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Revista leone Revista de Divulgacdo Centfca em Lingua Portugues, Linguistica e Literatura ‘Volume 09— Janeiro de 2012 ISSN 1982-7717 AVIOLENCIA COMO ESPETACULO: o que a Chacina em Realengo tem anos dizer, Amone Inacia Alves- FE/UFG" “A exigéncia que Auschwitz néo se repita é a primeira de todas para a educagtio”. Adorno Resume: o presente texto pratende analisar o processo de produglo da violéncia, a partir de leituras expostas nos meios de comunicagéo de massa sobre o episédio ocorrido em 07 de abril de 2011 na Escola Municipal Taso da Silveira, no Rio de Janeiro. Parte-se do pressuposto de que a midia pretende identificar a situacio violenta vivenciada pelos jovens, ‘que morreram ou viram muitos colegas ser vitimados, a partir de causas, cujas explicacSes tém a sua origem no desequilibrio emocional do “assassino”, nos problemas psicolégicos provocados que ele enfrentou ao longo da sua trajetéria escolar. No entanto, pensamos que Por trés desse discurso, ha uma produce ideolégica que escamoteia relacdes socials, neutraliza diferencas de classe e legitima situacdes de poder, cujo enfrentamento a escola nao tem conseguido obter éxito, Palavras —chave: violéncia simbélica, sociedade, consumismo, escola. Introdugio: Nos tiltimos dias, num aumento significativo dos nimeros, temos assistido pelos meios de comunicacio ~ sejam orais ou escritos ~ uma recorrente cobranca sobre situagdes em ‘que criangas e jovens tém vivenciado, no ambiente escolar, agressdes dentro e fora da sala de aula envolvendo alunos, professores e demais funcionérios. Destacam-se veementemente, aspectos até ento consideraddos “inéditos”, que se referem & precocidade dos atos violentos, muitas vezes praticados por menores de 10 anos, e na crueldade desses atos, © a repercussio negativa que promovem no interior do espaco escolar, ou mesmo fora dele. Os telejornais abordam de maneira incisiva © “desnorteamento” da prépria sociedade, Perdida diante dessa alta incidéncia, onde pais “descontiados" desacreditam ainda mais dessa instituigéo, vista por muitos como “falida'”, ainda mais tratando-se da escola publica. * Professora Adjunta na Area de Fundamentos Filosdficos #Sécio-Hstorcos da Educagdo FE/UFG. Dautora em FEducagio pola UFG, Revista leone Revista de Divulgao Centtca em Lingua Portuguesa Linguistica e Literatura ‘Volume 09— Janeiro de 2012 ISSN 1982-7717 Recentemente, um fato chamou mi cla 2 atencao piblice, pele brutelidade do ato ‘em si, que culminou com a morte de pelo menos doze criangas e adolescentes, entre dez € ‘quatorze anos, deixando vérias outras feridas, slgumas em estado grave. Um jovem fortemente armado adentrou em salas de aulas lotadas de alunos, almejando 2 esmo quem aparecesse pela frente, preferindo alvos femininos. Seja pela estupide: da agéo em si, estupefagio dos que assistiram ou pelo questionamente geral sobre © porqué daquele ato barbaro, algumas questdes nos alertaram. Uma delas diz respeito ao fato de que o autor dos disparos era um ex-aluno, que mantinha constante contato com a instituigo. Outra questo, para nés ainda mais grave, foi ‘a motivacio do crime, através das cartas deixadas, e amplamente divulgadas, que tinha origem em uma revanche contra uma prética comum nas escolas, que ¢ de tratar os diferentes de forma ridicularizada, chacoteando-os ¢ impondo-Ihes uma série de limites no convivio disrio. (© que nos intriga é © conhecimento de que a imprenca nacional buscou explicar a partir do perfil assassino, as razdes para toda e qualquer forma de violéncia nas escolas. A nossa critica & que essas leituras tratam o caso a partir do 4mbito do individuo isolado, a suposta vitima, tornando plausivel no submeter essa problematica a uma questo maior, que ¢ 0 préprio sentido que a violéncia assume em uma sociedade marcadamente violenta, cujo desejo em consumir abrange um mercado que tem todo tipo de produgdo sobre 0 tema. Ansiamos em participar desse mercado a cada momento, A sociedade constrdt representagdes em que a violéncia se justifica como um meio para se impor limites, seja com as “palmadas” dadas na hora certa, ou mesmo pelo uso da forga e coergo de aparelhos repressivos, como a policia, para fazer 0 “acerto” com os bandidos. O imagindrio social é tio povoado com tais representagdes, que nio ¢ a toa que 0 Capito Nascimento, do aclamado filme Tropa de Elite, que usava e abusava do poder coercitivo a fim de obter confieses de “pandidos", algou 0 caminho de heréi nacional. ‘As nossas preocupagées vio de encontro aos “especialistas”, pols pretendemos “entender 0 caso” a partir de uma perspectiva critica, apontando na direcSo de néo 7 Revista leone Revista de Divulgao Centtca em Lingua Portuguesa Linguistica e Literatura ‘Volume 09— Janeiro de 2012 ISSN 1982-7717 buscarmos os culpados ~ confessadamente “divulgado” pela Grande Midia, o Wellington Silveira “suicida”, Mais do que localizar as vitimas, 0s familiares das vitimas, os moradores da redondeza que presenciaram 0 fato e até mesmo os heréis que foram prontamente providenciados, pretendemos contrapor & “sociedade do espetaculo” que se formou na porta da escola. A imprensa nos apresentou uma opinido formada de que aquele era um problema especifico de desequil rio de um “qualquer”, que “entrou em uma escola atirando” Indo alam dessas representagSes sociais, comadamente ré tidas, pensamos que 6 necessério olhar em outras diregSes. Urge em meio a tanta dor e sofrimento de todos nés pertencentes a essa sociedade, pais com filhos em idade escolar e, sobretudo, pertencentes 20 campo da educacao, repensar o papel que a escola atual tem ocupado na formacao humana, na propria concepcéo sobre o que significa formar e, principalmente, na producdo de pessoas que podem cometer atos tdo bérbaros. Devemos ainda atentar para o fato de ‘que a escola nao ¢ a tinica insttuigo que tem essa fungio educativa. Para nos auxiliar nesse caminho, partimos do pressuposto de que a tragédia de Realengo no pode ser considerada como um ato isolado, uma triste coincidéncia ou mesmo, como uma fetalidade que poderia ou néo ser evitada, ndo se trata disso. Pensamos que 0s “mortos" e sobreviventes tm muito a nos dizer, ainda mais se visualizarmos a violéncia como uma producto do sistema copitalista atual, que se revigora em uma ideologia marcadamente classista, que ignora as diferengas e produz uma violéncie anterior a essa, ‘que fol estudada por Pierre Bourdieu, como simbélica. Neste artigo, situaremos as condigdes propostas em uma escola que é produzida e reproduz as diferencas, a partir de uma distribuigao injusta de capital, cujo impacto imediato é a distingio, 0 reconhecimento ¢ a “heranga” desigual, reprodutora de relagdes sociais igualmente desiguais e injustas. 1.1 Aescola capitalista 28 Revista leone Revista de Divulgacdo Centfca em Lingua Portugues, Linguistica e Literatura ‘Volume 09— Janeiro de 2012 ISSN 1982-7717 ‘A fim de melhor entendermos o contexto da escola atual, voltaremos as ar histéricas, com a finalidade de situé-las no ambito do capitalismo. Essa escola fol pensada ‘com 0 objetivo de inculcar um modelo de sociedade, de “instruir", por um lado, ume elite ‘capaz de voltar 0 seu esclarecimento para os atos decisérios necessérios burocracia da ‘empresa e, por outro, “preparar” para a produgéo da mao de obra imprescindivel ao mundo do trabalho. Esses dois mundos resumem as propestas de uma escola que nasceu, nos moldes capitalistas, voltada para duas classes distintas, que terdo no bojo das suas experiéncias lugares distintamente marcados e separados. Nesta perspectiva, sob os auspicios da lobalizago, escola ver sendo chamada para prosseguir esse projeto, em nome da “modernidade”, que segundo Olgéria Matos (2008): {vu} € dominada pelo principio do desempenho, Sua temporslidade no é a da experigneia, do conhacimento, da felicidade; ela institucionalmente corganizada (..) © que corresponde ac encolhimento do “espace de cexperincias” na vide social e de liberdade; liberdade de acesso ao passado 20 futuro como construcso de uma subjetividade democritica. (..) A “escalada da insigificdneia” resulta numa légica de desengajamento em relago 20 mundo compartilhado.(..) om a difculdade na criagio de lacos duradouros, com a obsolescéncia de valores como 0 respeito, solideriedede, responsebilidade e fidelidade Essa fluidez no cultivo de valores acaba sendo 0 produto mais visivel dessa proposta que distancia as pessoas, desengajando-as do tecido social. O que esté em jogo é a mercadoria, tudo 0 que pode ser vendido e comprado, sejam objetos ou até mesmo ados. pessoas. Dai s preocupasio escolar com os contetides comerciais, mercan Em uma sociedade globalizada, a escolarizacao, objeto por exceléncia da instituigéo, escolar, ainda que para esses “dois mundos”, de formagao técnico-cientifica para um grupo abastado e profissional-pratico para os menos afortunados, est voltada para o contexto da reestruturagio produtiva, cujo objetivo & produzir humanos em contextos de “existéncia provisria sem prazo” (FRIGOTTO, apud FRANKEL, 2002). Trata-se da producio de novas formas de alienagio, cujasociedade do consume cade vez meis demanda, Frigotto (2002, p.28) diz que # educagio em ume sociedade “globalizante” tem sido reduzida a uma mediagdo de segunda ordem, que transforma o trabalho criador em 29 Revista leone Revista de Divulgacdo Centfca em Lingua Portugues, Linguistica e Literatura ‘Volume 09— Janeiro de 2012 ISSN 1982-7717 lenago, mercadoria e forca de trabalho". Ne tradicio marxista, as mediagées de primeira ‘ordem sio constituidas a partir de centralidade do trabalho, criador da condigéo humana e do sujeito historicamente construide. Na condigéo de seres histéricos, os homens Perpetuam sua histéria © seus valores para seus descendentes, criando espagos de aprendizagem, onde os mais velhos ensinam para os “aprendentes”. Nesse sentido, no se tem como compreender a educago sem relacioné-la como trabalho de produgéo da prépria humanidade. Em uma sociedade que “mercantiliza” tudo 0 que vé pela frente, precisa cada vez mais monopolizar os espagos soci is, como os escolares, de modo a demarcar territérios. Precisa, por um lado, produzir trabalhadores e executives par © mercado de trabalho e, por outro, marcé-los em uma sociedade de consumo, que a cada ano se atualiza em novos modelos de notebooks, celulares, marcas variadas de ténis, roupas e demais objetos de uso escolar. Nessa perspectiva, o que esté em jogo em uma sociedade capitalista é apenas a produco desse sujeito individual, 0 consumidor de uma determinada etiqueta. O que interessa saber € como se dé 0 processo de producéo desse ser humano, como sujeito social «@ histérico em uma sociedade de classes e de consumo. Em uma sociedade em que a educagio produz “reprodutores” de uma ideologia hegeménica que reduz tudo a mereadoria, que pode ter variados precos, a violéncia no pode ser pensada apenas como motivo do “descaso” da escola. Ela precisa ser vista como uma consequéncia de todo um projeto de nivelamento dos desiguals, da falsa ideologia de que “todos tém oportunidades iguais de acesso” e que a escola est ai para todos se “tornarem alguém na vida", sendo que essa titima frase significa "ter algo” que a sociedade do consumo disponibiliza para a venda. Nossa andlise tem como ponto de partida as condicées em que a escola atual alcanca, ‘esse cidadao e 0 modo pelo qual seré integrado em uma sociedade, que demands como condigio dessa cidadanis o acesso a um mundo consumista, principalmente da violéncia que adentra os lares e chega as escolas. Diante dessa perspectiva, cabe-nos inqulrir: Como o discurso sobre a violéncia torna-se Util a0 grande capital? Em quals condigSes materiais se constroem as contradicées sobre a formagio? Como a sociedade se apropria do discurso da violéncia? Tentando responder a Revista leone Revista de Divulgacdo Centfca em Lingua Portugues, Linguistica e Literatura ‘Volume 09— Janeiro de 2012 ISSN 1982-7717 essa e outres questées, Daniel Singer (Apud, FRIGOTTO, 2002, p. 40) 20 sintetizar o pensamento de Mészéros, diz: Na verdade, jé ha algum tempo o capitalismo perdeu a sua fungio ‘cilizatéria” enquanto organizador impiadoso mas eficiente do trabalho, [1 Simplesmente, para prosseguir existindo, o sisterva funda-se cada vez mais no desperdicio, na “obsolescéncia planejada", na producio de armas @ ro desenvolvimento do complaxo militar. Ao mesmo tempo, 0 seu impulso incontrolével para a expanséo Ja produziu efeitos catastréficos para os recursos natural e © melo ambiente. Nada dieto Impede o sistema de produzir “trabalho supérfiuo’, vale dizer, desemprego em massa, ‘A compreensio desse fendmeno violento nas escolas explica-se, de um lado, pelo tipo de educagao que vem sendo feita, voltada ao homem-mercadoria, ao aluno-ntimero, cuja cexistncia histérica e material é desprezada, levando-se em conta, apenas as perspectivas de consumo que poderd ter no futuro, A escola torna-se 0 espago onde se disputam roupas de moda, relégios, celulares e demais objetos de consumo, mesmo pa aqueles que nio participam do “mundo” do consumo, mesmo onde as condicdes econdmicas sejam escassas. Pouco se trabalha em uma perspectiva além dessa, mas apenas no preparo para os vestibulares e demais processos seletivos exigidos por esse mundo do trabalho. Por outro lado, © discurso da violéncia no pode ser reduzido a um fendmeno estritamente escolar, ‘como apregoa 2 midia nacional, mas @ um problema social, de “favelizacao” crescente, de falta de perspectivas profissionais e socials, enfim, de restrigSes a esse mundo consumista, Toda a sociedade tem a sua parcela de culpa na produce da violéncia, sendo a escola, no um espaco neutro desvinculade desse meio social, ‘Trata-se, antes de tudo, de uma producéo de homem alienado, que se aliena cada vez mais 8 indstria do entretenimento, que usa e abusa da violéncla, para vender e atrair esses Jovens e essas criangas para esse novo mundo, em que o mais “armada” consegue melhores vantagens, Como citado por Singer, essa “obsolescéncia planejada” explica porque a cada ano a industria armamentista se abastece de novos modelos. Ainds que o discurso governamental aponte para o “desarmamento”, na pratica, isso no acontece, pois hd um apelo midistico a sociedade do consumo “empurrando” para a violéncia, nao apenas nos motros, como apregoa os melos de comunicago, mas em todos os lugares. As armas fazem parte do monopélio imperialista que, através do comércio, impe o poder &s nagdes dominadas. 3 Revista leone Revista de Divulgago Centfica em Lingua Portuguesa, Linguistica e Liter ‘Volume 09— Janeiro de 2012 ISSN 1982-7717 Isso significa dizer que a tragédia de Realengo poderia ter ocorrido em qualquer seja publica ou privade, pois o triste fato remete-nos ao contexto de producéo da Violéncia que chega & porta das escolas. Pelo fato de ter ocorrido infelizmente em uma Uunidade escolar municipal, achamos que isso nunca ocorrerd em uma insttuigdo particular. No entanto, em nenhurn lugar estamos seguros, pois nas escolas brasileiras, seletivas & Classistas, nao estamos preparados para uma educagao formativa mais ampla, 1.2 Pensando a violéncia simbélica em uma sociedade de consumo. Por viol cia simbélica, na a: psc do termo que dé Pierre Bourdieu, compreende-se © proceso engendrado pela classe dominante, de modo a impor a sua cultura e a sua visio de mundo aos dominados. Esse proceso objetiva disciplinar as relagdes socials no cotidiano da relagéo dominantes e dominados, impondo ao elo mais fraco da cadeia econdmica e cultural uma visio especifica de mundo. Isso quer dizer que ela se dé a partir de pequenas ages impetradas no cotidiano social A cultura passada e repassada aos outros grupos, dada como integrante da natureza, & um constructo social, cuja manutengio visa a perpetuagio de certos valores, através da sua Interiorizagéo por diferentes camadas socials. Com isso, Bourdieu quer chamar a atencio, que antes de uma violéncia institucionalizada através dos melos coercitivos tradicion: que 0 uso da force fisica ¢ inevitdvel, existe uma violéncia simbélica que acontece a partir da imposicio legitima de um modo de ver a vida. € @ imposigo de uma visdo de mundo dita “normal”, “correta” © “necesséria’, em que todos devem se integrar, sem quaisquer ‘questionamentos, A violencia se dé quando a escola, agora reconhecids como legitima, passa a exercer suas fungées de reprodugéo e legitimago das desigualdades socials para, que sejam favorecidos os mais favorecidos © desfavorecides os mais desfavorecidos, é necessério e suficiente que a escola ignore, no smbito dos conteiidos de ensino que transmite, dos métodos e técnicas de transmissio dos crtérios de avaliago, as desigualdades culturais entre as criangat das diferentes classes sociais, (GOURDIEU, 1989, p.53) 2 Revista leone Revista de Divulgago Centfica em Lingua Portuguesa, Linguistica e Liter ‘Volume 09— Janeiro de 2012 ISSN 1982-7717 Pressupde-se que a cultura pensada como um sistema simbélico é arbitraria, isto é, se assenta sobre condigdes objetivas, em que tem como finalidade a manutengo de um status ‘quo e reproduce desse grupo nas estruturas de poder: ‘Accultura dominante contribui para a integragdo real da classe dominante (assegurando uma comunicagio imediata entre todos os seus membros

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