribuindo gra- tuitamente ao conjunto da imprensa seus boletins. Em outros casos, a Agéncia Nacional produzia boletins — ou mesmo matérias — a se- rem encartados na imprensa, pagos pelo governo federal. O Cinejornal brasileiro, produzido pela Cinédia sob a supervisdo do DIR era exibido obrigatoriamente antes dos filmes, nas salas de cinema, Em 1941, a quantidade de livros produzidos pelo DIP chegava a um por semana, muitos deles de distribuigio gratuita. O DIP ainda promovia eventos e comemoracées de carder civico, em articulagéo com escolas, Igrejas, sindicatos, além de manifestagées cul- turais com vistas & produgao de uma “cultura nacional”, como palestras, concertos (de miisica erudita e popular), conferéncias ete. Finalmente, orientava 0 contetido das mensagens dos meios de co- municagio, utilizando os jomnais e rédios incorporados ao Patriménio da Unido, por intermédio dos quais promovia concursos e premiagdes."* Como se pode observar, o DIP nao era uma instncia isolada, nio era uma emanagio direta de um ditador enfeixando todos os controles. Ao contrétio, era uma agéncia que pertencia a uma rede complexa de institu Ges administrativas entio criadas, que correspondiam, no seu formato, es- copo, maneira de atuagao e entrelagamento, a uma profunda modificagio Em Silvana Goulart. Sob a verdade oficial: ideologia, propaganda e censura no Estado Novo, encontra-se uma sistematizagio cuidadosa das atividades desempenhadas pelo DIR que lastreia as informagées expostas a seguie, Idem, pa Vircinia FoNTES no Ambito do Estado. A coergdo direta sobre os grupos populares duplica- va-se agora pela incorporagdo seletiva e pela formagao cultural sistemé- tica, ainda que sob uma forma impositiva e propagandistica. Esse novo formato estatal nao serd modificado apés o final do Esta- do Novo. 0 fechamento de uma ou outra agéncia, caso do préprio DIR ou a eventual modificago de alguns de seus elementos pouco altera- riam 0 conjunto institucional. O final da ditadura varguista assistiria & retomada de manifestacées e reivindicagdes em todos os espacos ad- ministrativos, muitas de cunho popular. Essas lutas penetrardo nessas instituigdes, mas o perfil do conjunto jé estava tracado. 0 perfodo ditatorial consolidaria uma nova formatagio do Estado, ‘como espaco de representacao seletiva dos grupos dominantes, com um. renovado “monopdlio limitado da violencia”, restrito as lutas abertas entre as fragdes dominantes, mas tolerando o uso da violéncia direta por esses mesmos grupos dominantes contra os setores populares. Essa modalidade de participagao, pela agregacdo direta das associagées re- presentativas dos interesses patronais no Estado, contribufa para uma fraca participagdo partidéria, demandando em contrapartida a conti- nua expansio da propaganda de massa e o retraimento da publicizagio efetiva. Esse processo contribuiria para a naturalizago do Estado, no caso brasileiro, como figura “acima da sociedade”, cujas caracteristi- cas extremamente repressivas serio consideradas como “necessirias” € condicdo de “modernizacao”. Dentre os aspectos repressivos, figura a nova centralidade da propa- ganda mercantil como forma de controle da informacao, por todos os meios de difusdo. 0 DIP forneceré 0 modelo e o padrio da propaganda governamental a ser seguido daf para a frente, mesmo apés seu de- saparecimento, em 1944. Sua extingio corresponderé & manutengao, agora em nfveis especializados, das diversas funges que cumprira ou das quais demonstrara a viabilidade2* ** Nao compete, neste espaco, avaliar as modalidades pelas quais ocorreu a incorporacio 197 198 REFLEXOES IM-PERTINENTES (© Estapo Novo, PROPAGANDA E NACIONALIZAGAO TRUNGADA 0 Estado Novo nao deve ser analisado em partes seccionadas, nfo deve ser dissecado corfio um cadaver frio, uma vez que exala ainda seu odor ‘em nossos pordes. Se o Estado Novo termina em 1944, o novo Estado por ele consolidado permaneceré em vigéncia por muito tempo. Em face das demandas sociais de publicidade (tornar conhecido de todos ¢ pertencente a todos), expressas nas décadas de 1920 ¢ 1930, a implantagéo do DIP responderia com a construggo de uma propaganda oficial, de cunho catequético e laudatério. A publicidade tornou-se siné- nimo quase exclusivo de propaganda remunerada. A partir da década de 1940, a expansdo das agéncias de propaganda (e, posteriormente, de marketing) aprofundaria tais caracteristicas, mercantilizando aber- tamente a publicizago dos atos governamentais. O procedimento seria retomado em grande escala no perfodo da ditadura militar pés-64 ¢ se encontra hoje generalizado, com o préprio processo eleitoral sendo conduzido por agentes de propaganda ‘A centralizagio dos meios de informagdo seria plenamente retoma- da em 1964, Mesmo fora de perfodos ditatoriais, os recursos canaliza- dos pelo Estado permitiriam uma permanente intervencéo — aberta ou discreta — nos jornais ¢ emissoras de radio e televisio, por meio de subveng6es, de subs{dios, pelo uso seletivo dos recursos da propaganda governamental e pela omissdo quanto ao estabelecimento de monopd- lios, algumas vezes diretamente apoiados pelos governos. A ampliagio limitada do Estado prosseguiria como caracterist. ca fundamental do Estado brasileiro. © reconhecimento das formas associativas dos grupos dominantes (e de sua multiplicago) seguiu dos intelectuais ao Estado no periodo do Estado Novo — cooptacdo, para muitos; adesiio, para outros; promessa de ascensio social para tantos outros. Sao diferen: ciadas e miltiplas as razdes pelas quais arquitetos, engenheiros, escritores, literatos, poetas, educadores, bacharéis, médicas e outros intelectuais ingressam doravante Nos escaldes do governa. VirnGinia Fontes 199 assegurando-thes uma relagio direta com a sociedade politica e agéncias executivas, nfo mediada (ou fracamente mediada) pelos partidos politicos, como por exemplo por intermédio dos grupos executivos do periodo Juscelino Kubitschek, dos famosos “anéis burocriticos”” durante a ditadura militar ou, ainda, do exercicio do governo por meio de medidas provisérias, durante os dois mandatos de Fernando Henrique Cardoso, A brutalidade ¢ a coergio permanecem ainda como modalidades principais do trato com as reivindicagoes populares, no campo € nas cidades, Essa nacionalizagio truncada foi capaz de assegurar uma longa dura- Gio a essa reconfiguragio do Estado. Assim, apesar da democratizagéio no pés-46, esse processo ainda se aprofundaria, conseguindo unificar e transformar bandeiras como as do “desenvolvimento” e da “moderni- zacio” (isto €, expansio da acumulagao capitalista sem contrapartidas sociais) em questées nacionais, ao mesmo tempo em que se mantinha ‘0 mundo do trabalho segmentado, tanto pela separacao legal entre tra- balhadores rurais e urbanos quanto pela regionalizagao da legislagio trabalhista, principalmente em termos salariais. Nao foi entretanto sem resist@ncia que tal processo ocorreu, defron- tando-se com lutas sociais 4speras, que buscavam reconhecimento de suas formas associativas préprias traziam exigéncias de uma efetiva ampliagdo do Estado, pela incorporacdo de reivindicagées populares. Dois momentos histéricos altos marcaram esas lutas: 0s anos 1960- 1964 a década de 1980. O primeiro soldou-se por uma ditadura, onde otermo “democracia” esvaziou-se de todo significatido efetivo; o segun- do pela tentativa de recompor tal estratégia a partir da “nacionalizagic ® Expressio cunhada por Fernando Henrique Cardoso e fartamente empregada pot Cientstas sociais, em que pese o fato de deslocar 0 eixo do problema da artculagio Peculiar das clases dominantes no Brasil para um segmento “burocratizado" e“desper- ‘onalizado”. Ver, por exemplo, 0 modelo politico brasileiro, 200 REFLEXOES [M-PERTINENTES truncada” da inflagio como problema central do pais, a ser redimida pela internacionalizagao da economia © perfodo pés-1989, com a retomada do Estado de Direito e, com mais propriedade, a eleigo de Luis Indcio Lula da Silva, assinala a possibilidade de mudanca do modelo institucional implantado desde © Estado Novo e de uma efetiva nacionalizagéo do trabalho, permitin- do pensar numa ampliagéo substantiva do Estado no Brasil. Em outras palavras, abria-se a possibilidade da generalizacio dos procedimentos clissicos do que se convencionou chamar de democracia burguesa, ou de “revolugdo democrdtico-burguesa”, e da superagiéo dos estreitos li- mites politicos e sociais que marcam 0 caso brasileiro, o que significaria uma verdadeira subversio das bases nas quais se assentou até aqui a dominagio de classes no pais. No entanto, todo o programa do candidato Lula a Presidéncia calcou- se na generalizagio da propaganda,** com uim nitido recuo do estimulo & consolidacdo da autonomia da organizacao classista de cunho popu- lat. Ora, néo serd a propaganda que haverd de permitir a social da politica, mas a admisséo da legitimidade dos movimentos sociais, de suas formas organizativas, com a efetiva constituicao de uma vonta- de nacional-popular. Em outras palavras, somente a nacionalizagao do trabalho, com a incorporagao no Ambito piiblico das reivindicagées de cunho classista de base popular, permitiria uma ampliagao do Estado capaz de apontar para o ambito de socializagio da politica, ainda que truncada por suas limitagées parlamentares. % Cl. Virginia Fontes, "ConsideragSes sobre um debate eleitoral’, site Gramsci: www. artnet.com. br/gramsei/politica/htrn. Que hegemonia? Peripécias de um conceito no Brasil! O conceito de hegemonia formulado por Gramsci — uma das mais im- portantes formas utilizadas para pensar a politica na atualidade — central tanto para suas andlises histéricas quanto para o embasamento de suas propostas de agéio politica revolucionéria. Neste artigo, apre~ sentamos algumas interpretaGes lastreadas no uso desse conceito — especificamente sobre a histéria do Brasil — e discutimos alguns desdo- bramentos tedricos e politicos desses usos. Inicialmente, vale esclarecer que nao se trata de desenvolver uma cexegese do conceito em Gramsci? ou uma identificagao exaustiva das implicages conceituais presentes em cada uma de suas utilizagées. As modalidades especificas de utilizagdo de um conceito, por atuali- zé-lo, podem, decerto, amplié-lo, modificd-lo, retiré-lo de seu contexto teérico original ou mesmo deturpé-lo. Nos interessa aqui o quanto as atualizagées do conceito de hegemonia no Brasil expressam a comple- xidade sugerida por Gramsci, capaz de tensionar a reflexio hist6rica, ou apenas fornecem um quadro de fundo, sem interrogar 0 sentido ow aprofundar a dimensio do problema histérico-politico do Estado no Brasil. Dividido em trés partes, este artigo apresenta primeiramente o perfil da crise de hegemonia no caso brasileiro; em seguida, retoma algumas grandes linhas de interpretagéo do Estado no Brasil, para ° Bate artigo foi elaborado a partir de apresentago no Encontro Internacional Gramsci eo mundo I— Gramsci: fldsof, intelectual y politico, realizado em novembro de 2001, no Instituto de Filosofia, Havana, Cubs. Agradego a Lucia Wanderley Neves a sugestéo do tema deste trabalho, além da sempre amigavel e séria disposicio para o debate fran: 0 e aberto, Publicado originalmente em Histéria, Debates e Tendéncias — Revista do Programa de Pés-Graduacdo em Histéria. (Rio Grande do Sul: Universidade de Passo Fundo, v4, n. 2, dez. 2003). * Para mencionar apenas textos mais antigos e pioneiros, L. Gruppl, 0 conceito de hege- ‘monia em Gramsci; e Perry Anderson, As antinomias de Gramsci.

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