Você está na página 1de 7
CAPITULO O que é a verdade, portanto? Um batalhao mével de metéforas, metonimias, antropomorfismos, enfim, uma soma de relagdes humanas que foram enfattzadas pottica e retoricamente, transpostas, enfeitadas, e que, apds longo uso, parecem a um povo sélidas, canénicas e obrigatérias. Introdugao' | A teoria do conhecimento é uma discipli- na filoséfica que investiga as condigdes do co- nhecimento verdadeiro, Numa visio tradicio- nal, essas condigdes se colocam diante dos pro- blemas decorrentes da relacio entre o sujeito ¢ © objeto do conhecimento. Embora os filésofos da Antiguidade ¢ da Idade Média abordassem 0 tema do conheci- mento, nio se pode dizer que a teoria do co- nhecimento j& existisse como disciplina inde- Nietzsche pendente, pois essas questdes se achavam vincu- Jadas aos problemas metafisicos,além de que ndo cra posta em causa a capacidade humana de co- nhecer.A teoria do conhecimento surge como disciplina auténoma na Idade Moderna, quan- do 0 realismo metafisico dos gregos comega @ ser criticado por filésofos como Descartes, Lo- cke, Hume, que se ocupam de forma explicita e sistemitica com questdes sobre origem, essén- cia e certeza do conhecimento humano. Essa investiga¢o culmina na critica da razio levada a efeito por Kant no século XVIII. PRIMEIRA PARTE - Antiguidade e Idade Média mums Para os que entram nos mesmos rios, correm outras € novas aguas. [...] Nao se pode entrar duas vezes no mesmo rio. Heraclto Permanecendo idéntico e em um mesmo estado, [0 ser] descansa em si préprio, sempre imutavelmente fixo e no mesmo lugar. Parménides Aguilo que a verdade descobrir ndo pode contrariar aos livros sagrados quer do 1. Periodos da filosofia grega Costuma-se dividir a filosofia grega em trés grandes periodos, que veremos a seguir. Antigo quer do Novo Testamento. Santo Agostinno * Periodo pré-socrtico (sécs. VII ¢ VI a.C.): 08 filésofos das colénias gregas (Jénia e Magna Grécia) iniciam o processo de desligamento entre a filosofia e 0 pensamento mitico. 1. Os assuntos aqui tratados sido abordados em outros capitulos sob aspectos diferentes: Capitulo 7 — Do mito a razdo, Capitulo 12 — A ciéneia grega e medieval, Capitulo 17 — A politica na Antiguidade ena Idade Média. lB * Periodo socritico ou classico (sécs. V e IV a.C.): © centro cultural passa a ser Atenas; desse periodo fazem parte Sécrates e seu discipulo Platio, que posteriormente foi mestre de Aristételes; 0 pensamento organizado e sistematico de Platdo ¢ Aristoteles influenciara durante séculos a cultura ocidental; também os sofistas sio deste periodo e foram duramente criticados por seus contemporaneos. * Periodo pés-socratico (sécs..III ¢ Il a.C.) caracteriza-se pela expansio macedénica sobre 08 territérios gregos e formacio do império de Alexandre Magno, que se estende por regides da Asia e parte do norte da Africa; ap6s a morte de Aléxandre, inicia-se a época helenistica, mar- cada pela influéncia oriental; as principais ex- pressdes filoséficas do periodo pés-socratico sio © estoicismo e 0 epicurismo. 2. Filosofia pré-socratica VOs filésofos pré-socraticos discutem de maneira racional sobre ‘a natureza, distancian- do-se das explicagdes miticas do periodo ante- rior.A cosmogonia, tipica do pensamento miti- co, é descritiva e explica como do caos surge 0 cosmofa partir da geragao dos deuses, identifica dos as forcas da natureza) J4 na cosmologia, as explicagdes rompem com o mitota arché (prin- cipio) nao se encontra na ordem do tempo mi- tico, mas significa principio teérico, fundamen- to de todas as coisas. Dai a diversidade de esco- has filos6ficas, que dio origem a explicagdes con ceituais, e portanto abstratas, muito diferentes entre si. | Relembramos que grande parte da obra dos primeiros fil6sofos foi perdida, deles nos restan- do apenas fragmentos e os comentirios feitos pelos filésofos do periodo clissico. Dentre os pré-socriticos, vamos destacar apenas dois, Hericlito e Parménides} m Herdclito: tudo flui /Heraclito (544-484 a.C.) nasceu em Efeso, na J6nia (atual Turquia). Tal como seus contem- porineos pré-socriticos, procura compreender a multiplicidade do realJAo contrario. deles, porém, nao rejeita as contradigdes e quer apre- ender a realidade na sua mudanga, no seu devir. {Todas as coisas mudam sem cessar, e 0 que te- mos diante de nés em dado momento é dife- rente do que foi ha pouco e do que seri depois “Nunca nos banhamos duas vezes no mesmo rio”, pois na segunda vez no somos os mes- mos, e também 0 rio mudou. 3 {Para Hericlito, o ser é o miltiplo. Nao no sentido apenas de que existe a multiplicidade das coisas, mas é miltiplo por estar constituido de oposigées internas| O. que mantém o fluxo do movimento nio ¢ o simples aparecer de no- vvos seres, mas a luta dos contrarios, pois “a guet~ a pai de todos, rei de todos”. E da luta que nasce a harmonia, como sintese dos contrarios. O dinamismo de todas as coisas pode bem ser representado pela metéfora do fogo, forma visi- vel da instabilidade, simbolo da eterna agita¢ao do devir,“o fogo eterno e vivo, que ora se acen- de e ora se apaga”. Costuma-se dizer que Hericlito teve a in- tuigdo da légica dialética, a ser elaborada por Hegel e depois Marx, no século XIX m Parménides: o ser é imével }Parménides (c.540-c.470 a.C.) viveu em Eléia, cidade do sul da Magna Grécia (atual Ité- lia) e € 0 principal expoente da chamada escola eledticd, Sua teoria filoséfica influenciou de for- ma decisiva o pensamento ocidental. Ocupa-se longamente em criticar a filosofia heraclitiana: a0 “tudo flui” de Heraclito, contrapde a imobi lidade do ser|Para Parménides é absurdo ¢ im- pensivel considerar que uma coisa pode ser € no ser ao mesmo tempo. A contradi¢3o opée o principio segundo o qual “o ser é”e 0 “‘ndo-ser nao €”|Mais tarde, os logicos chamario a isso prindpio de identidade, base de toda construcio metafisica posterior. Parménides conclui, a partir do principio estabelecido, que o ser é tinico, imutavel, infini— to e imével. Entretanto, nio h4 como negar a existéncia do movimento no mundo porque as coisas nascem e morrem, mudam de lugar e se expdem em infinita multiplicidade] Segundo Parménides;peréen 0 movimento existe apenas no mundo sensfvel,e a percep¢io pelos sentidos é iluséria. $6 0 mundo inteligivel € verdadeiro, pois esté submetido ao principio que hoje chama~ mos de identidade e de nio-contradicio\ [Uma das conseqiiéncias dessa teoria é a iden- tidade entre o ser e 0 pensar. Ou seja, as coisas que wn @xistem fora de mim sio idénticas a0 meu pen- Samento, ¢ o que eu nio conseguir pensar nio Pode ser na realidade. t ‘Veremos adiante como Platio ¢ Aristételes tentario fazer a sintese dessas duas formas de pensar, 3. Os sofistas século de Péricles (V a.C.) constitui o periodo dureo da cultura grega, quando a de- mocritica Atenas desenvolve intensa vida cul- tural e artistica. Os pensadores do periodo clis- sico, embora ainda discutam questdes referentes & natureza, desenvolvem o enfogue antropolégico, gue abrange a moral e a politica Os sofistas vivem nessa época,e alguns de- les so interlocutores de Sécrates. Os mais fa- mosos foram: Protigoras, de Abdera (485-411 a.C,); Gérgias, de Leéncio, na Sicilia (485-380 a.C_); Hippias, de Elis; ainda Trasimaco, Prodi- co, Hipédamos, entre outros. Tal como ocorreu com os pré-socriticos, dos sofistas s6 nos restam fragmentos de suas obras, além das referéncias — muitas vezes tendenciosas — feitas por fild~ sofos posteriores. A palavra sofista, etimologicamente, vem de sophos, que significa “sibio”, ou melhor, “pro- fessor de sabedoria”. Posteriormente adquire o sentido pejorativo daquele que emprega sofis- mas, ou seja, alguém que usa de raciocinio cap cioso, de mé-fé, com intengio de enganar. Sé- phisma significa “sutileza de sofista”. Os sofistas sempre foram mal interpretados por causa das criticas que a eles fizeram Sécrates € Platio. A imagem de certa forma caricatural da sofistica tem sido reelaborada na tentativa de resgatar a sua verdadeira importincia. Desde que 0s sofistas foram reabilitados por Hegel no século XIX, o periodo por eles iniciado passou a ser denominado Aufklérung grega, imitando a expressio alemi que designa o Tluminismo eu- ropeu do século XVIII. Sio muitos os motivos que levaram a visio deturpada sobre os sofistas que a tradi¢io nos oferece. Em primeiro lugar, hi enorme diversi- Sade twbtica entre os pensadores reunidos sob a designario de sofsta Talvez 0 que possa identi- ficé-los € 0 fato de serem considerados sibios € ‘edagogos.Vindos de todas as partes do mundo ‘reg, ocupam-se de um ensino itinerante pe- ———_SSsoeannot | los locais em que passam, mas nio se fixam em lugar algum. Deve-se a isso 0 gosto pela critica, © exercicio do pensar resultante da circulacao de idéias diferentes. Segundo Jaeger, historiador da filosofia, os sofistas exercem influéncia muito forte, vincu- lando-se 4 tradigio educativa dos poetas Ho- mero ¢ Hesiodo. Os sofistas dio importante contribuigio para a sistematizacio do ensino, formando um curriculo de estudos: gramética (da qual sio 0s iniciadores), retérica © dialética; porinfluéncia dos pitagéricos, desenvolver a arit- mética,a geometria,a astronomia ¢ a misica. Para escindalo de seus contemporancos, cos- tumavam cobrar pelas aulas ¢ por esse motivo Sécrates 0s acusa de “prostituigio”. Cabe aqui ‘um reparo: na Grécia Antiga, apenas a aristocra~ cia se ocupava com o trabalho intelectual, pois gozava do écio, ou seja, da disponibilidade de tem- 0,4 que o trabalho manual, de subsisténcia, era ‘ocupagio de escravos. Ora, os sofistas, geralmen- te pertencentes 4 classe média, fazem das aulas seu oficio, por nao serem suficientemente ricos para se darem a0 Iuxo de filosofarem. Se alguns sofistas de menor valor intelectual pudessem ser chamados de “mercenirios do saber” isso na ver~ dade era acidental, nio se aplicando 3 maioria. Os sofistas elaboram 0 ideal teérico da de- mocracia, valorizada pelos comerciantes em as- censio, cujos interesses passam a se contrapor aos da aristocracia rural. Nessas circunstincias, a exigéncia que os sofistas vém satisfazer € de or- dem essencialmente pritica, voltada para a vida, pois iniciam os jovens na arte da retérica, ins trumento indispensivel na assembléia democri- tica, ¢ os deslumbram com o brilhantismo da Participacio no debate piblico. Se foram acusados pelos seus detratores de pronunciarem discursos vazios, essa fama se deve a excessiva atengio dada por alguns deles 20 as- pecto formal da exposigio ¢ da defesa das idéias, na medida em que se acham convencidos de que a persuasio é 0 instrumento por exceléncia do cidadio na cidade democritica.Os melhores deles, no entanto, buscam aperfeigoar os instru- mentos da razio, ou seja, a coeréncia e o rigor da argumenta¢ao, porque nao basta dizer o que se considera verdadeiro, é preciso demonstri-lo pelo raciocinio, Pode-se dizer que ai se encon- tra o embriao da logica, mais tarde desenvolvida por Aristételes. saa Dla Quando Protigoras, um dos mais impor- tantes sofistas, diz que'“o homem é a medida de todas as coisas”, esse fragmento deve ser enten- dido nio como expressio do relativismo do conhecimento, mas como exaltagio da capaci- dade de construir a verdade: 0 logos no mais divino, mas decorre do exercicio técnico da ra- zio humana. 4. Socrates ISécrates (c.470-399 a.C.) nada deixou es- crito, € teve suas idéias divulgadas por dois de seus principais discipulos, Xenofonte ¢ Platio.! Evidentemente, devido ao brilho deles, é de se supor que nem sempre tenham sido realmente figis a0 pensamento do mestre. Nos didlogos de Platio, Sécrates figura sempre como o principal interlocutor. Ainda que muitas vezes seja inclui- do entre 0s sofistas, recusa tal classifica¢io, opon- do-se a eles de forma critica. 1Sécrates se indispés com os poderosos dg seu tempo, que o acusaram de nio crer nos deu- ses da cidade e de corromper a mocidade e por isso 0 condenaram 4 morte.) umava conversar com todos, fossem velhos ou mogos, nobres ou escravos, investi- gando por meio de seu método de conheci- mento.A partir do pressuposto “s6 sei que nada sei”, que consiste justamente na sabedoria de reconhecer a propria ignorincia, inicia a busca do saber] Por essa razdo seu método comega pela fase considerada “destrutiva”, a ironia, termo que em grego significa “perguntar”. Diante do oponente que se diz conhecedor de determinado assunto, Socrates afirma inicialmente nada saber. Com habeis perguntas, desmonta as certezas até 0 ‘outro reconhecer a propria ignoriincia.A segun- da etapa dofmétodo chama-se maiéutica (em gre~ 0, "‘parto”), nome dado em homenagem a sua mide, que era parteira: segundo Socrates, se ela fazia parto de corpos, ele dava a luz” idéias novasly Dessa forma, por meio de perguntas, destrdi o saber constituido para reconstrui-lo na procura da definigio do conceito, Esse processo esti bem ilustrado nos didlogos de Platio, ¢ € bom lem- brar que, no final, nem sempre Sécrates tem a _ 7 * resposta: ele também se pde em busca do con- ceito e as vezes as discussdes nio chegam a con- clusdes definitivas \Sécrates privilegia as questes morais, por isso 0 vemos em muitos diilogos perguntando em que consiste a coragem, covardia, a pieda- de,a justica e assim por diante|Considerando as diversas manifestagdes de coragem, quer saber 0 que € a“coragem em si”, 0 universal que a re~ presenta. Observamos entio que a filosofia nas- ccente precisa inventar palavras novas ou usar as antigas dando-lhes sentido diferente:| S6crates utiliza o termo logos, que na linguagem comum significava “palavra”, “conversa”, e que no sen- tido filoséfico passa a significar “a razio que se i de algo”, ou mais propriamente, o conceto. Explica Garcia Morente: “O que os ge6- metras dizem de uma figura, do circulo, por exemplo, para defini-lo, é o logos do circulo, é a razio dada do circulo. Do mesmo modo, 0 que Socrates pede com afi 20s cidadios de Atenas € que Ihe déem o logos da justica, o logos da cora~ gem. [..] Pois que é este logos seno o que hoje denominamos conceito"? Quando Sécrates pede © logos, quando pede que indiquem qual é logos da justiga, que é a justiga, 0 que pede € 0 conceito da justica, a defini¢io da justi¢a” ? 5. Platao Platdo (428-347 a.C.) viveu em Atenas, onde fundou uma escola denominada Academia Para melhor sintetizar suas idéias, recorre- ‘mos ao livro VII de A Repiiblica, em que seu ensamento ¢ ilustrado pelo famoso “mito da Aer yPltio imagina uma caverna onde pessoas estio acorrentadas desde a infincia, de tal forma que, no podendo ver a entrada dela, apenas enxergam o seu fundo, no qual sio pro- jetadas as sombras das coisas que passam 3s suas costas, onde hi uma fogueira. Se um desses in- dividuos conseguisse se soltar das correntes para contemplar a luz do dia os verdadeiros objetos, a0 regressar, relatando 0 que viu aos seus antigos companheiros, esses o tomariam porlouco e no acreditariam em suas palavras. } A anilise do mito pode ser feita pelo me- nos sob dois pontos de vista: epistemoldgico (rela 2. MORENTE, M. Garcia. Fundamentos de fllasofia, igbes preliminares. 2. ed. S40 Paulo, Mestre Jou, 1966. p. 83. LL. HV0 20 conhecimento) e 0 politico (relativo a0 poder). Do ponto de vista epistemoldgico, 0 mito da caverna € uma alegoria das duas principais formas de conhecimento, a sensivel ¢ a intelec- tual: na teoria das idéias, Platio distingue 0 mundo sensivel, dos fendémenos, e 0 mundo inteligivel, das idéias. © mundo sensivel, que percebemos pelos sentidos, é o mundo da multiplicidade, do mo- Vimento, ¢ é ilusério, pura sombra do verdadei- ro mundo. Por exemplo, mesmo que existam intimeras abelhas dos mais variados tipos, a idéia de abelha deve ser una, imutivel, a verdadeira realidade. Dessa forma, Platio se aproxima do instrumental teérico de Parménides e, aliando- ‘© aos ensinamentos de Sécrates, elabora uma teoria original. Do seu mestre aproveita a no- $40 nova de logos, ¢ a0 continuar o processo de compreensio do real, cria a palavra idéia (eidos), Para referir-se 4 intui¢3o intelectual, distinta da intuigao sensivel. Portanto, acima do ilusério mundo sensi- vel, ha o mundo das idéias gerais, das esséncias imutiveis, que atingimos pela contemplacio e pela depuracao dos enganos dos sentidos. Como as idéias s30 a tinica verdade, o mundo dos fe- némenos s6 existe na medida em que participa do mundo das idéias, do qual é apenas sombra ou cépia. Por exemplo, um cavalo s6 é cavalo ‘enquanto participa da idéia de “cavalo em si”. ‘Trata-se da teoria da participasao, mais tarde dura mente criticada por Aristételes. Para Platio, ha uma dialética que fara a alma elevar-se das coisas miltiplas e mutiveis as idéias unas € imutaveis. As idéias gerais sio hierarqui- zadas, ¢ no topo delas esta a idéia do Bem, a mais alta em perfeicao e a mais geral de todas: os Seres € as coisas ndo existem senio enquanto participam do Bem. E o Bem supremo é tam- bém a Suprema Beleza. E 0 Deus de Platio, Se lembrarmos 0 que foi dito a respeito dos pré-socriticos, podemos verificar que Platio ten- ta superar a oposi¢ao entre o pensamento de Herdclito, que afirma a mutabilidade essencial do ser, ¢ 0 de Parménides, para quem o ser imével. Platio resolve o problema: 0 mundo das idéias se refere ao ser parmenideo, e 0 mundo dos fenémenos ao devir heraclitiano. Como é possivel ultrapassar 0 mundo das aparéncias ilus6rias? Plato supe que o puro espi- ——_— ——TROSOPANDO Tito jé teria contemplado 0 mundo das idéias, mas tudo esquece quando se degrada a0 se tornat pri- sioneiro do corpo, considerado o “timulo da alma”. Pela teoria da reminiscéncia, Platio explica como os sentidos se constituem apenas na ocasio para despertar na alma as lembrancas adormeci- das. Em outras palavras, conhecer é lembrar. No didlogo Menon, Platio descreve como, ao exami- nar figuras sensiveis que lhe sio oferecidas, um escravo é induzido a “lembrar-se” das idéias ¢ a descobrir uma verdade geométrica. Apés a anilise epistemologica do mito da caverna, vejamos agora a interpretagao politica. O filsofo — aquele que se libertou das corren- tes —,ao contemplar a verdadeira realidade ¢ ter passado da opinido (daxa) a ciéncia (episteme), deve tetornar ao meio dos outros individuos, para ori- enti-los. A politica surge da pergunta: como in- fluenciar as pessoas que nio véem? A resposta esté na tarefa do sibio, que deve ensinar e gover- nar. Trata-se da necessidade da transformagao das pessoas € da sociedade, desde que essa acio seja dirigida pelo modelo ideal contemplado. Como veremos no Capitulo 17 — A poli- tica na Antiguidade e na Idade Média, essa posi- ‘go de Platio o leva 3 idealizacio do rei-filéso- fo, ou seja, para que o Estado seja bem governa- do, é preciso que “os filésofos se tornem reis, ou que os reis se tornem filésofos”. Alguns teéricos tendem a considerar Par ménides ¢ Platio como representantes do idea- lismo. Como veremos adiante, 0 idealismo € uma expressio do pensamento da modernidade (séc. XVII),no momento em que a teoria do conhe- cimento se torna reflexio auténoma.. Contudo, segundo Garcia Morente, o eleatismo nao é ide- alismo,a sim realismo. Quando Parménides iden- tifica ser e pensar, nao se pode concluir que ele reduz 0 ser das coisas ao pensamento, pois em nenhum momento é negada a existéncia auté~ noma das coisas reais. Alis, toda filosofia antiga é“ingénua”,no sentido de aceitar o pressupos- to de que “as coisas sio reais”. Naquele mo- mento, a filosofia esti no seu berco e Parméni- des leva até as iiltimas conseqiiéncias 0 poder recém-descoberto da razio de procurar enten- der o mistério do mundo. Como vimos, Platio rejeita como engano- sa a multiplicidade do mundo e privilegia as idéias como esséncias existentes das coisas do mundo sensivel. Ou seja, a cada “sombra” do wb mundo dos fenémenos corresponderia uma es- séncia imutivel no mundo das idéias. Platio confere is idéias uma existéncia ral portanto, tra- ta-se menos de uma teoria idealista e mais pro- priamente de um realismo das idéias. Ou ainda, segundo outros, de um idealismo objetivo. 6. Aristételes Aristteles (384-322 a.C.) nasceu em Esta~ gira, na Calcidica (regio dependente da Mace- dénia). Seu pai era médico de Filipe, rei da Macedénia. Mais tarde, Alexandre, filho de Fili- pe, foi discipulo de Aristételes até o momento €m que precisou assumir precocemente 0 po- der e continuar a expansio do império. J Aristoteles freqiientou a Academia de Pla- tio ¢ a fidelidade ao mestre foi entremeada por criticas que mais tarde justificaria dizendo;“Sou amigo de Platio, mas mais amigo da verdade”. ‘Sua extensa obra forma um grande sistema filo- s6fico cuja importincia se encontra tanto na abrangéncia dos assuntos como na interligacio rigorosa entre as partes constitutivas. Em 340 2.C,, finda o Liceu, em Atenas, assim chamado por ser vizinho do templo de Apolo Licio. Aristételes retoma a problemitica do conhe- cimento e define a ciéncia como conhecimento verdadeiro, conhecimento pelas causas, capaz de superar os enganos da opinio e de compreender a natureza do devir. Ao analisar a interpretacio levada a efeito por Platio sobre a oposicio entre mundo sensivel e mundo inteligivel, Aristételes recusa as solucdes apresentadas e critica o mun- do “separado” das idéias platénicas A teoria aristotélica se baseia em trés dis- tingdes fundamentais, que passamos a descrever de maneira simplificada: substincia-esséncia-aci- dente; ato-poténcia; forma-matéria, conceitos que, por sua vez, desembocam na teoria das qua- tro causas. Aristételes “traz as idéias do céu a terra”: tejeita o mundo das idéias de Plato, fundindo o mundo sensivel e o inteligivel no conceito da substdncia. Para ele, a substancia é“aquilo que é em si mesmo”, 0 suporte dos atributos. Ora, quando dizemos algo de uma substincia, pode- mos nos referir a atributos que lhe convém de tal forma que, se lhe faltassem, a substincia nio seria o que é. Designamos esses atributos de es- séncia propriamente dita, ¢ chamamos de aciden- Unsoave I - Conse =f te 0 atributo que a substincia pode ter ou nio, sem deixar de ser 0 que €. Entio, a substincia individual “este homem” tem como caracteris- ticas essenciais 0s atributos pelos quais este ho- mem homem (Arist6teles diria,a esséncia do ser humano € a racionalidade) e outros, aciden- tais, como ser gordo, velho ou belo, atributos que nio mudam o ser do homem em si. No entanto, como o problema das transfor- magées dos seres ainda nao se resolve com os conceitos de esséncia ¢ acidente, Aristételes re- corre as nogdes de forma e matéria. Matéria é 0 principio indeterminado de que o mundo fisi- co € composto, é“aquilo de que é feito algo”, que nio coincide exatamente com 0 que nés entendemos por matéria, na fisica, por se carac- terizar pela indeterminacio. Forma é“aquilo que faz com que uma coisa seja 0 que &” Todo ser é constituido de matéria e forma, principios indissociéveis. Enquanto a forma é 0 principio inteligivel, a esséncia comum aos in- dividuos da mesma espécie, pela qual todos sio © que sio, a matéria é pura passividade, conten- do a forma em poténcia. Numa estitua, por exemplo, a matéria (que nesse caso € a matéria segunda, pois jé tem alguma determinagio) ¢ 0 marmore;a forma é a idéia que o escultor reali- zana estitua. E por meio da nogio de matériae forma que se explica o devir. Todo ser tende a tornar atual a forma que tem em si como po- téncia. Por exemplo, a semente, quando enter- rada, desenvolve-se ¢ se transforma no carvalho que era em poténcia. Percebe-se ai o recurso aos dois outros con- ceitos, de ato e poténcia, que explicam como dois seres diferentes podem entrar em relacio, agin- do um sobre 0 outro. © conceito de poténcia no deve ser confiandido com fora, mas sim com a auséncia de perfeigio em um ser que pode vir a possuf-la.A poténcia é a capacidade de tor- nar-se alguma coisa e, para tal, € preciso que softa a aco de outro ser ji em ato. A semente que contém o carvalhio em poténcia foi gerada por um carvalho em ato. © movimento é, portanto, a passagem da poténcia para o ato. Eo ato de um ser em po- téncia enquanto tal”, é a poténcia se atualizan- do, Essas consideragdes levam 4 distingao dos diversos tipos de movimento e 4s suas causas ou A teoria das quatro causas. as mudangas derivam da causa material, da causa formal, da causa efici- melee ente ¢ da causa final. Usando 0 exemplo de estétua,a causa material é aquilo de feita (mirmore que a coisa é a eficiente & aquilo com que a 01); a formal é aquilo que a a vai ser (a forma que a estitua adquire); a final ¢ aquilo para © qual a coisa é feita (a finali dade da estitua) Ainda considerando o postulado parmeni deo de que o ser é idéntico ao pensar, Aristéte tes pode superar Parménides ¢ Platio 20 usar os Conceitos expostos no parigrafo anterior, pelos quais se compreende a imutabilidade ¢ 2 mu danga,o acidental e o essencial, o individu: universal. Se conhecer é lid: universais, € também aleo lar com conceitos aplicar esses conceitos a cada coisa individual. Com isso, nio preciso justificar a imobilidade do ser nem criar o mundo das esséncias imutaveis, Toda a estrutura teérica da filosofia aristo- télica desemboca no divino.A descrigio das re- lagSes entre as coisas leva ao reconhecimento da existéncia de um ser superior € necessirio, ou seja, Deus. Porque, se a5 coisas sio contingen- fes, jf que nao tém em si mesmas a razio de sua existéncia, € preciso concluir que sio produzi- das por causas a elas exteriores. Ou seja, todo ser contingente foi produzido por outro ser, que também é contingente e assim por diante. Para nio ir ao infinito na seqiiéncia de causas,é pre~ ciso admitir uma primeira causa, por sua vez incausada, um ser necessirio (e nio contingen- te). Esse Primeiro Motor (imével, por nio ser movido por nenhum outro) é também um puro ato (sem nenhuma poténcia). Chamamos Deus a0 Primeiro Motor Imével, Ato Puro, Ser Ne- cessirio, Causa Primeira de todo existente. 7. A metafisica aristotélica Vimos como a filosofia grega, desde o mo: mento em que se separa do pensamento mitico, elabora conceitos para instrumentalizar a razio no esforco de compreensio do real. Entre as di- versas € importantes contribuicdes do pensa- mento grego, destaca-se a busca de conceitos que expliquem o ser em geral € que hoje reco- nhecemos como assunto da metafisica. Hi uma curiosidade em torno da origem do termo metafisica, Embora sempre facamos referéncia 4 metafisica de Aristételes, ele pro- prio usava a denominagio filosofia primeira. O termo metafisia surgiu no século | a.¢ Andronico de Rodes, ao Aristételes, colocou a filos obras de Fisica: meta fi fisica”. De esse “depoii de ia primeira forma, nada impediu q puramente espacial ‘ado “além”, no sentido de tratar de assunt que transcendem a fisica, que estio além dela Porque ultrapassam as questées relativ nhecimento do mundo sensivel. A filosofia primeira nio é primeira na or dem\do conhecer, jé que partimos do conhe cimenito sensivel, mas a que busca as causas mai uuniversais (e portanto as mais distantes dos sen tidos) € que sio as mais fundamentais na or dem real. Trata-se da parte nuclear da filosofia, na qual se estuda “o ser enquanto ser” isto é,0 ser independentemente de suas determinagées particulares. Ea metafisica que fornece a todas as outras ciéncias 0 fuandamento comum,o objeto que elas investigam € os princfpios dos quais dependem. Ou seja, todas a ciéncias se referem continua mente 20 ser e a diversos conceitos ligados dire- tamente a ele tais como identidade, oposi¢io, di ferenga, género, espécie, todo, parte, perfei¢io, uunidade, necessidade, possibilidade, realidade etc Mas nenhuma ciéncia examina tais conceitos: é nesse sentido que o objeto da metafisica consiste em examinar o ser e suas propriedades. 8. A filosofia medieval JA Idade Média compreende o periodo que vai da queda do Império Romano, no séculoV, até a tomada de Constantinopla pelos turcos, no século XV. Portanto, sio mil anos de historia em que se formam os novos reinos barbaros ¢ Jentamente constitui-se a ordem feudal, de na- tureza aristocritica, em cujo topo da pirimide encontram-se os nobres ¢ 0 clero. A Igreja catélica surge como forca espiri- tual e politica. Essa influéncia religiosa se deve a diversos motivos, inclusive porque em um mun- do fragmentado, apés a dissolucio do Império, a Igreja representa um elemento agregador. Do ponto de vista cultural, ela atua de forma fun- damental porque, apés longo perfodo de obs- curidade, a heranga greco-latina ressurge nos mosteiros, onde fora preservada. Em um mun- do em que nem os nobres sabem ler, os monges i

Você também pode gostar