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Os editres procuraram identifier, por meio de consulta e pesqus, todos os autores de agBes e imagens vtlizades neste liv, Caso Sea poprietério de algum dreto no cred tado devidamente neste volume, por gentileza entre em contato conosco coordenagéo Bruno Berlendis de Carvalho Cconcepsfo dos volumes ‘Alvaro Comin eHeloisa Buarque de Almeida Orgarizacéo Heloisa Bvarque de Almeida e José Szwako Projeto grfico, capa e diagramagso Claudia ntatilo (GIP Design) Ieonografia, ‘Ana alta Rocha Bruno B. de Carvalho concep oe volumes Heise Diteregas in stgace A 2 Semone Ecce Inaces para catog steric: Fava igualade* Socaoga 301 sumario Apresentacio da colegio Sociedade em foco Heloise Buarque de Almeida e José Szwako Introdugéo: A Sociologia e asidentidades sociais Antonio Sérgio Alfredo Guimaraes Classes sox Adriano Codato e Fernando Leite Classe como fato social - 27. Classe como principio socolégico- a ismo, relativism e senso comum - 33.0 significado socio ica de classe se ‘mes - 6, mo “a brasileira” Monitz Schwarcz Uma sociedade ambivalente - 72. Pela histria - 75, 0 cotidiano da ‘de cores e nomes - 495. Em tem- ,agdo da cultura - 209, Racismo.’ bra- Por que falar sobre género? - a8. Eno Brasil? - 220, A trajetéria de tum conceito ~ 223. Leituras "clésicas” da diferenga sexual - 226, Lelturas recentes da diferenga sexual - 136. IndicagSes de leituras © filmes - 246, Sexvalidade como questo pol JJlio Assis Simoes. Senualidade: da natureza is representagdes - a52. Saude se ‘eprodutiva -359.0s limites do apelo& natureza- 266. A sexual nas ciéncias sociais - A visSo classice - 268, Sexualidade, cukura e ‘omportamento - 78. Sexualidade e poder - 386. Conclusio - 289, Indicagbes de leituras e filmes -ago. Juventude Elisa Guarand de Castro A diversas juventudes:identidade ou diferenga? - 296, Juventud ‘uma idade? um comportamento? - 203. Rebelde, violenta, apitica, Fevolucionéria: as muitas imagens dajuventude - 209. ColaboragBes do.conceito de geragao- 237. Indicagées de leturase filmes 225, Glossario 40. Conclusbes - 6 Indicagées de leituras e 10 20 70 6 150 194 228 = Adriana @ « @ Adriana Piscit » antropéloga, pesquisadora da Universidade Estadual de = Campinas (Unicamp) e tem pesquisas na Area de género, sexualidade, turismo sexual, prostituigao, migragdes. Publicou o livro Joias de familia - Género e parentesco em historias sobre grupos i empresariais brasileiros | (Editora da UFRJ, 2006); foi co- organizadors ji «oes fronteiras (Garamond, 2004) ‘© organizadora de diversos niimeros dos Cadernos Pagu (Revista do Pagu - Niicleo de Estudos de Género da Unicamp), disponiveis no Scielo Brasil . @- Por que falar sobre género? ‘0 dia 12 de maio de 2009, o Jornal Nacional mostrou uma cena dramatica passada no Afeganistio. Meninas entre 10 e apro- ximadamente 13 anos, com longas saias pretas e os cabelos cobertos por lencos, apareciam deitadas, com expressbes assustadas, ‘em macas de hospital. Cuidando delas, circulavam mulheres com 0s cor- pos e rostos cobertos por “burkas", vestes que chegavam até os pés, de ‘uma cor azul, clara ¢ intensa. A voz do apresentador informava que as garotas haviam sido envenenadas por gés durante ataques contra esco- las em que estudavam, Em uma agressio a outra escola, mais garotas tiveram os rostos queimados com acido. Entre 1996 e 2001, meninas ‘que lembra outras, ‘momentos hist6ricos, em diversas partes do \duzem a essas situages nao sio idénticos io as particularidades de cada caso. Mas ha algo em comum. Toda discriminagao cost atribuigdo de qualidades e tracos de temp lagao entre qualidades femininas ea capacidade de conceber flhos e dar {luz contribui para que a principal atividade atribuida as mulheres seja a maternidade, e que o espaco doméstico e familiar seja visto como seu. principal local de atuacao. [No Afeganistao, otradicionalismo religioso obriga que muitas ‘mulheres vistam a burka para sair decasa, Trata-se de um veut ‘slamico que cobre todo 0 rosto e corpo, ecostuma ser visto pela sociedade ocidental como um sinal de opressao das mulheres. Quando as distribuigdes desiguais de poder entre homens e mulhe- res sio vistas como resultado das diferencas, tidas como naturais, que se atribuem a uns e outras, essas desigualdades também sio “natura lizadas". O termo género, em suas vers6es mais difundidas, remete a tum conceito elaborado por pensadoras feministas precisamente para desmontar esse duplo procedimento de naturalizacao mediante o qual as diferencas que se atribuem a homens e mulheres sio consideradas inatas, derivadas de distingdes naturais, e as desigualdades entre uns e outras sto percebidas como resultado dessas diferencas. Na linguagem do dia a dia e também das ciéncias a palavra sexo remete a essas distin- ‘Ges inatas, biologicas. Por esse motivo, as autoras feministas utilizaram, © termo género para referir- homens e mulheres, entre id ‘Aimagem de desigualda TV descritas no inicio deste texto. Entretant conta que a narrativa do telejornal “fala” d ocupado pelas mulheres em um lugar muito longinquo, em outra cultura. B claro que nessa narrativa o lugar atribuido as mulheres também “diz coisas” sobre essa outra cultura, O que me interessa observar, porém, é que um exemplo tao distante pode embacar nossa visto sobre o sentido de falar sobre género nos dias de hoje, no Brasil. E no Brasil? ‘A presenga massiva de meninas e jovens mulheres nas escolas € uni- versidades, a existéncia de médicas, mulheres que dirigem téxise pilotam vides, prefeitas, senadoras e ministras nos lembram que aqui as mulheres tm acesso a educagao, podem trabalhar em praticamente qualquer ativi- dade, ocupando até cargos politics. Além disso, no Brasil parece haver ‘uma imensa distancia em relagao as expresses mais cruéis da desigual- dade entre homens e mulheres, materializadas, por exemplo, em guerras nas quais 0 estupro de mulheres se converte em uma verdadeira arma. Lembremos as violagées de intimeras mulheres como mecanismo de disseminar o terror politico durante a década de 1980 no Peru, na ‘guerra envolvendo o governo daquele pais ea organizagio Sendero Lumi- 1n0s0. Ou, no inicio de 1990, os estarrecedores estupros, sisteméticos € ‘mulheres e meninas muculmanas na Bosnia Herzegovina, "muitas vezes seguidos por mutilacbes e assassinatos. Eles ocorreram em verdadeiros “campos de estupro”, no territdrio da antiga lugoslavia. O cardter genocida desses atos, vinculado a eliminasao deliberada de pes- ‘soas motivada por diferencas étnicas, nacionais, raciais, religiosas, fez ‘que fossem considerados crimes contra a humanidade, ‘Um rapido olhar sobre alguns indicadores no Brasil, porém, mos- , em média, do que 2005, as meninas ainda numa igualdade salarial,* o que se agrava mais ainda quando se trata de mulheres negras. Em média, as mulheres brancas ganham 40% menos do que os homens para o mesmo trabalho; e as mulheres negras, 60% menos.* Quando pensamos nas horas necessérias para realizar o trabalho de cuidar da casa e dos filhos, percebemos que no Brasil as mulheres que trabalham fora, além de ganhar menos que os homens, traba- Tham mais horas que eles. Isso porque nao costuma haver uma divi- com outra mulher, geralmente a mae ou as Se, além de pensar nas diferengas nos salarios e nas horas de traba- tho, também consideramos a violéncia sofrida pelas mulheres no Brasil, co quadro de desigualdades se torna mais crtico, Entre as entrevistadas {que participaram da pesquisa da Fundagao Perseu Abramo, pouco mais dametade afirmou nunca ter sofrido qualquer tipo de violéncia por arte de um homem. Mas o restante, 43% das entrevistadas mulheres, tinha sido vitima de algum tipo de violéncia cometida por um homem. Uma parte (11%) afirmou ter sido espancada, na maioria das vezes por com- panheiros (maridos ou namorados) ou ex-companheiros. Considerando- se que 31% delas afirmavam que isso havia acontecido no iltimo ano antes da entrevista, chegou-se ao calculo de que a cada quinze segundos uma mulher é espancada no Brasil. Quando o entrevistador nomeava outras formas de violéncia, os ntimeros aumentaram: 33% sofreram vio- lencia fisica (ameagas com armas, agressdes fisicas, estupro conjugal® ou abuso), Além disso, 27% sofreram violencias psiquicas. Onze por cento afirmaram jé ter sofrido assédio sexual ~ esta éa tinica forma de violén- ‘ia que nao ¢ cometida por companheiros ou ex-companheiros.’ Nesse @-— , aspectos presentes na longa historia de rei- vindicagées feministas, relativos a domina¢ao masculina, articularam- se a nogées teéricas que procuravam mostrar como as distingées entre feminino e masculino sao da esfera do social. (nrmeraesoet are ao min Ieee ds iss Cosa CA, (eeesmizey) Em alguns pases, como nos Estados Unidos, houve no inicio do ste, 20umassrie de passeatas e ‘manisfestagdes pelo voto feminino. Como tad esforgo de ampliagao dos direitos das mulheres ~ € 08 de virios movimentossocais de ‘minorias -, este também gerou reaghes contrrias. Leituras “cldssicas” da diferenca sexual ‘A “primeira onda’ do feminismo ocorreu entre o final do século 19 € inicio do 20. Esse primeiro momento se caracterizou por uma importante ‘mobilizagéo no continente europeu, na América do Norte e em outros paises, impulsionada pela ideia de “direitos iguais a cidadania’, que pres- supunba a igualdade entre os sexos. Entre as décadas de 1920 e 1930, as mulheres conseguiram, em varios paises, romper com algumas das expres- ‘sbes mais agudas de sua desigualdade em termos formais ou legais, As leis eram diferentes para homens e mulheres. As ferinistas reivindicavam, entre outras coisas, poder votar (numa época em que s6 ‘os homens votavam nas eleicées), ter acesso a educagao (ter © mesmo tempo de escolaridade dos meninos) e poder ter posses e bens (quando ‘s6 homens podiam ser proprietarios de uma casa, por exemplo). Den- tro desse movimento era formulada uma pergunta, decorrente da {dela de “direitos iguais", que sera central nas elaboracdes posteriores, -—— ~t do feminismo: “Se a subordinacéo da mulher nao é justa, nem natural, como se chegot a ela, e como ela se mantém?”. Ateoria social certamente oferecia elementos para se pensar nessa pergunta, Nas ciéncias sociais, uma longa tradigéo de pensamento uti- lizava a ideia de diferenca entre feminino e masculino como principio universal de diferenciacao e classificacao, De acordo com essas ideias, (08 astros, os animais, as coisas, lagos, pedras e montanhas, objetos ¢ também os seres humanos, tudo seria classificado segundo essa distin- $40. Além disso, em todos os grupos, as diferencas entre o que é tido como feminino e masculinoInformam as personalidades consideradas apropriadas para homens e mulheres e as ideias sobre as tarefas que uns e outras devem desempenhar. Essas nodes sobre a diferenca entre masculino e feminino pre- sentes na teoria social contribuiram para que novos autores e auto- ras mostrassem o caréter cultural, flexivel e variivel dessa distin¢ao. Baseando-se em estudos sobre diversas sociedades, eles/as demons- traram que, embora seja comum haver divisdes entre as tarefas de homens e mulheres, essas divisdes nao sao fixas. Em algumas socie- dades indigenas, por exemplo, a atividade de tear é vista como femi- nina; noutras, como masculina. Isso acontece porque néo hé nada naturalmente feminino ou masculino, Grande parte da produgao sobre essa diferenga foi realizada ‘num momento em que se difundia 0 conceito de papel social, a par- tir da década de 1930. A teoria dos papéis sociais busca compreen- der os fatores que influenciam o comportamento humano. A ideia é que 0s individuos ocupam posigées na sociedade, desempenhando Papéis, de filho, de estudante, de avd. Como 0 enredo em uma pera de teatro, as normas e regras sociais determina quais so os apéis possiveis e como devem ser desempenhados. As “atuacdes” dependem do enredo e da atuagao dos outros atores que interpre- tam papéis na pega. B, como as improvisagdes dos atores, as varia- $6es nas atuacées individuais sc las, porque dependem das. possibilidades abertas pelo enredo. Aideia de posicdes ocupadas no desempenho dos papéis faz refe- réncia a categorias de pessoas que so reconhecidas coletivamente. Um dos atributos que podem servir de base para a definigao dessas categorias € a idade. Assim, sao estabelecidas posigdes a partir das quais criancas e adultos so vistos em relacao ao desempenho de seus. apéis. Outro desses atributos pode ser o sexo. Nesse caso, homens e mulheres desempenham papéis culturalmente construfdos: 08 papéis, sexuais. Os termos “papel sexual”, “papel masculino” e “papel femi- nino” se difundiram rapidamente, da década de 1930 em diante. A antropologia foi uma disciplina central nas elaboragdes sobre a dife- renga sexual que trabalharam com a teoria dos papéis sexuais. ‘A antropéloga estadunidense Margaret Mead é uma das mais importantes autoras nessa érea. Bla se tornou muito conhecida por ter documentado as diversas maneiras em que “outras” culturas lidam com a diferenca sexual. Mead problematizou a ideia de que nogées de feminilidade e masculinidade eram fixas, mostrando como variavam de uma cultura para outra. Na década de 1930, Mead fez uma pesquisa comparativa entre trés sociedades tribais da Nova Guiné, publicada no livro Sexo e tempe- ramento em trés sociedades primitivas. Seu objetivo era observar como as atitudes sociais se relacionavam com as diferencas sexuais. (Charge da década de 1890 irnizando uma troca de papéis por conta da emancipasio ferminina. Ba mulher que furna um cigarro~o que era malvisto naépoca, pois ‘mulheres de clase alta no deveriam fumar~eque tem uma postura mais atva, a0 ‘passo que o homem parece tentar se esquivar dela, Apesar das roupas, na charge ela (Palcasoanc € aman Kaka Atn(AbuOee aes) Caer f° e temperamento em trés sociedades primitivas Entre os povos estudados por Mead, que estamos acostumades 2 conside- | 05 montanheses Arapest tores e criadores de po ‘arindiscutivelmente femininas”. Esse ovo seria integrado por individuos implaciveis e agressivos. Homens mulheres se aproximariam de um tipo de personalidade que, na cultura ‘estadunidense, 56 se encontraria em Nesses dois exemplos, Arapesh e a época. ‘Mundugumor, nota-se que hé poucas, Os ferozes cacadores de cabeca Mun- diferengas entre homens e mulheres, dugumor, agricultores © pescadores, que tinham comportamentos parect constituiriam 0 extremo oposto. Nos dos. No terceiro povo, os Tchambul, termos da autora, desprezandoosexo pescadores lacustres e amantes das como base para oestabelecimento de artes, haveria uma invers8o das atitu: diferengas de personalidade, teriam Padronizado 0 comportamento de pessoa menos quer das caracteristicas edulcoradas _nalmente dependente. Com base nos resultados da pesquisa, a autora afirmou que a crenga ~ compartilhada na sociedade estadunidense da época ~ de que haveria ‘um temperamento inato, ligado ao sexo, néo era universal. A sociedade dos Estados Unidos da sua época (e até hoje, no senso comum), pressupu- nha que as mulheres fossem mais déceis e afetivas, como uma decorréncia damateridade, e que os homens fossem mais dominadores e agressivos. Essa diferenca era vista como natural, como se resultasse das diferencas znos corpos masculinos e femininos. Mead, ao contrario, foi pioneira 20 ‘mostrar que esses tragos de cardter sd0 aprendidos desde que uma crianga nnasce, Segundo ela, toda cultura determina, de algum modo, os papeis dos homens e das mulheres, mas nao o faz necessariamente em termos de contraste entre as personalidades atribuidas pelas normas sociais para os. dois sexos, nem em termos de dominacio ou submissio, Como se vé no boxsobre a pesquisa de Margaret Mead, ofato de tra- 60s de temperamento tradicionalmente considerados femininos, como {gat6rios os tragos masculi ‘nao ha base para consi ‘a0 sexo, conclui Mead. Os comportament. naturais, dados s6 pelo sexo, ou seriam igus mundo. Essa conclusio ¢ reforcada pela inversao da pi pectiva, as pessoas “desviantes” teriam passado por algum erro no pro- cesto de socalizasio, Entre nés, desde que um bebé nasce ele ¢ tratado de determinadas maneiras. Aos para brincar, is meninas, bo supostos biolégicos sobre os comportamentos de homens e mulheres, ao afirmar que as atitudes de uns e outras sio diferentes porque respon- dem a diferentes expectativas sociais, Entretanto, nessa abordagem, as relagées entre 0s sexos eram analisadas sem prestar aten¢io as desigual- dades, as relagdes diferenciadas de poder entre homens e mulheres. Essa produgo nao demonstrava interesse em destacar nem compreender 0s fatores que contribuem para situar as mulheres em posig6es inferiores. Ocerne da dominagao masculina Nas décadas de 1950 e 1960, os grupos feministas continuavam lutando pela igualdade de direitos. Mas em 1949 havia sido publicado um livro inteiramente inovador, O segundo sexo, que contestava.o efeito dessas Iutas para eliminar a dominagio masculina. O livr foi escrito por Simone Ss oe an ‘Sociedade em foco de Beauvoir, filésofa e escritora francesa, convencida de que para elimi- nar essa dominagdo era necessério muito mais do que reformas nas leis, garantindo, por exemplo, o direito das mulheres ao voto. Ela considerava que o verdadeiramente importante era enfrentar os aspectos sociais que situavam a mulher em um lugar inferior. A autora afirmava que retirar as ‘mulheres desse lugar 56 seria possivel ao se combater 0 conjunto de ele- ‘mentos que impediam que elas fossem realmente aut6nomas: a educado que preparava as meninas para agradar aos homens, para o casamento e a matemidade; 0 caréter opressivo do casamento para as mulheres, uma vez ue, em vez de ser realizado por verdadeiro amor, era uma obriga¢éo para se obter protecio e um lugar na sociedade;o fato de a maternidade nao ser livre, no sentido de que nao existia um controle adequado da fertilidade ue permitisse as mulheres escolherem se desejavam ou ndo ser mies; a vigéncia de um duplo padrao de moralidade sexual, sto é, de normas dife- renciadas que permitiam muito maior liberdade sexual aos homes; e, finalmente, afalta de trabalhos e profissées dignas e bem remuneradas que dessem oportunidade as mulheres de ter real independéncia econémica. De acordo com Sylvie Chaperon, historiadora que analisou a trajetéria da autora, a divergéncia de Simone de Beauvoir com o feminismo da época, (que privilegiava as reformas nas leis, fez.com que essa aitora s6 passasse a se considerar feminista mais tarde, na década de 1960, quando as interro- ‘gagdes sobre o casal e o amor jé tinham se difundido entre as feministas. Osargumentos formulados em segundo sexo baseiam-se em uma leitura critica da histéria, da psica- nélise eda literatura, Paralelamente, a autora considera as experiéncias femininas da época analisando de maneira incisiva a maternidade e a conformagao das identidades sexu- ais, dedicando capitulos a iniciacio sexual feminina, ao drama da vida da mulher casada, a lésbica, & pros- tituta, Esses foram os aspectos que rovocaram as reacées contrévias mais fortes na época de publicagéo do livro, tanto por parte de setores ‘atélicos quanto por correntes de pensamento de esquerda. Patriarcado ‘patrlarcado” é um sistema social na estrutura familiar € no poder no qual a diferenca sexual serve _paterno. Em termos mais amplos, comobasedaopressioedasubor- 0 poder patriarcal diz respeito & dinaggo da mulher pelohomem.0 capacidade masculina de contro. poder patriarcal pode ser enten- lar o corpo da mulher, para fins dido em funcio do Ambito far reprodutivos ou sexuais. Neste como poder do paisobre a esposa sentido, o patriarcado situa e com fe sobre os filhos. Originalmente o fina a mulher no mundo privado e termo se refere aos patriarcas do doméstico, espago dos ‘afetos’, de Velho Testamento, como Abrahio, forma que, na ideologia pa que era um ancio com poder os espacos privado e publico pare- absoluto sobre mulheres, crian- cem estar separados e em opost @@s, rebanhos e subordinados. ¢So.Adensincia do patriarcado edo © termo foi usado também pelo poder patriarcal serviucomoinstru. cientista social alemo Friedrich mento politico fundamental naluta Engels (1820-1895) € posterior- feminista apartir dos anos 1960 em mente por te6ricas do fe diferentes regioes do mundo. No para outros contextos to, 0 termo foi criticado por ({ais como sociedades feudais e serusadodemodo muito genérico, capitalistas) em que haveria uma _comose defirisse qualquer tipo de hierarquia muito forte baseada dominagio masculina. ‘Simone de Beauvoir nao utiliza o termo “papéis sexuais”, Entre- tanto, incorpora ideias presentes nessa noo, ao considerar que a posigio da mulher é uma construgdo social. Contudo, diferentemente da leitura realizada por Margaret Mead, a sua é feita com base na preocupagio com a dominagao masculina. Para Beauvoir, essa domi- nagdo nao se explicaria por aspectos inerentes ao corpo feminino, nem a natureza. A resposta estaria na compreensio do que a historia ea cultura fizeram, nos termos da autora, da “fémea humana”. Esse ‘pensamento deu lugar a uma das frases mais citadas pelas feministas em diferentes momentos: "Ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biol6gico, psiquico, econdmico define a forma que a fémea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da civiliza- fo que elabora esse produt 14 Simone de Beawor, O segundo sexo Ride Jeno: Nova Front, 39803949] vl 3p. - diferengas, igualdade Mulher e patriarcado O segundo sexo & considerado precursor do feminismo da “segunda onda’, protagonizado por grupos organizados de mulheres, em diver- sas partes do mundo, a partir da década de 1960. Varias das ideias pre- sentes nesse livro serio retomadas por vertentes que, embora diversas, compartilham algumas concepgbes centrais. Em termos politicos, consi- deram que as mulheres ocupam lugares sociais subordinados em rela¢io ‘aos homens. A subordinacao feminina é pensada como algo que varia de acordo com a época historica e o lugar. No entanto, ela é pensada como universal, na medida em que parece ocorrer em todas as partes em todos 0s periodos histéricos conhecidos. Nesse sentido, se apro- ximam das formulagdes de Margaret Mead no que se refere a variagao dos papéis desempenhados pelas mulheres, mas se distanciam dessa autora ao considerar que elas sempre e em todo lugar so atingidas por uma subordinacao que, embora adquirindo matizes diferenciados, as coloca em situagdes de desigualdade Bssas abordagens questionam 0 suposto cardter natural dessa subordinacio, sustentando, ao contrério, que ela é decorrente das maneiras como a mulher é construfda socialmente. Isto ¢ fundamen- tal, pois a ideia subjacente é a de que 0 que construido — ao nao ser natural, inato, fixo - pode ser modificado. Portanto, alterando-se as maneiras como as mulheres sdo percebidas, seria possivel mudar 0 espago social por elas ocupado. Por esse motivo, o pensamento femi- nista da segunda onda colocou reivindicades voltadas para a igualdade no exercicio dos direitos, questionando, ao mesmo tempo, as raizes culturais dessas desigualdades. As feministas trabalharam em varias frentes: criaram um sujeito politico coletivo, as mulheres, e tentaram viabillwar estratégias para acabar com a sua subordinacao. Ao mesmo tempo, procuraram ferramentas tedricas para explicar as causas ori- ginais dessa subordinagao e trabalharam, recorrentemente, com uma série de categorias e conceitos fundamentais, sobretudo os de mulher, opressio e patriarcado. A categoria “mulher” foi desenvolvida pelo feminismo da segunda onda em leituras segundo as quais a opressao das mulheres esté além de questdes de classe e raga, atingindo todas as mulheres, inclusive as mulheres das classes altas e brancas. Essa ideia foi tt em termos politicos, para desenvolver o préprio conceito de femi- nismo, diferenciando-o, no contexto especifico das discussdes que tinham lugar nos Estados Unidos e na Inglaterra, do “pensamento de esquerda”. O reconhecimento politico das mulheres como coleti- vidade ancora-se na ideia de que ine as mulheres ultrapassa em muito as diferengas entre elas. Isso criava uma “identidade" entre elas. A base para essa identidade inclui tracos biolégicos e, também, aspectos sociais, efeitos da dominacao masculina. A opres- sio patriarcal estabeleceria uma conexio entre todas as mulheres, através do tempo e das culturas. As feministas afirmaram que todas as mulheres sofriam opressio. Essa afirmagao era justificada ao se definir de maneira particular a opressio. Segundo elas, era neces- sério prestar atengao as experiéncias femininas: a opressio inclui- ria tudo o que as mulheres “experienciassem” como opressivo. Ao definir o politico de tal maneira que acomodasse essa concepgao de opressio, toda atividade que perpetuasse a dominagao masculina assow a ser considerada como politica. Nesse sentido, a politica assava a envolver qualquer relacao de poder, independentemente de estar ou nao relacionada com a esfera publica. Considerando queas mulheres eram oprimidas enquanto mulhe- ves e que suas experiéncias eram prova de sua opressio, chegou-se & conclusao de que a opressao feminina devia ser mapeada no espaco em que as mulheres a viviam, isto 6, nas suas vidas cotidianas, no lar, nas relag6es amorosas, no ambito da familia. A famosa propo- sigdo “o pessoal € polftico” foi implementada para mapear um sis- tema de dominacao atuante no nivel da relacio mais intima de cada homem com cada mulher. Esses relacionaments dos, sobretudo, politicos, na medida em que “politico” é essencial- mente definido como o que envolve uma relagao de poder. Essa redefinicao do politico tem uma importancia enorme. Em termos de pratica politica, as feministas procuraram desvendar a multiplicidade de relacées de poder presentes em todos os aspectos da vida social, nas esferas piblica e privada. Em termos tedricos, elas trabalharam com uma ideia global e unitéria de poder, o patriarcado, ‘numa perspectiva na qual cada relacionamento homem/mulher deve- ria ser visto como uma relagdo politica. As instituigées patriarcais seriam aquelas desenvolvidas no contexto da dominagao masculina. Como a dominac4o masculina estaria presente através do tempo ¢ das culturas, poucas instituigdes poderiam escapar ao patriarcado. ‘Tomando como ponto de partida a ideia de que os homens univer- salmente oprimem as mulheres, 0 pensamento feminista procurou explicar a forma adquirida pelo patriarcado em casos especificos. pressuposto dessa perspec- tiva de anélise € que as mulheres ‘compartilham uma realidade dife- rente da dos homens. Argumentou- sequeadominagéo masculina exclu- fra as mulheres da historia, da poli- tica e da reflexio tedrica. As pensa- doras feministas passaram a revisar as produgées disciplinares, pergun- tando-se como seriam diferentes se a historia, a antropologia, a ciéncia politica, tivessem considerado rele- vante levar em conta o “ponto de vista feminino”, As formas tradicio- nais de explicagio das diversas disci- plinas foram examinadas a fim de se acharem conceitos apropriados para_| Cartas decampanha pelos dar conta da opressao femininae da | direitos das mulheres, em ocasido realidade das mulheres, do cinquentntro da Dclragta A. efervescéncia_provocada | Universal do Direitos Humanos. pelos interesses feministas dew | camcarmdecererohacosrsOrens lugar a crescente acumulagio de | “™"*! um corpo de dados sobre “a situa- ao da mulher”, Mas a acumulacdo de informagio sobre a diversidade de experiéncias femininas e a sofisticagao crescente das perspectivas académicas orientadas pelo feminismo conduziram, também, para o caminho oposto, isto 6, a contestacio de varios dos conceitos e categorias que o pensamento feminista estava utilizando, E um dos primeiros alvos desses questio- namentos foi a utilizagao do patriarcado como categoria de andlise. O conceito de patriarcado, util do ponto de vista da mobilizagao politica, colocou sérios problemas no que se referia as particularidades da condicio feminina em diferentes lugares e épocas. O pensamento feminista procurouno patriarcado a idéia de uma origem, de um tempo anterior, quando teria comegado a hist6ria da opressao das mulheres. B se o patriarcado teve um inicio, poderia ter um fim. conceito de patriarcado foi estendendo-se no discurso politico € na reflexdo académica, sem que fossem trabalhados aspectos centrais de seus componentes, sua dinamica e seu desenvolvimento hist6rico, Com © decorrer do tempo, patriarcado passou a ser um conceito quase vazio de contetido, nomeando algo vago que se tornou sindnimo de domina- ao masculina, um sistema opressivo tratado, as vezes, como se tivesse uma natureza imutivel. Assim, 0 | conceito trouxe problemas delicados | smtermormetndclgios Hoje, esse conceito ¢ alvo de criticas, principalmente porque trata de maneira tnica, universal, formas de poder que se alteram em diferentes periodos histéricos ¢ lugares. Mas é importante compre- ender que o patriarcado, assim como outras explicagdes da origem e das causas da subordinagao feminina, tinha o objetivo de demonstrar que a subordinagao da mulher nao é natural e que, portanto, é possivel combaté-la, Pouco a pouco, as hipéteses explicativas sobre as origens da opressao feminina foram sendo questionadas, ao mesmo tempo que se buscavam ferramentas conceituais mais apropriadas para que essa opressio perdesse o carater de algo natural e imutavel. E nesse quadro de efervescéncia intelectual que se desenvolve o conceito de género. Leituras recentes da diferenca sexual Oconceito de género foi elaborado no ambito da segunda onda do feminismo, por pesquisadoras que procuravam uma ferramenta alter- nativa aos conceitos e categorias considerados problematicos (como 0 patriarcado). Com esse objetivo, revisitaram a teoria social. A maneira dos trabalhos antropologicos com papéis sexuais, procuraram desen- volver andlises que, longe de pensar na realidade das mulheres como algo recortado e separado, as situasse em relagio com a totalidade da cultura e da sociedade. A maneira do paradigma de identidade de género, essas aproximacées se valeram de uma distingao entre sexo, alocado na natureza e pensado como elemento fixo, e género, alocado na cultura e, portanto, variavel. Entretanto, as elaboragdes feministas diferengas, igualdade ssociedade em foco do conceito de género se distanciam dessas leituras pela énfase que colocaram no cardter politico das relagdes entre 0s sexos e por obser- var que os sistemas de significado que produzem nogdes de diferenca entre homens e mulheres oprimem no apenas a essas iltimas, mas ‘também as pessoas que nao se inseriam em arvanjos heterossexais, O sistema sexo/género © conceito de género se difundiu com forca inusitada a partir da for- ‘mulagio da antropéloga estadunidense Gayle Rubin. Seu ensaio “O tré- fico de mulheres: Notas sobite a economia politica do sexo’, publicado em 1975, escrito quando a autora era uma aluna de pés-graduacio, se tornou ‘uma referéncia obrigatéria na literatura ferninista. Inserindo-se no debate sobre a natureza eas causas da subordi- nagio social da mulher, Rubin elaborou um conceito que denominow sistema sexo/género. Segundo a autora, esse sistema é o conjunto de arranjos através dos quais uma sociedade transforma a sexualidade em produtos da atividade humana. Perguntando-se sobre 1s8es sociais que convertem as “fémeas” em “mulheres domes- ticadas”, a autora localiza essa passagem no transito entre natureza e cultura, no espaco da sexualidade e da procriacio, A discussao acerca desse transito e de como operam tais “arranjos” foi desenvolvida através da leitura critica de diversos autores, particular- ‘mente das formulacdes do antropOlogo francés Lévi-Strauss, que elabo- rou uma importante teoria do parentesco. Lévi-Strauss tinha proposto, em seu trabalho de 1949,2* uma teoria sobre a passagem da natureza & cultura ~ ou seja, tentava entender o que diferia os homens dos animais. Ele notou que na natureza o comportamento dos animais é universal, ou seja, todos os animais de uma determinada espécie, por exemplo, um tipo de macaco, tém os mesmos comportamentos. Na humanidade, os comportamentos variam muito de um grupo para outro, hé formas de organizacao social variadas, linguas diversas, regras especificas. Mas ha ‘uma regra universal, presente em todas as sociedades humanas: o cha- ‘mado tabu do incesto, ou seja, a proibicao de se manter relagbes sexuais, com parentes muito proximos. O que cada sociedade classifica como parente préximo varia, mas ha sempre um grupo de pessoas com quem nao se deve manter relacées. Essa proibigdo instaura a alianga ~ a asso- ciagdo eamizade entre diferentes familias através do casamento damoga 15 Extras lemantares do pareteico, Petrol: Vase, 982, de uma familia com um rapaz de outra.. Apolo doincno gra ae ‘mediante a qual se estabelecem aliangas entre familias e grupos. Embora Lévi-Strauss tenha usado o termo “troca de mulheres”, o que importa no seu conceito é que as familias facam aliancas através dos jovens que se casam. A proibi¢do do incesto estabelece uma miitua dependéncia entre familias, obrigando-as, com o fim de se perpetuarem, & criagio de novas, familias. Para este autor, ha também um aspecto adicional que explica a necessidade de formar familias para a sobrevivéncia econémica dos grupos humanos. Trata-se da divisdo sexual do trabalho, uma divisio de tarefas de acordo com o sexo, que varia entre as culturas mas univer- salmente institui fungées diferenciadas a homens e mulheres. A divi- sio sexual do trabalho faz. com que a menor unidade econdmica viével contenha pelo menos um homem e uma mulher e, assim, estabelece a dependéncia mitua entre os sexos. A finalidade seria garantir a unio entre homens e mulheres. Dialogando com Lévi-Strauss, Rubin afirma que, na formulasao esse autor, a divisdo sexual do trabalho, fundamental para o parentesco, «tia o género, porque, para garantir o casamento, instaura a diferenga, a ‘oposigdo, entre os sexos. Ou seja, 08 Sexos nio so tao diferentes em ter- ‘mos naturais, mas adivisao sexual do trabalho constréianecessidade de tarefas femininas diferentes das masculinas. Com esse fim, essa divisio acentua, no plano da cultura, as diferencas biol6gicas entre os sexos, Para Gayle Rubin, adivisao sexual do trabalho pode ser vista como ‘um tabu contra a uniformidade de homens e mulheres, que divide o sexo em duas categorias excludentes. Todavia, ela também deve ser vista como um tabu contra outros arranjos sexuais que nao aqueles casamento heterossexual. Assim, o tabu do incesto pressuporia um tabu anterior, da homossexualidade. Aautora pensaointercam- __O trfico de mulheres. bio de mulheres de Lévi-Strauss | “Homens e mulheres s30, claro, diferen- ‘comoconceitoquesituaeexplica tes. Mes nem to diferentes como 0 dia e ‘a opressio das mulheres dentro a note, a terrae o céu, yin e yang, vida e dos sistemas sociais. A assi- | morte. De fato, desde 0 ponto de vista da metria de género, a diferenca _natureza, homens e mulheres esto mais entre aquele que troca eo que é_préximos entre si do que com qualquer trocado, origina a repressio da outracoisn-por exemple, montanhas,can- urusou coqueiros. Aideta de que homens ‘emulheresciferem mais entre sido que em ‘feito de um sistema que, repri- mindo a sexualidade da mulher, ‘est4 ancorado na obrigatorie- dade da heterossexualidade. © ponto mais importante da formulacao sobre a diferenga sexual nessa autora é pensar tica, Para Gayle Rubin, género nao é apenas uma identificago com um sexo, mas obriga que 0 desejo sexual seja orientado para 0 outro sexo. E ppercebe a opressio dos homossexuais como produto do mesmo sistema ccujas regras e relacdes oprimem as mulheres. As cxiticas feministas so as mais relevantes para entender os rumos seguidos na discussao. do movimento feminista e, a0 mesmo tempo, a um deslocamento nos principais repertério pelo pensamento femi- nista. O objetivo de criar um olitico fez com que, durante muito tempo, o pensamento fe as mulheres, concedendo pouca atengio as diferencas entre elas. Na década de 1980, porém, essa “identidade” foi intensamente contes- tada, principalmente por feministas negras dos Estados Unidos e do “Terceiro Mundo”. Blas afirmavam que sua posicdo social e politica as tornava diferentes e diferenciava também suas reivindicagdes. Essas feministas consideravam que seus interesses tinham sido apagados pela énfase na “identidade” entre mulheres, favorecendo os interesses das feministas brancas e de classe média. Por exemplo, para mulheres negras e pobres nos Estados Unidos, cujos filhos eram mortos ainda adolescentes pela policia em bairros da periferia, a discussio sobre direitos reprodutivos ndo podia estar centrada exclusivamente no direito a contracep¢do e ao aborto, predominante nas reivindicagdes das feministas brancas. Para essas mulheres negras, em termos de direitos reprodutivos, era importante que os filhos j4 nascidos tives- sem o direito a viver sem serem assassinados. Jd as ferninistas do “Terceiro Mundo” questionaram como a énfase na “identidade” tornava certas praticas das mulheres de paises em desen- volvimento, como o uso do véu, expressées de opressio masculina, igno- rando como as relagdes desiguais entre nagbese regides do mundo podem alterar o significado dessas priticas. O véu, cobrindo a cabega ou 0 corpo inteizo, éutilizado por mulheres de religido mugulmana em diversos paf- ses, Ardbia Saudita, Ira, Paquistio, India e Egito. Mas uso dessa veste ‘nem sempre tem 0 mesmo sentido. Por exemplo, em 1979, os iranianos fizeram uma revolugéo contra seu monarca, o X4, que aos olhos dos diferencas, igualdade sociedade em foco revolucionérios representava a opressio da colonizagao Ocidental. Nesse momento, mulheres de classe média escolheram vestir o véu, como gesto revolucionério que apoiava a liberacao do pais do Ocidente. Nesse marco, o sistema sexo/género de Gayle Rubin foi ques- tionado por ser visto como “branco” ¢ imperialista. Na leitura de feministas negras, a teoria de Rubin explicava apenas a complemen- taridade dos sexos, a heterossexualidade obrigatéria e a opressio das mulheres mediante o intercambio de mulheres no parentesco. Blas observaram, porém, que houve grupos inteiros de homens e mulhe- res, como os escravos afritanos, cuja posigao no parentesco dependia da relacio com os sistemas de parentesco de outro grupo dominante. ‘As mulheres negras, quando escravizadas, nao foram constituidas como mulheres do mesmo modo que as brancas. Blas foram consti- tuidas, simultaneamente, em termos sexuais e raciais, como fémeas, préximas dos animais, sexualizadas e sem dir Gio que as excluia dos sistemas de casamento. Ne mulheres brancas foram constituidas como mulheres, no sentido de esposas potenciais, veiculos para conduzir o nome da fam: ‘Assim, feministas negras e do “Terceiro Mundo" consideraram que no sistema sexo/género o foco singular no género fazia com que essa categoria obscurecesse ou subordinasse todas as outras. Subli- mhando as diferencas entre mulheres, elas exigiram que genero fosse pensado como parte de sistemas de diferencas, de acordo com os quais as distingdes entre feminilidade e masculinidade se entrelagam com distingdes raciais, de nacionalidade, sexualidade, classe social, idade. Esse movimento de novas discussées em torno do conceito de género envolve também outras leituras sobre como funciona © poder. Virias das autoras que participam desse movimento nao concordam em trabalhar com a ideia de dominagao/subordinagao universal das mulheres, dividindo o mundo entre opressores e opri- midas. Elas preferem explorar situacdes particulares de dominayao mediante andlises que consideram 0 modo pelo qual o poder opera através de estruturas de dominagao miiltiplas e fluidas, que se intersectam, posicionando as mulheres em lugares diferentes € em momentos histéricos particulares. E, ao mesmo tempo, prestam atengdo a como as pessoas, individual e coletivamente, se opdem a esas estruturas de dominacdo. Isto permite perceber que 0s sis- temas de domina¢do, nos quais género se articula a classe, raga, nacionalidade, idade, nao tém efeitos idénticos nas mulheres do “Terceiro Mundo”, Ao mesmo tempo, possibilita olhar para as rea- ‘s0es das pessoas posicionadas em lugares inferiores. Por exemplo, pensemos na maneira como sio vistas as brasileiras, particularmente as ovens que nao sao de classes altas, que migram com © objetivo de melhorar de vida, re alguns paises de Europa, como Portugal. Nas percepées atuais que os portugueses tém sobre 0 Bra- sil, essas mulheres so associadas a atributos positivos e negativos. Em ‘termos gerais, essas brasileiras sao consideradas alegres, simpéticas, om vocagao para a domesticidade e maternidade. Mas elas também s30 “racializadas" como morenas, isto é, percebidas como marcadas por essa cor, em um procedimento que as situa em um lugar inferior aos euro- ppeus, que se consideram brancos.* Além disso, elas sio “sexualizadas”, {sto é, vistas como pessoas que tendem a agradar os homens mediante Essa conjungdo entre racializagao e sexualizagao é uma tradu- so cultural do lugar desigual que o Brasil ocupa, considerado ainda ‘um pais “em desenvolvimento’, nas relagdes com Europa, tida como “Primeiro Mundo”, Pensar neste proceso como pura expressao de code migrantes entre eropre ero! de S80 Po" tao Cure eer ara Pte bea ocooe Nose da sua opressio pelos homens, mas que é preciso entendé-las obser- vando as intimeras formas de desigualdade que se relacionam em cada conceituosos, as vezes até a seu favor. Além das mulheres... Finalmente, as novas leituras sobre génevo se esforgam radicalmente para eliminar qualquer naturalizacéo na nogio de diferenga sexual. Nesse sentido, a distingao entre séXo e género é questionada também por outros. motivos. Nessa distinc, o nero era percebido como cultural e portanto variavel e flexivel, Mas 0 sexo, alocado na natureza, era considerado como algo fixo. A partir de finais da década de 1980, as feministas comecam a ghesionaro proces iti -0 a0 longo do qual se passou a pensar que “sexo” e a “natureza” seriam elementos fixos, anteriores a cultira. No uese reere ao sex, a propria naturezacontestaesa fide, Pensemos, por exemplo, nos intersexos. Mas o processo que conduz a pensar que 0 sexo ¢fixo autoriza as intervengées médicas, frequentemente traumaticas e dolorosas, para “corrigir os erros” da natureza. As teflexdes sobre esse proceso hist6rico foram desenvolvidas, com particular intensidade nas décadas de 1990 e 2000, por historia- doras da ciéncia, antropélogas, historiadoras ¢ filésofas feministas. Elas discutiram entre elas, com autores de suas respectivas tradigdes disciplinares e também dialogaram com perspectivas vinculadas & “Nova Politica do Genero", movimento de reivindicacao de direitos ents confundem as nonmas da fetercsumuldade, que requrem essa distingao. A filésofa estadunidense Judith Butler mostra que essas pessoas questionam a coeréncia entre sexo (genitélia masculina ou femi- nina), género (aparéncia da pessoa como masculina ou ferninina) e desejo (supostamente deveria ser sempre um desejo heterossexual). Por exem- plo, uma drag queen pode ser um homem, nascido do sexo masculino, com ‘uma aparéncia feminina e masculina (tem tracos masculinos, masse veste se maquia como uma mulher exagerada) e ter um deseo homossexual. Para a autora, essas dissondncias fazem com que, em um mundo no qual as pessoas sao percebidas como seres humanos adequados quando articu- Tam uma coeréncia “social” entre as modalidades de sexo, género e desejo, ‘essas pessoas sejam colocadas no lugar do abjeto, quase daquilo que nao é hhumano, Ou seja, o pensamento estabelecido considera que uma pessoa {que nasceu com érgios genitais femininos tenha um sexo feminino ("é ‘uma mulher"), um género coerente ‘uma mulher feminina") e um desejo hheterossexual, isto é, tenha interesse sexual exclusivamente por homens. ‘As pessoas que ndo mostram essa coeréncia - uma mulher mascu- lina, um homem ferninino, os intersexos, os homossexuais etc. - pare- cem desordenar o pensamento hegem@nico sobre o género. Ao mesmo | sateen, iguatiade sociedade em foco tempo, aexisténcia dessas pessoas sugere que ao pensar em género nao igir-nos a homens e mulheres, a masculino e feminino. Iuir todas essas categorias de pessoas. Segundo Judith Butler, um par de décadas atrés, a nocao de dit 08 a violencia, a agressdes e assassinatos por conta de le de genero, ~ O relato de uma transexual brasileira, uma pessoa quenasceu com caracteristicas anatémicas masculinas, mas desejava tornar-se uma mulher, narrando o seu processo de transformacio, da um exemplo dessas discriminagdes, ao narrar como foi retirada compulsoriamente de seu trabalho no Exército: me entendia e eu também ficava confusa. Mas, quando entre Exército, aos 18 anos, minha ficha caiu. Bra como se eu fasse prisio- neirado meu corpe. Em 1995, pedi ajuda a uma pscclogae passel por wérios especialistas. Sd em 2002 recebio diagnéstico: transexualismo. Ful forcada & aposentadoria, o que me transtornou bastante.” #* Essas formulagdes parecem distanciar-se irremediavelmente do pensamento feminista que realizou as primeiras formulagées do con- ceito de genero. No entanto, as novas elaboragdes sobre género traba~ Tham com algumas das ideias mais ss presentes na histé- tia desse conceito: a percepsao de Gayle Rubin de que a produgao de identidades de género que aparecem como estaveis e coerentes responde aos interesses da heterossexualidade e da regulacao da sexualidade den- tzo do dominio reprodutivo, Além disso, essas re-elaboragdes mostram queas normas de género nao estabelecem um consenso absoluto na vida social. Na verdade, elas ampliam a ideia de humano, abrindo o espaco da compreensio, da inteligibilidade e da dignidade também para todos/as os/as “diferentes”, em termos de género e sexualidade. Sintetizando a trajet6ria do conceito de género, vemos que um termo, que se difundiu aludindo as diferencas ¢ desigualdades que afetam as mulheres, adquire outros sentidos. Continua referindo-se a diferencas e desigualdades e, portanto, continua tendo um caréter politico. Entretanto, nas suas reformulagdes, 0 conceito de genero requer pensar nao apenas nas distingdes entre homens e mulheres, centre masculino e feminino, mas em como as construgdes de masculini- dade e feminilidade sao criadas na articulagao com outras diferengas, de raga, dasse social, nacionalidade, idade; e como essas nodes se emba- ralham e misturam no corpo de todas as pessoas, inclusive aquelas que, como intersexos, travestis e transexuais, nao se deixam dlassificar de maneira linear como apenas homens ou mulheres. Indicagées para pesquisa Estudos Margaret Mead e Simone de Beauvoir Para conhecer 0 trabalho cléssico sobre papéis sexuais nos anos 1930, leia Sexo e temperamento (Sao Paulo: Perspectiva, 1999), de Margaret Mead. E para saber mais sobre o trabalho revolucionario de Simone de Beauvoir, leia, dessa autora, O segundo sexo (Rio de Janeiro: Nova Fron- teira, 1980), Além disso hé entrevista que ela deu a Sylvie Chaperon, traduzida por Omar L, de Barros Filho, disponivel em . Acesso em 08/08/2009. E sobre 0 livro da filésofa francesa ha o artigo de Sylvie Chaperon, “Aué sobre 0 Segundo sexo” Cadernos Pagu, n° 12, Campinas: 1999, pp. 37-55. Conceito de genero e dialogos Para entender o conceito de genero, ha um trabalho muito conhe- cido da historiadora Joan Scott: “Género: uma categoria iitil de ané- se histérica” (Educagdo e Realidade, Porto Alegre, vol 16, n° 2, jul-dez 1990, pp. 5-22). B 0 didlogo desse conceito com o de feminismo ¢ nogdo de identidade entre as mulheres, hé o meu ensaio “Re-criando a categoria mulher?” Adriana Pisciteli, in: Algranti, Leila (org). “A pritica feminista e o conceito de género”, Textos Didaticos. Campinas: 1FcH/Unicamp, vol 48, pp. 7-42; disponivel em . Acesso em 08/08/2008). Sobre o conceito de género e seus desdobramentos De Donna Haraway, “Género para um dicionario marxista, a poli- tica sexual de uma palavia" Cadernos Pagu, n° 22, Campinas: jan-jun 2004; disponivel em . Acesso em 08/08/2009. Sobre o trabalho de pesquisadoras brasileiras de diversas areas disciplinares O livro Uma questio de género (Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos/ Fundagdo Carlos Chagas, 1992), de Albertina de Oliveira Costa e Cris- tina Bruschini. Para entender a situagao dos intersexos e transexuais, 1H 0 ensaio de Mariza Corréa "Fantasias corporais” (In: Piscitelli, ‘Adriana; Gregori, Maria Filomena; Carrara, Sergio (orgs.) Sexualidades e saberes, convengdese fronteiras. Rio de Janeiro: Garamond, 2004, pp. 173- 1189), 0 texto de Paula Sandrine Machado, “O sexo dos anjos: um olhar sobre a anatomia e a producto do sexo (como se fosse) natural” (Cadernos Pagu [online]. Campinas: 2005, n° 24, pp. 249-281. Disponivel em: ) e a tese de doutoramento de Flavia do Bonsucesso Teixeira, Vidas que desafiam corpos e sonkos: uma etno- ‘grafia do construir-se outro no género e na sexuatidade (Campinas: Facul- dade de Ciencias Sociais-IFCH, Unicamp, 2009). Romances e ensaios Um teto todo seu, de Virginia Woolf (trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005) ~ Ensaio que reflete sobre a condigo de vida e de trabalho de uma mulher de classe média alta inglesa. Orlando, de Virginia Woolf (trad. Cecilia Meireles. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003.) - Questiona os espacos sociais masculinos e femininos através da histéria de um principe que um dia acorda num. corpo feminino, metamorfoseado numa mulher, Ciranda de pedra, de Lygia Fagundes Telles ~ historia de uma famflia que se separa, ¢ as vidas de trés irmas. Explora também a situacdo de jovens em condicdes econémicas distintas, durante os anos 1950. Grande sertdo: veredas, de Guimaraes Rosa (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005.) -O protagonista Riobaldo atormenta-se com oambi- ‘guo afeto (falsamente) homossexual que sente por seu companheiro jagungo Diadorim, que se revelard uma mulher travestida, Filmes ‘Minha vida em cor-de-rosa ~ Direga0 de Alain Berliner, Franga/ Belgica/ Reino Unido, 1997. Historia bem humorada e delicada de um ‘menino acha que é menina, explorando as reages da familia e vizi- hos e seus comportamentos e atitudes. ‘Transamerica - Direcao de Duncan Tucker, BUA, 2005. Historia de ‘uma transexual (nascida do sexo masculino, mas que se sente mulher) que descobre que tem um filho jovem e que este o procura. da cabeleireira Dalva, que mora na Zona Leste em Sao Paulo, ¢ a rela- ‘0 violenta com o namorado Vitor.

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