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ISHN 978-85-225.0626-2 Copyright © Angela de Castro Gomes DDiveitos desta edigdo reservados & EDITORA FGV ‘Rua Jomalista Orlando Dantas, 37 2251-010 — Rio de Janeiro, RJ — Brasil Wels: 0800-21-77 —21-2559-4427 Proc 21-2559-4430 il: editora@fgvbr — pedidoseditora@igybr web site: wwweditora favbr Impresso no Brasil / Printed in Brazil ‘Todos os direitos reservados. A reprodugio nio autorizada desta publicagio, no todo ‘ow em parte, constitu violagao do copyright (Lei n® 9.6106). (Os conceits emitidos neste livro sao de itera vesponsabtidade dos autores. 1 edigao — 2007 [PREPARAGAO DE ORIGINALS: Luiz Alberto Monjerdim [EDITORAGAO FLETRONICA FA Eiitoracto ‘evisho: Sandra Frank, Fatima Caroni e Mauro Pinto de Faria Cara aspecto:design Ficha catalogrifica elaborada pela Biblioteca Mario Henrique Simonsen, Direitos ¢ cidadania: memoria, politica e cultura / Angela de Castro Gomes (Coord). — Rio de Janeiro: Editora FG, 2007. 320p, Inclut bibliograia 1, Cldadania, 2. Direitos humanos, 3. dentidade social. 4, jusica social. Gomes, ‘Angela Maria de Castro, 1948. 11, Fundagdo Getulio Vargas. cop -323.6 ona Au AnH SED Magehed CAPILULO: devo iste av eAPiLe: Arve ua trons PAPILO Menei ebsites Atari CAPUTO Al Avticutay ce arypeie CNP Memureay Alans CAPITULO 1 O devoir de mémoire na Franga contemporanea: entre memoria, historia, legislagao e direitos Luciana Quillet Heymann® Acres “dever de meméria” é hoje de uso corrente na Franca, e toda ‘evocagio do pasado, no espaco piiblico, parece estar permeada dessa nogio, presente no discutso de homens ptiblicos, na fala de lideres comunité- ios, no debate académico e nos textos jomnalisticos. Artigo recente contabilizou a freqiiéncia de seu emprego em dois grandes jornais, expoentes do pensa- ‘mento da esquerda eda direita francesas, respectivamente, Libération e Le Figaro, entre setembro de 1999 e setembro de 2001.! O artigo nao se detém nos sos da expressiio nos dois veiculos de comunicagao, tomando apenas o dado quan- titativo como medida de sua disseminacio: no primeiro, ela apareceu em 180 artigos; no segundo, em 209. Embora tenha surgido num contexto especifico, © da rememoragio do genocidio dos judeus da Europa, e sua enunciacdo como imperative moral e politico date do pés-guetra, a nogao se afastou, em parte, dessa referéncia original, como o atesta o fato de apenas 26 artigos, entre os 180 publicados no Libération, tratarem da meméria do holocausto ou, de ma- neira mais ampla, da meméria da Il Guerra, Neste capitulo busco abordar, de maneira exploratéria, a historicidade dessa nogéo e os contomos do debate sobre os “sos” e “abusos” da meméria 1o espaco piiblico francés nos iiltimos anos. Em seguida, proponho algumas questées a respeito das relagées entre meméria e direitos, estendendo a ani se a0 contexto brasileiro com objetivo de identificar convergencias e distin- ses entre as duas realidades. Antes, porém, me parece importante comentar * Mestre em antropologia social pelo Museu Nacional/UFRJ. Pesquisadora do Cpdoc/FGV. * Ver Gersburger e Lavabre, 205, 16 + DIREITOS € CIDADANIA © contexto geral de proliferagdo de memérias particulares e de redefinicao de ientidades nacionais que tem caracterizado a modernidade tardia, a fim de situar 0 debate francés num cenério mais amplo. Notas sobre o panorama global O século XX, especialmente a partir de sua segunda metade, se caracterizou Por uma ampla transformagio nos contornos geopoliticos do planeta. Por um lado, a desagregacio da Unido Soviética e a descolonizagio dos paises africa- ‘os provocaram 0 surgimento de novas nagOes e a emergéncia de antigas identidades, sufocadas por processos violentos de unificagio e definigo de fronteiras; por outro, assistiu-se a formagio de novos blocos, como a Uni Européia e 0 Mercosul, nos quais se eliminaram as barreiras nacionais ao tran- sito de produtos e de pessoas oriuindas dos paises-membros? ‘Somada a rapidez na circulacdo de informagées e & internacionalizagao de capitais ¢ negécios, a mobilidade de populagées origindrias de diversos ppafses, as quais passaram a deslocar-se num volume nunca antes observado, caracteriza © que vem sendo chamado de processo de globalizasdo, 0 qual, como 0 proprio termo indica, diz respeito a flexibilizagio de fronteiras nacio- nais ¢ & integracéo em escala global. Muitos estudiosos tém-se dedicado a analisar 05 efeitos sociais dese processo. Se, por um lado, o movimento mi- gratério produz um questionamento em termos da identidade do grupo que se desloca espacialmente, defrontado com a perda de antigos referenciais, sejam estes territoriais, econémicos ou sociais, por outro, também os que per- ‘manecem nos territ6rios de origem dos migrantes e os que jé se encontravam no territério de destino passam por transformagées importantes, que impli- ‘cam o estabelecimento de novas fronteiras e referéncias. Essa redefinico, que ‘caracteriza a dinamica das migracdes de maneira geral, tem ocorrido de for- ma intensa, em vérios pontes do planeta, provocando mudangas marcantes ‘na maneira como os grupos se véem e percebem as populacoes a sua volta. Outro aspecto da modernidade que concorre para o chamado movi- mento de redefinigdo identitéria esié ligado a rapidez.e Aeficiéncia dos meios de comunicagao de massa, bem como da comunicacio virtual, permitindo a aproximacio de individuos e grupos absolutamente distantes em termos geograficos ¢ a constituicdo de atores politicos coletivos mobilizados em 4 uma sintese desse processo, ver Grynsapan (205). than Fnyjonr a atin enclake empevition ee yedtlictnde eontarnens coy ne Hishas eras, aq, ales de ney reitos como cidacl Arwslagie er seta, i que eyntuany, Uni ase sou partir de uns | igo de , a fim erizou -or um, africa intigas cao de Unio o tran- izagio versos rvado, qual, ado a to mi- 0 que nciais, e per- avam impli- 0, quue je for- antes olla, novi- neios ndoa mos sem. © DEVOIR DE MEMOIRE NA FRANGA CONTEMPORANEA © 17 toro de causas de contornos transnacionais. As fronteiras desses grupos, sua estabilidade e estratégias de afirmacdo no espaco piblico iréo variar ‘enormemente, sendo a fluidez ¢ a plasticidade outras caracteristicas dessa ‘mesma conjuntura, Nesse contexto, as identidades nacionais, construidas com base na idéia de unidade e homogeneidade da populacao identificada ao Estado-nagao, se flexibilizam e acabam incorporando perspectivas que apontam para a diver- sidadee o pluralismo. A premissa da unidade cultural das comunidades code lugar a afirmagao do multiculturalismo, ao respeito a diferenca, discurso que se tem imposto como legitimo, apesar de enfrentar resisténcias em contextos sociais especificos. Além da redefinigao de identidades associada ao proceso de mobilidade internacional crescente, que desafia a classificagao baseada ‘numa “unidade nacional original”, sobretudo a partir da segunda geracio de imigrantes, uma redefinicéo identitaria mais ampla, de parcelas da popula- ‘do até entao vistas como homogéneas, decorre desse mesmo proceso, cujos contomos complexos so aqui apenas esbogados.* O que se observa, entdo, em linhas gerais, a busca de reconhecimento e legitimidade por parte de ‘grupos que, destacando-se da “comunidade nacional”, passam a definir-se a partir de novas categorias, sejam elas étnicas, religiosas, de género etc. Nesse Process estdo em jogo novas formas de auto-identificagao, a valorizagao de ‘uma hist6ria particular, a demanda por inclusdo sem homogeneizagio, a luta pelo reconhecimento puiblico de sua existéncia e significado para a nagio, por representacio politica e, finalmente, por direitos. Nao apenas os dircitos uni- versais, mas também novos direitos, associados & especificidade hist6rica ow cultural desses grupos, fendmeno que vem provocando a rediscussdo de con- ceitos como cidadania e democracia, A relacdo entre meméria ¢ identidade 6 um tema clissico nas céncias sociais, jé que os grupos se constituem, também, em fungio de uma meméria comum. Um aspecto importante nesse contexto diz respeito ao aparecimento de novas memérias no espaco piblico: ao emergirem na cena social, afirman- do sua identidade, os grupos trazem & luz uma meméria para a qual buscardo Teconhecimento, Mais do que isso, entre as lutas por direitos, ganiha lugar a uta por manter viva essa meméria, por conquistar espaco no discurso hist6 ©o a partir de uma revistio das interpretacSes sobre o passado, por figurar nos livros e manuais escolares, por ver-se incluido no calendario oficial de co- * Ver, entre outros, Hal 2008), 18 * DIREITOS E CIDADANIA -memoragées, reivindicagdes que visam a reparar o siléncio e a invisibilidade que freqiientemente marcaram a vida dessas coletividades e a promover a sua integragao a historia da nagdo a partir de uma nova perspectiva. Esse sobrevdo por questées to complexas como a tedefinigio dos dis- cursos nacionais, o multiculturalismo e as disputas memoriais tem por obje- tivo tao-somente situar num cenério mais geral a nogéo de dever de meméria © 08 debates por ela suscitados. Ainda que a amplitude do fenémeno, na Franca, nesse inicio de século XXI, chame a atengéo do observador externo, nao 6 minha intengdo apresenté-lo como singular ou isolado. Apenas, tal- ver, devido & especificidade historica de uma sociedade caracterizada pela centralidade do Estado ¢ a valorizagéo da idéia de consenso nacional, sua repercussiio naquele pafs alcance contornos mais amplos e garhe maior vi- sibilidade. Por outro lado, 0 lugar proeminente dos historiadores na socie- dade francesa — evidenciado inclusive por sua presenca constante na midia — pode também contribuir para explicar a repercussio dos debates em que estao envolvidos. A.construgao da meméria reivindicativa Hoje, na Franca, o tema da meméria deve ser entendido no contexto de um amplo debate de natureza politica acerca dos efeitos sociais de discursos ¢ Préticas associados ao dever de meméria, expresso cunhada ao longo dos anos 1990 e que, em suma, traduz a idéia de que as memérias de sofrimento ¢ ‘opressdo geram obrigacdes, por parte do Estado e da sociedade, em relagio as comunidades portadoras dessas memérias. Esse debate, envolvendo a socie- dade civil, o Bstado e a comunidade académica — sobretudo historiadores, mas também cientistas sociais e filésofos —, tem levado no s6 ao questiona- ‘mento dos instrumentos legais utilizados pelo Estado francés na gestio de passados sensiveis, mas também a atualizagio da reflexio cléssica sobre as relagbes entre histéria ¢ meméria, e & rediscussdo do papel do historiador no espaco piiblico. Para entender 0s meandros desse debate, no entanto, é imn- Portante considerar a historicidade do conceito eo contexto em que as primei- ras demandas memoriais ganharam eco, para s6 entio chegar a seus desdobramentos contemporaneos. Segundo varios analistas, a nogo de dever de meméria re.uionta 20 anos 1970, quando tem inicio o proceso de ressignificagao do discurso memorial ligado ao holocausto dos milhares de judeus que viviam na Fran- © DEVoK 1 Ei certo que, desde “sumiram 0 compromis «le manter prosente no ¢ pelos nazistas e seus co janharia de fato visibilic vvasta a literatur ria do resistente, sole a meméria do sobr ‘hws que se seguiram ao nna Franga pés-liber acional, preferin silenci «leportagdo e do assassin «le concentragao nao tink ‘com os “quadros sociais” «le Halbwachs (1990, 199. testemuanhar, a estraté ‘iar sobre 0 passado, 0 41 A partir dos anos 1 ‘ents pouco presente nos ala por um ideal de “re ‘éria do holocausto torn ‘tnodificar a maneira pela juleus? Segundo Olivier ico de filhos e filhas d historiador e advogado em 1944 — conseguiy 1 jamais haviam mobilizad ‘c fundamental da transf para suas agdes cuja dim wilidos dossiés de acusag portante da ago de s " Ver, entre outros, Lalien @0t ‘ersida (2005) aponta a rims « jstga ma Feanga do pos guen a uma anilise do fenders Disponivel em: dos dis- por obje- memoria neno, na -externo, enas, tal- ida pela onal, sua maior vir na socie- na midia sem que onta aos discurso na Fran- (© DEVOIR DE MEMOIAE NA FRANCA CONTEMPORANEA * 19 ca E certo que, desde o final dos anos 1940, as associagdes de deportados ‘ussumiram 0 compromisso de honrar a meméria dos franceses assassinados & «le manter presente no espirito da populagao os atos de barbie praticados pelos nazistas e seus colaboradores, mas a meméria do genocidio judeu 56 xanharia de fato visibilidade 30 anos depois. £ vasia a literatura que analisa a preeminéncia, no espaco paiblico, da ‘meméria do resistente, do her6i de guerra, bem como o siléncio que recaiu sobrea meméria do sobrevivente do holocausto, a vitima de guerra, nas déca- «las que se seguiram ao final do conflito. Isso em grande parte pelo fato de que, na Franga pés-libertagéo, a memoria oficial, em nome da reconstrugio nacional, preferiu silenciar sobre a pégina sombria do colaboracionismo, da sleportagao e do assassinato em massa.® A meméria das vitimas dos campos dle concentracio néo tinha entdo condigées de se expressar, ou no contava com 05 “quadros sociais” necessédrios & sua evocagéo, para usar a formulagio «le Halbwachs (1990, 1994). A excegio de alguns relatos que atestam 0 desejo dle testemunhar, a estratégia para “conseguir viver” foi, para a maioria, silen- ‘iar sobre o passado, 0 que nos remete ao direilo de esquecer$ A partir dos anos 1970, gracas a iniciativa de uma segunda geracio até ‘entilo pouco presente nos debates sobre as seqtielas da guerra e agora mobili- vada por um ideal de “rejudaizagso” da comunidade judaica francesa, a me- tnéria do holocausto toma-se objeto de uma série de agdes que acabariam por modificar a maneira pela qual a sociedade como uum todo percebe a sorte dos judeus.” Segundo Olivier Lalieu (2001), com a criagéo, em 1979, de uma asso- ilo de filhos e filhas dos judeus deportados da Franca, Serge Klarsfeld — historiador e advogado cyjo pai morrera numa cémara de gés em Auschwitz em 1944 — conseguiu nela reunir uma geragéo que as demais associagSes jamais haviam mobilizado inteiramente. Klarsfeld foi, sem ddvide, um agen- te fundamental da transformacdo aqui referida, atraindo a atencio da mfdia para suas ages cuja dimensio espetacular nao prescindia da divulgacéo de ilidos dossiés de acusacéo embasados em material de arquivo. Um marco importante da aco de seu grupo foi a publicagio, em 1978, do Memorial da "Ver, entre outros, Lalew (2001) e Kattan (2002). * Dervida (2005) aponta a primazia da idéia do “corpo nacional” ecbreo imperative de verdade » jstiga na Franga do pés- guerra, a uma anslise do fendmeno memorial na Franga do pée guerra, ver Rousso (1990), [Disponvel em: , 20. + DIREITOS & CIDADANIA deportagio dos judeus da Franca, onde figuram os nomes, prenomes, locais & datas denascimento de todos os deportados que sairam do pafs em comboios, assim evidenciando, pela primeira vez, 0 exterminio de familias inteiras que a partir dai saem da sombra dos ntimeros e tém restitufdos seus nomes. O livro teve grande impacto na opiniao piblica, sobretudo entre os jovens, principal foco da agio do grupo. Em 1981, a Associacao de Filhos e Filhas dos Judeus Deportados da Franca erigiu em Israel um montmento reproduzindo todas as paginas do Memorial e plantou 80 mil érvores no terreno ao redor, em me- ‘méria aos 80 mil judeus deportados da Franca. Serge Klarsfeld ¢ sua esposa Beate tiveram atuacéo importante tam- bém na “caca” a nazistas em todo o mundo: gracas & ago do casal, Klaus Barbie, chefe da Gestapo de Lyon, foi encontrado na Bolfvia e extraditado para a Franca. A ago judicial que o condenou a prisao perpétua por crime contra a humanidade, em 1987, foi outro momento de inflexo no processo de ressignificagio da meméria do holocausto. Chamadas ao tribunal, varias ‘pessoas que viveram sob relativo siléncio desde o final da guerra viram-se reconhecidas em sua dor e perceberam um sentido novo em testemunhar, rans- formando-se em agentes fundamentais para 0 exercicio do dever de meméria, entendido agora no apenas em sua dimens#o de culto aos mortos, de dever de lembranga e homenagem, mas também em termos de efeitos concretos nos dominios politico e judicial. Transmitidos pela TV, esse e outros processos con- tra criminosos de guerra nazistas revelaram para 0 grande piblico esse novo atributo da evocagao da meméria — a legitimidade, muitos anos depois dos fatos ocorridos, de reclamar justica Nesse quadro de redefinicdo da meméria do genocidio na Franga, cabe ainda destacar um aspecto importante para os desdobramentos recentes da nogio de dever de meméria: a promulgagdo, em 13 de julho de 1990, da Lei n° 90.615, que ficou conhecida pelo nome do deputado comunista que a apre- sentou ao parlamento, Jean-Claude Gayssot. A lei profbe discriminagées que tenham por base o pertencimento a uma etnia, nagio, raga ou religido. Votada ‘como uma resposta as manifestacées anti-semitas que acompanharam os pro- cess0s judiciais contra criminosos nazistas, bem como aos atentados contra judeus ¢ & profanaco das sepulturas no cemitério da cidade de Carpentras ‘em maio de 1990, a Lei Gayssot, em seu art. 9, penaliza a negagio do exterm{ rio em massa dos judeus. Assim, negar 0 crime contra a humanidade perpetrado pelos nazistas, tal como definido pelo tribunal militar internacional de Nuremberg, tornou-se um delito passivel de sangées penais, fa jointed ea sols abn blotted Seggunices obi Pastas) connssponl que aka prep niey fra a cliveiten le 6 favesatiy pols abana 9 He ae ‘stviaente impose foun dexpponsabica M ir aerclebate t spalagdess vilinnse is, as prion ata outiora cans ‘ cendentes encontien batiea, peda Wer Gensbunger eva © DEVOIR DE MEMOIRE NA FRANGA CONTEMPORANEA * 211 locais e Segundo varios analistas, a construgdo de um discurso memorial de mboios, nnatureza reivindicativa — contra 0 esquecimento, mas também pelo reconhe- isquea rento oficial do papel do governo de Vichy no genocfdio do povo judeu e Olivro {rela punigo dos culpados por esses crimes —, assim como os resultados con- rincipal ‘vtos das iniciativas nele baseadas fizeram com que o dever de meméria liga- Judeus «lo ao holocausto se constituisse num modelo de agao para outros grupos que 0 todas, ‘niscam afirmar suas memérias no espaco pablico, memérias que evocam pro~ em me ‘vessos de violéncia ou de discriminagio. Se, desde o final da fl Guerra, algu- tem responsabilidade por esse sofrimento. Pa apre- Mas atualmente, na Franca, falar em dever de meméria ¢ também alu- is vozes se levantaram para afirmar 0 dever de lembrar e testemunhar, pelo totam | fato de ter sobrevivide ao massacre, nos tiltimos anos 0 dever de meméria |, Klaus seria ndo apenas o dever de manter vivo o passado, mas, fundamentalmente, aditado wv idéia de que merecem o devido reconhecimento aqueles que sofreram. Seamer Segundo o historiador Henry Rousso (1998), um sistema de referéncias Ay tnorais se imps na sociedade francesa nos iltimos anos, tendo como centro a ivéirias | meméria, transformada em valor. Nesse novo sistema, lembrar-se (no caso stacinanseiaa | \lo individuo ou do grupo) e afirmar a culpa e o arrependimento (no caso do ee Bstado) corresponderiam a posturas positivas, enquanto o esquecimento € @ Deena ‘anistia seriam socialmente inaceitaveis. jedever ete ee. As injung6es do debate atual abana Hoje em dia, a afirmagao do dever de meméria se refere, portanto, A idéia de tee que cada grupo social, outrora vitima e hoje herdeiro da dor, pode reivindicar poisdos nao 86 o direito de celebrar seus mértires ¢ heréis, mas também o reconheci- | mento pelos danos sofridos e alguma forma de reparagio.* Defender o dever ga, cabe : de meméria 6, pois, afirmar a obrigagao que tem um pais de reconhecer 0 ant i: i ofrimento imposto a certos grupos da populagao, sobretudo quando o Estado jes que div ao debate travado na cena piiblica entre as associagGes que representam 2s -Votada populagdes vitimadas, de um lado, e os historiadores, de outro. Em lirthas 105 pro- orais, a5 primeiras estimam que o reconhecimento oficial pelos crimes de s contra Pstado outrora cometidos e as ages de reparacao, sejam elas de natureza sim- rpentras bolica, pedagégica ou material, permitem que essas populagées ou seus des- extermi- f lentes encontrem scu lugar no seio da nagao. Por sua vez, os historiadores, petzado onal de * Vee Gonsbunger e Lavabre, 2006. 22. + DIREITOS E CIDADANIA também de modo geral ¢ sem entrar na especificidade de seus argumentos, insistem na distingdo entre meméria ¢ hist6ria, e denunciam a ctiagao de dis- Positives juridicos que promovam a afirmagio de verdades histéricas como um atentado aos principios democréticos. De fato, 0 ponto mais critico desse debate séo as chamadas “leis -memoriais”, expresso cunhada no infcio de 2005 para designar quatro dispo- sitivos legais que dispaem sobre eventos historicos e sancionados, em grande medida, como resposta as demandas das comunidades cujas memérias se li- gam a esses eventos. Sto eles: a Lei Gayssot; a Lei de 29 de janeiro de 2001, em. cujo artigo tinico a Franga reconhece publicamente o genocfdio arménio’ de 1915;a Lei de 21 de maio do mesmo ano, pela qual a Republica francesa reco- mhece o trafico de escravos ¢ a escravidio, perpetrados a partir do século XV, como crime contra a humanidade; ¢, finalmente, a Lei de 23 de fevereiro de 2005, que acendeu o debate recente acerca da competéncia dos legisladores em matéria hist6rica. Esta tltima lei disp6e sobre o reconhecimento da nagio 06 ftanceses repatriados apés as guerras de independéncia e, em seu art. 4, determina que os programas escolares reconheam o “papel positivo” da pre- senga francesa em além-mar, especialmente no norte da Africa. Fruto da luta travada pelas associagées de repatriados dessa regido e sancionada por um parlamento majoritariamente a diteita, essa lei — especialmente o artigo so- bre 0 “papel positive” — provocou manifestagées de insatisfacio, tanto nas ex-coldnias como nas comunidades origindrias desses lugares e radicadas na Franga, além de vigorosa reacéo dos historiadores. Por forca das presses, 0 referido artigo acabou sendo suprimido da lei. Actise aberta pela Lei de 23 de fevereiro de 2005 coloca varias questies para reflexao, Se 0 direito dos diferentes grupos de afirmarem livremente sua ‘meméria parece pouco sujeito a contestago em paises democraticos, a gestio de passados sensiveis pelo Estado fem revelado a sua complexidade e os seus limites. As associacdes de franceses repatriadas, cuja forga foi atestada pela aprovagio da lei, buscavam reconhecimento legal para uma meméria que, le- sgitima em sua expressio particular — como o sto, ali, as memrias de todos * Expresso que designa o assassinato e a deportagio em massa de cerca de 1,5 milhSo de civis, ‘rménios, perpetrades pelo Império Otomano entre 1915 ¢ 1917. Até hoje a Tarquia nio accita ‘que tais mortes sejam consideradas genocidio, argumentando que resultaram de doengas, fome €lutas interétnices no contexto contuxbado da I Guerra Mundial. Mas quase todos os estudosos, incluindo alguns turcos, consideram que 05 fatos acorridos se encaixamn na definigéo de srammmesisetet © pevon 8 rupos —, acabou s4 itn, Nesse case, a un limite da ‘contra a chancela est rom outros grupos, port foreucia legal ao “papel p Além disso, a div entrever até que ponto o lem estar em desacordc mento de politicas me Wulicionalmente de con nalurva hist6rica ha, de Lone de acompanhar m {grag30 nacional produzic 3 nostalgia de uma iden! ist6ria, & importante tlagio a histéria pode-s« Para além da dispt mo a questo da autorid «qWe 08 histotiadores con Antoine Prost (1997) mer «lity que as controvérsias sito dos jomais. Por trés fevereiro de 2005 encont ‘cspectficas de historiador lar sobre o passado. Mais ‘es serem interpelados po: se verd adiante, Antes, po caram as manifestagées d Embora unidos no uma memGéria oficial da ¢ divididos quanto as der Dezenove dos maiores his Badinter, Jean-Jacques Be Ferro, Jacques Julliard, Je Jean-Claude Perrot, Antoit Vernant, Paul Veyne, Mic tempo depois) assinaram mentos, de dis- 1s como de civis fo accita ss, fome dios, nigfo de © DEVOIR DE MEMOIRE NA FRANGA CONTEMPORANEA + 23 os grupos —, acabou sendo amplamente contestada na forma ptblica que assumiu, Nesse caso, a énfase na pluralidade e na explicitagdo dos conflitos ‘encontrou um limite dado pela propria dindmica das demandas memoriais contra a chancela estatal concedida & meméria dos repatriados se levanta- ram outros grupos, portadores de memérias concorrentes, para os quais a re- feréncia legal ao “papel positivo” representava um desrespeito e uma violencia. Além disso, a divergéncia com a comunidade de historiadores deixou enteever até que ponto contetidos hist6ricos sancionados por legisladores po- dem estar em desacordo com o discurso historiogréfico. Entre o estabeleci- mento de politicas memoriais visando a celebragéo e & homenagem, ttadicionalmente de competéncia do Estado, e a interpretacéo de eventos de hatureza hist6rica hd, de fato, uma distancia a ser considerada com cuidado. Longe de acompanhar manifestagoes que, denunciando o cenario de desinte- srfagio nacional produzido pelas novas demandas memoriais, parecem ecoar # nostalgia de uma identidade forte, baseada em interpretages consensuais «da historia, 6 importante chamar a atengdo para o fato de que também com ‘elagdo a histéria pode-se evocar uma dimensio de dever. Para além da disputa entre interpretagdes distintas, no entanto, esté em jogo a questdo da autoridade para falar sobre temas histricos. No é de hoje ‘que 08 historiadores constataram a perda de seu monopélio. O historiador Antoine Prost (1997) mencionou essa questo, comentando ser curioso e iné- dlito que as controvérsias histéricas fossem tratadas, entdo, nas salas de reda- «io dos jornais. Por tras da critica a0 contetido aprovado pela Lei de 23 de Fevereiro de 2005 encontra-se, de fato, um debate acerca das competéncias specificas de historiadores e legisladores, um debate acerca do dieito de fa- {ar sobre o passado. Mais do que isso, acerca da possibilidade de historiado- 1s serem interpelados por instancias situadas fora do campo académico, como se veré adiante. Antes, porém, vale a pena assinalar as divergéncias que mar- caram as manifestagdes dos historiadores. Embora unidos no reptidio & intromissio do Estado na afirmagio de uma meméria oficial da colonizagéo, os historiadores se mostraram bastante divididos quanto as demandas concretas em relagéo as leis memoriais. Dezenove dos maiores historiadores franceses (Jean-Pierre Azéma, Elisabeth ‘Badinter, Jean-Jacques Becker, Frangoise Chandenagor, Alain Decaux, Mare ro, Jacques Julliard, Jean Leclant, Pierre Milza, Pierre Nora, Mona Ozouf, Jean-Claude Perrot, Antoine Prost, René Rémond, Maurice Vaisse, Jean-Pierre Vernant, Paul Veyne, Michel Winock e Pierre Vidal-Naquet, falecido pouco po depois) assinaram uma petigdo intitulada “Liberdade para a hist6ria”, 24 ¢ DIREITOS E CIDADANIA publicada no dia 13 de dezembro de 2005 no jomal Libération. Nessa peticio, afirmam que a historia nao é escrava da atualidade nem se confunde com @ meméria — que ela leva em conta em sua démarche cientifica, mas & qual nao se reduz—,e pedem a revogagio dessa lei (Gayssot, sobre o genocidio arménio e sobre a escravidao), mas também das outras trés . Para eles, todas as leis de natureza memorial restringem a liberdade da pesquisa histérica, néo cabendo a0 parlamento legiferar sobre o pasado. Outro grupo de historiadores — mais identificados com a nogdo de de- ver de meméria ¢ reunidos no Comité de Vigilancia sobre os Usos Pablicos da ‘Histéria (CVUH), liderado pelo historiador Gerard Noitiel — sublinhou uma diferenga importante entre a lei de fevereiro de 2005, cuja revogacéo reclama- vam por sua dimensao revisionista com relagao ao empreendimento colonial, e as outras leis memoriais, que, ao denunciarem crimes cometidos no passa- do, garantiriam avangos na luta das populagdes em questéo. Para esse grupo, que se declara engajado nas lutas contemporéneas, assumindo posighes iden- fificadas com a esquerda francesa, 08 peticiondtios da “Liberdade para a his- t6ria” sao intelectuais que vivem encerrados em “torres de marfim”. Segundo texto divulgado no site do comité, esses historiadores representam uma elite cultural situada menos no campo dos pesquisadores-professores do que na intersegio das redes universitdria, editorial e politica. Sua motivacdo para re- lamar a revogacio de todas as leis memoriais residiria, sobretudo, na defesa de uma competéncia exclusiva dos historiadores sobre a verdade histérica."™ Para o historiador Henry Rousso (2008), critco das leis memoriais, que cle considera “uma forma inédita de comemoracao” visando a conceder algum tipo de reconhecimento a determinados grupos, a revogacio da totalidade das leis provocaria reages violentas, com conseqiiéncias sociais desagregadoras, sendo preferivel manter os textos jd existentes e revogar apenas o artigo sobre 0 papel positivo”. Rousso sugere, por fim, que muitos dos historiadores que hoje denunciam a “juridicizagio” da histéria colaboraram com ela ao concordarem em depor como experts nos processos contra criminosos nazistas nos anos 1970 1980, postura criticada por ele e alguns poucos intelectuais, & época. O dever de meméria parece, assim, configurar um campo de embates dos proprios his- toriadores, que, ao assumirem posigbes quanto as leis memoria, deixam entre- ver em que medida o debate recente atualiza antigas disputas." © Disponivel em: , + Os toxtos divulgados nos debates estio disponiveis em: € -cwww-communautarisme net> 0 DEvor ‘Acrise em tomo ¢ aso, cujos contoros cc 1008, © Collectif des Ani « historiador Olivier Pé los maiores especi jad Les traites négr ndo aquela organiz an 12 de junho de 2005, humanidade conferido i «la como Lei Taubira po niianense integrante di como uma das “leis me que 0 trafico negreiro tr uma parte, ea escravida constituem crime contra escolares e os programa fico negreiro e a escra O livro de Pétré- linha cardter genocida, ‘exlerminar sua “merea hhistoriador retomou ess lo ele, induz a uma co nogao de crime contra a Base onganizagto milita ca s favor da igualdade de dire Ae atuagdo & 0 devoir de mem MA Franga ¢ 0 unico pai, a ortincia desse gesto par primeiro-minitro elaborado se incerove no espirito da | Aleclarado é "fazer com que «da moméria nacional”. Segur omits, a esritors guadalupe semonts ao passado escravis langamente negligenciada, 0 integragto & Repablica”. Di Rapport. memoize.esclavag tigdo, com a al nio ménio eis de de de- jue na ara re defesa rica.” s, que algum de das doras, obreo iehoje darem $1970 dever os his entre n> net> € © DEVOIR DE MEMOIRE NA FRANGA GONTEMPORANEA + 25 Acrise em torno do “papel positive” ocorren paralelamente a um outro ‘aso, cujos contornos contribuem para complexificar o debate. Em junho de 2005, 0 Collectif des Antillais, Guyanais et Réunionnais™ abriu queixa contra historiador Olivier Pétré-Grenouilleau, professor universitério considerado um dos maiores especialistas franceses na hist6ria da escravidao, autor do premiado Les traites négridres: essai d ‘histoire globale, publicado no ano anterior. Segundo aquela organiza¢io, em entrevista concedida ao Journal du Dimanche, em 12 de junho de 2005, o historiador teria negado o caréter de crime contra a humanidade conferido & escravidao pela Lei de 21 de maio de 2001, conheci- da como Lei Taubira por ter sido proposta por Christiane Taubira, deputada puianense integrante do Partido Radical de Esquerda. Essa lei, identificada como uma das “leis memoriais”, dispde que “a Republica francesa reconhece que o tréfico negreiro transatlantion, assim coino o tréfico no oceano indico, de ‘uma parte, ea escravidao, de outra parte, perpetracdos a partir do século XV (..) constituem crime contra a humanidade”. O art. 2* determina que os programas cescolates ¢ os programas de pesquisa em histéria e ciéncias sociais confiram a0 Inafico negreiro e a escravidao 0 “lugar conseqiente que merecem”. O livro de Pétré-Grenouilleau sustenta que o tréfico de escravos no tinha caréter genocida, na medida em que a intengio dos traficantes nao era exterminar sua “mercadoria”, mas comercializé-la. Na referida entrevista, 0 historiador retomou essa distingdo ¢ fez uma critica & Lei Taubira, que, segun- do ele, induz a uma comparagdo entre a escravidao e 0 holocausto, jé que a nogdo de crime contra a humanidade recebeu sua primeira formulacdo jurfdi- Gea organizagGo milita contra “oe sbusos a que sio submetidos os franceses de além-mae”, «favor da igusldade de direitos e contra a discriminagio”. Uma de suas cinco reas principals dle atuagio € o devoir de mémelre, Disponivel em: . © A Franga 6 0 Unico pais, até hoje, ater declarado a eseravidio crime contra a humanidade. A Importincia desse gesto para a comunidade negra ¢ amplamente reconbecida no rlatsrio 80 primeizo-ministro elaborado pelo Comité pela Meméeia da Escravidao, caja criagio, em 2004, creve no espirite da Lei Taubiea, O relatério apresenta recomendagoes cujo objetivo slesiarado & "fazer com que a moméria compartilhada da escravidio se torne parte integrante «ls meméria nacional”. Segundo a carta que encaminha o relat6rio, assinada pela presidente do ‘omite, aescritore guadalupense Maryse Condé, » grande maicria dos concidados cuja origemt remonta ¢0 pascado eseravist esté convencida de que a hstéria da eseravidio continua a er Iasgamente negligenciada, 0 que constitui “uma negagto de sua prépria existencia e de sua cqragao & Republica”. Disponpivel em: 26 * _DIREITOS E CIDADANIA ca.em Nuremberg, em 1945, ficando fortemente marcada por esse contexto istérico particular. O genocidio judeu e o trafico de escravos configurariam crimes contra a humanidade, j4 que a definigio juridica compreende tanto 0 exterminio quanto a escravizagao de grupos de individuos, mas nao seriam a ‘mesma coisa, segundo Pétré-Grenouilleau, que se preocupa em deixar claro que essa afirmagio ndo esconde qualquer perspectiva hierarquizante: “no hd escala Richter dos sofrimentos”.#* A confusio apontada pelo historiador parece ter ficado patente na pré- pria queixa contra ele: por afirmar que o tréfico negreiro e a escravidao nao podem ser qualificados como genocidio, e por ctiticar a Lei Taubira, ele aca- bbou sendo acusado de infringir essa mesma lei, que reconhece tais fenémenos como crime contra a humanidade. Em outras palavras, foi acusado de “negacionismo”, Pétré-Grenouilleaw recebeu largo apoio da comunidade de historiadores, cujas manifestagdes destacaram sua respeitabilidade acadé- mica e a importancia da liberdade da pesquisa cientifica, uma das prerrogati- vvas das sociedades democraticas. A petigao “Liberdade para a histéria” foi publicada, em parte, como uma resposta de seus signatérios & queixa aberta contra o historiador."* O caso teve forte repercussdo na midia, ¢ em fevereiro de 2006 o coletivo retirou a queixa. [Nao se trata, aqui, de discutir a natureza da Lei Taubira, que no prevé sangées em seu texto, caracterizando-se como lei declarativa e nao como lei punitiva, 0 que por si s6 poderia colocar em questio a queixa aberta contra Pétré-Grenouilleau."® Tampouco de apresentar os argumentos dos criticos da '“Digpontvel em: * O texto da petcio se inicia com as seguintos palavras: “sensbilizados pelas intervengées polfticas cada vez mais frequentes na apreciacao dos acontecimentos do passado e pelos processos judicisrios que visam historiadores ¢ pensadores, vimos lembrar os seguintes principios..” * A Gnica das quatro leis memoriais que estabeloce sangSes persis a Lei Gayssot de 1990. As demals ttm caréter declarativo, Um projto de Lei do Partido Socialist, no entanto, votado em 12 de outubro de 2006, propds modificar a lei de 29 de janeiro de 2001 estabelecendo um delito penal para a negagio do gonocidio arménio. Virios historiadores reagicam a esse projelo, ‘ncluindo os signatirios da referida petigdo, quo chegeram a encaminhar ums carta aberia 40 presidente da Assembiéia Nacional soliitando que o Consetho Constitucional impedisse a aplicagio dale A carta invocao art. da Conaituigi, que define as competincia doleyslador, €€0 art, 13 da Declaraczo dos Direltos do Hiomem e do Cidadio, que protege as liberdades de ‘opin e de expresso. Disponivel em: , © pevom lei — por exemple, a imp 4 ;e-sim de cha Vint, las leis Wo, 0 de et O cariter abominay ho passao foi assumido sin lo trafico e da escravi interiorizada d wie esté em jogo &< ro-americana reside portantes. Com a ne do dever de me ista teria se convert -intitulam descen ue so portadoras, expres Em conseqtiéncia, (remosofrimento que signi E importante pereeber, por cle meméria foi incorpors piblicos no intuito de den populagdes afro-descender yes numa sociedad e» torno das obrigagées criad itrumento de luta politic «le seu capital memorial Render homenagem «lignidade de seus descene (ria oficial da Franga nao «dessa meméria ¢ a conseqi pel positivo” da colonizac Grenouilleau, por outro, di legal de uma visao da histor —eliminando qualquer pc «que estdo em sua origem e que cumpre defender a tod valores democréticos, refo interditarem a ex Oque ti exto too Jaro pré- nao on0s » de lade adé- gati- ‘foi eta iro, reve o lei ntra, 6 da intes 9S loem delito ojeto, indor, es de Jeane © DEVOIR DE MEMOIRE NA FRANGA CONTEMPORANEA * 27 {ei — por exemplo, a impropriedade historica de se aplicar um conceito con- temporneo, 0 de crime contra a humanidade, a um fendmeno que data do suuditncia de instrugao e j «chp /notcasboLsomr/ politica 2004/08/22 /l 96465477. ‘prensa, para desaparee 1) “\Dispnive em: e chit / “A questo dos arquives /alertattal blogspot com/ 2006/11 /julgamento-ivi-de-oronel-bilhante htm> sled texto, mas vale regis longo dos a punigao parece ter correu na ram a jul- havia sido il de 2005, inte Ustra, ode Ope- 774. Movi- a afirmam > processo al, a ago cusado. O apontar 0 de desdo- iedade. A nidida por cometidos tares, que ara ambos le Direitos jue a ago » rime de falam em ido a insa- 1 meméria am elas de de gerar oI 00AtmD> pee . Em 18 de dezembro de 2006, um ato priblico fot ‘yaniato, em Porto Alegre, em apoio & familia Teles, do qual pactciparam partides politicos (0 PDE, PMS, PCdoB, PSb)e diversas entidades da socedade iil, como CUT, Marcha Mundial, le Mulheres, Movimento Nacional de Direltos Humanos,Sindiato dos Bancitios de Porto Alegre * Comnissdo de familiares de mortos e desaparecidos politicos, entre oulias. 1 processo contra 0 coronel Ustra foi aberto no final de 2005, mas a primeira matéra sobre © sso aprreeeu num jornal de Sao Paulo em setembro de 2006, e apenas no dia da primeira sullenela de instrugso e julgamento, em 8 de novembre, ganhou algum destaque na grande ‘nyyenno, para desaparecer Togo depois. ‘ ytetto des arquivos da ditadura mereceia uma andlise amp, que no cabe nos limites Jeotststo, mas vale registrar que o discurso baseado no dever de meméria, ne Franga, assume 36 * _ DIREITOS E CIDADANIA ‘Na Franca, o dever de meméria — criticado pelos “abusos” e “desvios” Felielas veconton coat cometidos pelos grupos que o invocam e pelos mecanismos legais que engen- FARHAD, aliccegiulan nal drou— parece aceito, no entanto, de maneira bastante ampla como um prin- = alu alescerutentes cipio de acdo e uma obrigacéo sociale politica da nagdo com relagéo.aparcelas aie eboatw sur vonitontind de sua populagio. No Brasil, a meméria da ditadura tem sido acionada na sua dimensio de direite, como foi dito anteriormente, pelos agentes individuais ou coletivos que com ela se identificam, mas a evocago publica dessa memé- ria nao implica uma obrigago socialmente compattilhada. Seus usos na de- ‘manda por direitos tém, portanto, em que pese a aceitacao de sua legitimidade, ‘mais a marca dos combates individuais (mesmo em se tratando de grupos) do que a dos imperativos morais. Para que tis ava “Bee o "maitrsta ean Wilvercla do tiaballura sees lo qtie Or errene Hes tn proved Fh, orto ou Sache coun corte SAM, este utters fotore = Aaticamente o prcconcd | peeyutias que, ps fdgualtote ate eo g clieule vivioww dee Meméria e identidade negras em questo Com relacio & questio racial — formulagao que condensa uma série de pro- blemas que perpassam a histéria brasileira, desde os primérdios da coloniza- do marcada pela escravidao e, depois de sua abolicdo, por praticas discriminatérias e um modelo de desenvolvimento excludente —, algumas : primeite mnie’ slate le 1951 Mone Arinos. E a dla Lei nt 7 © Or qi xb ‘essa dimensdo como uma de suas bandelas, azdo pela qual os anos de 1990 assstram a uma demanda crecente de aceato 208 arquivos do perfodo contemporinco, sits # interdigbes KO on de estado civil” ligadas as normas arquivisticas, que definem prazos de comunicabildade dos documentos, lender a demanda por ¢ mas também a obstéculoscolocados mais ou menes abertamente pelos poderes constitutdos ten fa sociedad civil ‘com relagio a08 arquivos consideradas “eeraveis" (08 relacionados ao perfodo da oeupacio & entretinto, com a promu a guerra da Argéla, por exemplo), Sobre este tema, ver Combe (1994). No Brasil ainda que aay lacie de impleme documentagao dos Dops (Departamento de Ordem Politica e Social) que eperavam nos estados dace sancionada pela lei LStripiecer i eh tema unpiranaaaminrorareenaarve re permanece em grande parte inacessivel, apesar das pressbes externas ¢ internas.a favor de seu pore eee None 68 do Nd recolhimento ¢ disponibilizacio. Em novembro de 2005, 0 Comité de Direitos Humanos da (ONU recomendos 20 Brasil tora publicos todos os documentos sobre abusos de direitos Inumanos durante a ditadura, e, em dezembro do mesmo ano, © Ministerio Pablico Federal cenviou uma notifiaglo oficial a0 presidente da Republica solcitando a abertura dos arquivos “que interessem aos familiares de mortos e desaparvcidos politicos para fins de conhecimento dda verdade e de localizagio do paradeito dos corpos de seus entes queridos, bem como de possibilitar ao Ministerio Publico Federal © aceseo a0 seu conteido para avaliar a possibilidade de se promoverem as medidas que ainda forem possivels em termos de responsabilizacio dos © art 125 da Constituigao violadores dos direitos humanos sob a ditadure mulitar’. Os termos dessa notifieagio sugerem +ulluras populares indigenas algumas razies para que @ questio do acesso aos arquivos permanegs como uma zona de ei ombra na gestio do passade autoritério do pats © um primeiro di lente de eseras bos que estejam énio nacional. 2) Alt di 004 on diferentes segmentos ¢ e pro- sticas mamas © DEVOIR DE MEMOIRE NA FRANGA GONTEMPORANEA * 37 ‘mpitiday recentes comegam, também, a apontar na directo de politicas de re- Patagto, alicergadas na assungao de um dever do Estado para com as popula- ‘0p alto-descendentes, sendo os limites dessa popuilagio um primeiro foco siv-dobate no contexto de um pais mestico. Para que tais avangos fossem possiveis, vale lembrar, foi necessério ques- ‘Wimar 0 “mito da democracia racial”, que desde os anos 1930, pelo menos, sob infludnela do trabalho do socislogo Gilberto Freyre, apresentava o Brasil como ‘aullado de um processo bem-sucedido de miscigenacio que, diferentemen- ‘wile que ocorrera nos EUA, forjara uma sociedade sem preconceito de cor € ‘a4, onde a desigualdade era produto da mé distribuigdo de riquezas, sem __telagilo com recortes étnicos e raciais. Para esse questionamento contribut- ah, entre outros fatores, a atuagdo do Movimento Negro, denunciando siste- atlcamente o preconceito e a discriminagio, e a realizacio de uma série de __psqiulsas que, por meio de diversos indicadores sociais, provaram que a de- _sigualdade atinge de forma diferenciada a populagio negra e parda, gerando sith efteulo vicioso de exclusio e pobreza. © primeizo marco no combate ao racismo e ao preconceito no Brasil ‘lota de 1951, ano em que foi sancionada a Lei n® 1.390, conhecida como Lei Alonso Arinos. Esse texto recebeu nova redagdo em dezembro de 1985, coma aprovacao da Lei n° 7.437, a chamada Lei Cad, que “inclui, entre as conven- Gs penais, a pratica de atos resultantes de preconceito de raga, de cor, de ero ou de estado civil”. Depois disso, outros dispositivos legais buscaram ‘tender a demanda por direitos formulada pela comunidade negra e por enti- des da sociedade civil. As bases da ampliagdo desses direitos foram langadas, ‘ehiretanto, com a promulgagéo da Constituigdo de 1988, quando ficou clara a necessidade de implementar medidas capazes de promover, de fato, a igual- lade sancionada pela lei, ¢ a diversidade étnica e cultural brasileira foi valo- fizada e protegida.* Noart. 68 do Ato das Disposig6es Constitucionais Transit6rias (ADCT) ‘rlou-se um primeito dispositive para garantir direitos 4 populacao negra dlewcendente de escravos: “aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade " 0 art, 125 da Constituigie de 1988 dispoe: “1) O Estado protegers as manifestagses das 0s populares, indigenase afro brasieiras, e das de outros grupos paricipantes de processa rs os diferentes segmentos éticos nacional 38 + DIREITOS E CIDADANIA definitiva, devendo o Estado emitir-hes os titulos respectivos”. Esse artigo visava garantir um tipo de reparagdo para essas populagées, herdeiras do passado escravista, e também a preservacao de sua especificidade cultural, fruto da combinagio de tradigdes africanas, indigenas e rurais, Resultado da atuagdo do Movimento Negro, sua aprovagio no encontrou muitos en- traves no plenério da Assembléia Nacional Constituinte, onde dificilmente a amplitude dos efeitos sociais do dispositive foi antevista: em pouco tem- po, centenas de comunidades negras rurais solicitaram sua identificagdo como remanescentes de quilombos, deixando entrever como 0 reconhecimento ju- ridico pode estar na base de processos de ressurgéncia de identidades ocul- tadas ou desaparecidas, sendo importante fator na constituigéo de novos sujeitos politicos. Nesse ponto, cabe estabelecer uma aproximago com a nogdo de dever de meméria, a fim de destacar especificidades da afirmacao da meméria e da identidade quilombolas no Brasil. A meméria, nesse caso, embora esteja liga- da ao pasado escravista, marcado pela exploracao e pelo sofrimento, refere- se principalmente a uma histéria de Iuta. Aqui ndo se trata de recompensar descendentes de vitimas, mas de resistentes, populagses que se insubordina- ram e romperam seu destino de cativeiro. A capacidade de as comunidades remanescentes acionarem a memdria do passado escravo de seus ancestrais, ‘bem como a meméria dos ritos, mésicas e dancas trazidos da Africa ou apren- didos nas senzalas, foi um elemento importante na elaboragao dos laudos antropolégicos quc, logo apés a aprovacao do art. 68 do ADCT, informavam 0s processos de identificagao dessas comunidades.” fia meméria que, funda- mentalmente, sustenta e legitima a reivindicagao identitaria capaz de garan- tirds comunidades negras rurais remanescentes de quilombos 0 acesso a terra. Nesse caso, vale sublinhar, é muito mais uma questio de valorizagio de uma identidade particular e de respeito & diversidade cultural do pats do que de reparagdo por um passado de sofrimento em relegdo ao qual o Estado assuma responsabilidade. * Para uma andlise do fendmeno, ver Arruti (200). 0 ant. 68 foi regulamentado apenas em 2003, com a promalgagio do Decreto n* 4887, que define o procedimento para identificagdo, reconhecimento, demarcaséo e titulagto das teras ‘ocupadas por remanescentat de quilombos. O decreto cetabelece que “a earactorizagio dos remanescentes das comunidades dos quilombos ser atestada mediante autodefiniso da propria comunidade”, 0 que redimensiona a fungio dos laudos antropolégicos que, de inicio, funcionavam como atestados que conferiam a identidade das comunidades, © pevond Contuslo, politica, he dla populagio negra) inutitiidas a partie do po “Trabalho Inter 699) 1995, 8 promulgac Einnpoo a ‘8 Programa Nacional de Idlica Federal. J4 no govd ‘ain vonquista importan) Bivetrizes © Bases da Svigatoriedade do ensin ‘sultura afro-brasileira, nc Alem disso, estabelece ne ‘acional da Consciéncia ay cle reparagdo, tanto p ‘anh eslabelecimentos de ¢ sm termos de rece av, Ainda no primei Decrcto n° 4.686 criou a & ade Racial Geppir), par Politica nacional de pror ‘gom os entraves que imp brasileira”. Seu principal van no dmbito da admini sas conquistas t 0 ja foi dito, de valo tio plano internacional ve afirmando a importancia w identidade, se reconhec viedes de mundo, Fortale «a, fais grupos consegue wslotar politicas que rever inisibilidade” em ques vonhecimento e reparagio uta por direitos, consubs Ver Diretrize curious. 7, que 0 dos nicio, © DEVOIR DE MEMOIRE NA FRANGA CONTEMPORANEA * 39) Contudo, politicas piblicas mais sisteméticas voltadas para a valoriza- populagéo negra ¢ a implementagio de ages afirmativas s6 foram {ntituidas a partir do governo Femando Henrique Cardoso, com a criagéo do Onupo de Trabalho Interministerial para a Valorizagao da Populagao Negra, 18 1995, ea promulgacéo do Decreto n° 4.228, de maio de 2002, que instituiu ‘Programa Nacional de Agées Afirmativas no mbito da Administragao Pé- biliea Federal. Jé no governo Luiz. Inécio Lula da Silva, em janeiro de 2003, luna conquista importante foi a Lei n® 10.639, que altera a redacio da Lei de Diretrizes e Bases da Educacdo Nacional (LDB), de 1996, criando a Absigntotiedade do ensino da histéria da Africa e dos africanos, bem como da ltuca afco-brasileira, no curriculo escolar dos ensinos fundamental e médio. Alm clisso, estabelece no calendario escolar 0 dia 20 de novembro como Dia Aaclonal da Consciéncia Negra. Essa lei é considerada um marco nas politi- ‘29 de reparacio, tanto pelo seu caréter universal — deve ser implementada ‘m estabelecimentos de ensino puiblicos e privados — quanto pelo que repre- ‘ento em termos de reconhecimento e valorizacio da hist6ria e da cultura ‘wygras, Ainda no primeiro ano do governo Lula, em novembro de 2003, 0 ‘Decreto n° 4.886 criou a Secretaria Especial de Politicas de Promogio da Igual- ale Racial (Seppin), para coordenar as agbes necesséiias a implantagdo da politica nacional de promogéo da igualdade racial, cujo objetivo é “romper 9m os entraves que impedem o desenvolvimento pleno da populagéo negra inasileira”. Seu principal instrumento é a implementacéo de acées afirmati- ite no ambito da administracdo publica” Essas conquistas também estdo ligadas a um movimento mais amplo, amo ja foi dito, de valorizagao da diversidade e do multiculturalismo, que ‘io plano internacional vem invertendo os sinais antes atribuidos a diferenca ¢ iitmando a importincia de os diversos grupos, respeitados na sua tradicio ¥ Ilentidade, se reconhecerem na cultura nacional e poderem expressar suas *s de mundo, Fortalecidos politicamente e mais presentes na cena pabli- fa, tais grupos conseguem aglutinar apoios e pressionar o poder ptiblico a axtotae politicas que revertam a situagio de marginalizac3o, discriminacio ou invisibilidade” em que se encontram. No bojo desse movimento, nogdes como ‘voomlecimento e reparagio assumem forte conotagio politica e fundamentam a Jets por direitos, consubstanciados em leis, comemaragées ou politicas de agdo eto d Mer Dietriescurricalares. 2008. 40. * DIREITOS E CIDADANIA afirmativa, Vale lembrat, ainda, que varios instrumentos juridicos internacio- znais — como a Convengao das Nages Unidas para a Eliminago de Todas as. Formas de Discriminagio Racial, de 1969, e, mais recentemente, o Plano de Agho de Durban, resultante da Ill Conferéncia Mundial de Combate ao Racis- mo, Discriminagao Racial, Xenofobia e Intolerancia Correlata, realizada na Africa do Sul em 2001 — enfatizam a importancia da construgao da igualdade racial e da adogéo de agbes afirmativas, constituindo-se em outros meios de presséo para as lutas empreendidas no ambito nacional.* Nio por acaso, a Lei n° 10.639, no Brasil, ea Lei Taubira, na Franca — guardadas as diferencas entre os dois dispositivos legais — foram sanciona- das com aproximadamente dois anos de diferenga. Vale lembrar que as criti cas a Lei Taubira se baseiam na qualificago do tréfico e da escravidao como crimes contra a humanidade, ou seja, na definigao legal de um contetido para 9 pasado histérico, e nao no fato de a lei estabelecer a obrigatoriedade do ensino desse passado. Mesmo 0 grupo de historiadores que defendeu a ab- rogaco de tocias as leis memoriais alegou como motivo as intervengoes poli- ticasna apteciacdo de eventos do pasado, ou seja, a interferéncia na produgio do discurso histérico, O sentido geral que preside & disposigao de incluir a hist6ria da Africa ‘¢dos africanos nos curriculos escolares dos dois patses é 0 reconhecimento do caréter multicultural dessas sociedades; 0 reconhecimento da presenca dos negros na formagio de ambas; ¢, finalmente, 0 reconhecimento da auséncia de referencias a essa presenca nos curriculos vigentes até entdo. Esse reconhe- cimento € fruto da luta do Movimento Negro, nos dois paises, pelo direito & afirmagdo da identidade e da meméria negras. [Nao se esté aqui sugerindo a existéncia de um movimento mundial ho- ‘mogéneo, nem propondo comparagées entre processos hist6ricos e realidades culturais distintos. Trata-se de uma aproximagao cujo objetivo 6, sem perder de vista as especificidades, chamar a atengao para um contexto geral de valo- rizagao da diferenca que fortalece as lutas em favor da memoria e do direito das minorias em distintas realidades nacionais. Tampouco se est insinuando ‘que tais movimentos se fagam sem resisténcias ou dissenso. Também eles re- fletem a especificidade de cada contexto cultural. No caso brasileiro, critica-se ‘a adogio de politicas de cotas por constituir um atentado a tradigdo anti-racis- % Acies afirmativas jf sto realidade em diversos pafses multignicos, come fnclia, Malésia, BUA, Africa do Sul, Coneds, Austria, Nova Zeltndia, Colémbia e México, Diailoina va ideo iit 6 rocky onde itt He bas Aa voutnivie do] Jaliaunente de comand FH medida cm que e fas ao Estado assun romunidade negra, hi slmnon d ideia de que » populagio por feinpos coloniais, Aind i desviar a discuss © « meméria de diserir : com uma obrigagao so idade, os impactos ¢ as universais e politica sensual, no entant std em jogo nesse cast © Viioe taballos abordam Uy (2008); Azevedo (2008) "Ver entre outros, Thibaud srnacio- odas as lano de 0 Racis- ada na waldade weios de sees miciona- as criti- como do para lade do naa ab- es poli odugéo a Africa ento do nga dos uséncia econhe- licito a © DEVOIR DE MEMOIRE NA FRANGA CONTEMPORANEA * 41 e\ ideologia que define o pais como terra da mistura, por intro- useir « eacismo onde ele nao existe” No caso francés, as reivindicagées co- sao acusadas de atentarem contra os ideais universalistas ‘nilitatios da Republica francesa, de promoveram divis6es e intolerdncia a0 fnivdo ce combaté-las. Ao contrério do que se verificou em relagao as vitimas da ditadura e ao to do comandante Ustra, 0 tema das cotas tem tido forte presenca na ildia, e cada medida adotada com base nesse principio suscita debates e po- sieionamentos inflamados. Ainda que toda manifestagio memorial ocorra em msncia com as condigées sociais dadas no presente, ¢ tenha efeitos sobre © pusente, uma diferenca significativa parece marcar esses dois contextos. ‘Na medida em quea meméria é acionada nao mais por um grupo cujos limi- 4 elie definidos e cujas demandas se referem estritamente ao passado, € sim com relagio a uma violencia que continua a ser praticada no presente 8 contea a qual se propdem medidas capazes de influir no futuro de toda a Populagto, a questdo toma outras proporgbes e o debate se complexifica e se anya ‘Outra distingdo a ser feita entre as duas questdes, do ponto de vista ste pou wignificado enquanto memérias que evocam passados de sofrimento, We rexpeito ao fato de que, no Brasil, a questdo racial nos remete a um impe- {alivo moral. Se, no caso das vitimas da ditadura, entendemos que cabe ape- a9 ao Estado assumir responsabilidades e efetuar reparagées, no caso da somunidade negra, historicamente exclufda e explorada, estamos mais pré- =linos da idéia de que toda a sociedade tem uma divida para com essa par- ela dha populacio por causa das injusticas cometidas contra ela desde os fiinpes colonials, Ainda que os criticos das politicas de ago afirmativa pro- desviar a discussao das nogdes de “raga” e “cor”, 0 passado escravista 8 9 meméria de discriminacao evocados pela comunidade negra tém a ver evan uma obrigagio socialmente compartilhada. Os contornos dessa comu- ‘ildute, os impactos e efeitos das medidas propostas, 0 debate sobre politi- {8 universais e politicas focadas, tudo isso mobiliza e divide opiniées. Parece «al, no entanto, que algum tipo de responsabilidade compartilhada esta em jogo nesse caso. Jutgan ire \Visie trubathos abordam a questio seguindo essa linha de argumento, tls como Maggie & es (); Azavedo (2004); e Fry (2005). ete tro, Thibaud (sd) e Slama (2006) Luetlia Santos Siqueint 42. * DIREITOS E CIDADANIA Ap6s tocar em muitas questdes que permanecem abertas, num campo conde os objetos de pesquisa se multiplicam e esto continuamente desafiando 0s estudiosos da meméria, finalizo com uma nota metodol6gica. Uma socio- logia dos processos memoriais, para produzir andlises que revelem a hist6ria a dinamica de cada situagdo particular, com seus embates e negociagées, deve afastarse do léxico nao 6 do dever e da obrigacio, mas também do abuso e da manipulagio, para poder livrar-se de julgamentos a priori e apre- ender a multiplicidade de facetas e atores em jogo, incluindo-se ai as associa- es militantes, as instincias governamentais, os parlamentares e os proprios historiadores. Somente as andlises que levem em conta a dinamica das rela- ‘goes entre memérias vividas, politicas memoriaise meméria histérica,em cada contexto, serao capazes de deslindar as multiplas conexdes e sentidos que presidem os fendmenos memoriais contempordncos, afastando-se das acusa- es 4 meméria e das desconfiancas com relacio & histéria. Referéncias bibliogréfices ARRUTI, José Mauricio. Mocambo: antropologia e hist6ria do processo de formagio quilombola, Bauru, SP: Eduse, 2006. 370p. AZEVEDO, Célia Maria Marinho de. Cota racial e Rstado: abotigio do racismo out direitos de raga? Cadernos de Pesquisa, v. 34, n. 121, jan. /abr. 2004 CHAUMONT, Jean-Michel. La concurrence des victimes: genocide, identité, reconnaissance. Paris: La Découverte, 1997, 384p. Du culte des héros a la concurrence des victimes. Criminolegis, v. 38, . 1, 2000, Disponivel em: . COMBE, Sonia, Archives interdites. Les peurs frangaises face histoire contemporaine. Paris: Albin Michel, 1994. DERRIDA, Jacques. 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La hantise du pas __ Mémoires abusi SLAMA, Alain-Gérard. La F HHIBAUD, Paul. Note sur tes vd. Disponivel em: , HW DOROV, Tzevetan, Les aus de mémoire, Paris: Arléa, 1995, CAPITULO 2 Aos grandes homens a patria reconhecid: os “justos” no Pantedo* Nenive Rollemberg* (O mais inguietante em Vichy nao sto os crimes de uma minoris, ‘mas a indiferenga da grande maioria. Henry Rousso.! weadas seis décadas desde a libertacéo, os “justos” entram no Pantedo. No dia 18 de janeiro de 2007, em ceriménia solene, o presidente Jacques ‘Chirac homenageou os 2.725 franceses e francesas que ajudaram a salvar ju- tess durante a ocupacdo e o regime de Vichy (1940-44) naquele pais. Chiracjé Jinla dado um passo importante nessa diregao em discurso pronunciado a 16 ile julho de 1995, quando reconheu a responsabilidade do Estado francés por aver entregado a Alemanha nazista individuos perseguidos pelo regime. Era 4 primeira vez. que um chefe de Estado o fazia: Sim, a loucura eriminosa do ocupante foi auxiliada por franceses, pelo Estado francés. (.... A Franga, pétria dos iluministas e dos Direitos do Ho- mem, terra de acolhimento e de asilo, a Franca, neste dia, realizava 0 irreparével. Faltando com a palavra, entregava os que tinha sob sua guar- «aa seus carrascos. {ite eno faz parte de mina pesquisa de pés-dautorado realizada no quadro do Acordo ‘spon Cofecub, coordenado pos professores Daniel Aario Reis Filho (UFF)e Denis Roland ide Rober Schuman, Fstrasburgo).Dadico-o a Delphine e Jrdae, que perderam a lt contra a “Benalizagio do ma”. ‘ofesora de historia contemporines 48 UFF e pequissdora do CNPa, Ay che, 199810. {Meponive em: , Aces ent fv. 207, ‘ue que Chirac estava no ini de seu primairo mandato, como obervou Det (2007). 46 + DIREITOS & CIDADANIA O discurso foi pronunciado no aniversério da grande razia do Vel dHiv (Welédromo de Inverno), ocorrida em 16 e 17 de julho de 1942, quando mais de 10 mil judeus, entre homens, mulheres e criangas, foram presos na regio Parisiense © conduzidos ao velédromo. Ali esperaram dias até serem envia- dlos aos campos de transito abertos pelo govemo de Vichy, de onde seguiram, juntamente com outros judeus aprisionados posteriormente em Paris e no in. terior, em 74 trens rumo a Auschwitz, As palavras de Chirac causaram enorme impacto, sendo muito bem recebidas pela comunidade judaica, Frangois Mitterand, presidente socialista queo antecedera, nunca admitiu a participagio do Estado francés no genocidio, alegando que Vichy ndo era a Repiblica francesa. Mas o préprio general Charles de Gaulle jamais o fez. Até entéo, prevalecera entre os chefes de Estado 8 tese de que Vichy era um Estado ilegitimo. A Republica, 0 Estado legitimo estavam em Londres, com De Gaulle. O Estado que participara no crime nao era o francés, nao era a Franga.? O discurso do gaullista Chirac “virou a pagina de uma mitologia Ballista pemiciosa”* Dizia, em 1995, “oportunamente” a nagdo “o que para todo historiador 6 evidente e perfeitamente estabelecido” ? Desde o inicio dos anos 1970 ¢, mais intensamente, na década de 1980, a sociedade francesa vemn discutindo os anos confusos, negros, sombrios* como ficaria conhecido o periodo iniciado com a rapida e desconcertante derrota ara os alemaes em junho de 1940 —“a estranha derrota”, no dizer de Mare Bloch (1990) —e findo com a libertagso, em agosto de 1944, Naqueles poscos ¢ longos anos, a crise de identidade nacional, que vinha sendo gestada desde a década de 1930, foi avassaladora” Quatro anos que fizeram ruir os pilares erguidos em um século e meio, desde a Revolugio de 1789.* Para superd-la, reconstruir a unidade, reparar as fraturas da guerra civil de um pais divido em dois — zona livre e zona ocupada, resistentes ¢ colaboradores ou Ver Baruch, no prelo; Berstein, 199623 e segs; Emmanuel, 147, “Thénard, 2007 * Toutard, 1985210, Bim franote, troubles, nos, sombres: * Ver Laborie, 2001 * NaleIembrar que a Franga fo o primeiro pals europeu a raconhecer a cidadania 908 judeus, fem 1792, exetamente no contexto da RovolugSo. 3 ‘olaboracionistas; rarechal Pétain, a fs) impentou © mil tudos do pasado futuro. A honra inv Na libertagao ‘moria, No entanto participara da Resi {i dos espirites nao civil da alma, ainds Max Picard; 0 psiq nhou a guerra inte: ‘sixmo e por Vichy. "0 terme collabus apare 1 conotagao pejrat ‘-nwzismo, rma atid fivoreceu “generalizaga \iversase no devee se (overs entre a “eolaborag pvtculares” (08 colabor politicos altos Fancion wortdos entre o9 dois ‘ummplicidade” nfo is claboracionistas seria Aofenende a necessi lolchecist, exprienindo a \pespria legisla anti somo a idéia da “nova tmastram claramente a a 1 "regeneragso da popt “As palavras da Libr 2 vertclidade, 4 visits Faiborie. Les Franais des 21MS (pablieado cxiginal " Rousse ¢ Conan, 1994, " Kmunanuel, 19472631 e AOS GRANDES HOMENS A PATRIA RECONHECIDA + 47 88) Inventou o mito da Resistencia, no calor mesmo da libertacao, a libertar tywlou clo passado que passara, a refazer a nacdo interrompida, a permitir 0 Tuluro. A honra inventada, Na libertagio, nesta libertagdo, a histéria tornava-se prisioneira da me- _Max Picard; 0 psiquismo do mundo alterou-se em suas raizes (..). Hitler ga- _ hou a guerra interiorizando-a”. As palavras haviam sido infectadas pelo na- 4ivmo e por Vichy. “E esta infeccio ainda dura”, conclui.”2 _* term colts apareceu durante a ocupactor oiginéro do campo da Resstonca, incorpora ‘ma conotaglo pejorativa, Mas acabou sendo apropriado tambéen pelos que colaboraram com, - tyazismo, numa atitude de defesa da opgio feita.Laborie (200699-4) acredita que a palavra Irvoreces “generalizagGes simplificadoras". As formas de colaboragso com os alemées foram vers endo dever ser vistas da mesma mancire. Ao menos uma diferencagio seria necessrio fazer: entre a “colaboragio de Estado” (os colaboradores ou cllaboratexs) ea “colaboragto dos pastlculares” (os colaboracionistas ou cllabortionnists), No primeira caso esto 0s governantes, [olticos e altos funcionstios de Vichy que cooperaram com a Alemeriha nazista no quaciro dos ‘cordos entre os dois Estados (Pétain, Darlan, Laval, Bousquet, por exomplo). Essa "cumiplicidade” nao implicaria “uma adesio filoséfica a0 nazismo”. Por outro lado, 08 Ver Gutman, 2008318. 2m relagdo & homenagem, nao hé referéncia is demais vitimas da Shas, como comunistas, socialists, liberal, ciganos, testemunhas de Jeov, homosserusis, deficientes mentas iscos. og Aceitei esta fungi {que nao olhévanvd que sabiamos dis viarn nos ajudado, Nese mesmo ser ‘ntao divetor do Yad Va jotos’, Queremos nos van com seas paises de (0 juiz Landau ca nal: 0 livre arbftrio, en ‘oficial "cumpria ordens 1 para as escolhas;h Jpretudo — em temp¢ Mas, segundo G (ao da Comissao dos J «de Hichmann havia tra tes, historias de solidar pria vida, Os testemunt julgar o mal, seria tarat lo Mal, 0 Tribunal do B Henry Rousso ( uma identidade judaic 10 “inventar uma m valores positives — to no nosso tempo, a F A lembranga di 1m og “justos” ess Logo nas prime Como ser justo ao det na fei de 1953 — “ur > Apud Nissim, 20079. kdeen, p10. 50 * DIREITOS E CIDADANIA Ao abrir as portas do Pantedo aos “justos”, em 2007, a Franga celebra a solidariedade — a solidarité agissante® —, a tolerancia, a escolha do bem, a recusa a indiferenca, o livre arbftrio possivel, mesmo em tempos sombrios, ‘tudo isso personificado em gente comum, silenciasa, anénima, Sabios do Pantedo: “e eu thes darei em minha caso, sob protesio de ‘minhas muralhas, um memorial Yad e um nome Shem que nfo se apagard”> Em 1° de fevereiro de 1963, ocorreu a primeira reuniéo da Comissio dos Justos do Memorial Yad Vashem. © também conhecido Museu da Shod fora criado em 1953, em Jerusalém, para honrar “os 6 milhdes de judeus mor- tes pelos nazistas e por seus colaboradores,* as comunidades judias que fo- tam destrudas com 0 objetivo de erradicar o nome e a cultura de Israel, e também o heroismo e a coragem dos judeus e dos justos entre as nagées"” 22 Tirado da literatura talmtidica, 0 conceito de “justo entre as nagées” jé havia servido ao longo do tempo para designar o ndo-judeu que tenha uma relacio Positiva e amiga em relacéo aos judeus® A meméria como missio. Em nome do passado, pelo nunca mais. No resente, voltar-se para as geragdes passadas para formar as geragdes futuras, Composta de personalidades conhecidas, representantes dos sobrevi- ventes da Shoé, e presidida por um juiz da Corte Suprema, a comissio foi encarregada pelo Estado de Israel de atribuir a Medalha dos Justos entre as. Nagoes. A comissio vinha, portanto, aplicar a lei aprovada no parlamento israelense que previra tal homenagem, quando da ctiacéo do memorial, 10 anos antes.* Bla surgira no contexto do julgamento do oficial nazista Bichmann em Jerusalém, em 1961. Assim, Moshe Landau, o juiz do tribunal que © condenou a morte, assumiu a presidéncia da Comissio dos Justos, recém-constituida: > Yad Vashem (sala, versos 565). © No original, cllatorateus; ver nota 8 ® Nissim, 2007233, ® Ver Gutman, 2005518, “tim relagdo homenagem, néo I referénca as demais vitimas da Shos, como comnistas, Socalista,lberais,ciganos,testemunhas de Jeovs, homossextais, defcientes mentalse ices — filitoe'. Queremon| ae O juiz Lana aplvretudo Mas, sey glo ala ¢ le pila vida, Os tester filgaro mat, seria «ho Mal, ribuna Henry Rous ‘anna ie preciso “inventar a tidade ju ‘om valores positiva lo no nosso tempo, A lembranga Toriam os “justos” « Logo nas prit Como ser justo ao ¢ loi de 1953 — “1 ‘Apud Nissim, 200798 om, 100 elebra a y bem, a mbrios, egio de gard” pmissio a Shod us mor que fo- israel, e cies" é havia relagio ais, No futuras. obrevi- sso foi ontre as amento rial, 10 nazista ribunal Justos, ___ New mesmo sentido pronunciou-se na primeira reunido Leon Kubovi, iretor do Yad Vashem: “temos um interesse politico ao nos ocupar dos fe Queremos nos tomar amigos de seus amigos e instaurar relagBes no- ip com seus patses de origem’.* | _ Ojulz Landau comprovaria na comissdo a tese que defendera 0 tribu- 4 livee arbitrio, em oposigdo A defesa de Eichmann, segundo a qual 0 ial “cumpria ordens”. Os “justos” seriam a prova de que sempre hé mar- # para as escolhas; hé uma opcao, pelo bem, que rejeta o mal, mesmo—ou puclo — em tempos de barbie, Mas, segundo Gabriele Nissim (2007), as motivagées para a constitui- da Comissdo dos Justos ndo foram exclusivamente politicas. © processo ‘fe Hichmann havia trazido a tona, em diversos depoimentos de sobreviven- _ Wh, historias de solidariedade, de pessoas que os ajtidaram, arriscando a pr6- Pia vida. Os testemunhos falavam do mal, mas também do bem. Se era preciso iiqar o mal, seria também necessério homenagear o bem. Depois do Tribunal. a Mal, o Tribunal do Bem. : Henry Rousso (1998:40) tem chamado a atencdo para os problemas de _Uitna identidade judaica fundada sobre a meméria da dor e a vitimizacéo. E preciso “inventar uma maneira de afirmar e integrar um judaismo” baseado ‘em valores positives — nao unicamente no sofrimento —, de modo a inscreve- Jo no nosso tempo, a projeté-lo no futuro. A lembranga do bem talvez. venha a ser um caminho nessa direcdo. ‘Teriam 08 “justos” esse nobre papel na histéria do povo de Israel? Logo nas primeiras homenagens, a polémica: quais seriam os critérios? ‘Como ser justo ao definir os “justos”? Ficou evidente que a definig&o inscrita na lei de 1953 — “um homem justo é um ndo-judeu que arrisca a pr6pria vida ® Apud Nissi, 2007399, Idem, p. 100 | 52+ DIREITOS & CIDADANIA para vir em socorro dos judeus”” — nao dava conta das diferentes situagies € personagens. Leon Kubovi propusera a criagdo de uma aléia proxima ao museu, na qual as pessoas que salvaram judeus plantariam uma érvore (dai a arvore de Agnés Varda), numa ceriménia oficial. Em cada arvore, o nome do “jus- to” e de seu pais.™ Entre os primeiros lembrados estava Oskar Schindler, Esse industrial aleméo, originério dos Sudetos e membro do Partido Nacio- nal Socialista desde a anexacdo daquela regifio & Alemanha em 1938, salvou cerca de 1.200 judeus que trabalhavam em sua fébrica e que tinham sido aprisionados no campo de concentragdo de Plaszow, préximo & Cracévia Schindler tornou-se conhecido mundialmente através do filme de Steven Spielberg, A lista de Schindler (1993), baseado no livro de Thomas Keneally. Portanto, diante dessa figura controvertida — seria ou ndo Schindler um. “justo”? —, nascia a comisso encarregada de estabelecer critérios precisos ce julgar cada caso.” Na verdade, as discusses sobre a definigdo de “justo” remontam a ela- borago da lei de 1953, que criava o Memorial Yad Vashem. Para o parlamento istaelense, tratava-se de um individuo agindo segundo sua consciéncia —e nao ‘uma organizacao ou um partido —, independentemente de ideologia, rligiio, cetnia, posigio politica ou origem social." A comissio, 10 anos depois, estabele- ‘ceu que nenhum tipo de interesse — politico, econémico, sexual — poderia ter motivado a iniciativa. As diseuss6es continuaram nos anos seguintes. © Apud Nissim, 2007:101, * A principio, os “ustos” ou sous representantes plantaram érvores na “Alga dos Justos’, em Yad Vashem. Atualmente, es nomes s20 gravados no "Muro da Honra” erguido no memorial (ver Gutman, 2008:18) * Langado em 1982, o lio do autor austraiano inttulava-se Schindler’ ark. » Por ironia da histéria, mosmo com forte oposigio do juiz Moshe Landau, presidente da comissio entre 1962 e 1970, para reconhecé-lo como “justo”, Oskar Schindler tornou-se 0 personagem mais conhecido na salvagio de udeus nal Guerra. O industrial, de fto,erviqueceu ra II Guerra justamante explorando a mio-de-cbra compulséria. Depoimentos teriveis a seu respelto foram prestados por sobreviventes a comisséo. Schindler, porém, teria passado por ‘uma mudange que, segundo depoimento do juiz Moshe Bejski,ndo tinha relaglo com aiminente derota alema. Bejshi,judeu de origem polonesa cujo nome constava na lista, dedicou sa vida ao reconecimento dos “justos”, Seu depolmento ao autor do livo no qual se baseou Spielberg resgatou Schindler do sléncio e do esquecimento. * Como excegto,a pequena cidade de Chambor-sur-Lignon (Haute Loire) recebeu coletivamente 6 titulo em homenagem aos 3 mil habitantes que esconderam entre 3 mil eS mil judeus (ver Gutman, 2003:150), A atribuigao d de um processo em q fasta uma dnica vid de duo salva o mundo | sito La comissao 6 pr lintre as defir fainangas. Os homens Hipos ideais, reveland do hom”, no dizer de lose, A prépria comi fenlom homenagear prostituta que recebi que acabou sendo co ur 6 tarefa diffi, m vempre puro, inmune Para além das ‘os iniciativa de sab ia 0 desejo de ferinulo exatamente 1 vava o diferente podi # intolerancia a0 me O caso Finaly ard Finaly) man «quando 0 pai e a ma sobrinhos érfées. O io grande reperc brevivéncia dos men tituigdes catélicas, 4 tio podendo assim cist, O caso refiet valores da sociedade clos meninos.” Apud Nissim, 2007:10 "Varios ivr eatigos 12006; Kaplan, 1993; Doss situagbes waseu, na a frvore do “jus- chindler, jo Nacio- 8, salvou am sido “racivia. e Steven mneally.” dler um precisos am a ela ‘lamento endo religiao, estabele- ceria ter ssado por 1 5ua vida Spielberg tvamente deus (ver AOS GRANDES HOMENS A PATRIA RECONHEGIDA * 53 A atribuigéo do titulo, desde entio, é decidida a partir da constituigao le um processo em que conste o testemunho de alguém que tenha sido salvo. Hasta uma tinica vida salva, seguindo os ensinamentos do Talmud: “quem sestréi uma tinica vida destr6i todo o universo, quem salva um tinico indivi- «luo salva © mundo inteiro”* Depois de encaminhado o documento, a deci- silo da comissao é proferide num prazo de dois anos. Entre as definigées e os casos concretos, a realidade mostrou suas ‘nuangas. Os homens e as mulheres nem sempre correspondem & pureza dos tipos ideais, revelando ao mesmo tempo virtudes e misérias: a “zona cinzenta «to bem”, no dizer de Gabriele Nissim (2007:161). Oskar Schindler talvez fosse |sso, A propria comissao demonstrava também os preconceitos dos que pre- tondem homenagear os que néo tiveram preconceito, como no caso de uma prostituta que recebia nazistas sob 0 mesmo teto em que escondia judeus € «jue acabou sendo condecorada como “justa’. Evidenciava-se, assim, que jul- sur € tarefa dificil, mesmo quando se julga 0 bem. Talvez porque nem este é sempre puro, imune ao préprio mal que o motiva e fortalece. Para além das discusses na comissdo, houve situagdes em que a valo- ‘osm iniciativa de salvar criangas, escondendo-as em conventos religiosos, no impedia o desejo de querer mudé-las, iniciando-as na fé crista. Ou seja, inter {crindo exatamente naquilo que Ihes dava identidade. Assim, a ago que sal- vava o diferente podia ser a mesma que negava sua particularidade. Tolerancia « intolerancia ao mesmo tempo. (O caso Finaly 6 ilustrativo. Em 1945, as tias de duas criancas (Robert € Gérard Finaly) mantidas escondidas por uma senhora catélica desde 1944, quando 0 pai e a mae foram presos e deportados, reivindicaram a guarda dos ‘sobrinhos 6rfiios. O caso acabou em processo na justica, em 1953, ganhando entéo grande repercussdo intemacional, uma vez que a responsdvel pela so- brevivéncia dos meninos recusava-se a entregé-los. Alegava, apoiada em ins- lituigGes catslicas, que eles haviam sido batizados, sacramento imreversivel, no podendo assim retornar a uma familia judia, que nfo os educaria na fé rist@, O caso refletia muito das relagdes entre cristios e judeus, muito dos lade. Depois de oito anos, ajustica deu ganho de causa as tias ° Apud Nissim, 2007:108 " Virios livros e artigos fram publicados sobre o caso Finals. Ver Laborie, 2003; Powjo eToinet, 2M; Kaplan, 1993; Dossier. 2008 eines 54 + DIREITOS E CIDADANIA Até o presente, a Comissio do Memorial Yad Vashem reconhecou 21.310 “justos entre as nagdes” > Na Franca, eles siio 2.725. (Os *justos da Franca” ou os anormals ou a ponta do iceberg? Se, até o inicio da década 1970, os anos 1940 ou eram lembrados através da Resisténcia superdimensionada —a “honra inventada’ na libertagdo —ou per- maneciam tabu, revelado no “siléncio da mé-consciéncia’”,* dat em diante eles se tornaram um perfodo sobre 0 qual muito se escreve, se fala e se rememora, pondo fim a mitos e siléncios. O livro do historiador — nao por caso norte-americano — Robert Paxton (1973) representa tm marco na histo- riografia do periodo, a ponto de Jean-Pierre Azéma referir-se a uma “revolu- s@0 “paxtoniana”, e Stanley Hoffman, aos “estudos sobre Vichy na Franca ‘antes e depois de Paxton’.* Ji no infcio da década de 1990, a meméria dos anos 1940 havia-se tor- nado uma “meméria onipresente, as vezes invasora, constrangedora, carre- ada de obrigacio”.” O “dever de meméria”. Henry Rousso (1998:30) chega falar numa “obsessio do passado”, num “excesso de passado”,* que o apro- ximaria de sua negagio: ‘Ocexcesso de passado, que é tanto um efeito quanto uma causa da ideolo- ‘gia da meméria e que me parece, pensando bem, uma coisa ao menos t&0 Preocupante quanto a negagdo do passado, Os dois s4o, aids, sintomas in- vversos de uma mesma dificuldade:a de estar seguro a respeito do passado, Para poder enfrentar o presente e imaginar o futuro. No dificil caminho em direcéo ao passado, num dado momento todos 03 resistentes passaram a ser todos os colaboracionistas. Para Laborie, as generaliza- ‘$6es abusivas, as alternativas simplistas, radicalmente reduzidas a condena- SOE Se eee eee eee % Destes, dois so originsrios do Brasil; um doles ¢ 0 diplomata Luiz Martins de Souza Dantas (ver Keitensn, 2002), © Ver Labor, 2008, % Ver Fishman et a, 2004, ® Laborie, 20086:50 © autor se refere as comemoracoes por acasiéo dos $0 anos do fen da I ‘Guerra No original, le trop-plein de pase, ‘reise apelagio, de, menos de comp aro problema dos; Na simples troca dk Uissa historia rica do que supun tua longo percurso © exquecimentos. F ewlaboracionistas, Pi ‘uta, um enorme « double, chave para ¢ ‘ou se 6 isto ou aq cmbicaléncia, que ni muitos —, estaria a Enfim, a soci uum passado desse imprensa, no cinem venga constante. Fa sarnte. Projetam 0 f Na semana e trearam um docu Na televisio, houve 10 proprio Pantea ssnos 1940 6 presen Num desses um comentério qu ‘justos’ esconde a 1 populacio frances lestacar que uma f ‘comemoragies nao © Laborie, 2003827 ‘© Eeetitor italiano de o ceserever dois liveos de (0947) @ A trigua (1963) Vee Laberie, 200 ¢ 2 © De Christophe Mala 21.310 és da uper- tiante ese © por histo- volue ranga 2 tox arre- hega apro- eolo- sto ado, da i | ij | i AOS GRANDES HOMENS A PATRIA RECONHECIDA * 5 des sem apelagio, fazem com que se trate menos de enfrentar a complexida- tle, menos de compreender, que de formular veredictos ou mesmo estigmati- var 0 problema dos comportamentos”, que €0 que esta “no cere do debate”. Na simples troca de sinais, o desconhecimento daqueles anos permanecia. Essa hist6ria — como qualquer outra — mostra-se bem mais complexa rica cdo que supunham as interpretagdes maniqueistas. Para compreendé-la, um longo percurso de desconstrucdo da memsria, erigida em mitos, siléncios © exquecimentos, Rompendo com os campos delimitados de resistentes ou olaboracionistas, Pierre Laborie, inspirado em Primo Levi,’ viu uma zona cin- senta, um enorme espaco entre dois pélos, e formulou 0 conceito de penser- double, chave para entender 0 que néo cabe em fronteiras bem demarcadas — ‘ou se € isto ou aquilo. Muitas vezes, se é um e outro, se é duplo."" Na ambivaléncia, que néo é sindnimo de contradic — algo desconcertante para muitos —, estaria a Franga dos anos confsos. Enfim, a sociedade francesa —e ndo somente os historiadores —jé tem lum passado desse passado, uma histéria dessa historia. Os debates estio na {mprensa, no cinema, na televis8o, Sao polémicos, intensos, dificeis. Uma pre~ tenga constante. Falam do passado, mas também — ou sobretudo — do pre- vente, Projetam o futuro. Desfazem mitos, constroem outros... Na semana em que acontecia a celebragio dos “justos” no Panteio, es- ‘earam um documentario e um filme sobre a questio dos “justos” (Zone litre). Na televisdo, houve programas de debates, entrevistas, depoimentos, Em frente 440 préprio Pantefo, outra exposicio sobre 0 mesmo tema. O universo dos anos 1940 é presente Num desses programas de TV, um judeu sobrevivente do genocidio fez um comentério que causou impacto: “toda essa comemoragio em torno dos justos’ esconde a relacdo extremamente desigual entre o niimero deles ea populacdo francesa aquela época”: 2.725 contra 40 milhdes. Ble queria assim «lestacar que uma parte infima dessa populagio fora “justa”. E continuou: “as \emorages no confrontam esses ntimeros!”. Em outras palavras, aqueles ™ Labor, 20080:27, tito italiano de origem judaica nascido em Turlm em 1919, Sobrevivente de Auschwitz, ‘wsoeveu dois lives de meméria sobre a vivéncia no campo de concentra: F isto um honen? (947) © A tégua (1969), Suicdou-se em 1987. " Ver Laborie, 2001 e 20088, “De Christophe Malavoy, uma adaptacto da pega de Jean-Claude Grumberg, 56 * DIREITOS E CIDADANIA 2.725 falavam também dos 99% de “ndo-justos”. O mal-estar foi agravado por ais este comentério: “o mesmo Estado que hoje celebra os justos' no Pantedo Persegue 0s sans-papiers! E mais, persegue os franceses que ajuciam os sas- Papiers a escaparem da perseguicio! Sao 0s justos' de hoje! Sobre eles nin- guém fala”. Aeexcepcionalidade do bem diante da banalizngao do mal. Falando a res- peito do julgamento de Eichmann, Hannah Arendt (1999) definiu como “anor mais”® os que denunciaram o genocidio oua cle se opuseram. O oficial nazista alegava que os atos cometidos pelo regime eram considerados normais.!* Nin- guém os criticava ou denunciava. Ele mesmo fora considerado normal pelos psic6logos ¢ outros que o entrevistaram. A dentincia é que era um comporta- mento anormal, constatou Arendt. Um olhar bem mais écido que o do juiz Moshe Bejski. As duas faces dos “justos”? No discurso de Jacques Chitac no Pantedo havia uma interpretagao bem diferente da relagio entre judeus e franceses: os “justos” contribuiram ara proteger da deportacdo % da populacao judia existente antes da guerra (..). A maioria dos judeus assassinados foi entregue aos alemaes por Vichy pelos colaboracionistas. Mas a maioria dos judeus que escaparam foi salva por franceses.* Aqui os “justos” sio muito mais que os 2.725 reconhecidos. Quase se igualam aos 40 milhées da populacio francesa de entio, A maioria permane- ce andnima, distante dos tramites do reconhecimento. Eles seriam, de fato, bem mais — um argumento que costuma acompanhar a cifra, Agnds Varda também os evocou no Pantedo: junto as fotos e aos nomes dos que receberam, 4 medalha, rostos de atores e atrizes do filme, sem seus respectivos nomes, fazendo os ausentes presentes. A multidao de desconhecidos, ialvez para sem- pte desconhecidos, explicaria o fato de da populagio judia da Franca terem sobrevivido ao final da Tl Guerra. Os “justos” — heréis da patria — reabilitam toda a Franga, todos os franceses, toda a sua hist6ria: © Agradego a Daniel Aario Reis por ter me indicado a mefertncia de Arendt sos “anormais’ “A histoviografia sobre o nazismo também jf jogou por tera o argumento segundo o qual a populacdo alemd desconhecia o que estava senda feito. Ver Gellatly, 2005, © Chirac, 2007, Gragas a vocts, Franca no fund momentos prof melhor e o mai Ela 6 nossa hera de nossa histori Nessa diregao ve alonga espera pele preciso para que nés rum rebanho" Por esse angulc io de todos, ¢ nao s jupel da opinido cont manka acumulava vi vwwiedade e as press Vichy teria pod M1 semanas] se tante nio tives didas. Os “jus estenderam am Klarsfeld alega ciado na Franga, AS imposto a todas 03 ju foram executadas pel ponsabilidades pelo « we, portanto, © pape sociedade perfeitame Chirac, 2007 © Histoviador e advogado «la Feanga; conlecido mili Vapon. © Klarsfeld, 207. © Ibid. Ver também Klar AOS GRANDES HOMENS A PATRIA RECONHECIDA + 57 ‘Gragas a vooés, gracas a outros hersis através dos séculos, podemos olhar a Franga no fundo dos olhos, e nossa histéria de frente: s vezes, vemos nela ‘momentos profundamente obscuros. Mas vemos também sobretudo 0 melhor e 0 mais glotioso, Nossa histéria, é preciso tomé-la como um bloco. Hla énossa heranga, ela énossa identidade.(...). Sim, podemos nos orgulhar a de nossa histéria! Sim, podemos nos orgullhar de sermos franceses!* : Nessa diregao segue também a interpretacao de Serge Klarsfeld,” que \#a longa espera pela entrada dos “justos” no Pantefo como “o tempo que foi preciso para que nés pudéssemos aceitar a idéia de que os franceses nao fo- ‘am rebanho” Por esse angullo, a presenca dos “justos” no Pantedo é também a absolvi- ‘au de todos, e no somente 0 reconhecimento de alguns. Klarsfeld destaca 0 ‘papel da opinizo contra as razias, justamente no verao de 1942, quando a Ale- ‘manha acumulava vitérias e seu exército parecia invencivel. Os protestos da ‘eledade e as pressées sobre Vichy mudaram os rumos dos acontecimentos: Vichy teria podido continuar nesse ritmo [33 mil judeus deportados em 11 semanas] se a populacio ¢ os dirigentes das igrejas Catdlica e Protes- {ante ndo tivessem demonstrado a hostilidade dos franceses a essas me- didas. Os “Justos” sto a ponta do iceberg. Muitos, muitos franceses nane- estenderam a mao a favor.” fato, Verda Klarsfeld alega, ainda, que um reduzido nimero de judeus foi denun- aslo na Branga. As prises ocorreram sobretudo a partir do recenseamento {mposto a todos os judeus em junho ce 1941. Todas as razias na zona ocupada foram executadas pela policia francesa a servico da Gestapo. Ou seja, as res- orsabilidades pelo crime recaem exclusivamente sobre o Estado. Confirma- portanto, 0 papel do Estado, e nao dos franceses, no crime. Estado e socleclade perfeitamente separados. & & Reese eshsceetonismi * Chie, 2007, "otoriador ¢ advogado, presidente da Associas%o de Filhos e Filhas de Judeus Depertados 's Vow conhecide miltante na caga aos nazstas, stow no processo que julgou Maurice Paps ‘aval, 2007, Uh. Ver tamibéen Klarsfeld (2002). 58 * _DIREITOS & CIDADANIA Porém, até que os franceses se manifestassem, dois anos jé haviam de- corrido desde a derrota, period em que os judeus foram alvo de humilhagées e de uma legislagSo excludente. Entre outubro de 1940 e setembro de 1941, Vichy editou 57 textos de leis, decretos e portarias visando a segregagio. O “anti- semitismo de Fstado”® foi possivel ao longo desses anos porque contou com a complacéncia da sociedade, cujo comportamento s6 mudou em julho de 1942 © proprio Klarsfeld (2007) levanta a questo da omissao da sociedade: preciso lembrar (..) que a “brava gente” ficou muda durante dois anos, enquanto os judeus eram transformados om pirias, desapropriados de seus bens , excluidos das profissdes, acusados de serem responséveis pela der- rota. Ela [a brava gente] s6 se tomou ativa quando viu que esses judeus eram presos e entregues aos alemées. Entdo, protestou. Mesmo entre os resistentes na sua imprensa clandestina, as persegui- ‘<6es aos judeus nao foram tema prioritério até aquela data* Em outubro de 3941, por exemplo, Daniel Cordier constata que, no relat6rio para o general De Gaulle eos ingleses, Jean Moulin nada mencionou sobre o assunto, Laborie (2003a:147) nota que a apatia em relagao aos judeus aparece tanto “nos relats- ros oficiais dos funcionérios de Vichy como em testemunhos hostis ao regi- me”. A indiferenca em relagdo a sorte dos judeus — inclusive das igrejas Catdlica ¢ Protestante — até a razia de Vel ¢'Hiv parece ser um ponto consen- sual entre 0s historiadores. Nio se trata, porém, de uma conta exata, na qual 40 milhées menos 2.725 sao 39.997.275. Para o bem ou para o mal, os anos sombrios estio longe desses marcos, Segundo Pierre Laborie (2008a:31), dividir a sociedade em justos e nao- justos — e as nuangas aparecem na interpretagio de Serge Klarsfeld — seria ‘no compreender o periodo e os comportamentos dos franceses: 6 lugar preponderante assumido pela ambivaléncia é um trago majoritério das atitudes dos franceses sob Vichy. (..). As altemnativas simples entre pétainisme e gaullisme, resistencia e vichysme, ou resistencia e colaboracionismo fomecem apenas imagens redutoras da experiencia dos * Labor, 20088:23, © Ver Laborie, 2088, ad contemporineos moral na aprecia uma outra nature possibilidades de em fermos antag tes —, mas ultra para além das p: em sua maioria, pétainistes, depot um periodo mais ‘mesmo tempo. B para se dominat dos franceses: “a coisas ao mesmo A polémica, pat ‘Ao assuimir, com «és na Shos, Chirac e lade francesa na trag ‘nuangas da zona cinze O sccretério-ge declarou no Pantedo: Bstado desabou, as el mais profundo, mant {ado, 0 Estado e as eli servada, de pé, a Fra francés colaborador, se ‘expressando seus inte © caso é compl migo, numa guerra n Entretanto, 05 ciedade da Terceira Tocqueville, Pierre Li de nacional nos anos ao contrério, ela expl * Apud Gouliaud, 2007 am de- hagbes e 1941, > “anti- coma je 1942. is anos, deseus cla der- judeus joritario es entre ancia e ncia dos AOS GRANDES HOMENS A PATRIA RECONHECIDA * 59 ‘contemporineos (..). Sem querer diminuir a importancia do julgamento moral na apreciagio dos comportamentos, a idéia de ambivaléncia € de uma outra natureza. Ela abre outras portas para o historiador e alarga suas posstbilidades de andlise. Permite-Ihe nao mais ver as contradicSes apenas em termos antagdnicos — resistentes ou pétainistes, gaullistes ou attentis- tes —, mas ultrapassé-los, interrogando-se sobre o que procuravam dizer, para além das pseudo-evidéncias do sentido aparente. (..). Os franceses, em sua maioria, néo foram primeiramente vichystes, depois resistentes, pétainistes, depois gaullistes, mas consegutiram ser, simultaneamente, por ‘um perfodo mais ou menos Jongo, conforme o caso, um pouco os dois a0 _mesmo tempo, Em recente entrevista, Simone Veil lembrou as dificuldades para se dominar agora a complexidade do periodo, dizendo a propésito dos franceses: “alguns se comportaram bem; outros, mal; e muitos, as duas coisas ao mesmo tempo. Iss0 no era tdo simples como se apresenta hoje”. A polémica, portanto, parece nao ter fim. Aoassumit, como chefe de Estado, as responsabilidades do Estado fran- és na Shos, Chirac estaria falando também das responsabilidades da socie- ide francesa na tragédia? Ou seriam coisas distintas? Estaria ele vendo as rnuangas da zona cinzenta, ou no? secretério-geral da Presidéncia da Republica, Frédéric Salat-Baroux, declarou no Pantedo: “nos momentos mais terriveis da hist6ria da Franga, 0 Kotado desabou, as elites desabaram, mas a nagdo francesa, no que ela tem de inais profundo, manteve-se”. Hi, ainda, a dificuldade de se ir além: de wm lado, o Estado e as clites aos pés do nazismo; de outro, a nagdo francesa pre~ servada, de pé, a Franca étemelle, Assim, reconhece-se Vichy como 0 Estado francés colaborador, sem percebé-lo como uma instituicio formada por pessoas, ‘expressando seus intereresses e valores, como nos ensinou Hobbes. O caso & complexo: tratava-se de um pais invadido e ocupado pelo ini- snigo, numa guerra na qual fora vencido. £ verdade. Entretanto, os valores presentes no Estado de Vichy transitavam na s0- eledade da Terceira Republica bem antes da invaséo alema. Inspirado em ‘Tocqueville, Pierre Laborie foi buscar as explicagdes para a ctise de identida- de nacional nos anos 1930, e nao na derrota de 1940. A crise ndo comegou af; 0 contrério, ela explica, entre outras coisas, a propria derrota. Marc Bloch ja ® Apwd Goulliaud, 2007. 60 * DIREITOS E CIDADANIA voltaza aos anos 1990 para compreender a estranha derrota. Os elementos esta- vam ali, na sociedade, germinando, crescendo: “a desordem ideol6gica”, “a deterioracao das referéncias”, a "degenerescéncia dos simbolos”, a nio-inter- vengio na guerra espanhola, 0 “pacifismo multiforme”, o anti-semitismo, o anticomunismo, a xenofobia, 0 “consenso frégil”. Para Laborie (2001:83), 0 anti-semitismo na Franga guarda autonomia em relagéo ao anti-semitismo na- zista. Hannah Arendt, aliés, jé apontara a forga dele na sociedade francesa, tao evidente no caso Dreyfus. Vichy antes de Vichy. Assim, 6 significativo 0 comentétio de Pierre Emmanuel a respeito dos judeus na sociedade francesa: “muitas pessoas, antes da guerra, nao sabiam 0 «que era um judeu: sob a ocupacio, pronunciavam essa palavra com um misto de piedade, desgosto e terror sagrado”.* E relata em que circunstancias ficou sabendo da entrada da Franga na guerra: passeando num bosque, ele e a espo- sa se depararam com win grande sapo no caminho; ao se desviarem dele, mui fos outros surgiram. Chegando em casa, receberam a noticia. Ele concluiuy, ‘entéo, a respeito do que estava por vir: “uma chuva de sapos sobre o mundo, ‘uma invasdo de monstros como que surgidos do nada”. A laicizago da religido ou a religiéo laica? Num 4spero editorial do Libération, a tentativa de sintetizar a trajetériajé per corrida pela meméria: constriida pelo general De Gaulle (e pelos franceses, eu acrescentaria), por Frangois Mitterand (e pelos franceses, eu actescenta- i ria), comecoua ser desvelada “pelos trabalhos de historiadores americanos”. 1 “Por terem sido alimentados pelo culto do her6i, perpetuado por um Mitterand comprometido com Vichy, os franceses cairam das nuvens.” No desdobra- mento, “o arependimento cresceu e se impés”. “Mas o arrependimento co- mega hoje a se diluir para dar lugar as ‘luzes' que irradiam 08 justos.” Vistos como os milhdes de anénimos responsdveis pela preservacio dos % da popu- lagdo judia na Franca. Assim como De Gaulle e Mitterand tiveram um papel na construgio da memsria dos anos 1949, Chirac teria 0 seu, dando origem a uma nova fase dessa hist6ria, Com ironia, Jean-Michel Thénard assim conclui © editorial publicado no dia seguinte a ceriménia no Pantedo: “era preciso © Emmanuel, 1947:635, Ibid, p. 620, Certamente, uma alusio a Robert 0, Penton, oon ws gal para base, Gracia Sunutigav nocesssi prestades d nagio Com Chi a wemnria. Cons Ww imiohunea, fazer Quando te! Igieia de Santa G wo calor da Revol feu cutee as: vou, Nao vistos bertariam, sobre tla cle 1970 19% anos envergonha ew oulweidos do b Entre relig de fazer da hist pela patria® ‘énard, 2007. An ialente Chirae nt ’ theto da expos nm “0 historiador Vin or exernple, pela ho preseae uma perc igioeo, Pata fort epbtica que afirm usta, adefess d dos que se qualifies juonto eram simple eeytus no Panthéo seulo,o caso ainda 1 posigdo do pesqui (vera a defesa do esta 0 inter no, 0 3), 0 cea, am 0 AOS GRANDES HOMENS A PATRIA RECONHEGIDA * 61 mesmo um gaulliste para colocar de pé uma histéria que andava de cabeca para baixo. Gracas a ele, a Franga tem uma visao mais justa de seu passado, ‘condigio necesséria para recuperar a confianga em seu futuro. Vale o favor jrrestado & nagdo”.#* Com Chirac (eu diria, Chirac os franceses), uma vez mais, a construgdo «li meméria. Construgéo, desconstrugio, construcio... A meméria em permanen- le mudanga, fazendo-se e refazendo-se & imagem e semelhanga do presente. ‘Quando teve infcio a sua construgao, o prédio seria uma igreja —~ a {tein de Santa Genoveva —, ainda sob o Antigo Regime. Em 1791, terminado no calor da Revolugdo, tornou-se um templo laico. No século seguinte, hesi- tow entre as vocagoes religiosa e laica. Em 1885, enfim, assumiu por decreto a fungio que mantém até hoje: “para a Republica, um lugar da meméria onde ln constr6i sua imagem através daqueles a quem presta honra”.” O Pantedo. Nao vistos como resistentes, os “justos” libertariam os anos 1940? Li- bortariam, sobretudo, os anos de culpabilizagéo que vieram depois, nas déca~ «las de 1970 e 1980? Heréis dos anos troubles — os resistentes —, her6is dos 10s envergonhados — os “justos”? Os cidadios de rostos comuns, os novos desconhecidos do Pantefo personificariam o mito? Entre religiao e laicizagto, a vocagao hesitante do Panteao, a tentagio de fazer da hist6ria mitologia. O lugar dos grandes homens reconhecidos pela patria. ‘hénard, 2007, Antoine Guital, nessa mesma edigio do Libération, notou que, no discuo, © prenidente Chirac ndo entrou na légica do arrependimente, otheto da exposicio “Hommage de la Nation aux Justes de France” (Pas, 18 Jan. 2007, » Y hlstoriador Vincent Duclert (2007) defende o atual sentido aico do Pantedo, comprovado, 1 exemple, pela homenagem ao¢ “ustos”. Come lugar da meméris,o monumento deve mesmo fexpressae uma percepséo histérice da Repsblica e se afastar completamente de um sentido ‘elvis, Para fortlecé-la, porém, 0 Panteko precisaria passar por uma democratizacio. Uma epiblice que afirma sua vocagio democritica ao homenagear valores tals como “o principio { justiga, a defesa do individu diante do Estado, a palavra universal das hurildes, oheroismo slot que se qualificam erzadamente como “itimas’ e que foram herbs tanto mais exemplares ‘quanto eram simples cidados". Assim, defende a panthéonsaton' de Alfred Dreyfus: “ocapitio. [Dreyfuss no Panthéon abre caminho para uma nova representagdo da Repiblica. Como hi un 4culo, 0 caso ainda se mostra capaz de injetar democracia na Republice”, Ducest rica, ainda, + potigdo do pesquissdor Albert Lévy, que anteriormente, no mesmo Libation 25 dez. 2006), livera a defesa do templo segundo uma visto religiosa da Republica. 62 * _DIREITOS E CIDADANIA Referéncias bibliogréficas ARENDT; Hannah. Origens do tolaiterism. Sao Paulo: Companhia das Letras, 1989, _ Eichmann em Jerusalém: um relatério sobre a banalidade do mal. Sto Pau- Jo: Companhia das Letras, 1999, BARUCH, Marc Olivier. (Dir). Une poignée de misérables. L’épuration de la société francaise apres la seconde Guerre Mondiale, Paris: Fayard, 2003, Sociedadies e regimes autortétios. In: ROLLEMBERG, Denise etal. (Orgs). Sociedaes ¢ regimes autritérias. Rio de Janeiro: Civilizagio Brasileir, no prelo. BERSTEIN, Serge. Culture républicaine et luttee armée. 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