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UMBERTO ECO
existncia de certas proposies que no podem ser postas em dvida, com o que ele
oferece um modelo de verdade, ainda que imaginrio.
Migrao
que alm da crista do Mont Saint-Jean havia um precipcio (o que seu guia omitira), os
couraceiros de Milhaud no teriam sucumbido aos ps do exrcito ingls; que, se o
pastorzinho que guiava Blow tivesse sugerido outro percurso, a esquadra prussiana
no teria chegado a tempo de decidir a sorte da batalha.
Numa estrutura hipertextual, poderamos reescrever a batalha de Waterloo
fazendo com que os franceses de Grouchy chegassem antes dos alemes de Blcher,
e j existem divertidos jogos de guerra que nos permitem fazer isso. Mas a trgica
grandeza daquelas pginas de Hugo reside no fato de ( margem do nosso desejo) as
coisas acontecerem como acontecem. A beleza de "Guerra e Paz" est em que a
agonia do prncipe Andrea termine com a morte, por mais que essa morte nos
desagrade.
A dolorosa maravilha que cada releitura de um grande clssico nos proporciona
se deve a que seus heris, que poderiam fugir de um fim atroz, por debilidade ou por
cegueira, no entendem contra o que se debatem e se precipitam no abismo que
cavaram com os prprios ps. Por outro lado, Hugo disse, depois de mostrar as
oportunidades que Napoleo poderia ter aproveitado: "Era possvel que Napoleo
ganhasse essa batalha? A resposta no. Por qu? Por causa de Wellington? Por
causa de Blcher? No. Por causa de Deus".
isso o que dizem todas as grandes histrias, sendo possvel, em todo caso,
substituir Deus pelo destino ou pelas leis inexorveis da vida. A funo das narrativas
imodificveis justamente essa: contrariando nosso desejo de mudar o destino, nos
fazem experimentar a impossibilidade de mud-lo. E assim, que seja a histria que
elas contem, contaro tambm a nossa, e por isso que as lemos e as amamos.
Necessitamos de sua severa lio "repressiva". A narrativa hipertextual pode educar
para o exerccio da criatividade e da liberdade. Isso bom, mas no tudo. As
histrias "j feitas" nos ensinam tambm a morrer. Creio que essa educao para o
fado e para a morte uma das principais funes da literatura. Talvez existam outras,
mas agora me escapam.
Umberto Eco escritor e semilogo italiano, autor de, entre outros, "A Ilha do
Dia Anterior" e "O Pndulo de Foucault", ambos da Record. O texto acima uma
verso de um discurso do autor sobre as funes da literatura.