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SANKOFA 4 AFROCENTRICIDADE Uma abordagem epstemologica inovadora ? Hlsa Larkin Nascimento ong) a AFROCENTRICIDADE: NOTAS SOBRE UMA POSICAO DISCIPLINAR Molefi Kete Asante Dzrinigio Aria alrocéntrica refere-se escencialmente proposta epistemalogica do lugar. Tendo sido os africanos' deslocaclos em termos culeurals, psico- 6gicos, econdmicos e hist6ricos, é importante que qualquer avaliacao de suas condigdes em qualquer pals seja feta com base em uma localizacto ‘contracla na Aftica e sua didspora. Comegamos com a visio de que a affo- centricidade é um tipo de pensamento, priticae perspectioa que pereebe os africans como sujeitose agentes de fenémenos atuanco sobre sua prépria imagem cultural ede acordo com seus préprtas lnteresses humanos. Apresentar uma definigao ndo signifies exaurir o poder de um con- ccoito, Na verdad, pode eriar novas diffculdades, « menos que exan de. finigio seja explicada de maneita a elucidar a ideia. A afrocentzicidade é uma questéo de localizacao precisamente porque os afticanas vém atuando na margem da experiéncia eurocéntrica. Muito do que estuda- mos sobre a histéria, a cultura, a literatura, a linguistica, a politica ou a economia afticanas foi onquestrade do ponto de vista dos interesses eu- opens, Quer se trate de economia, quer de historia, politica, geografia ou arte, os africanos tém sido vistos como periféricos er» relagao & ati- Vidade tida como “real” Nos Estados Unidos, esse descentramento afe- 93 rou tanto os africanos quanto os brancos, Assim, ao falar da afrocentrici dade como uma redefinigio radical, procuramos reorientar os africanos ‘uma posigéo centrada (Asante, 1998), Se CONSCIENTIZAGAO OEE A afrocentricidade emergiu como processo de conscientizagio politica de um povo que existia a margem da educagio, da arte, da ciéncia, da economia, da comunicagio e da tecnologia tal como definidas pelos eurocéntricos. Se bem sucedido, o pracesso de recentralizer esse povo criaria uma nova realidade e abriria um novo capitulo na libertagao da mente dos africanos. Era essa a esperanga quando publiguel Affocentrt cidade em 1980. O objetivo era desferir umn galpena falta de consciéncia ~ nao. falta de consciéncia apenas da opressio que sofremos, mas tamn- ‘bém das vitérias possiveis. Seria concebivel analisar relagdes humanas, interacdes multiculturas, textos, fendmenos ¢ eventos, bem como atli- bertacao iticana, da perspectiva de uma nova orientagdo para os fatos. © propésito fol, desde sempre, criar espago para seres humanos conscientes que, estando centrados, se comprometem com 0 equilfbrio mental. A ideia de conscientizacdo esté no centro da alrocentricidade por ser o quea torna diferente da afticanidade, Podo-se praticar os usos fe costumes africanos sem por isso ser afrocéatrico, Aftovenaricidade éa conscientizagdo sobre a agéncia dos povos afticanos. Hssa é a chave para a reorientagao e a recentralizagio, de modo que a pessoa passa atuar ‘como agente, endo como vitima ou dependente, see O CONCRITO DE AGENCIA __aneeeeeees sees ‘Um agente, em nossos termos, é um ser bumano capaz de agir de forma independerste em fungio de seus interesses. Ki a agéncia & a ca- pacidade de dispor dos recursos psicologicas e culturais necessérios para o avango da liberdade humana, Ens urna situacao de fata de liber- dade, opressio e repressio racial, a idela ativa no interior do conceito oa + Aruocerrmicioae: SOFAS suBRE Une POSED CISCIELINAR de agente assume posigao de destaque. Qual o significado pritico disso no contexto da afiocentricidade? Quando consideramos quesiées de lugar, situagao, contesto e ocasido que envolvam patticipantes africa- ‘nos, 6 importante abservar 0 concetto de agéncia em oposicio ao de desagéncia. Dizemos que se encontra desagéncia em qualquer situagao nna qual 0 afticano seje descartado como ator ou protagonista em seu préprio mando, Estou fundamentalmente comprometido com a nocio de que os aftleanos dever ser vistos como agentes em termos econdmicos, cul turais, politicos e sociais. O que se pode analisar em qualquer discurso intelectual é se 6s afticanos sao agentes fortes ou fracas, mas nao deve haver diivida de que essa agéncia existe. Quando ela ndo existe, temos a condigio ca marginalidade - e sua pior forma é ser marginal na pr pria histérla. Tome-se, por exemplo, o relato de Robert Livingstone s0- bre a Africa, em que toda a historia de uma regio daquele continente se transforma naquifo que aconteceu a um homem branco em meio & centenas de milhares de africanos. Nao ha agéncia em nenhuma das personagens africanas? Seré que a historfogratia da Africa central deve- ria sera do relato de Livingstone? Nao haveria outras formas de abordar ‘um tépiea como esse? s afticanos tém sido negados no sistema de dominagao racial branco. Nao se trata apenas de marginalizagao, mas de obliteracéo de sua presenca, seu significado, suas atividades e sua imagem, E uma rea- lidade negada, a destruicao da personalidade espiritual € material da pessoa afticana, O afticano, portanto, deve ser consciente, estar atento a tudo e procurar escapar & anomia da exclusdo. Em um certo nivel esse & ‘um problema linguistico, mas em outro se trata de enrentar a realldade de situagbes econdmicas e culturais construidas. Afrocentricidade no ¢ religido, é por isso que os elementos consti- tutivos dos valores africanos sao sujeitos a debate, embora sejam funda- mentais para a investigagéo alrocentrada, No interior da proposta afro- entrada nao ha sistemas fechados, ow seja, nao existem ideias vistas como absolutamente fora dos limites da discussdo e do debate. Assim, 0 emprego da afrocentricidade na andiise ou na crftice abre caminho para Co exame de todos os temas relacionados a0 mundo afticano, 95 6 MouAPY KEE ASANTE + CARACTERISTICAS MINIMAS ‘Tenho sustentado que as caracteristicas minimas para um projeto afrocéntrico devem incluir: 1} interesse pela localizacao psicalégiea; 2) compromisso com a descoberta do lugar do afticano como sujeito; 3) defesa dos elementos culturais alricanos; 4) compromisso cam o refi- ‘namento léxico; 5) compromisso com uma nova narrativa da histérla da Africa. Danjuma Sinue Modupe (2003) apresentou a mais completa re- lagtio de elementos constituintes da afrocentricidacle: vontade cognitiva comunal, desenvolvimento africana, matriz. de consciéncia, libertagio psfauica, resgate cultural, afticanidade, personalismo africano, praxis afroctntrica, estutura conceituial afrocéntrica, integridade da estrutura, cause, efeito, mitigagéo, construtos teéricos, distingdes criticas teéricas, ghion? estrutural, consciéncia vitoriosa e perspectiva afrocéntrica, Interesse pela localizacdo psicolégica ‘Trata-se de uma idea fundamentalmente perspectivista, Para 0 alto- centrista a anilise de uma pessoa com frequéncia se relaciona com lugar onde sua mente esti situada, Por exemplo, nonmalmente & pos- sivel determinat se uma pessoa esté localizada em uma posiedo central em relacdo ao munda afticano pelo modo como ela se elaciona com @ infotmacao afticana, Se ela se refere aos africanos como “outros, perce- ‘hemos que os vé como diferentes de si mesma. Essa é uma das formas pelas quais funciona o deslocamento. Evidentemente, se a pessoa néo é africana mas tenta fazer uma andlise afcocéntrica, @ que se observa é sua capacidade de olhar 08 fendmenos do ponto de vista dos préprios afticanos. Quem tenta construir um curriculo escolas, uma prética de servigo social ou uma literatura afrocentraclos deve prestar atengao &10- calizagao psicoldgica ou cultural. “Localizagio’) no sentido afrocéntrico, refere-se ao lugar psicol6- gico, cultural, bist6rico ou individual ocupado por uma pessoa em dado momento da hist6ria. Assim, estar em uma localizariio ¢ estar fincedo, temporéria ou permanentemente, em determinedo espace. Quando 0 sfrocentrista afirma sex necessério descabrir a localizecao de alguém, 96 ‘+ ammocenraiciDans: NOTAS SORRE UMA POStGHO DISCIPLINAR + refere-se a saber se essa pessoa est em um lugar central ou margi nal com respeito a sua cultura. Uma pessoa oprimida esté deslocada quando opera de uma localizagao cenirada nas experiéncias do opres- sor. Coma percebeu Meri, uma vez que o colonizado esté fora do quadro ele “nao é mais sujeito da histéria’ (Memmi, 1991, p. 92). Bvi dentemente, o objetivo do altocenirista é manter o atrieano dentro, ¢no centro, de sua pripria histéria, Compromisso com a descoberta do lugar do africano como sujeito 0 afrocentrsta estd preocupado em descobris, em todo lugar e qual- quer circunstéine‘a, a posigso dle sujeito da pessoa africana, Isso é parti- ‘cularmente valido nos casos em que os assuntos significativos — ou sefa, ‘8 temas, tépicos e as preocupagdes — referem-se as idelas e as ativida- des dos afiicanos, Com muita frequéncia, a discussao dos fenémenos _afticanos tem se dado com base naquila que peosam, fazem e dizem os ‘europeus, € nao no que os préprtos africanos pensar, dizem e fazem, Desse modo, 0 propésito do aftocentrista é demonstrat um forte com- promisso de encontrar 0 lugar do africano como sujetto em quase todo evento, texto € ideia. Isso nao ¢ ficil, porque @s complicagoes da iden- tidade de lugar séo frequentemente descobertas nos intersticios entre 0 ‘que nés somos 0 que desejamos ser. Embora sejamos capazes de deter- minar 6 que a pessoa éem dado momento, ndo podemos saber tudo que cla pode vir a ser amanha, Ainda assim, devemos ter o compromisso de descobrir onde uma pessoa, um conceito ow una ideta africanos entram ‘como sujeitos em um texto, evento ou fendmeno. Defesa dos elementos culturais africanas Oalrocentrista esté preocupado em proteger e defender os valorese ele ‘mentos culturais afticanos como parte do projeto humano, Nao se pode ‘assumir uma orientagao volteda pata a agéacia africana sem respeitar a dimensdo criativa da petsonalidade africana e dar um lugar @ ela. 190 no significa que todas as coises africanas sejam boas ou iteis, mas que 9 {= mouget Kern asanre + ‘aquilo que os alricanos fizeram ¢ fazem representa a criatividede hu- ‘mana, Tudo isso remete eo fata de que muitos intelectuais e eseritores do passado desprezaram as eriagoes afticanas, fossem elas na miisica, nna danga au na arte, fossem na ciéncia, como algo diferente do restante da humanidade, Era uma atitade inegavelmente racista, ¢ qualquer in- terpretacao ou andlise de elementos ou contribuigdes culturals aftiee- Tos que negue esses elementos ¢ suspetta, CO aftocenttista, contudo, usa todos os elementas linguistics, pslco dgicos, sociol6gicos e flos6ficos para defender os valores cultuals airi- anos, Diante de argumentos conirérios a valores, habitos, costumes, religido, comportamentos ou pensemento africanos, o afrocentrista en contra, tanto quanto possivel, a auténtica compreensio africana desses elementos, sem impor interpretagies eurocéntrices ot néo-afticanas. Isso permite que 0 intelectual tenha uma avaliagae nitida do elemento cultucalafricano em questao. Compromisso com o refinamento léxico Tipicamente, 0 afrocentrista deseja saber se a linguagem usada em um texto ¢ baseada na ideia das africanos como sufeltos, isto é, se 0 escri- {or tem alguma compreenséo da natureza da realidade africana. Por exemplo, quando um inglés ou um norte-americano chama uma casa africana de "choupana’ esté deturpando a realidade, © afrocentrista aborda a questio do espago de moradia dos afticanos do ponto de vista da realidade africana. A ideia de casa ma lingua inglesa faz presus mir um prédio moderno, com cozinha, banheiros e dreas de recreagho, rente. Assim, 0 case deve ser concebida ‘mas @ conceito afticano & ‘como um conjunto de estruturas em que uma é usada para dormls, ouira para armazenar bens e objetos de uso doméstice e outra, ainda, para receber convidados. A corinha ¢ a érea de recreagao estao em ¢s- ‘paces diferentes do utilizado para dormir. Portanto, é importante que, ao avaliar as ideias culturais afticanas, a pessoa preste muita atenctio a0 tipo de linguagem que est sendo used. No caso dos domticflios afti- ‘canos, deve-se primeizo perguntar o nome que eles préprios atribuem ao lugar em que dormem. Essa é a tinica forma de evitar 0 uso de ter~ 98 + AFROCEHTRICIDADE: NOTAS SOBKE UMA POSIGKO BIsCPLINAR + ‘mos negativos como “choupana’ para se referir aos lugares em que vi vem os afticanos. Também poderfamos ampliar a andlise examinando as diferencas de compreensao do conceito de casa e lar, ¢ assim por diante, em diferentes comunidades culturais africanas. Desse modo, 9 afrocentrista auténtico busca livar-se da linguagem de negagéo dos afticanos como agentes na esfera da histéria da propria Aftica. As re- ferencias & Africa e aos africanos na eduicacao ocidental - com exce- Gao de um mimero limitado de pensadores progressistas - reduzicam 0s africanos & condigao de seres indefesos, inferiores, nao-humanos, de segunda classe, como se ndo fizessem parte da histéria humana e fossem, em algumas situagdes, selvagens. Essas contribuicées euro- elas ao Kxico da historia afticana ainda dominam em ceztos casos, criando um problema no mundo intelectual e na literatura acadé- mica, © pensamento afrocentrado se engaja no processo de desvelar ¢ conrigit as distorgdes decorrentes desse léxico convencional da his- ‘Gris africana, Compromisso com uma nova nazrativa da histéria da Africa Podemos presumir que o afrocenttista tenha clareza para perceber que ‘uma das obrigagées fundamentais do intelectual & avaliar a situagao de pesquisa e entao intervir de maneira adequada. Com respeito a litera- ‘ura, & histérie, & economia e ao comportamento africanos, os autores ceurocéntricas sempre colocaram a Africa em um lugar inferior em rela- ‘edo a qualquer campo de pesquisa, numa deliberada falsificagao do re- gistto histérico. Foi uma das matares conspiragoes da histétla mundial, pois grande nimero de autores, um apés © out, advtou uni acurde tacito em dois sentidos. Primeito, eles deveriam marginalizar a Africa na literatura que produziam, para formar o cénone do conhecimento ocidental que se presume universal, Segundo, quando a iiteratura exis. tente - por exemplo os textos dos gregos antigos parece enaltecer a Africa ou falar dela com respeito e admiragao, os autores devertam re verter esse respeito ou enaltecimento, rebalxando a Africa na escala de valores do cnone. Vemos as raizes mais profundas desse problema no estudo do Kemet, a histétia eléssica do Egito. 99 Depois da conquista do Egito por Napoledo ¢ Dominique Vivan Denon, imprimiu-se ao conhecimento da Africa uma orientacdo total- mente diferente, De ropente, fomos apresemtados a um novo campo da ‘nvestigaco humana, aegiptologia. Quando Champollion decifrou a es- rita dos antigos egipcios, a Europa lancou-se & empreliada de desmon- tara airieanidade da hist6rla egipcia, bem como da historia africana no que esta se relacioma ao vale do Nilo. 0 nico lo do condinente africana {que se tornou parte da experiencia europea foi o Nilo. Foi como se a Buropa o tivesse retirado da Africa, mililixo por malilizo, para despejs- -lo na palsagem curopeia. Todas as contribuigdes afticanas do vale do Nilo se tomaram contribuigdes europetas, € a Europa deu inicio a tarefa de confundir 0 mundo quanto & natureza do antigo Fgito. Trata-se da maior de todas as falsficagies ~ ¢ aquela que aparece nas discusses sobre as grandes civlizacdes da antiguidade, Egito versus Grécia ‘Um dos mitos mais permanentes a sustentar a hegemonia europeta talvez seja 0 da origem grega da civilizacio, Agora se tem demonstrado que esse foi um exagero cometido por intelectuals desejosos de provar @ superioridade europela. A obra Atenas negra, de Mattia Bemal (1987), demoliu a ideia de que a Grécia antecedeu a Afiica, particularmente 0 gito, em termos de civilizacao. ‘0 que Bernal fee em relagso & origem grega da civilizagao, Cheikh Anta Diop jé havia feito com respeito a civilizacao em geral (Diop, 1974), Em outras palavras, Diop demonsttou que a otigem africana da cit zagiv era um fato, no uma ficga0. Mais tarde ele mostrou, usando evi déncias extraidas Ue textos antgos, expetimentos clentificos © anslises cculturais, que 08 antigos egipcios tinham a pele escura (Diop, 1991). (0 mais importante que, desde a morte de Diop, em 1986, vim cho- vendo evidéncias de que suas teorias estavam corretas (Poe, 1998). Com feito, agora sabemos com ainda mals seguranga que a origem da raga |humana ocorreu no continente africano, como tem sido demonstrado, por multas pesquisas nos sltimos anos, Além disso, a blologia mostra que o DNA mitocondrial de todos os seres humanos tem origem numa mulher que viveu duzentos mil anos atrés na Africa oriental. 100 | 4 APROCENTRICIDADE: HOTAS SOBRHUMA PORIGKO DISCIPLINAK + ‘Trés argumentos que nao seriam apresentados ha cinquenta anos ‘mudaram a maneira como enxergamos o mundo antigo. O primeira deles é que a Grécia antiga tinha uma grande divida para com 0s atti- canos. Com efeito, Platao, Homero, Deodoro, Demécrito, Anaximan- dro, Socrates, Tales, Ptgoras, Anaxdgoras e muitos outros gregos es- tudaram e viveram na Africa (Asante e Mazema, 2002). A outra parte desse argumento € que os egfpcios eram africanos de pele negta, como provam os depoimentos de Herédoto, Aristételes, Deodora Strabo. O segundo argumento que todos os seres humanos derivam de uma fonte africana, f a teoria monogenésica da origem humana, que ganhou mator relevo nos tiltimos anos em fungao de mumerosas descobertas cientificas. Ao mesmo tempo, mostrou-se falsa @ teorka poligendtica, segundo a qual 0s seres humanos teriam aparecido si- multaneamente em diversos locais. Agora € possivel comprovar que as afirmagées de Cheikh Anta Diop eram proféticas. Ble compreendeu as {mterconexses entre 0s africanos, assim como a relacao do resto do mundo com a Africa. Reescrever a histéria se torna um desafio para os intelectuais atto- céntricos que dominam a linguagem antiga. Também é fato que nao se pode empreendes a historiografia ce comunidades africanas sem. uma séria intervengao intelectual da parte de estudiosos que, com um olhar affocentrado, vao resgatar o ensino sobre a Africa das gar- ras de antropélogos cujo tinico propésito é, ao que parece, desenvol- ver sua ética da comparacdio. A idela de comparagao ndo é necessa- riamente a fonte dos equivocos eurocéntricos, mas ndo duvide que seja um fator concorrente, ‘Nao existe nenhum engano quanto a nossas origens: a Attica cssica deve ser 0 ponto de partida de todo discurso sobre o rumo da histéria, africana. 0 Kemet esté disetamente celacionado e ligado as civilizagdes, Kush, Cayor, Peul, loruba, Akan, Congo, Zul e Barun, Fo que jé sabe- ‘mos; mas ha muito a desvendar, porque s6 recentemente nosso foco de cestuddos se vottou para a Aftiea em si mesma. No passado estudavamos a Africa em sua relagao com a Buropa, endo como as culturas africanas se relacionavam entre si, Bra o modelo de pesquisa colonial, aperteigoado por franceses e ingleses. Se 0s ingleses estudavam a Africa ocidental e sor observavam as akan, faziam isso como se 9 povo de Gana néo tivesse zelagéo com os baule da Costa do Marfim. O mesmo faziam 0s france ses, estudando os baule mas no os akan-asante. Isso produzit urn tipo de pesquisa direcionada, que nio permite ao pesquisacor entender as intor-relagbes com culturas adjacentes ou contiguas. A abordagem afka- entrada j4 comecou a mudar esse tipo de pesquisa, ¢ 0s trabathos de numerosos intelectuais dovem sor vistos como contribuigdes a um re- nascimento Taharqana” da pesquisa affcans. PressuPosTos (0 que apresentei anteriormente sio 08 tequisitos minimos para abor- dar qualquer assunto de maneira aftocéntrica, Mas também tive de a5- sumir alguns pressupostos a respeito de metodologia que séo impor- ‘antes a0 interrogarmos 0s fatos relativos &s experiéncias de vida dos africanos, 0 primeiro aspecto que se deve enfatizar € 0 que significa “africano’ [Nao se trata de um termo essencialista, ou séja, nao é algo que se ba- seie simplesmente no “sangue” ou nos “genes: Muito mais do que isso, 6 um construto do conhecimento, Basicamente, umm africano é uma pes- soa que participou dos quinhentos anos de resisiéucia & dominago eu- ropela, Por vezes pode ter participado sem saber que o fazia, mas é ai ‘que entra a consclentizacdo. $6 quem é conscientemente africano - que valoriza a necessidade de resistir& aniquilagéo cultural, politica e eco: némica - esta corretamente na arena da afrocentricidade, Nao significa ue 0s outros nao sejam atticanos, apenas que sao sao afrocéntricos. Assim, ser afrocentrista 6 reivindicaro parentesco com a lutae perseguit 1 ética da justiga contra todas as formas de opresséo humana, Em outro nivel, falamos dos afticanos como individuos que sustentam o fato de seus ancestrais orem vindo da Aftica para as Américas, o Caribe e outras partes do mundo durante os tikimos quinhentos anos. Hi uma conexo africana interna, assim como uma conexto extema. Os que vivem hoje ro continente constituem a conexao intema; os que vivern fora dele, a conexio extema. Os brancos do continent aftieano, que nunca partic param da resistéacia & opressao, dominaco ou hegemonia branca, so, com efeito, ndv-africanos. 0 fato de resid na Attica, por sis6, nfo toma slguém afticano. No final, argumentamos que a consciéncia, e nao a biologia, determina nossa abordagem dos clados. desse lugar que toda anilise procede. Para o afrocentrista nao existe um antilugar. Ou se esti envolvido ‘com uma posicao ou com outta, Nao se pode estar num lugar que nao existe, ji que todos os lugares s0 posigdes. Nao posso conceber uma antiperspectiva porque, nao importa 0 que eu perceba, estou ocupando uum lugar; uma posigde, mesmo que essa perspectiva seja chamada de antiperspectiva, Fin uma poderosa ética de comunicagao e interagao entre sueltos, 0 afrocentrista estebelece que a agéncia africana comparivel de qual- quer ser humano, Se vocé quiser falar de eiéncia, falatemos de ciéncia, Se quiser falar de astronomia, falaremos de astronomis. Os africanos devem ser vistos como atores no paico planetirio, no como cidadaios de segunda classe, Os quinhentos anos de dominacdo europeta inter- romperatn nossa marcha em diregdo do progresso, mas no consegui- ram apagar as contribuigdes dos milhates de anos de histéria anteriores ’ chegada dos europeus ao continente afticano, ‘Nos ditimos anos tem havido um tremendo ataque & producio aca- démica afiicana. Bssa agressdo integra um padrdo secular em relagéo ‘08 africanos, que nunca escravizaram, colonizaram ou dominaram outro grupo de pessoas simplesmente em fungio de sua condiggo bio- Logica. Destina-se a evitar que os africanos afirmem de forma positiva sua ética, seus valores e seus costumes. As visées antiespicituais e prb: -materiais do Ociéente ievaram 0 mundo, mais de uma vez, a beira da desteuigao. E certo que a tecnologia ocidental nd salvard o planeta: a verdade, é possivel que ela apresse sua aniquilacaa. A corrupgao do pla neta, desde o envenenamento do are da dgua até a matanga de pessoas inocentes como vitimas colaterais da guerra, atesta 0 sentimenta de ter- ror que se senta a porta do mundo acidental. Os seres humanos habi tam a Terra hé menos de trezentos mil anos; os hominideos estiveram. aqui por menos de seis milhées de anos. Do jeito que as coisas andar, no hé garantias de que permaneceremos por outros trezentos mit anos. 103 Nao podemos enttegar a direcdo filoséfica do planeta 2queles cujos pa- res de ambigdo e destruigao ameagam aniquilar-nos. ‘Todas as experiéncias africanas sao dignas de estuddo. Quando o afro- ‘centtista fale de todas as experiéncias africans, nie se trata de uma de- claragao que repiesente apenas o ponto de vista patriarcal, Fm tal con- texto, as mulheres néo sio relegadas ao segundo plano, como acontece ‘no pensamento ocidental. Isso provém do fato de elas terem sido parte Imcegrante de todas as culturas africanas desde o inicio dos tempos. Ob- servando as sociedades afticanas da antiguidade, ¢ dificil encontrar al- _guma em que as mulheres no ocupassem altas posigdes. Por exemplo, a5 rainhas que governaram o Kemet, o Punt ¢ a Nubia - ¢ mais de quarenta goverraram esse pafs -representarn os mais antigos exemplos de gover- nantes do sexo feminino. Com efelto, o primeiro intercimbio entre mu- Ihetes governantes ocorreu durante @ XVII dinastia, quando se estabe- leceram relagées diplométicas entre o Kernet e Punt, Mulheres ¢ homens 1m igual importfne‘a na construcao afrocentrada do conhecimento, ‘Também se presume a existéncia de uma relacdo homdloga entre 0 estudo dos fenémenos afticanos e o da humanidade. Somos parte da humanidade ¢, portanto, onde quet que as pessoas se declarem afti- canas, estamos envolvidos na criagao de conhecimento. Assim, a afo- centricidade reconhece e respeita a natuteza transitéria do eu - ¢ nic é contra 0 eu, mas a favor da pessoa. De fato, pode-se até declarar que a afrocentricidade se dedica fundamentalmente ao eu coletivo ¢, por- tanto, estd proativamente engajada na criagao € rectiagao da pessoa em grande escala, © que os africans fazem no Brasil, na Colombia, na Costa Rica, na Nicarégua, no Panatnd, wa Venezuela, nos Estados Uni- dos, na Nigéria, em Gana, em Camarées, no Congo e na Franca é parte de uma ascensdo geral ¢ coletiva & consciéncia, na medida em que te- he come objetivo o processo de libertagao. No visto affocéntrica, todo conhecimento deve ser emancipador, Como romper as grades da prisio que mantém os seres humanos a serviddio mental? Como fazer justiga em situagdes nas quais 56 ha injus- tiga? Como criar condigdes de liberdade quando os poderes governan- tes negam ao povo os recursos para a vida? Essas so questdes criticas de um paradigma do progresso pata aibertaczo, 105 | APROCENTRICIDANE: NOTAE SDERK.UMA POSICRO DISCIPLINAR © aftocentrismo nao sio os dadas, mas a orientagdo para eles. £ como abordamos os fenémenos, Por vezes os criticas afirmam que os afrocenttistas no spresentsram dacos sobre este ou aquele assunto. ‘Ouapontam que eles carecem de informagées sobre determinade tema, [Nés, como afrocentristas, responclemos que tuitas vezes no sio os da- dos que estdo em questo, masa modo camo as pessoas os Interpretam, como percedem aquilo com que se defrontam e como analisam os te- mas e valores africanos contidos nesses dados. Se voc# nao abordar os dads de forma correta, provavelmente chegars a concusées equivoca- das, Além do mals, a leltuca dos varios ataques aos afrocentristas deixa claro que algumas pessoas presumem que, nao havenda evidencias, por exemplo, de que os africanos da tegido do Congo interagiram com os da regio do Nilo, significa que isso nao aconteceu, Nao € assim, pois a auséncia de evidéncia ndo constitu evidéncla da auséncia B necessarto dizer também que a hist6ria nao é a afrocentricidade, € uma disciplina no interior de sua prépria esfera, Ela possui certos atributos, pressupostos, métodos e obfetivos que podem ou nao ser compativeis com os da afrocentricidade. Os debates sobre a historio- _tafia ocorridos nos tiltimos anos se devem aos crescentes desafios da historiografia afrocéntrica (Kefta, 2001). As implicagdes dessa trans- formagao sio enormes ¢ nao se pode negi-las, E essencial para nds avaliar as novas orientagdes para os dados, as quais estao criando uma robusta disciplina intelectual que hd muito deixou a histéria para tds. Isso nao significa que nao deva haver expresses de interesse ou aten- {0 8 algumas contribuigdes-chave dos métodos histéricos, mas que a afrocentricidade impés novos critérios para pesquisa de documentos, interpretagdo de textos e orientagdo quanto aos dados (Conyers, 2003}. Uma das razées pelas quais Ama Mazama (2003) clamou por um Jmn- erative afrocénirico ¢ 0 fato de termos estado muito ocupados em redescobrit a Europa para ultapassarmos as estruturas tradicionais do Ocidente. Nosso objetivo como intelectuais & fornecer ao mundo a andlise mais valida ¢ valiosa possivel das fendmenos africanos. Iss0 significa que devemos abandonar muites elementos da pesquisa his- {érica, particularmente sua exagerada énfase nos textos escritos, ¢ in- troduzir novas maneiras de deslindar o significado da vida dos aftica- 105 1n05 nas favelas do Rio de Janeiro e nos subxirbios abastaclos de Lagos. Com efeito, em Kemer, afrocentriciduce e conhecimento (3990), propus uma série de respostas afcocéntricas a questoes postas pela diseiglina da hist6ria que ainda estao por ser plenamente examinadas, Em pri- meiro lugar, sugeri uma periodizacao histérica cotalmente nova. Em segundo, rejeitei o pressuposto hegeliano de que a Africa ngo fazia parte da histéria humana. $6 0 segundo desatio fol considerado de forma adequada em discusses subsequentes, Estou eerto de que no- vas intelectuais vao reavaitar grande parte dos trabalhos sobre eoria afrocéntrica anteriormente produaidos. Mazama, em The Afrocentric paradigm, e James Conyers, com Afrocentricity and its critics, & tenta- ram, em diferentes direcdes, aprofundar nosso coshecimento € nossa svaliagao da alrocentricidade. Campos TEmATICOS ‘Vérlos campos teméticos da afticalogia foram propostos quando exfel o programe de doutorado em Estucios Africano-Americanos na Univer: sldade Temple (Filadélfia). Entze 0s compos surgidos em 1990 estavam 0 social, a comunicagio, 0 histérico,o cultural, o politico, oeconémico € 0 pslcol6gica. Uma série de intelectuais term escrito sobre aftcalogla como formna de demonstrat 6 poder desse conceito na anélise concreta de textos ¢ fendmenos (Okafor, 2002). Em grande medi, fu infuen- ciado pelo Aldsofo afcocéntsico Maulana Karenga, que considerara di versos campos adequados a esse discurso em seu livro Intradugao aos estudos negros (A982[1993, 2002]), € por Cheikh Anta Diop, que tam- bém estabelecera uma divisio para nossos estudos, sugetindo que em ver de estudos socials deverfamos criar estudos da familia. Na visio de Karenga, religiio, sociologia, politica, economia, produgao criativa ¢ psicologia negras constiqiem as principals éreas de investigagao. Meu trabalho deve ser visto como ima sintese das ideias centrais de concel- tualizagao encontradas nas obras de Karenga e Diop. Preocupava-me que os intelectuais em busca de um jugar pata exa- iminar nossos Iendmenas pudessem terminar nas pilhss de lixo das 106 AFROCERTAICIDADE: NOTAS SOBEE UMA POBIGRO DISCIPLINAR isciplinas mais antigas, sem poder firmar o pé na latna espessa e nos destrocos pegajosos de andlises fracassadas, Desse modo, a africalogia ~ que denominei “estudo afracéntrico dos fendmenos africanos” - era tuma diseiplina com diversos campos de estudo. Quando se procurava abordar qualquer desses campos, os métodos mals eficazes, baseados ‘no que eu vira nas mais bem-sucedidas praticas dos intelectwais emor- gemtes € nos methares trabalhos afrocéntrices dos intelectuais mais antigos, foram agrupados como funcionats, categéricas e erimoldgicos (Asante, 1990}. Cade uma dessas categorias tem métodos especificos. Por exemplo, a categoria funcional se aplicaria a andtise de necessida- des © & anilise de politicas, bem como a orientagdo para a aco. A cae tegérica exigiria uma eoncentragio sobre esquemas, género, classe, temas, arquivos e outras ideias coletivas. Por fim, a etimoldgica depen- eria muito da linguagem, terminologia e origem do conceito, Eram es- sas as principais abordagens metodoligicas da pesquisa. 0 que se fazia necessacio com relagio & ideia afrocéntrica ere a capa- cidade dos intelectuats de eriar métodos que nascessem das respostas a ‘uma teoria centrada, Sem suposigdes e pressupostos, os métodos se tor nam nada mais do que regeas destituldas de significado. Q afrocentrista no deve (er pressa em adotar métodos eurocéntricos que fracassam. quando se trata de avaliar os fenémenos afticanos. Fazé-lo signiticaria que o pesquisador acabaria enredado na pristo mental construida por métodos falidas. Creio que os afrocentristas podem se valer de referén- cas culturais africanas a fim de construir instrumentos para uma ané- lise mais efetiva da realidade. Nao estou dizendo que nao seja possivel utilizar teorlas psicoldgicas ou sociologicas, andlise histérica ou ceoria Icerérta para atingtr a plena compreensao dos fendmenos. O que estou dizendo & que os aftocentristas devem procurar a agéncia africana em. toda construgao metodolégica, Vivernos num mundo em que a arqui tetura da investigacdo humana ¢ construfda por conceltos que se sus- tentam na comunidade. Bm mink visio, essa é uma das principais vias para a crlacio de padres de andlise baseados na ideia centrada, Desco- brir a centralidade € em sia tarefa basica do pesquisador aitocentrico. Devemos eriar os métodos que conduzirao & tansformacto no texto, ros fenomenos e na vida humana. s07 OO Novos pEsaFros ‘Uma das tarefas mais desafiadoras € desmnascarar a nogao de que posi- (es particularistas sao universais. A Europa desflou sua cultura como norma por tanto tempo que as afticanos e asidticos deizam de perceber a experiencia europeia, seja ela da Idade Média, seja de Shakespeare ou Homero, assim como 0s conceltos europeus de beleza, como apenas as- ‘pects particulares, ¢ nao universais, da experféncia humana, embora possamn ter implicagses para outras culturas, 0 que os alrocentristas de- ‘vem sempre criticar é a ofensiva particular que projeta a Europa como o paddo pelo qual se deve julgar 0 resto do mundo, Nenbuma cultura particular pode se arrogar essa prerrogativa. A afrocentricidade busca 1 todas as seivindicagées exageradias dos particularistas. preciso ressaltar que nto é necessirio parecer-se com a cultura europeia para ser civilizado ou human! “Ahegemonia europeia, tanto n@ roupa, na moda, na arte ena cultura quanto na economia, é de fato um momento histérico, mas n&o univer. sallsta. Com isso nfio negamos que, com 0 impulso da globalizagao, a Europa e os Estados Unidos estejam procurando cultivar uma forma de posigio hegeménica no mundo. Outro desafio gue nos conironta ¢ 0 discurso em torno do valor do multiculturalismo numa nagdo industrial heterogenea. © debate sobre mutticulturalismo tem textura rica porque seu tema é proemi- nente no mundo moderno. Se dissetmos que “multicultural” se refere simplesmente a “multas culturas; tenemos um bom ponto de partida para uma discussio sobre a sociedade, Se “multas culturas” deve ser o referente, por que entéo, numa sociedade heterogénea, temos a pro- mogo da hegemonia de uma monoculture? © maior perigo de uma nagiio heterogenea é a falta de abertura 3s multiculturas existentes em seu interior. 0 afrocentrista sustenta que a cultura europeia deve ser vista como estando a0 lado, ¢ ndo acima, das outras culturas da so- ciedade. A liga que mantém unida a sociedade no pode ser a aceit cio forcada da hegemoula, mas antes a aceitagéo discutida de valores, Scones, simbolos e instituigées similares que tém sido empregados no melhor interesse de todas as pessoas, Mukiculturalismo, portanto, no 108 ‘© avaocelsraicipabr: NOTAS SODRE UMA POSIGKO DISCTPLINAR + éa cultura branca acima ou a frente das outras, mas @ criagéo de um espaco para todas as culturas, A reciprocidade é 0 marco dessa nova aventura intelectual e politica, j que ninguém fica para trés nem fora a arene, Entrar na arena da vida é descobrir, como o bom futebolista, as forgas ¢ raquezas de cada uma das culturas protagonistas que com- poem o todo coletivo. ‘A despeito dos muitos desafios que confrontam a sociedad coo- temporanea, a efrocentricidade se estabelece como uma vigorosa ideie intelectual alinhada com @ melhor do peasamento afrolégico. Com efeito, Karenga (2002, p. 346) coloca adequadamente a situagao, ‘0 proclamar que 0 desafio inicial ¢ incessante dos estudos Africana & continuar a se ddefinic de maneiras que reafirmem sua missao original e fandamen- tal e ainda assim refltam sua capacidade e seu compromisso de am- pliar continuamente 0 ambito de suas preocupag6es para enfrentar novas problemniticas e compreensdes no interior da disciplina e em ‘um mundo em perpétua mudanca. Qualquer que seja 0 impulso te6rico predominante no futuro, esto certo dle que a afrocentricidade vai moldar os interesses de longo prazo do campo. Ao aceltar 0 desafio do campo de “ampliar 0 ambito de suas preocupacies’ 0 aftocentrista também busca novas vias pata exami nar 0s fendmenos culturals, econdmicos ¢ politicos fora da América do Norte. Intelectuais do Brasil, Venezuela, Peru, Colombia, Nova Escécia, Panamé, Guatemala, Guiana, Suriname, Costa Rica, Antilhas ¢ outros pafses com grandes populagées afficanas acrescentario novos fatos ca: pazes de expandir e ampliar nossas preocupagies. Mazama (2008, p. 18) afirma que “nao seré surpresa a afrocentrici- dade nao abracar a ideia da incompletude cultural afticana..” Eviden- temente, @ posigdo de Mazama se ancora ne convicgéo de que 08 afti- canos devem reconectar-se & matriz cultural que oferece ajuda para nos libertarmos da hegemonia europeia. Nao hé vitGria em aceitar aideia de que os africanos, apés quinhentos anos de destocamento, devam conti- ‘nuar marginalizados. Mazama propos ideia de que 2 afticalogia é uma 109) disciplina dedicada 8 renascenga do mundo afticano. Assim, ndo & uma emanda geografricamente espectfica, mas um desafio de ambito mun- ial para 0s povos de ascendéncia africana. Por fim, 2 afrocentrieidade, como geradora dindmica da disciplina afroldgica, possivelmente nos ajudaré a corrigir muitos erros em nossas aniliges e a superar todas as visdes distorcidas ¢ brutalizadas de nossa propria libertagao, Comegande por nossos sonhios de um munda.onde pode ocorrer a transig&o clos povos afticanos de uma consciéneia dese- uilibrada (off contered) a uma consciéncia plenamente central, rea~ firmaremos nossa devocéo e dedicagao ao trabalho intelectual no inte- sesse da humantdade, —_ Notas ty vet, terme “teapot a6 aonesandents no continent row usporaento und ota onsnnadora 2s me mtd i pn, Conga de ln gu gen tera olor) on be} lee pada seme seeae mores ergo snvece quae tearoom Spore pla onto de tone wens no ac ebnin Asc PARRA uv guons que es eam fs irtragbn nos reese de sinc quien Diem do ttn da eendnamis,qbe € cu ceeeeape dan ecte ecg cromé foe poe verso grace Sarr joccomtr equ ln perme tneag congo em NO ce corganizadora.] sO eure eer satan bio Tiny 00 dna do re ate pra iporens eascenga ta el anasto do pode Sa ee pce entero muna Nd sind A AFROCENTRICIDADE COMO UM NOVO PARADIGMA Ama Mazama A AFROCENTRICIDADE surgiu no inicio da década de 1980, com a pu- blicagto do livra Affocentricidade, de Molefi K, Asante (1980), seguldo por A ideia afrocéntrica (1987) e Kemet, afracentricidade e conhecimento (2990), No ceme da Idea aftocentrica esté a atirmativa de que més aft- ccanos devemos operar como agentes autoconscientes, nao mais satisei- tos em ser definidos e manipulados de fore. Cada vez mais controlamos nosso destino por meio de uma autodefinicao positiva e assertiva. Os cri- ‘érios dessa autodefinicdo devem ser extra(dos da cultura africana, Para melhor avaliar a importancia da afrocentricidade, contudo, é necessario cexaminar as clrcunstdzcas responsdvels por sua exiergencia, A afrocentricidade surgiu em resposta i supremacia branca, a qual tem assumido diversas formas que certamente nao sto exclusivas entre si Em sua forma mais 6bvia, a supremacia branca se expressa como um. Processo fisico de pura violencia, muitas vezes exremamente brutal. A escravizagao, pelos europeus, de milhdes de africanos durante varias centenas de anos, o exterminio dos povos indigenas na América, assim como a matanga € 0 aprisionamento de milhoes de afticanos durante © periodo da colonizacao, sao apenas exemplos de urna liste aparen- temente interminavel de atos de terror perpetrados por supremacistas ne ma a bbrancos em todo o planeta, A supremacta branca também pode ser um processe social e econdmico pelo qual mithées perdem a soberania, "muftas vezes em sua prépria terra, sendo seus “recursos” (por exemplo, tetra ¢ trabalho) apcopriados pelos europeus em fungao dos interesses estes. Mas a supremacia branca também pode ser um processo men- tal, mediante a ocupacdo do espago psicolégico ¢ intelectual dos que deve ser submetidos, levando a0 que Wade Nobles denominow, de forma certeira, “encarceramento mental’ A tomada do espago mental afticano ocorte por meio do disfarce de idelas, teorias ¢ conceltos eu- ropeus como universals, normals ¢ naturais. Todos sao “émicos menos (05 europeus. Mas essa aceitagao ndo questionada da Europa como nor- rmativa 6 altamente problemética para 08 afticanos. Com efeito, a Europa forjou grande parte de sua identidade moderna & custa dos afkicanos, particularmente por mefo da construc da imagem do eurapen como o ‘mais clvilizado e do africano como seu espelho negative, isto é, como pri- -mitivo, supersticioso, incivilizado,aistérico eassim por diante. ‘Quatro grandes visdes foram apresentadas durante o Tluminismo, A primeira foi a de que a vida mental dos ndo-brancos {sic} especial: mente dos indios e africanos, & significativamente diferente da dos brancos (Hume, Lineu etc). A segunda fot a de que ser nao-branco [sic] ésinal de doenca, mas, devido a fatores ambientais lamentiveis, algumas pessoas perderam sua brencura e, com ela, parte de sua na- ‘ureza humans (Buffon, Bamenbach etc.) Uma terceira eoria era ¢ de que alguns seres que parecem humanos realmente ni 0 si, 6s- tando na parte inferior da grande cadeia do ser e representando um ‘eto entre o homem ¢ 0s sirnlus (ward Long). Ba quarts teoria era ‘ade que houve diferentes cringbes da humanidade, sendo a cauca- siana a melhor; as outras, as eriagdes pré-adamaticas, jamais conti- veram a substincle dos homens genuinos. (Popkin, 1973, p.247) Embora tais teorias possam nda ser discutidas em puiblico - pelo menos abertamente -, 0 mesmo olhar ainda orienta a anual designagao dos pal- s3¢6 ¢ povos africanos como “em desenvolvimento” ou “em progress0’ © assim por dante, enquanto a Europa lidera ¢ o resto do mundo deve se- 112 guile. O que se sugere é que 0s africanos saa deficientes e devem conver terse aos modos europeus para atingirem o status pleno de seres hurna- nos. As diferengas culturais ainda equivalem a marcas de inferioridade. Infelizmente, tem sido muito difundida a Internalizagao, multas ve- ‘es inconsciente, desse discurse do supremacismo branco. Com efeito, ‘embora 3 afticanos tenham se lbertado fisicamente, continuram com frequéncia a minar o proprio bem-estar 40 engajar-se em agdes eviden- temente compativeis com a ideologia da supremacia branes. Ais, a ne- gaao da supremacta branca ¢ de seu efeito deletério sobre as africanos parece ser a resposta africana mals comum a Supremacia branca, Isso {oj bem ilustrado no estudio de Frances Winddance Twine (1998) sobre © Brasil, pais em que os afticanos sofrern ums grave opressao racial sob © disfarce de um ficticio “paraiso racial” Os argumentos mais comu- mente usados para neger o racismo e a supremacia branca, no Brasil € em outros lugares, ncluem: 1) aceltagao Implicita da brancura como norma ideal; 2) negagao da raca como categoria socialmente relevante; 3) negagiio da raga como reatidade fisiea € louvacao da mistura racial; 4) negagao dé existéncia de uma especificidade cultural africana e louva- ‘edo da mistura cultural; 5) corte espacial (“nio aqui”); 6} corte temporal (‘nao mais") Tal negacdo tem a tragica consequéncia de tomar virtual- mente impossfve] resist supremacia branca. O resultado final e previ- sivel sio individuos que perderam de vista sua histéria e depreciam sua caltura enquanto valorizam, aclina de tudo, uma cultura estrangeira Embora se possa observar em variados dominio’ o efeito esse pro- cesso mental de internalizar a supremacia branca, @ afrocentricidade como paradigma focaliza o aspecto intelectual da questo, Em primeito Ingnn, deve-se reconhecer que qualquer idela, concefto ou teoria, por ‘uals “neutro” que se afirme sex, constital 0 produto de uma matriz cl- tural e histérice particular. Como tal, é portadot de pressupostos culta- ‘als espeeiiices, fequentemente de natureza metatisica. Assim, abracar lume teoria ow ideia europela ndo é, como pode parecer, umm inocente exere(clo académico, Na verdade, a aftocentricidade sustenta que, @ ‘menos que 0s africanos se disponhami « reexeminar o processo de sta conversio intelectual, que ocorte sob o disfarce de “educagao formal’ continuarao sendo presa fécll da supremacia branca, © que se sugere 13 4 que, em ver disso, os afticanos se reancorem, de modo consciente © sistemético, em sua propria matriz cultural e histérica, dela extraindo os crtérios para avaliar @ experiéncia africana, Assim, 2 aftocentricidade surgiu como ura novo paradigms para desafiar 0 eurocéntico, respon- sfvel por desprezar 0s afficanos, destitus-os de soberania ¢ tornd-los invisiveis - até mesmo aos proprios otis, em muitos casos. © que faremos aqui, portanto, & examinar de perto os principals pressupostos, conceitos, conviegées, metodologia ¢ teorias do para digna afrocéntrico - 0 que se coma mais necessério por ainda existir certa confuséo acerca da atrocentricidade, Sustento que isso se deve, tem grande parte, ao fato de os intelectuais terem deixado de abordar a afrocentricidade de forma sistemtica, ou seja, como um paradigma ‘constituido, camo todos os outzos, de diversos componentes crfticos. © conceito de “paradigma’ € indubitavelmente ambiguo e receben ‘miiltiplas definigdes desde que fol proposto por thomas Kuhn em 1962. Margaret Masierman (1970, p. 61) relata nada menos que 21 definigées de paradigma propostas pelo proprio autor! Kuho tomau o termo em- prestado da linguistica, na qual “paradigina” se refere @ uma classe de tens linguisticos, lexicais ou gramaticats, que esto em uma distribu a0 complementar. Sua intengao, como flésofo da cléneia, era mostrar de que maneira umn modo particular de pensamento. pritica cientficos 50 toma aceito c/ou dominant, sendo assim rotulado “ciéncia normal” fe podendo ser, subsequentemente, deslocedo por um nove modo em ‘competicao por status normativo ou reconhecimento disciplinar (Kubn, 1962, 1970). Embora o modelo de Kuhn se destinasse basicamente as ciénctas navurais, vem sendo amplamente aplicado também aos estudos éavida humana, Um dos principals fetos do conceita de paradigm, tal ‘como desenvolvido por Kuhn, é tornar explicita a existéncia de premis- 0s particulares nas quais todas as investigagdes intelectuais nevessaria- mente se baselam, tornando assim insustentivel aidela de neutralidade e universalidade cientficas. Ha na defini¢ao de Kuhn dois aspectos centrais de urn paradigma: 0 cognitive e o estrutural (Eckdberg e Hill, 1980, p. 117-8), No que se refere ‘20 aspecto cognitive, Masterman (1970) sugere a existéncia de trés di- ferentes niveis: a) 0 metafisco, ou seja, um principio organizador, uma a4 & AarnoceNrmero4pE como um Novo FARADIOM + série de exengas; b} 0 socioldgico, isto é, um eonjunto de habitos cienti- ficos, ‘uma matriz disciplinar” (Kuhn, 1970, p. 1823, “os compromissos compartilhados de qualquer comunidade disciplinat® (Eckberg ¢ Hill, 1980, p. 118), seia ema termos de métodos, seje de aparata conceitual ou téenicas; ¢} os exemplares, “as formas concretas de solugéo de proble- ‘mas que os alunos encontram desde o principio de sua educacao cien. titice, em laboratdrios, em exames ou no final das capitules de livros de cigncia" (Kuhn, 1970, p. 182). No que se refere aos arranjos estraturais, dos tcés aspectos cognitivos de wm paradigma, Eckberg e Hill (1960, p. 121) afirmam que eles estao embebicos um no outzo. Ou sefa, a estrutura maior (0 pa- radigma metafisico) atua como entidade envolvente, ou arcabougo, dentro da qual se deseavolvem as estruturas mais restritas, ou de or- dem inferior. Uma matrz disciplinar especifica nao se desenvoiverd ‘em um Weltanschareung arbitrétio qualquer. Um exemplar seré ainda ‘mais reswito. No que conceme ao segundo aspecto central, ou seja, o estrutural, Kubn tem em mente a “esirutura comunitéria’ isto é, a comunidade de intelectuais que praticam a parte cognitiva do paradigma. Elucidando ‘a importancia da comunidade cientifica, Fickbert ¢ Hill (1980, p. 121-2) demonstram como ‘um paradigma pressupde uma comunidade integrada de pratican- ts, A solugio continuada de enigmas s6 ocorre quando existe un ‘grupo que compartitha um corpo consistente de crengas de modo tal @ omergit unt consenso com respeito aos fendmenos investigados, aos métodos utilizados e assim por diante. Entretanto, embors o tratamento do paradigma por Kuba possa parecer bastante abrangente do ponto de vista eurocéntrico, falta-Ihe uma di- menséo importante no que diz respeito & affocentricidade. Com efeito, deveros aerescentar um tercelto e fundamental aspecto além do cog- hitivo e do estrutural: © aspecto funcional. De uma perspeetiva afro 115 i, céntrica, em que nunca se produz 0 conhecimento por si mesma mas sempre em funcio da libertacéo dos africans, um paradigmna deve ati- nar a consciéncia africana para ter alguma utilidade. Bsse requisite de *ativagao da consciéncia’ é bastante compativel com uma antiga tadi- ‘40 afticana existente no Kemet, pela qual 08 sacerdotes abriam a boca das estdtuas dos deuses a fim de insuflarIhes vida e conscitncia, per ritindo-Ihes servir ao povo que os servia. Tal como as estétuas conti- uariam sendo pecacos de pedra inanimados sem esse ato éspititual, qualquer conjunto de ideies e préticas que seja incapar de nos mover permanece amplamente irrelevante pare nossa vida e indigno de estudo ‘sem o tipo certo de energia ‘Maulana Karenga, em um artigo escrito hé vinte anos e devotade a0 tema fundamental do desenvolvimento paradigmatico dos estudos negros como discipling, néo concede um status paradigmatico & afro- centricidade. Embora Karenga, com sua percepgao e poder de articula- ‘¢ao habituais, definisse de forma correta ¢ coerente a afrocentrickiade como, ‘essencialmente, uma qualidade de perspectiva ou abordagemt assemtada na imagem cultural ¢ no interesse humano do pavo africano” (1988, p. 404) ea descrevesse como um “tijolo fundamental na constru- io do edificio conceitual do Paradigmaa dos Estudes Negros; nao pare- cia acreditat que a afcocentridade fosse 0 “Paradigm dos Estudos Ne- gros" pelo qual ele e outros ansiavam na época. Isso pode ser atribuido 2 frouna definigao de paradigma de que Karenga se sera, alge que no deixa de ser comum, como se observou acima, Em ver disso, Karenga fala ca afrocentricidade como “categoria embora nao especifiqueo que seja, em sua visio, uma categoria em relacdo a um paradigma. ‘Nossa tose, como lustrarernos a seguir, 6a de que a afracentifeidade se encaixa na definigao de paradigma delineada anceriormente. Como o préprio Karenga (2003, p. 75) corretainente observou, a emergéncia da afrocentricidade esté intimamente ligada aos estudos afticanos: "Qual- ‘quer discussdo sérla da afrocentricidade deve comegar situando-a no contexto dos estuclos Africana ou dos estudlos negros" Gostariamos de ir além para afiimar que tal discussto também deve incluir 0 desenvolv ‘menio do Departamento de Estudos Afro-Americanos da Universidade ‘Temple, sob a lideranca do professor Asante, pois fol nessa estrutura par- 116 ticular que a aftocentrickdade pode desenvotver-se em um paradigna. (Esse fato também lana luz sobre a verdadeira natureza e o escopo dos ‘ataques langados conta a orientagao filos6fica daquele departamento.} O ASPECTO COGNITIVE DO PARADIGMA AFROCENTRICO Aspecto metafisico 0 principio organizedor que determina apercepeao de toda a realidade é a centralidade da experiéncia africana para 0s povos africanos - 0 nico que nunca pode ser questionado por quem se declara afrocéntrico, “O afrocentrista nio vai questionar a ideia da centralidade dos desis e valo- tes africans, mas discutird sobre o que os constitu” (Asante, 1990, p. 6). As implicagdes epistemoligicas da centralidade africana so de longo al- cance e suas implicagdes, infinitas: “A afrocentricidade questiona a ma- neita pela qual voce chega a qualquer empreendimento humano conce- bivel. Bla questiona a abordagem que voce faz a respeito de ler, escrever, fazer jogging, comer, comer, manter a setide, ver, estidar, amar, lutar € trabalhar” (Asante, 1988, p, 45). Trata-se, no final das contas, como nessa bela afirmagio de Molefi Asante, da “medida da nossa vida! ‘Ao colocar os “valores e ideias da Aftica” no centro da vida africana, aafrocentricidade esposa a cosmologia, a estética, a axiologia ea episte- mologia que caracterizam a cultura africana. Karenga (2003) identifica como centrais entre as caracteristicas culturais afficanas as seguintes orientagses compartilhadas: 1) centralidade da comunidade; 2) res- peito & tradigao; 3) alto nivel de espiritualidade e envolvimento ético; 4) harmonia com a natureza; 5) natureza social da identidade indivi- dual; 6) venerago dos ancestrais; 7) unidade do ser. ‘Assim, o que define a afrocentricidade & 0 papel crucial atribuido & experiéncia social ¢ cultural africana como referencia final. Também é isso que a distingue de qualquer corpo de pensamento anterior. N5o é aro ouvir ou ler que a afrocentricidade é anterior & publicagio do pri metro livre de Moleli K. Asante sobre o tema. Qualquer pessoa sob 0 sol que teve algo construtivo a dizer sobre 0 povo africana &, entao, in- formalmente rotulada de aitocéntrica, desde David Walker até Kwame Nkrumah. Nao obstante, € muito facil entender por que essa posicdo (em gerai resultante de inveja profissional) esté equivocada urna vez ‘que se identifica corretamente o principio organizador fundamental da aftocentricidade. E simplesmente inveridico que algum pensador antes ide Molefi K. Asante tenka elaborado e sistematizado uma abordagem intelectual baseada na centratidade da experiencia airicana, ou seja, na airocentricidade. Decerto enconttamas em intelectuais precedentes & afirmativa de que a experiencia afticana é diferente da europeia e deve ser vista como tal - da insistOncia de Blyden na infusdo do currfculo com informagdes sobre a historia ¢ cultura africanas énfase de Marcus Garvey na necessidade de olhar o mundo através de *nossos préprios culos! Igualmente, o apelo de Du Bois por uma “universidade negra’ para interpretar os fenémenos afticanos e afro-americanos seguit essa mesma linha. Entretanto é a Molefi K, Asante que devemos a transfor- ‘magio da relevancia epistemolégica africana em um principio cientifico ‘operacional, da mesma forma que devemnos a Cheikh Anta Diop (1991) @ transformagao da negritade dos antigos egipcios num principfo ope- racional cientifico, Seria incorreto, por outro lado, acreditar que a aftocentricidade te: nha surgido em wm vacuo. Como afticanos, temos plena conseiéneia de ‘que nada se cria do nada; tudo ¢ manifestacéo da continuidade da vida. Assi, a afrocentricidade integrou os mafores principios de varios sis- temas filos6ficos anteriores tanto cronol6gica quanto logicamente, Tals princfpios séo 0s alicerces sobre 0s quals@ afracentricidade se construiu ¢ funcionam come suas premissas basicas. O préprio Asante (1980, p. vi 1104) identifica os quatro grandes blocos que formam a estrutura funda- ‘mental da afrocentricidade: a filosofia de Marcus Garvey, 0 movimento da Négritude, o Kawaicia ea historiogralla de Diop. Aspecto sociolégico ‘A dimenséo sociotégica de um paradigma trata do estabelecimento de ‘uma “mattiz disciplinar gerada por um conjunto particular de prin- 18 cipios metafisicos (ou seje, pressupostos néo questionados) ¢ caracte- rizada por um aparato conceitual, uma retodologia e um conjunte de teorias especificos, Nao podemos compreender a aftocentricidade, como Karenga cor retamente nos lembrou, fora do contexto dos Estudos Afto-Americanos © queé, entao,a afrocentricidade pata essa disciplina chamada Estudos Afro-Americanos? Gostaria de sugerir que a afrocentricidade funciona, ou deveria funcionat; como um metaparadigia pata os Estudos Afro- Americanos. Com efeito, é de grande importancia lembrer 0 propésito e o escopo dos Estudos Afro-Americanos desde o inicio, Karenga, mais uma vez, em sua Introduciia ao estudos negras, definiu-os como “a estudo siste- tice e eritico dos aspectos multidimensionais do pensamento e da pratica dos negros em seu desenrolar atual e histérico” (1998, p. 21), en- fatizando © fato de eles serem “uma disciplina dedicada ao estudo in- clusivo e holistico da vida dos negros” (1993, p. 22), Assi, o8 Estudos Afro-Americanos cobrem a dinfmica sociale pstcoldgiea, as linguas, as, expressies literdcias e oratérias, a historia, as expressdes artisticas, € as- sim por diante: 0 conjunto da experiéncia cultural e histérica que define osafricanos como povo. No entanto, se 05 Estudos Afro-Americanos se dedicam ao exame de todos os aspectos da vida dos africanos, essa tarefa se realiza em relagio A vida dos europeus por varios departamentos que, em seu conjunto, constituem os Estudos Europeus, O que une esses miiltiplos departamentos de Estudos Europeus, apesar de suas dreas de investiga- do aparentemente desconexas, é 0 loco na experiéncia europeia om base na perspectiva europeia. A diferenca é que, por ser hegeménica or imposigao, essa perspectiva europeia particularista permanece inarticulada, implicita, disfargada come uma suposta neutratidade ou objetividade cientifica. Portanto, ésimplesmente incorreto comparer, como feequentemente se faz, os Bstudos Afro-Americanos com algum departamento de Estu- dos Europeus, como os de sociologia ¢ inglés, e alirmar que, tal como existem teorias ¢ paradigmas confitantes em soctologia, por exemplo, ‘também ha diferentes perspectivas sobre @ experincia negra. Pazer isso i 6 permanecer cego aos pressupostos eurocentricos, 20 metaparadigma, ‘compartilhado pelos inelectuais europeus em virtude de terem naseido 1a cultura, na histéria ¢ na ancestralidade europelas. £ verdade, porém, que grande parte daquile que passa por Estudos Afro-Americanos nao é outra coisa que estudos europens sobre a Attics ou dsaricanos, Tal confusao e usurpagao tornaram-se possiveis devide& aceitacdo sem questionamento da perspectiva europela como universal, ‘Também apontam para o fato de que a perspectiva, mais que o foco de estuco, 60 eritério fundamental para localizar um trabalbo particular. (© que pode unir 0s Estudos Afro-Americanos ¢ fazer deles o que eles afirmam ser ¢ no outra coisa qualquer, apesat das diferentes dreas de interesse, é 0 foco na experiéncia afticana com base em uma perspec Uva africana, ou seja, a afrocentricidade. Qualquer outra coisa, como diz, “Molefi. Asante, nao pode ser chamada de Estudos Afro-Americans, Para evitar a confusao conceitual que cerca os Estudos Afto-Ameri- canos, assim como para enfatizar a crucial conexio metafisica entre 0 estudo das vidas afticanas e @ centralizacdo africana, ou afrocentrici- dade, Asante cunhou o termo africalogia, definida como “o estudo alto- ‘céntrico dos fendmenos, eventos, ideias ¢ petsonalidades relacionados &Alrica’ (1990, p. 14}. Nam ensaio intitulado "Estudos Afro-Americanos: o futuro da dis- ciplina’ (2003a, p. 105), Asante discute com detathe o vinculo existente entre a afrocentricidade ¢ a disciplina Estudos Afro-Americanos. Em- bora os departamentos ¢ programas de Estudos Afto-Americanos te- ‘nham se estabelecido no final da década de 1960, Asante sustenta que a chamada disciplina de Estudos Afro-Americanos esté intimamente i- gada ao desenvolvimento da afrocentricidade e ao estabelecimento do programa de doutoramento da Temple, o primeiro programa de Ph.D. fem Bstudos Alro-Americanos nos Estados Unidas, no final dos anos 1980, A affocentricidade canteibuln. para os Estudos Afto-Americanos com a petspectiva, as teorias os métodos que a definem como uma disciplina, a afticalogia, enquanto 0 programa de doutarado da Tem- ple permitiu seu desenvolvimento: “O simples estudio dos fendmenos africanos nao ¢ africalogia, mas outro empreendimento intelectual es- ‘creve Asante (2003a, p. 105). A aftocentricidade, explica ele, ¢ baseada 120 F AAPRUCENTINCIOADE como UM NOVO PARADIOWA na ideia da cenceaidade da experiéncia aftieana para os africanos. Tem ‘como foco os africanos como sujeits, e nao como objetos definidas de fora por supremacistas brancos. Dentro da afticalogla, devem-se discu- tir assuntos pertinentes a cosmologia, epistemologia, axiologia ¢ esté- tica africanas, Além disso, seguindo Karenga, Asante identitica os sete ‘campos teméticos da africalogia {comunicativo, social, histérico, cultu- ‘al, politico, econdmico e psicolégico) e reconhece trés abordagens pos- siveis (funcional, categérica e etimoldgica). Nem é preciso dizer que a africalogia se ocupa de todo 0 mundo africano, ou seja, é pan-africana em seu escopo, Uma aplicagao concreta desses preceitos se encontra nos programas de mestrado e doutorado da Ternple, em que os docentes afrocéntricos cometeram “suicidio disciplinar” ¢ os estudantes podem escolher entre dois campos de estudo, 0 da estética culeural (que com preende o estudo da ética, da histéria, dos temas € modelos estéticos, entte outros) ¢ 0 do comportamento social (que lida, por exemplo, com relacionamentos, raga, classe, género, ¢ assim por diante). Asante con- clu! sugerindo que @ africalogia como disciplina, ou seja, como um em- preendimento fundamentalmente intelectual, estd aberta a todos que possam compartilhar de sus perspectiva e metodologia. , portanto, no contexto da afticelogia que se deve conceber 0 as ecto sociolégico do paradigma afrocéntrice, As dimensoes metafisicas esociolégicas estio profundamente interligadas, come fica explicito nas segulnces declaragées de Asante: “Como discipling, a africalogia ¢ sus- tentada pelo compromisso de centrar o estudo dos fendmenos e ever: tos africanos ne voz cultural particular do conjunto de povos africanos” (1996, p. 12); ‘0 centzismo, que significa plantar a observagio ¢ 0 com- portamento nas experiénetas histérieas préprias, modela os conceitos, 0s paradigmas, 2s teorias e os métodos da afticalogia” (1990, p. 12). APARATO CONCEITUAL DO PARADIGMA AFROCENTRICO Os conceitas-chave em que se baseiam os afticalogistas sao 0s seguin- tes: centro, localizacdo, lugar, deslocamento e realocagao. 0 conceito de centro {também localizagdo, lugar) ocupa, como se poderia esperar, ae asta azana + uma posigdo fundamental no aparato conceitual afrocéntrico, Baseia-se cessenclalmente na conviegto de que a historia, a cultura ea ancestrali- dade determinam nossa identidade. Esta, por sua vez, determina nossa locallzagae, nosso centro, nosso lugar na vida, tanto material quanto ‘spiritual. Conceber-se de uma forma compativel com sua hist cultura e ancestratidade 6 estar centrado, ou proceder a partir de seu contro, Por outro lado, 0 deslocamento ocorre quando alguém apreende ‘a realidade pelo centro de outro grupo. Por exempio, nao é incomum ‘que afticanos da diéspora viajera para a Europa como se tvessem uma conexao cultural e histérica especial com esse lugar, enquanto viajar para a Africa nao thes ocorre sequer como opeao, muito menos como imperativo. Embora seja razodvel que 0s descendentes de europeus %e- nnham uma ligagao especial com a Europa, com base em sua realidade histérica, cultural e ancestral, tal ligacdo é altamente problemética para os africanos, ilustrando muito bem 0 que significa deslocamento, Tal comportamento s6 demonstra a aceitagio da Europa como centto do mundo, ¢ as implicagées dessa aceitacao vao muito além do mero 2s- pecta fisico de uma viagem a esse continente. Pois, embora os africanos possam volta fisicamente da Europa, a verdade € que sua psique ainda no voltou para o seu lar, a Africa. A realocagio ainda esté para ocorter. Nés afticalogistas frequentemente usainos outros termes, como visio de mundo, cosmologis, exiologla, estética e epistemologia, em nossa tentativa de delinear de modo consciente e preciso os contornos ‘metafisicos do paradigms alrocéntrico e da visdo de mundo africana em queele se baseia. EPISTEMOLOGIA, METODOLOGIA § METODOS AFROCENTRICOS E inegivel que métodos e metodologias derivam de determninado pa- radigma e por ele so orientados. A metodologia e os métodos airo- céniticos néo sao exceséo. A literarora examinada para este enssio (Akbar, Myers, Harris ¢ Asante) revela 0 seguinte consenso: a visao de mundo de um povo determina o que constiui problema pera ee, além 122 de como resolve seus problemas, Bm resultado, a produgdo académica airocentrica deve refletiv a ontologia, a cosmologia, a axiologia, a es- tética, € assim por diante, do povo africano: deve estar centrada em suas experiéncias. A esséncia da vida, ¢ portanto dos seres humanos, é spiritual, Isso nao significa negar 0 especto material da vida; entre tanto, quando tudo fol dito e feito, o que permanece ndo 6 aparéncia clas coisas, mas a esséncia invisivel que permela tudo que é,oespirito, a derradeira unidade com a natureza, @interconexio fundamental de todas as coisas, Portanto, os métodos afrocéntricos, assim como 0 ¢o- nhecimento afrocentcicamente gerado, devem reileir a primazia do espiritual, a relagio entre o fisico ¢ 0 espiritual, assim como a inter- conexo entre todas as coisas. A integracdo dos principios espirituais e fisicos pode muito bem constituir grande desafio nuun ambiente do- rminado pelo positivism, No entanto 0s africalogistas acreditam que 6 autocontecimento e © ritmo desempenham urn papel especia} ao determinar a metodologia ¢ 0s métodos adequados. Com efeito, par- tindo do autoconhecimento, toda investigago aftocéntrica deve ser conduzida por meio de una interacio entre 0 pesquisador ¢ 0 tema. ‘Aimersdo cultural e social é um imperative, Além disso, toda invest ‘gagio altocéntrica deve ser ativada pelo que Asante chama de “alma’ & qual, em tiltima instancia, esta igada a0 ritmo, 0 pulso intimo do cosmo, Norman Harris, em particular, destaca que o conhecimento alrocéntrico € valldado por uma combinagdo de compreensao hist6- ricae intulg#o, ou seja, que o conhecimento ¢ ao mesmo ternpe tacio nal e suprarracional, Algm disso, em concordéncia como fato de que 0 objetivo siltimo da afrocentricidade & a libertagao dos africanos, 2 metodologia alrocentrica deve gerar um conhecimento que os liberts celhes traga empoderamento' De forma resumida, ent&o, 08 prinefpios metodoldgicos da atricalo- sia sdo os seguintes: toda investigacio deve ser doterminada pela expe- riéneia afticanas 0 espiriual é importante e deve ser colocade no lugar devido; « imersio no sujlto é necesséria; 0 holismo é um imperativo; deve-se confiar na intuigao; nem tudo € mensurdvel porque nem tudo {que é importante é material; 0 conhecimento gerado pela metodelogia afroeéntrica deve ser libertador. as. Os métodos usados pelos aftologistas variam, dependendo do seu 6plco particular de estudo. Entrecanto os métados afroldgicos arquite- ‘ados por intelectuais particulares devem ser orientados pelos princi plos delineados anteriormente. TEoRIAS APROCENTRICAS . 1H uina mulkiplicidade de teorias aftocéntricas aplicadas a uma ampla gama de tépicos. Isso ndo surpreende, jé que, como expusernos ante- riorimente, 0s Estudos Afticanos sao devotados a todos os aspectos da ‘vida. A seguir fazemos uma revisio desses teotias afrocéntricas, Clenora Hudson-Weems ¢ Nah Dove fizeram contribuigdes parti- cularmente tteis ao discurso aftocéntrico sobre mulheres ¢ homens afticanos, Clenora Hudson-Weems (1983, 2004) cunhou o termo “mu- Iherismo Africana’, em 1987, depois de perceber a total inadequagio do ferninismo ¢ das teorias semelhantes (por exemplo, feminismo ne- gro, mulherismo, mutherismo negro) em apreender a realidade das mulheres africanas e, sobrotudo, proporcionar-Ihes os meios de alterar essa realidade. Os problemas com a adogao do feminisrmo por mulheres africanas tém duas dimens6es. Fim primeito lugar, o feminismao é fun- damentalmente um fendmeno europeu. Como tal, est@ carregado de principios metatisicos europeus, tais como a relagao conflituosa entre os géneros, em que os homens sao vistos como inimigos das mulheres. Em segundo lugar, 0 femmismo, tal como se desenvolveu na década de 1880, era francamente racista, Por essas razbes, afirma Hudson-Weems, © feminismo ndo reflete nem pode refletir as crencas ou os interesses das malheres africanas. Em particular, ea assinala que as mulheres afti- canas ndo percebem 08 homens afticanos como inimigos. Nem seria in- {eressante para nés, como povo, que nos permitissemos dividir segundo a linha de género enquanto vivernos em uma sociedade altamente ra- ializada e racista. No lugar do feminismo, Hudson-Weems demanda um mulherismo Africana “alicergado na cultura afticana ¢, pottanto, enraizado em experiéncias, Intas, necessidades © desejos singulares das mulheres africanas”(p. 158), Hudson-Weems afirma cortetamente 14 ue 2 cooperacgo de homens e mulheres africanos contra a suprema- cia branca 6 necessdria para a sobrevivéncia e o bem-estar do povo aft cano, O termo “mulherismo Africana’ constitui, em si mesmo, sim pri- rmeira passo para nos definirmnas e estabelecermos objetivos que sejan compativeis com nossa cultura ¢ nossa historia, Em outras palavras, & 0 primeizo passo para existirmos om nossos ptoprios termas. ‘A preocupacio de Nab Dove com a vida das mulheres africanas, & ‘a abordagem que faz delas, é muito semelhante a de Clenora Hudson- -Weems. Com efeito, em seu artigo intitulado “Definindo a teoria mu- Iherista africana’, Nah Dove (2003) afirma que s8 no contexto da supze- ‘macia branca e de seus sustentéculos culturais podemos compreender destino enfientado pelas mulheres atticanias nas sociedades ociden- tais, Dove dedica particular atencao A anilise dos dois bergos, de Cheikh Anta Diop, aplicando-a ao tratamento duro humnithante que. as mu- Iheres recebem nas sociedadles dominadas pelo Ocidente. Com efetto, Dove aponta os vinculos entre esse tratamento e as poderosas correntes patriarcais exenofobieas que tem caracterizado desde o inicio a cultura ocidental. Dove destaca corretamente as grandes contribulgdes que as mulheres afticanas do ao bem-estar do seu povo, desde a untiguidade até 0s dias atuals, como guerreiras e mies. A cultura afvicana constréi suas relagdes de género com énfase na complementaridade, e née no conflito, entre homens e rpulheres. O que faz o homem é a mulher; da mesma forma que 0 que fez a mulher € 0 homem. Apreciar e compre- ender essa complementaridade esté na raiz de qualquer teoria que tate das mulheres airicanas segundo o paradigma affocéntrico. Alias, ess abordagem ndo é apenas coerente com cultura africana, mas também um ato de resistencia is tentativas da supremacia branca de desintexrar oe dividir ainda mais a comunidade africana, Para concluir, creio que sera titilrevisitar 0 trabalho tebrico de dois, Importantes intelectiais aftocéntricos, Shujaa e Hilliard, na drea erica a educacdo. O propésito e a forma da educagao constituem uma pri ridade do paradigma aftocémtrico em razao de seu potenclallibertador. Fstabelecendo uma distingio bastante itl entre educagdo e escalari- dade, Mwalimu Shujaa (1995) afirma que a educacao & um Imperative cultural para os africanos nos Estados Unidos. Enquanto o principal 125 propésito da escolaridade € o controle social, juntamente com a re- producdo da hegemonis do segmento populacional dominante euro- -noste-americano sobre a sociedade, a educagao assegura a transmis- sdo A geragdo seguinte de valores c atitudes que reflitam a cultura de de- terminado grupo. Com esse estado de cotsas, ¢ claro que 0s afticanos que frequentam as escolas piblicas euro-norte-americanas nao estdo adquirindo “educagio’ nem devem esperar se ectucar, é que recebem ‘uma quantidade enorme de imagens negativas ¢ debilitantes de si mes- ‘mos. Em resultado, muitos de nds se comportam como “idiotas instrut- dos’ incapazes de dar qualquer contribuigao que seja & nossa comuni- dade, aderindo & ordem europea individualista, materilistae racista, {As reformas educacionais nao conseguem melhorar essa realidade, pois o que se questiona nfo ¢ o sistema opressiva, mas suas modalida- des de operagéo. Shujaa sustenta que, em ultima insténcia, é respon- sabilidade das familias encarregar-se da educacao de seus jovens, pti- meiro avaliando 0 contetido cultural que deve set tansmitida e depois criando os caminhos edequados, se necessario, para passar o conhe- cimento as eriangas. Shujaa acredita que apenas escolas afroctniricas Independentes poderiam ter condigdes de nutri e reforgar a orienta- io dos estudantes africanos, permitindo assim que eles conhecarn a si mesmos, compreendam os mecanismos pelos quais se perpetua a opressio ¢ trabvalhem para destrut-los. Eotendendo a importincia do passado africano para o nosso pre~ sente eo nosso futuro, Asa Hilliard 1 (2002) conduciu um estudo muito Lill da educagio no Antigo Bgito, Embora sua pesquisa tenha sido obs- ‘ruida pela destruigdo dos textos, assim como pelo sigilo que cercava 0 proceszo educacional no Kemet, mesmo assim sua jornacla foi frutifera Hilliard comesa afirmando e estabelecendo a existéncia de tradigio africana muito grande ¢ antiga (inclusive anterior ao Kemet), responsé- vel pelo desenvolvimento de uma visio de mundo particular, espectfica ‘e comum aos africanos até 05 dias de hoje. Nao podemos compreender a educagao no Kemet fora do contexto da visio de mundo africano-ke- mética. Com efeito, o objetivo iltimo da educagao é experimentara uni- dade com Deus, tornar-se um com Mdiat. Isso seria aleangado mediante ‘a uniéade da pessoa com o grupo e com a natureza, assim como de- 226 senvalvimente da responsabilidade social, do carter social e do poder spiritual. Ainiciagao era de primordial importancia, mas 0 processo de ensino e aprendizado era abrangente, interativo e coletiva, tendo lugar ‘num ambiente que refletia ¢ transmitia a cultura integral dos afticanos. Hilliard sugere que, na medida em que os africanos procuram s¢ educat de maneira adequada, permitem que a tradigao afticana sefa seu gui CONSIDERAGOES FINAIS ‘Ao abordar a crise criada para os africanos pela supremacia branca, for necenclo um corretivo na forma de uma realocagde conceltual e cultural, 0 paradigma afrocéntrico busca tedefinir nossas priovidades de estudo e pesquisa ¢, de modo mais geral, nossas opgées de vida, de maneiras que nos beneficiem, Devemos lembrar que 0 propésito final da afrocentrici- dade é a liberta¢ao dos africanos. O que se necessita urgentemente é de "um espaco seguro e conceitualmente estavel, que, afirmam os afrocen- ttistas, deve basear-se nas melhores e mais antigas tradigbes afticanas e sevativado por uma vitoriosa consciénela afticana, NOTA 1] "Bmpederamento? derlvado do inglés empowerment terme que surgiu na socio- Toga, na patcolagt eno servi social com rferéria a pessoas e populates ds- criminadas(rmuheres,indigenas, afodescendentes, pessoas portadores de neces- sidedes cepecias) ou peetancentes a grupas zadicionalmenteexculidos do padtdo canal do chamada “norma “Empoderamento” se refere ao processo de pete ber eviticemente o discurso da dsecimingedo soirida; reconhecer-se e essumty sua prépia entidade como pectencente ao grupo discriesinado; embasare eonsolidar ‘a autoestima necessria para tomar-se pratagonista da propria vida apesar da dis- crlmnluagto softs, Ess processa significa construire exeroer uma forraa de poder em relagiaastmesmo.e a vida 127

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