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Friedrich Nietzsche SEGUNDA CONSIDERAGAO INTEMPESTIVA > Dautilidadé e desyantagem da historia para a vida conexées Contes ¢ uma colegio dirigida por Maria Cristina Franco Ferraz e apresenta 4s seguintes publicaqdes: A DOvA m Vilém Flusser ANTONIN ARTAUD - O artesio do corpo sem érgiios @ Daniel Lins PLATAO = As artimanhas do fingimento @ Maria Cristina Franco Ferraz Nosso sécuvo XXI - Notas sobre arte, técnica e poderes @ Janice Caiafa DIFERENCA E NBGACAO NA POESIA DE FERNANDO PESSOA @ Jose Gil PARA UMA POLITICA BA AMIZADE — Arendt, Derrida, Foucault m Francisco Ortega ENTRE CUIDADO E SABER DE SI — Sobre Foucault ea psicanalise m Joe! Birman ALEGRIA: A FORGA MAIOR @ Clément Rosset GREPOSCULO DOS IDOLOS - Ou como filosofar com o martelo m Friedrich Nietzsche VERTIGENS FOs-MODERNAS ~ Configuragées institucionais contemporiineas @ Luis Carlos Fridman Nigrzsct - Metafisica ¢ niilismo ® Martin Heidegger MAL Dé arquivo ~ Uma impressio freudiana m Jacques Derrida ‘Tis TEMPOS SOBRE A HISTORIA Da LOUCURA m Jacques Derrida ¢ Miche! Foucault No circuvo etnico - Ou por que negar a psicandlise aos canalhas = Ricardo David Goldenberg FILOSOFIA DA CAIXA PRETA — Ensaios para uma futura filosofia da fotografia @ Vilém Flusser [NOVE VARIAQOES SOBRE TEMAS NIETZSCHIANOS m@ Maria Cristina Franco Ferraz O HOMEM POS-ORGANICO ~ Corpo, subjetividade e tecnologias digitais = Paula Sibilia Os amisMos DA SUSPEITA - Nietzsche e o perspectivismo m Silvia Pimenta Velloso Rocha A pxreritnel, DO For, - Blanchot, Foucault e Deleuze m Tatiana Salem Levy SeGUNDA CONSIDERAGAO INTEMPESTIVA — Da utilidade e desvantagem da histéria para a vida mw Friedrich Nietzsche Friedrich Nietzsche SEGUNDA CONSIDERACAO INTEMPESTIVA Da utilidade e desvantagem da histéria para a vida TrapucAo Marco Anténio Casanova recuwe gli DUMARA Rio de Jauciro Titulo Original: Unzeitgemasse Betrachtungen - Zweites Stik: Vom Nutzen und Nachtheil der Historie fiir das Leben DTV/De Gruyter (Die Geburt der Tragédie - Kritische Studienausgabe Herausgegeben von Giorgio Colli und Mazzino Montinari) - KSA Volume 4. © Copyright 2003 Direitos da traducao cedidos para Dumard Distripurpora DE Pusuicagoes Ltpa. Travessa Juraci, 37 - Penha Circular 21020-220 — Rio de Janeiro, RJ Tel.: (21) 2564 6869 - Fax: (21) 2590 0135, E-mail: relume@relumedumara.com.br Die Herausgabe diesses Werkes wurde aus Mitteln. des Instituts Inter Nationes geférdert Este trabalho foi publicado com o apoio do Instituto Goethe Inter Nationes Revisdo técnica da tradugéo Emani Chaves Revisi Gustavo Bernardo Editoragao Dilmo Milheiros Capa Simone Villas-Boas CIP-Brasil. Catalogagao-na-fonte. Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ. N581s Nietzsche, Friedrich Wilhelm, 1844-1900 Segunda consideracdo intempestiva : da utilidade e desvan- tagem da histéria para a vida / Friedrich Nietzsche ; tradugio Marco Anténio Casanova. - Rio de Janeiro: Relume Dumaré, 2003 — (Conexées; 20) Tradugao de: Unzeitgemasse Betrachtungen — Zweites Stik : Vom Nutzen und Nachtheil der Historie fiir das Leben ISBN 85-7316-329-1 1. Filosofia alema. 2. Histéria — Estudo e ensino. I. Titulo. II. Série. 03-1554. CDD 193 CDU 1(43) Todos os direitos reservados. A reprodugao nio-autorizada desta publicagao, por qualquer meio, seja ela total ou parcial, constitui violagdo da Lei n” 5.988, conexXées “De resto, me é odioso tudo o que simplesmente me ins- trui, sem aumentar ou imediatamente vivificar a minha ati- vidade.”! Estas sao palavras de Goethe, com as quais, sem- pre com um expressamente corajoso ceterum censeo, pode- mos comegar nossas consideragdes sobre o valor e a falta de valor da histéria.? Nestas consideragdes, deve ser em ver- dade apresentado, porque instrugdo sem vivificagao, 0 sa- ber no qual a atividade adormece; a histéria tomada como um precioso supérfluo e luxo do conhecimento deveriam ser, segundo as palavras de Goethe, verdadeiramente odio- sos para nds ~ na medida em que ainda nos falta o mais necessdrio e porque o supérfluo é o inimigo do necessério. Certamente precisamos da histéria, mas nado como o passeante mimado no jardim do saber, por mais que este olhe certamente com desprezo para as nossas caréncias e penuirias rudes e sem graca. Isto significa: precisamos dela para a vida e para a acao, nao para o abandono confortavel da vida ou da agdo ou mesmo para o embelezamento da vida egoista e da ado covarde e ruim. Somente na medida em que a histéria serve a vida queremos servi-la. Mas ha um grau que impulsiona a histéria e a avalia, onde a vida definha e se degrada: um fenémeno que, por mais doloroso que seja, se descobre justamente agora, em meio aos sinto- mas mais peculiares de nosso tempo. 6 FrtepricH NietzsCHE Esforcei-me em descrever um sentimento que me tem, com freqiiéncia, atormentado suficientemente; vingar-me- ei dele, abandonando-o a esfera publica. Talvez alguém, por meio de uma tal descrigao, seja provocado a declarar-me que de fato também conhece este sentimento, mas que eu nao o senti de maneira suficientemente pura e origindria, que nao o expressei de modo algum com a devida seguran- ca e maturidade da experiéncia. Talvez seja assim com um ou com outro; no entanto, a maioria me dird que este seria um sentimento completamente perverso, nada natural, de- testavel e simplesmente inadmissivel, que com ele me mos- trei indigno de um direcionamento tao poderoso do tempo histérico, tal como este, sabemos, deve ser percebido ha duas geracGes e sobretudo entre os alemaes. Em todo caso, po- rém, o fato de me aventurar na descri¢ao da natureza de meu sentimento deve antes favorecer do que ferir 0 bom decoro geral, uma vez que darei a muitos a oportunidade de render homenagens a um direcionamento tal como o acima mencionado. Para mim, contudo, é bem provavel que conquiste algo ainda mais valioso do que o bom decoro ge- ral — ser publicamente instruido e alcangar uma posi¢ao correta sobre a nossa época. Esta consideragdo também € intempestiva porque tento compreender aqui, pela primeira vez, algo de que a época est4 com razio orgulhosa — sua formagao histérica como prejuizo, rompimento e deficiéncia da época — porque até mesmo acredito que padecemos todos de uma ardente fe- bre histérica e ao menos deviamos reconhecer que padece- mos dela. Todavia, se Goethe disse com toda razao que com nossas Virtudes também cultivamos, ao mesmo tempo, nos- sos erros,? e se, como todo mundo sabe, uma virtude hipertrofiada - tal como me parece ser o sentido histdrico de nosso tempo ~ pode se tornar tao boa para a degradagao de um povo quanto um vicio hipertrofiado, entéo deixem- SEGUNDA CONSIDERAGAO INTEMPESTIVA 7 me fazer isso pelo menos uma vez. Também nao deve ser silenciado, para me aliviar, que as experiéncias que me in- citaram aqueles sentimentos torturantes foram extraidas, na maioria das vezes, de mim mesmo e de outros, o foram ape- Nas por comparacao; e que eu, apenas eu, enquanto pupilo de tempos mais antigos, especialmente dos gregos, cheguei, além de mim, como um filho da época atual, a experiéncias tao intempestivas. De qualquer modo, nao ha mais nada que precise conceder a mim mesmo em virtude de minha profissdo como fildlogo classico: pois nao saberia que senti- do teria a filologia classica em nossa época senao o de atuar nela de maneira intempestiva — ou seja, contra o tempo, e com isso, no tempo e, esperemos, em favor de um tempo vindouro. 1 Considera o rebanho que passa ao teu lado pastando: ele nado sabe o que é ontem e o que é hoje; ele saltita de la para cd, come, descansa, digere, saltita de novo; e assim de manha até a noite, dia apds dia; ligado de maneira fugaz com seu prazer e desprazer a prdpria estaca do instante, e, por isto, nem melancdlico nem enfadado. Ver isto desgosta duramente o homem porque ele se vangloria de sua huma- nidade frente ao animal, embora olhe invejoso para a sua felicidade - pois o homem quer apenas isso, viver como o animal, sem melancolia, sem dor; ¢ o quer entretanto em vao, porque ndo quer como o animal. O homem pergunta mesmo um dia ao animal: por que nao me falas sobre tua felicidade e apenas me observas? O animal quer também responder e falar, isso se deve ao fato de que sempre esque- ce o que queria dizer, mas também jd esqueceu esta respos- ta e silencia: de tal modo que o homem se admira disso. Todavia, o homem também se admira de si mesmo por 8 FrrepricH NietzscHE nao poder aprender a esquecer e por sempre se ver nova- mente preso ao que passou: por mais longe e rapido que ele corra, a corrente corre junto. E um milagre: o instante em um timo esté ai, em um atimo jd passou, antes um nada, depois um nada, retorna entretanto ainda como um fantas- ma e perturba a tranqiiilidade de um instante posterior. Incessantemente uma folha se destaca da roldana do tem- po, cai e é carregada pelo vento - e, de repente, é trazida de volta para o colo do homem. Entao, o homem diz: “eu me lembro”, e inveja o animal que imediatamente esquece e vé todo instante realmente morrer imerso em névoa e noite € extinguir-se para sempre. Assim, o animal vive a-historica- mente; ele passa pelo presente como um numero, sem que reste uma estranha quebra. Ele nao sabe se disfarcar, ndo esconde nada e aparece a todo momento plenamente como © que é, ou seja, nao pode ser outra coisa sendo sincero. O homem, ao contrario, contrapde-se ao grande e cada vez maior peso do que passou: este peso o oprime ou 0 inclina para o seu lado, incomodando os seus passos como um far- do invisivel e obscuro que ele pode por vezes aparentemente negar € que, no convivio com seus iguais, nega com prazer: para lhes despertar inveja. Por isso 0 aflige, como se pen- sasse em um paraiso perdido, ver o gado pastando, ou, em uma proximidade mais familiar, a crianca que ainda nao tem nada a negar de passado e brinca entre os gradis do passado e do futuro em uma bem-aventurada cegueira. E, no entanto, é preciso que sua brincadeira seja perturbada: cedo demais a crianga é arrancada ao esquecimento. Entao ela aprende a entender a expressdo “foi”, a senha através da qual a luta, o sofrimento e o enfado se aproximam do homem para lembrd-lo 0 que é no fundo a sua existéncia - um imperfectumt que nunca pode ser acabado. Se a morte traz por fim o ansiado esquecer, entao ela extingue ao mes- mo tempo 0 presente e a existéncia, imprimindo, com isto, ‘SEGUNDA CONSIDERACAO INTEMPESTIVA 9 a selo sobre aquele conhecimento de que a existéncia é ape- nas um ininterrupto ter sido, uma coisa que vive de se ne- gar e de se consumir, de se autocontradizer,” Se uma felicidade, um anseio por uma nova felicidade é, em certo sentido, o que mantém o vivente preso a vida e continua impelindo-o para ela, entdo talvez nenhum filéso- fo tenha mais razdo do que o cinico: pois a felicidade do animal, como a do cinico perfeito, é a prova viva da razio do cinismo. A minima felicidade, contanto que seja ininter- rupta e faga feliz, é incomparavelmente maior do que a maior felicidade que sé venha episodicamente, como capricho, como um incidente desvairado, entre puro desprazer, de- sejo e privagdo/No entanto, em meio 4 menor como em meio a maior felicidade é sempre uma coisa que torna a felicida- de o que ela é: 0 poder-esquecer ou, dito de maneira-mais erudita, a faculdade de sentir a-historicamente durante a sua duragao. Quem pode se instalar no limiar do instante, esquecendo todo passado, quem nao consegue firmar pé em um ponto como uma divindade da vitéria sem verti- gem e sem medo, nunca saberd o que ¢ felicidade, e ainda pior: nunca fard algo que torne os outros felizes. Pensem no exemple mais extreme, um homem que nao possuisse de modo algum a forga de esquecer ¢ que estivesse condenado a ver por toda parte um vir-a-ser: tal homem néo acredita mais em seu proprio ser, nao acredita mais em si, vé tudo desmanchar-se em pontos méveis e se perde nesta torrente do vir-a-ser: como o leal discipulo de Herdclito, quase nao se atreverd mais a levantar o dedo.* A todo agir liga-se um esquecer: assim como a vida de tudo o que é organico diz respeito nao apenas a luz, mas também 4 obscuridade. Um homem que quisesse sempre sentir apenas historicamente seria semelhante ao que se obrigasse a abster-se de dormir ou ao animal que tivesse de viver apenas de ruminagéo e de ruminagio sempre repetida. Portanto: € possivel viver 10 FruepricH NietzscHE quase sem lembranga, sim, e viver feliz assim, como o mos- tra o animal; mas é absolutamente impossivel viver, em geral, sem esquecimento. Ou, para explicar-me ainda mais facilmente sobre meu tema: hd um grau de ins6nia, de rumina- ¢ao, de sentido histdrico, no qual o vivente se degrada e por fim sucumbe, seja ele um homem, um povo out uma cultura. Para determinar este grau e, através dele, entao, 0 limi- te, no interior do qual o que passou precisa ser esquecido, caso ele nao deva se tornar o coveiro do presente, seria pre- ciso saber exatamente qual é 0 tamanho da forga pldstica de um homem, de um povo, de uma cultura; penso esta forga crescendo singularmente a partir de si mesma, transforman- do e incorporando o que é estranho e passado, curando fe- ridas, restabelecendo o perdido, reconstituindo por si mes- ma as formas partidas. Ha homens que possuem tao pouco esta forca que, em uma tinica vivéncia, em uma unica dor, freqiientemente mesmo em uma tinica e sutil injustiga, se esvaem incuravelmente em sangue como que através de um pequenino corte; por outro lado, hd homens nos quais os mais terriveis e horripilantes acontecimentos da vida e mes- mo os atos de sua propria maldade afetam tao pouco que os levam em meio deles ou logo em seguida a um suporta- vel bem-estar e a uma espécie de consciéncia tranqiiila. Quanto mais a natureza mais intima de um homem tem raizes fortes, tanto mais ele estara em condigdes de domi- nar e de se apropriar também do passado; e se se pensasse a natureza mais poderosa e mais descomunal, ela se faria reconhecer no fato de que nao haveria para ela absoluta- mente nenhum limite do sentido histérico que possibilitas- se a sua acdo de maneira sufocante e nociva; aquele homem traria todo o passado para junto de si, 0 seu proprio passa- do e o que dele estivesse mais distante, incorporaria a si e como que o transformaria em sangue. O que uma tal natu- teza no subjuga, ela sabe esquecer; esse homem ndo existe SEGUNDA CONSIDERACAO INTEMPESTIVA 11 mais, 0 horizonte esta fechado e completo, e nada consegue fazer lembrar que para além deste horizonte hd ainda ho- mens, paixées, doutrinas, metas. E isto é uma lei universal; cada vivente sé pode tornar-se saudavel, forte e frutifero no interior de um horizonte; se ele é incapaz de tragar um horizonte em torno de si, e, em contrapartida, se ele pensa demasiado em si mesmo para incluir no interior do préprio olhar um olhar estranho, entao definha e decai lenta ou pre- cipitadamente em seu ocaso oportuno, A serenidade, a boa consciéncia, a acao feliz, a confianga no que esta por vir - tudo isto depende, tanto nos individuos como no povo, de que haja uma linha separando o que € claro, alcangdvel com o olhar, do obscuro e impossivel de ser esclarecido; que se saiba mesmo tao bem esquecer no tempo certo quanto lem- brar no tempo certo; que se pressinta com um poderoso ins- tinto quando é necessdrio sentir de modo histérico, quando de modo a-histérico. Esta é justamente a sentenca que o lei- tor est convidado a considerar: 0 histérico e 0 a-histdrico sio na mesma medida necessdrios para a saide de um individuo, um povo e uma cultura. De inicio, ha aqui uma observagao que cada um pode fazer: a sensagao e o saber histéricos de um homem podem ser muito limitados, seu horizonte tao estreito quanto o de um habitante de um vale nos Alpes; em cada juizo pode residir uma injustiga, em cada experiéncia o erro de supor ter sido o primeiro a vivencid-la - e, apesar de toda injusti- ca e de todo erro, ele se encontra ai com uma satide e um vigor insuperdveis, alegrando qualquer olho; enquanto isso, bem ao seu lado, um homem muito mais justo e erudito adoece e sucumbe justamente porque as linhas de seu hori- zonte se deslocam sempre de novo, inquietas, porque ele nao se desembaraga da rede muito fragil de suas justicas e verdades e novamente se volta em diregado a um forte que- rer e desejar. Em contrapartida, vemos o animal que é total- 12 FriepicH NIeTZsCHE mente a-histdrico e quase mora no interior de um horizonte pontual — no entanto, vive em uma certa felicidade, ao me- nos sem enfado e sem disfarces. Portanto, podemos ter a capacidade de sentir a-historicamente, de perseverarmos em direcdo ao mais importante e origindrio, uma vez que ai reside o fundamento sobre 0 qual pode crescer algo reto, sauddvel e grandioso, algo verdadeiramente humano. O a-histrico é similar a uma atmosfera que nos envolve e na qual a vida se produz sozinha, para desaparecer uma vez mais com a aniquilacao desta atmosfera. E verdade: somente pelo fato de o homem limitar esse elemento a-histérico pen- sando, refletindo, comparando, separando e concluindo; somente pelo fato de surgir no interior dessa névoa que nos circunda um feixe de luz muito claro, relampejante, ou seja, somente pela capacidade de usar 0 que passou em prol da vida e de fazer historia uma vez mais a partir do que acon- teceu, o homem se torna homem. No entanto, em um exces- so de histéria, o homem deixa novamente de ser homem, e, sem aquele invdlucro do a-histérico, nunca teria comecado e jamais teria ousado comegar. Onde encontramos feitos que puderam ser empreendidos pelo homem sem antes imis- cuir-se naquela névoa espessa do a-histérico? Ou, para dei- xar as imagens de lado e passar a ilustragao através de exem- plos: imagine-se um homem mobilizado e impelido por uma paixao violenta por uma mulher ou por um grande pensa- mento - como o seu mundo se transforma para ele! Olhan- do para tras, ele se sente cego; escutando o que se passa ao seu redor, percebe o estranho como um som surdo e des- provido de significagio; o que em geral percebe, ele jamais tinha percebido assim antes; tao sensivelmente préximo, colorido, ressonante, iluminado, como se ele o apreendesse ao mesmo tempo com todos os sentidos. Todas as suas ava- liagSes se transformaram e se desvalorizaram; tantas coisas ele nao esté mais em condigdes de avaliar, porque quase SEGUNDA CONSIDERACAO INTEMPESTIVA 13 nao pode mais senti-las: ele se pergunta se nao fora por tan- to tempo senao o bobo de palavras e opinides alheias; ele se espanta que sua memoria gire incansavelmente em circulos e esteja fraca e cansada para dar quicd um tinico salto para fora deste circulo. Este é 0 estado mais injusto do mundo, estreito, ingrato frente ao que passou, cego para os perigos, surdo em relacao as adverténcias, um pequeno e vivo rede- moinho em um mar morto de noite e esquecimento: e, con- tudo, este estado - a-histérico, contra-histérico de ponta a ponta - é 0 ventre nao apenas de um feito injusto, mas mui- to mais de todo e qualquer feito reto; e nenhum artista al- cangard a sua pintura, nenhum general a sua vitdria, ne- nhum povo a sua liberdade, sem ter antes desejado e alme- jado vivenciar cada uma delas em meio a um tal estado. Como o homem de agao, segundo a expressao de Goethe, é sempre desprovido de consciéncia, ele também é desprovi- do de saber, esquece a maior parte das coisas para fazer uma apenas, é injusto com o que se encontra atrds dele e s6 conhece um direito, o direito daquilo que deve vir a ser agora.° Assim, todo homem de ago ama infinitamente mais 0 seu feito do que este merecia ser amado: e os melhores feitos acontecem em meio a uma tal superabundancia de amor que, mesmo se o seu valor fosse incalculavelmente grande também em outros aspectos, em todo caso eles ain- da deveriam ser indignos deste amor. Se alguém estivesse em condi¢es de inalar e respirar em intimeros casos esta atmosfera a-histdrica na qual surgi- tam todos os grandes acontecimentos histéricos, entao tal- vez lhe fosse possivel, enquanto um ser cognoscente, ele- var-se a um ponto de vista supra-histérico, tal como Niebuhr o descreveu certa vez como um resultado possivel das con- sideragées historicas. “Para uma coisa ao menos”, disse ele, “a histéria, clara e detalhadamente concebida, é util: para que se perceba também o quanto os maiores e mais eleva- 14 Frieprich NIetzscHE dos espiritos de nossa espécie humana nao sabem 0 quao casualmente seus olhos assumiram a forma através da qual eles véem e exigem de cada um com violéncia que veja; vio- lentamente, em verdade, porque a intensidade de sua cons- ciéncia é excepcionalmente grande. Quem nao compreen- deu e percebeu isto de maneira correta em muitos casos é subjugado pela manifestacao de um espirito poderoso que insere em uma forma dada a mais elevada passionalidade.”® Denominariamos como supra-hist6rico um tal ponto de vis- ta, porque alguém que o assume nao poderia mais se sentir de maneira nenhuma seduzido para continuar vivendo e colaborando com o trabalho da histéria, uma vez que reco- nheceria a condi¢ao de todo acontecimento, aquela ceguei- ra e injustica na alma do agente; aquele alguém estaria cu- rado do risco de tomar a partir de entao a histéria exagera- damente a sério, pois aprenderia com cada homem, a cada vivéncia entre gregos ou turcos, em uma hora do século um ou do século dezenove, a responder a pergunta como e para que se viveu. Quem perguntar a seus conhecidos se eles desejariam atravessar uma vez mais os tltimos dez ou vin- te anos de suas vidas perceberd, com facilidade, qual deles estd preparado para aquele ponto de vista supra-histérico: com certeza, todos responderao “ndo!”", mas eles iréo fun- damentar diversamente este “nao!”. Uns talvez por se con- solarem com um “mas os préximos vinte anos serdo melho- tes”; eles sao aqueles de quem David Hume fala de manei- Ta jocosa: And from the dregs of life hope to receive, What the first sprightly running could not give” Nés os denominaremos os homens historicos; 0 olhar para o passado os impele para o futuro, acende a sua cora- gem para manter-se por mais tempo em vida, inflama a es- SEGUNDA CONSIDERAGAO INTEMPESTIVA 15 peranga de que a justica ainda esta por vir, de que a felici- dade estd sentada por detras da montanha para a qual es- tao se dirigindo. Estes homens histéricos acreditam que o sentido da existéncia se iluminard no decorrer de um pro- cesso. Assim, apenas por isto, eles s6 olham para tras a fim de, em meio a consideracao do processo até aqui, compre- ender o presente e aprender a desejar o futuro impetuosa- mente; eles nao sabem o quao a-historicamente eles pen- sam e agem apesar de toda a sua histéria, e como mesmo a sua Ocupacao com a histéria nao se encontra a servico do conhecimento puro, mas sim da vida. Mas aquela pergunta, cuja primeira resposta acabamos de ouvir, também pode ser respondida de uma outra for- ma. Com certeza, uma vez mais com um “nao!”, mas com um nao diversamente fundamentado. Com um nao do ho- mem supra-histérico, que nao vé a cura no processo e para o qual o mundo em cada instante singular est pronto e acabado. © que poderiam dez anos ensinar que os ultimos dez nao tenham jd ensinado? Entao, se o sentido da doutrina é felicidade ou resigna- ¢4o, virtude ou expiagdo, neste caso os homens supra-his- téricos nunca estiveram de acordo uns com os outros; no entanto, diante de todos os tipos de consideracao histérica do passado, eles chegam a plena unanimidade quanto ao principio: o passado e o presente sao um e 0 mesma, isto é, em toda a multiplicidade tipicamente iguais: enquanto oni- presenca de tipos impereciveis, dé-se inerte a composi¢ao de um valor igualmente imperecivel e eternamente igual em sua significagdo. Como as centenas de linguas diversas correspondem as mesmas necessidades tipicas e fixas dos homens de tal modo que quem as compreendesse nao con- seguiria aprender nada de novo em todas as linguas, assim também 0 pensador supra-histérico esclarece para si mes- mo toda a histéria dos povos e dos individuos a partir dela 16 ‘FRiepricH NIezscHE mesma, decifrando como um visiondrio o sentido origind- tio dos diferentes hieréglifos e paulatinamente se afasta cansado até mesmo dos sinais que sempre afluem nova- mente: pois, em meio 4 profusao infinita do que acontece, como nao chegaria a saturacdo e 4 sobressaturacdo, sim, mesmo ao nojo?!? De modo que, por fim, talvez o mais ousado esteja pronto para dizer, com Giacomo Leopardi, ao seu coracao: “Nada vive que digno Fosse de tuas emogdes, e nenhum suspiro merece a terra. Dor e tédio sao nosso ser e sérdido é o mundo — nada além disto. Aquieta-te.” Mas deixemos o homem supra-histérico com 0 seu nojo e a sua sabedoria: hoje queremos muito mais nos alegrar uma vez de todo o coragdo com a nossa ignorancia e nos desejar um bom dia como homens de ago e de progresso, como os adoradores do processo. Gostaria que a nossa ava- liagdo da histéria fosse apenas um preconceito ocidental, contanto que venhamos, no minimo, a progredir no interior deste preconceito e nado fiquemos parados! Contanto que aprendamos cada vez melhor exatamente isto: a impulsio- nar a histéria a servico da vida! Neste caso, confessariamos com prazer aos homens supra-histéricos que eles possuem mais sabedoria do que nds, desde que estejamos certos de possuir mais vida do que eles: pois assim nossa ignorancia terd de qualquer modo mais futuro do que a sua sabedoria. E para que nao subsista absolutamente nenhuma dtivida quanto ao sentido desta contradic4o entre vida e sabedoria, quero utilizar em meu auxilio um antigo procedimento tes- tado e aprovado e apresentar diretamente algumas teses. ‘SEGUNDA CONSIDERACAO INTEMPESTIVA 17 Um fenémeno histérico, conhecido pura e completamen- te e dissolvido em um fenédmeno do conhecimento, esta morto para aquele que o conheceu: pois ele reconheceu nele a ilusao, a injustica, a paixdo cega e em geral todo o hori- zonte profano envolto em obscuridade daquele fenémeno, €, a0 mesmo tempo, justamente ai o seu poder histérico. Para o que detém o saber, este poder tornou-se agora impo- tente - mas talvez ainda nao para o vivente. Pensada como ciéncia pura e tornada soberana, a histé- Tia seria uma espécie de conclusao da vida e de balango fi- nal para a humanidade. A cultura histérica sé ¢ efetivamente algo salutar e frutifero para o futuro em conseqiiéncia de uma nova e poderosa corrente de vida, do vir a ser de uma nova cultura, por exemplo; portanto, sé se ela é dominada e conduzida por uma forca mais elevada e nao quando ela mesma domina e conduz. A histéria, uma vez que se encontra a servigo da vida, se encontra a servigo de um poder a-histérico, e por isto jamais, nesta hierarquia, poderd e deverd se tornar ciéncia pura, mais ou menos como 0 é a matematica. Mas a pergun- ta “até que grau a vida necessita em geral do auxilio da his- toria?” é uma das perguntas e preocupagGes mais elevadas no que concerne 4 satide de um homem, de um povo, de uma cultura. Pois, em meio a um certo excesso de histéria, a vida desmorona e se degenera, e, por fim, através desta degeneracao, 0 mesmo se repete com a prépria histéria. 2. Mas que a vida necessite da histéria precisa ser tao cla- ramente concebido quanto a formulagao que precisar4 ser posteriormente demonstrada - que um excesso de histéria prejudica o vivente. A histdria é pertinente ao vivente em trés aspectos: ela lhe é pertinente conforme ele age e aspira, 18 Frrepricn NietzscHE preserva e venera, sofre e carece de libertagao. A esta tripla ligacao correspondem trés espécies de histéria, uma vez que é permitido diferenciar entre uma espécie monumental, uma espécie antiqudria e uma espécie critica de histéria. A histéria diz respeito antes de tudo ao homem ativo e poderoso, ao homem que luta em uma grande batalha e que precisa de modelos, mestres, consoladores e que nao per- mite que ele se encontre entre seus contempordneos e no seu presente. E desta forma que ela parecia a Schiller: pois, como dizia Goethe, nosso tempo é tao ruim que o poeta nao encontra mais na vida humana a sua volta nenhuma natu- reza utilizdvel.* Para retomar os que agem, Polybio, por exemplo, denomina a histria politica como preparagao cor- reta para o governo de um Estado e a mestra mais primo- rosa’ que, por intermédio da lembranga dos inforttinios alheios, nos exorta a suportar firmemente as oscilagdes da sorte. Quem aprendeu a reconhecer af o sentido da histéria deve ficar aborrecido de ver os viajantes curiosos ou os mi- crologistas desagradaveis tentando escalar as piramides de grandes eras do passado; la onde ele encontra a inspiragao para imitar e fazer melhor, nao deseja se deparar com 0 passeante que, dvido por distragado ou excitagao, vagueia como se estivesse entre os tesouros pictéricos acumulados em uma galeria. Para que o homem de acao nao se desani- me e sinta nojo em meio aos passeantes fracos e sem espe- tanga, em meio aos seus contempordneos que aparentemen- te agem, mas que em verdade permanecem apenas agita- dos e irrequietos, ele olha para trds e interrompe o curso até sua meta, a fim de respirar pelo menos uma vez. Mas sua meta é uma felicidade qualquer, talvez nao a sua propria e sim, freqiientemente, a de um povo ou a da humanidade como um todo; ele foge da resignacao e utiliza a histéria como um meio contra a resignagio. Na maioria das vezes nao hd o aceno de nenhum pagamento a nao ser a fama, ou SEGUNDA CONSIDERAGAO INTEMPESTIVA 19 seja, a candidatura a um lugar de honra no templo da histé- tia onde ele mesmo pode ser uma vez mais mestre, conso- lador e admoestador. Pois o seu lema é: aquilo que uma vez conseguiu expandir e preencher mais belamente o conceito “homem”, também precisa estar sempre presente para pos- sibilitar isso. Que os grandes momentos na luta dos indivi- duos formem uma corrente, que como uma cadeia de mon- tanhas liguem a espécie humana através dos milénios, que, para mim, o fato de o dpice de um momento j4 ha muito passado ainda esteja vivo, claro e grandioso — este é o pensa- mento fundamental da crenga em uma humanidade, pen- samento que se expressa pela exigéncia de uma histdria mo- numental. Mas justamente nesta exigéncia de que o gran- dioso deve ser eterno inflama-se a luta mais terrivel. Pois todo o resto que vive grita “nao”! O monumental nao deve surgir ~ esta é a solucdo contrdria. O habito embrutecido, o pequeno e baixo preenchendo todos os recantos do mundo, fumegando em torno de tudo o que é grandioso como o ar pesado da terra, se lanca como obstaculo, enganando, re- primindo, sufocando o caminho que o grande tem de per- correr até a imortalidade. Este caminho, no entanto, con- duz através de cérebros humanos! Através dos cérebros de animais temerosos e de vida curta que sempre emergem uma vez mais para as mesmas pentirias e sé afastam de si, com esforgo, a degradagao por um curto espago de tempo. Pois eles s6 querem a principio uma coisa: viver a qualquer prego. Quem poderia suspeitar neles esta dificil corrida de tochas caracteristica da histéria monumental, onde apenas o que é grande sobrevive! E, contudo, sempre despertam novamente alguns que se sentem tao felizes considerando a grandeza passada e fortalecidos através de sua contem- plagao. Tudo se lhes dé como se a vida humana fosse uma coisa maravilhosa e como se os frutos mais belos desta planta amarga soubessem que alguém antes caminhou orgulhoso 20 FriepricH NierzscHe e forte por esta existéncia, um outro meditativo, um tercei- ro misericordioso e solicito - mas todos deixando uma dou- trina atrds de si mesmos, a daquele que vive mais belamen- te, que nao respeita a existéncia. Enquanto o homem vulgar assume 0 espago de tempo da existéncia de maneira tao aca- brunhada, séria e dvida, aqueles homens sabiam, em seu caminho para a imortalidade e para a histéria monumen- tal, trazer para a existéncia um riso olimpico ou ao menos um escdrnio sublime; freqiientemente eles entraram com ironia em seus ttimulos - pois o que havia neles a enterrar! Somente o que sempre os oprimira como escéria, residuo, vaidade, animalidade e 0 que agora cai no esquecimento, muito depois de eles o terem abandonado ao seu desprezo. Mas uma coisa ird viver, o monograma de sua esséncia mais intima, uma obra, um feito, uma rara iluminacdo, wma cria- ao: ela viverd porque a posteridade nao pode prescindir dela. Nesta forma mais transfigurada, a fama é algo mais do que a parte mais deliciosa de nosso amor-préprio, tal como Schopenhauer a denominou, ela é crenga no compa- nheirismo e na continuidade do que ha de grandioso em todos os tempos, ela é um protesto contra a mudanga das geragdes e a perecibilidade. Através de que se mostra titil para o homem do presen- te a consideragaéo monumental do passado, a ocupagao com o que ha de classico e de raro nos tempos mais antigos? Ele deduz dai que a grandeza, que ja existiu, foi, em todo caso, possivel uma vez, e, por isto mesmo, com certeza, sera al- gum dia possivel novamente; ele segue, com mais coragem, © seu caminho, pois agora suprimiu-se do seu horizonte a duivida que o acometia em horas de fraqueza, a de que ele estivesse talvez querendo o impossivel. Admitindo-se que alguém acreditasse nio serem necessdrios mais do que uma centena de homens produtivos, educados em um novo es- pirito e atuantes, para dar um fim neste tipo de educagao ‘SEGUNDA CONSIDERAGAO INTEMPESTIVA 21 que hoje se tornou moda na Alemanha, 0 quanto nao 0 for- taleceria saber que a cultura da Renascenga se elevou por sobre os ombros de uma tal multidao de cem homens. E, contudo — para aprender com o mesmo exemplo ime- diatamente uma coisa nova — 0 quao inexata, fluida e pen- dente seria essa comparacao! O quanto da diversidade pre- cisa ser desconsiderado ai para que a comparagao possa produzir aquele efeito fortalecedor, o quao violentamente a individualidade do passado deve se encaixar em uma for- ma universal e o quanto todos os seus Angulos e linhas acen- tuados precisam ser destruidos em favor da concordancial No fundo, alias, 0 que foi possivel uma vez sé se poderia produzir uma segunda vez como possivel, se os pitagéricos tivessem razao em acreditar que uma mesma constelagao dos corpos celestes também se deveria repetir, igualmente, sobre a terra, e isto até os eventos singulares e diminutos: de modo que sempre e de novo, quando as estrelas estives- sem em uma certa posicao umas em relagao as outras, um estdico se ligaria a um epicurista para matar César e nova- mente em uma outra relacao Colombo descobriria a Améri- ca. Somente se a terra sempre comegasse a cada vez de novo sua pega teatral a partir do quinto ato, somente se estivesse assegurado que 0 mesmo complexo de motivos, 0 mesmo deus ex machina, a mesma catdstrofe se repetiria em determi- nados intervalos, o poderoso teria o direito de cobigar a his- téria monumental em sua plena veracidade icdnica, isto é, cada fato em sua peculiaridade e unicidade exatamente for- mada: provavelmente, portanto, nado antes de os astréno- mos terem se tornado uma vez mais astrdlogos. Até ai a histéria monumental nao precisara utilizar aquela plena veracidade: ela sempre aproximard o desigual, generalizan- do-o e, por fim, equiparando-o; ela sempre enfraquecera novamente a diversidade dos motivos e ensejos a fim de apresentar 0 effectus monumental como modelo e digno de 2 FRIEDRICH NIETZSCHE imitagao, 4 custa das causae: de maneira que se poderia de- nominar este efeito, uma vez que ele abstrai o maximo possivel das causas, com um pouco de exagero, como uma coleténea dos “efeitos em si”, como acontecimentos que se tornam efeito para todos os tempos. O que é celebrado nas festas populares, em comemoragoes religiosas ou de guer- ra, € propriamente um tal “efeito em si”: é ele que nao deixa dormir os ambiciosos, que se encontra para os empreende- dores como um amuleto junto ao coracdo, mas nao 0 conexus verdadeiramente histérico entre causa e efeito, que, com- pletamente conhecido, apenas demonstraria que jamais poderia acontecer algo inteiramente igual em meio ao jogo de dados do futuro e do acaso. Enquanto a alma da historiografia residir nos grandes estimulos que um homem poderoso retira dela, enquanto o passado precisar ser descrito como digno de imitagao, como imitavel e como possivel uma segunda vez, aquela alma estaré em todo caso correndo 0 risco de se tornar algo distorcido, embelezado e, com isto, préximo da livre inven- (40 poética; sim, ha tempos que nao conseguem estabelecer distingao nenhuma entre um passado monumental e uma ficgdo mitica: pois de um mundo podem ser extraidos exa- tamente os mesmos estimulos que do outro. Se a considera- g4o monumental do passado governa sobre os outros tipos de consideragao, ou seja, sobre o tipo antiquario e o tipo critico, entdéo o passado mesmo é prejudicado: grandes seg- mentos do passado sao esquecidos, desprezados e fluem como uma torrente cinzenta ininterrupta, de modo que ape- nas fatos singulares adornados se algam por sobre o fluxo como ilhas: nas raras pessoas que se tornam em geral visi- veis salta aos olhos algo nao natural e estranho, semelhante ao quadril de ouro que os discipulos de Pit4goras supunham ter visto em seu mestre. A histéria monumental ilude por meio de analogias: através de similitudes sedutoras, ela ‘SEGUNDA CONSIDERAGAO INTEMPESTIVA 23 impele os corajosos 4 temeridade, os entusiasmados ao fa- natismo. E se imaginarmos esta histéria nas maos e cabegas de egoistas talentosos e de salafrdrios exaltados, entao im- périos podem ser destruidos, principes assassinados, guer- ras e revolugdes podem ser provocadas e a quantidade de “efeitos em si” histéricos, isto é, de efeitos sem uma causa suficiente, aumenta de novo. Mas é o bastante lembrarmos os danos que a histéria monumental pode causar entre os homens de poder e de a¢do, sejam eles bons ou maus: que efeito ela nao provoca, porém, quando os impotentes e os indolentes se apoderam e se servem dela! Tomemos o exemplo mais simples e mais freqiiente. Imaginem-se as naturezas nao-artisticas e as artisticamente fracas, blindadas e armadas pela histéria monumental dos artistas: contra quem elas agora vao apontar as suas armas?!? Contra seus arquiinimigos, os espiritos artisticos fortes, ou seja, contra os tinicos realmente capazes de aprender de uma forma verdadeira a partir daquela histéria, isto é, em nome da vida, e de transformar o que foi aprendido em uma praxis elevada. Entéo, 0 caminho é vedado e o ar, obscurecido, quando se danga idolatrica e zelosamente em volta de um monumento semiconcebido de algum grande passado, como se se quisesse dizer: “Vede, esta é a arte verdadeira e efeti- va: © que vos importa os que vém a ser e os que querem!” Esta chusma dangante aparentemente possui até mesmo o privilégio do “bom gosto”: pois o criador sempre se encon- trou em desvantagem frente ao que apenas fica olhando e nado coloca ele mesmo as maos na massa; exatamente como em todos os tempos o homem politizado das tabernas sem- pre foi mais inteligente, mais justo e prudente do que o es- tadista que efetivamente governa. Todavia, se quisermos transpor o referendo popular e a maioria numérica para o dominio da arte e obrigar o artista a se autodefender ante © foro dos que nao fazem absolutamente nada em termos 24 FreepricH NietzsCHE estéticos, entao pode-se ter certeza de antemao de que ele sera condenado: n4o apesar de, mas justamente porque seu juiz proclamou, festivamente, o cénone da arte monumen- tal, ou seja, segundo o esclarecimento dado, o canone da arte que em todos os tempos “produziu efeito”: na medida em que para 0 juiz toda e qualquer arte que, por ser con- temporanea, ainda nao é monumental, parece-lhe em primeiro lugar desnecessdria, em segundo, desprovida da pura inclinacdo e, em terceiro, desprovida mesmo da auto- ridade da histéria. Em contrapartida, seu instinto lhe reve- la que a arte poderia ser aniquilada pela arte: 0 monumen- tal nao deve ressurgir jamais; e, para isso utiliza a autorida- de que o monumental tem a partir do passado. Assim, os juizes sao conhecedores de arte porque gostariam de pér de lado a arte em geral; assim, se comportam como médi- cos de quem copiaram, no fundo, o posto de envenenadores; assim, eles cunham o seu paladar e o seu gosto, a fim de esclarecer a partir de seus mimos porque rejeitam, teimosa- mente, os alimentos artisticos mais nutritivos que lhes sao oferecidos. Pois eles ndo querem que o grande surja: seu meio para isto é dizer: “Vede, o grande jé esta ai!” Em ver- dade, o grande que ja esta ai lhes importa tao pouco quanto o grande que surge: sua vida da provas disto. A histéria monumental é um traje mascarado, no qual seu édio contra 0 que é poderoso e grande em seu tempo se faz passar por uma admiragao saciada pelo que hd de grande e poderoso nos tempos passados. Envoltos neste disfarce, eles inver- tem o sentido proprio daquele tipo de consideracao histéri- ca eo transformam em seu contrdrio; quer eles o saibam claramente ou nao, agem em todo caso desta forma, como se o seu lema fosse: deixem os mortos enterrarem os vivos. Todas as trés espécies de histéria existentes s6 encon- tram plenamente o que lhes cabe em um tinico solo e sob um tinico clima: em qualquer outra condi¢ao a histéria se SEGUNDA CONSIDERACAO INTEMPESTIVA 25 transforma em uma excrescéncia desertificadora. Se o ho- mem que quer criar algo grandioso precisa efetivamente do passado, entao ele se apodera dele por intermédio da histé- ria monumental; em contrapartida, quem quer fincar pé no familiar e na veneragao do antigo cuida do passado como o historiador antiquario; e somente aquele que tem o peito oprimido por uma necessidade atual e que quer a qualquer preco se livrar do peso em suas costas carece de uma histé- ria critica, isto ¢, de uma histéria que julga e condena. Al- guns infortuinios sio causados pela transplantacao impen- sada destas drvores: 0 critico sem necessidade, 0 antiquario sem piedade, o conhecedor do grande sem o poder do gran- de, so tais arvores alienadas de seu solo materno natural e, por isto, degeneradas. 3. Assim, a histéria pertence em segundo lugar ao que pre- serva e venera, Aquele que olha para tras com fidelidade e amor para o lugar de onde veio e onde se criou; por inter- médio desta piedade, ele como que paga pouco a pouco, agradecido por sua existéncia. Conforme cuida, com mao muito precavida, do que ainda existe de antigo, busca pre- servar as condigGes sob as quais surgiu para aqueles que virdo depois dele — e assim ele serve 4 vida. A posse dos bens de seus ancestrais altera 0 seu significado no interior de uma tal alma: pois esta alma ¢ muito mais possuida por eles. O diminuto e circunscrito, 0 esfacelado e obsoleto mantém sua propria dignidade e inviolabilidade pelo fato de a alma preservadora e veneradora do homem antiquario se transportar para estas coisas e preparar ai um ninho patrio. A historia de sua cidade transforma-se, para ele, na histéria de si mesmo; ele compreende os muros, seu portao elevado, suas regras e regulamentos, as festas populares 26 FrrepricH NietzscHE como um diario ilustrado de sua juventude e reencontra a si mesmo em tudo isto, sua forca, sua aplicagao, seu prazer, seu juizo, sua tolice e seus vicios. Aqui era possivel viver, ele diz a si mesmo, pois viver era permitido; aqui, seré pos- sivel viver, pois somos teimosos e nado seremos derrubados da noite para o dia. Entaéo, com o auxilio deste “nds”, ele langa o olhar para além da vida individual estranha e pas- sageira e sente a si mesmo como 0 espirito da casa, da espé- cie, da cidade, Por vezes, atravessando longos séculos de obscurecimento e confusao, ele mesmo satida a alma de seu povo como a sua prépria alma; uma habilidade para sentir o caminho que se encontra 4s suas costas e um sentido para perceber como as coisas eram, um faro para rastos quase apagados, um instintivo ler corretamente o passado ainda tdo indistinto, uma rapida compreensao do palimpsesto, sim, polypsexto - estes so os seus dons e virtudes. Com eles, Goethe parou frente ao monumento de Erwin Steinbach;!° em meio a tempestade de suas sensages, o véu de nuvens histéricas que se estendia entre eles se rasgou: ele viu a obra de arte alema pela primeira vez novamente “exercendo o seu poder através de uma alma alemé forte e rude”. Um tal trago e um tal sentido conduziram os italianos do Renasci- mento e despertaram de novo em seus poetas 0 antigo gé- nio italiano para “uma maravilhosa ressonancia das cordas arcaicas”, como diz Jacob Burckhardt." Mas aquele sentido hist6rico-antiquario de veneracgao tem seu mais elevado valor onde quer que ele difunda um simples sentimento tocante de prazer e satisfacao para além das condigdes mo- destas, rudes, mesmo atrofiadas, nas quais vive um homem ou um povo; Niebuhr, por exemplo, admite com honordvel candura viver alegremente no pantano e na lama, entre cam- poneses livres que possuem uma histéria, e nao sentir ne- nhuma falta da arte. Como a histéria poderia servir melhor 4 vida, a nao ser se conectasse as geragdes e as populacdes ‘SEGUNDA CONSIDERACAO INTEMPESTIVA 27 menos favorecidas a sua terra natal e aos hdbitos de sua terra natal, enraizando-as ¢ impedindo-as de vaguear por ai em busca do que é melhor no estrangeiro e de se engajar em uma luta ferrenha por ele? Por vezes parece teimosia e insensatez o que prende firmemente 0 individuo aos seus préprios companheiros e ao seu ambiente, a este h4bito penoso, a estes cumes nus — mas esta é a insensatez mais salutar e a mais exigida pelos interesses da comunidade; como bem o sabe, aquele que tem clareza quanto aos efeitos terriveis do prazer em expedigdes aventureiras, especial- mente para hordas populares inteiras, ou para aquele que vé em sua proximidade a situacao de um povo que perdeu a fidelidade em relacao 4 sua prdpria origem e se entregou a uma avidez incansdvel e cosmopolita pelo novo e pelo cada vez mais novo. A sensacgao oposta, o contentamento da drvore com as suas raizes, a felicidade de nao se saber totalmente arbitrdrio e casual, mas de crescer a partir de um passado como a sua heranga, o seu florescimento e fru- to, sendo através dai desculpado, sim, mesmo justificado em sua existéncia - é isto que se designa agora propriamen- te como o sentido histérico apropriado. No entanto, esta nao é com certeza a situagao em que o homem estaria maximamente capacitado a dissolver o pas- sado em um puro conhecimento; de modo que também aqui percebemos o que ja tinhamos apreendido com a histéria monumental, o fato de que o proprio passado sofre, enquan- to a histéria serve a vida e é dominada por pulsdes vitais. Dito com alguma liberdade poética: a drvore sente suas raizes mais do que poderia vé-las. No entanto, este senti- mento mede a sua grandeza pela grandeza e pela forga de seus galhos. A drvore gostaria de se enganar, como ela pode estar errada quanto a toda a floresta que se encontra a sua volta?!? A floresta da qual ela sé sabe e sente algo, tanto quanto ela lhe impede ou exige - e nada além disto! O sen- 28 FRiepricH NietzscHE tido antiquério de um homem, de um municipio, de todo um povo tem sempre um campo de visdo maximamente restrito; ele nado percebe a maior parte do que existe e, 0 pouco que vé, ele vé muito prdéximo e isolado; nao conse- gue mensurd-lo ¢, por isto, toma tudo como igualmente importante, cada individuo torna-se importante demais. Desse modo, nao ha para as coisas do passado nenhuma diferenga de valor e de proporcao que fizesse, verdadeira- mente, justica 4s mesmas, sua medida e proporgao: sua medida e proporgao passam a ser estabelecidas pelo olhar antiquario para trés de um individuo ou povo. Aqui se estd sempre bem préximo de um perigo: enfim, tudo torna-se antigo e passado, mas continua no interior do campo de visao, é assumido por fim como igualmente venerdvel, enquanto tudo o que nao vem ao encontro deste antigo com veneracao, ou seja, 0 que é novo e o que devém, € recusado e hostilizado. Assim, mesmo os gregos tolera- ram o sentido hieratico de suas artes plasticas ao lado do que é livre e grandioso; sim, eles nao apenas toleraram mais tarde os narizes empinados e o riso frio, mas fizeram mes- mo deles um fino petisco. Quando o sentido de um povo se enrijece desta forma, quando a histéria serve de tal modo & vida passada, quando o sentido histérico nao conserva mais a vida, mas a mumifica: entéo a 4rvore morre de maneira nada natural, de cima para baixo, paulatinamente em dire- Gao as raizes - por fim, mesmo as raizes perecem junto. A histéria antiquaria degenera-se justamente no instante em que a fresca vida do presente nao a anima e entusiasma mais. Neste momento a piedade se debilita, o habito erudito con- tinua subsistindo sem ela e gira de maneira egoisticamente auto-satisfeita em torno de seu préprio eixo. Entao se ofe- tece aos olhos o espetdculo repulsivo de uma ira coletiva cega, de um incansdvel ajuntamento de tudo o que um dia existiu. O homem envolve-se com um cheiro de mofo; atra- SEGUNDA CONSIDERACAO INTEMPESTIVA 29 vés da mania antiquaria, ele consegue mesmo reduzir uma disposi¢ao mais significativa, uma necessidade nobre, a uma sede insacidvel por novidade, ou, mais corretamente, por antigiiidade, e por tudo e por cada coisa; freqiientemente ele desce téo baixo que acaba por ficar satisfeito com qual- quer migalha de alimento e devora com prazer mesmo a poeira de minticias bibliogrdficas. Mas mesmo se aquela degeneracao nao entrar em cena, se a histdria antiquaria nao perder o vinico fundamento so- bre o qual pode ser enraizada para a cura da vida: sempre restam de qualquer modo perigos suficientes, caso ela se torne com efeito poderosa demais e sufoque os outros mo- dos de considerar o passado. Ela compreende a vida sé para conservd-la, nao gerd-la; por isto, ela sempre subestima 0 que devém porque nao tem nenhum instinto para decifrd-lo - como 0 tem, por exemplo, a histéria monumental. Assim, impede a forte decisao pelo novo, paralisa o agente que sem- pre ferird e precisard ferir enquanto agente uma piedade ou outra. O fato de que algo envelheceu da agora ensejo a exi- géncia de que ele precisa se tornar imortal; pois quando al- guém calcula tudo o que uma tal antigitidade - um habito antigo dos pais, uma crenga religiosa, um privilégio politi- co herdado — experimentou em meio 4 duragao de sua exis- téncia, qual soma de piedade e veneragéo por parte do in- dividuo e das geragoes, entao parece arrogante ou mesmo vicioso substituir uma tal antigiidade por uma novidade, para contrapor a esta acumulagdo numérica de atos de pie- dade e veneracao aquela do que devém e esta presente. Aqui fica claro 0 quao necessariamente o homem, ao lado do modo monumental e antiquario de considerar 0 passa- do, também precisa muito freqiientemente de um terceiro modo, o modo critico: e, em verdade, este também uma vez mais a servigo da vida. Ele precisa ter a forga e aplicd-la de tempos em tempos para explodir e dissolver um passado, a 30 FriepricH NierzscHe fim de poder viver: ele alcanca um tal efeito conforme traz o passado para diante do tribunal, inquirindo-o penosamen- te e finalmente condenando-o; no entanto, todo passado é digno de ser condenado — pois € assim que se passa com as coisas humanas: sempre houve nelas violéncia e fraqueza humanas potentes. Nao é a justica que se acha aqui em jul- gamento, nem tampouco a misericérdia que anuncia aqui 0 veredicto: mas apenas a vida, aquele poder obscuro, impulsionador, inesgotavel que deseja a si mesmo. Sua sen- tenca é sempre impiedosa, sempre injusta porque ele nun- ca fluiu a partir de uma pura fonte do conhecimento; na maioria dos casos a sentenga seria idéntica, mesmo se pro- nunciada pela prdpria justica. “Pois tudo o que surge mere- ce perecer. Por isto, seria melhor que ele nao tivesse surgi- do.” E necessdria muita forga para poder viver e para es- quecer, na medida em que viver e ser injusto séo uma coisa s6. O préprio Lutero chegou um dia a achar que o mundo s6 podia ter surgido por uma distragao oriunda do esqueci- mento de Deus; com efeito, se Deus tivesse pensado na “ar- tilharia pesada”, nao teria criado o mundo. Por vezes, po- rém, justamente a mesma vida que precisa do esquecimen- to exige a aniquilagao tempordria deste esquecimento; en- tao fica claro o quao injusta é a existéncia de uma coisa qual- quer, de um privilégio, de uma casta, de uma dinastia, por exemplo, o quanto cada uma destas coisas merece 0 pereci- mento. Ent4o, seu passado é considerado criticamente, cra- va-se com uma faca as suas raizes, caminha-se por cima de toda piedade. Trata-se sempre um processo muito perigo- so, a saber, muito perigoso para a propria vida: e homens ou épocas, que servem desta maneira a vida, ao julgarem e aniquilarem um passado, sao sempre homens e €pocas pe- rigosos e arriscados. Pois porque somos o resultado de ge- rages anteriores, também somos o resultado de suas aber- rages, paixdes e erros, mesmo de seus crimes; nao é possi- SEGUNDA CONSIDERAGAO INTEMPESTIVA 31 vel se libertar totalmente desta cadeia. Se condenamos aque- las aberragdes e nos consideramos desobrigados em rela- ¢ao a elas, entao o fato de provirmos delas nao é afastado. O melhor que podemos fazer é confrontar a natureza her- dada e hereditéria com o nosso conhecimento, combater através de uma nova disciplina rigorosa o que foi trazido de muito longe e o que foi herdado, implantando um novo hébito, um novo instinto, uma segunda natureza, de modo que a primeira natureza se debilite. Esta é uma tentativa de se dar, como que um passado a posteriori, de onde se gosta- tia de provir, em contraposigao ao passado do qual se pro- vém — sempre uma tentativa perigosa, porque é sempre muito dificil encontrar um limite na negacao do que passou porque, em geral, as segundas naturezas sdo mais fracas do que as primeiras. O que acontece de maneira por demais freqiiente é que conhecemos o bem sem fazé-lo porque tam- bém conhecemos 0 que é melhor sem poder fazé-lo. Mas aqui e ali, contudo, a vitéria é alcancada, e h4 até mesmo para os combatentes, para estes que empregam a histdria critica a servigo da vida, uma notdvel consolagao: ou seja, saber que também aquela primeira natureza foi algum dia uma segunda natureza e que toda segunda natureza vito- riosa se torna uma primeira natureza. 4. Estes sao os servicos que a histéria pode prestar a vida; de acordo com suas metas, forgas e necessidades, todo ho- mem e todo povo precisa de um certo conhecimento do passado, ora sob a forma da histéria monumental, ora da antiquaria, ora da critica: nao como um grupo de puros pen- sadores que apenas contemplam a vida, nao como indivi- duos Avidos de saber, que s6 se satisfazem com o saber e para os quais a ampliacdo do conhecimento é a propria meta, 32 Prepric NierzscHe mas sempre apenas para os fins da vida, e, portanto, sob o dominio e condugdo suprema destes fins. Esta é a ligagdo natural que uma época, uma cultura, um povo deve ter com a histéria — evocada pela fome, regulada pelo grau de suas necessidades, mantida sob limites pela forga plastica que lhe € prépria - se 0 conhecimento do passado, em todas as épocas, 86 ¢ desejado a servigo do futuro e do presente, nao para o enfraquecimento do presente ou para o desenraiza- mento de um futuro vitalmente vigoroso: tudo isto é sim- ples como a verdade é simples e convence imediatamente também aquele que no se deixou levar, inicialmente, pela icativa histérica. ‘anaes einen mar re 0 nme Nés nos assustamos, recuamos diante dele: para onde foi toda clareza, toda naturalidade e pureza daquela ligagdo entre a vida e a histéria, 0 quio confusamente, ex- cessivamente, inquietamente aflui agora este problema ante os nossos olhos! A culpa estd em nds, os observadores? Ou a constelacao entre vida e histéria realmente se alterou, de tal modo que um astro poderoso e inimigo se intrometeu entre elas? Outros gostariam de mostrar que enxergamos tudo falso: sé queremos dizer 0 que pensamos ver. E o que vemos é efetivamente um tal astro, um astro luminoso e divino se intrometendo, a constelacio realmente se alteran- do — através da ciéncia, através da exigéncia de que a histéria deve ser ciéncia, Agora, a vida nao rege mais sozinha e nem o conhecimento domestica 0 passado: todos os marcos foram derrubados e tudo 0 que foi um dia se abate sobre os ho- mens. Tio longe um vir-a-ser se volte para tras, tao longe também todas as perspectivas sio deslocadas até o infinito. Um espetdculo tio inabarcével ndo foi visto por nenhuma geracao, tal como agora a ciéncia do vir-a-ser universal, a histéria, mostra: mas, sem duivida, o mostra com a auddcia perigosa do lema: fiat veritas pereat vita.” ff / ‘de.cNt14 CONSIDERAGKO INTEMPESTIVA 33 Formemos agora uma imagem do processo espiritual «ue € produzido através disso na alma do homem moder- tw. © saber histérico irrompe, aqui e ali, sempre novamen- tv a partir de fontes inesgotdveis, o estranho e incoerente (impdem-se, a memoria abre todas as suas portas e, ainda ‘assim, nunca estdo suficientemente abertas; a natureza em- penha-se em receber bem, organizar e honrar estes estra- mhos héspedes, mas estes mesmos encontram-se em luta (ans com 0s outros, e parece necessdrio subjugé-los e domina- los todos, a fim de nao perecer em meio 4 sua habito ‘@m um tal ser doméstico desordenado, tempestuoso e “Nés sen- timos com abstragées”, diz ele, “quase ndo sabemos mais como as sensa¢Ges se exteriorizam junto a nossos contem- poraneos; nds as deixamos saltar, como eles nao as deixam mais hoje em dia. Shakespeare arruinou a todos nés, mo- dernos.” Este é um caso singular e talvez tenha sido generaliza- do muito rapidamente: mas o quao terrivel seria sua legiti- ma generalizacao, se os casos particulares se impusessem com uma freqiiéncia demasiado intensa ao observador? O quao desesperada soaria a sentenga: nds alemaes sentimos em abstragdes? Nds todos fomos arruinados pela histéria — uma sentenga que destruiria em suas raizes toda esperanca em uma cultura nacional ainda vindoura: pois toda espe- tanga deste género surge a partir da crenca na autenticida- de e imediaticidade do sentimento alemao, a partir da cren- ¢a na interioridade integra; o que ainda se pode esperar, em que ainda se pode acreditar, se a fonte da crenca e da espe- ranga é maculada, se a interioridade aprendeu a dar saltos, a dangar, a maquiar-se, a se expressar com abstracao e cal- culo e a perder a si mesma paulatinamente? E como o gran- SEGUNDA CONSIDERACAO INTEMPESTIVA 39 dioso espirito produtivo pode ainda se manter entre um Povo que nao estd mais certo de sua interioridade homogé- nea, que se desfaz no homem culto em uma interioridade deformada e seduzida e, no inculto, em uma interioridade inacessivel? Como ele pode perdurar ai, se a unidade do sentimento do povo se perdeu, se ele sabe que o sentimen- to estd falsificado e retocado justamente em meio a uma parte que se denomina a parte culta do povo e que arroga para si 0 direito aos espiritos artisticos nacionais? Pode ser que aqui e ali o prdprio juizo e gosto dos individuos tenha se tornado mais sutil e mais sublimado - isto nao lhe traz nenhuma vantagem: o atormenta que precise falar como que apenas para um grupo e de nao ser mais necessdrio no inte- rior de seu povo. Talvez ele prefira enterrar agora o seu tesouro, porque sente nojo de ser insolentemente subvencio- nado por um grupo, no momento em que seu coragao se encontra cheio de compaixao por tudo. O instinto do povo nao vem mais ao seu encontro; é intitil para ele tentar nos- talgicamente estender os bragos para alcangd-lo. O que lhe resta agora sendo voltar o seu 6dio entusiasmado contra esse encanto inibidor, contra as barreiras erigidas em meio a assim chamada formagao de seu povo, a fim de ao menos condenar como juiz o que para ele, enquanto vivente e ge- rador de vida, ¢ aniquilador e aviltante? Assim, ele troca a profunda intelecgio de seu destino pelo prazer divino do criador e do auxiliador, acabando como um solitario ho- mem do saber, como um sdbio ultra-saturado. Este é 0 mais doloroso dos espetaculos: quem, em geral, vé isso, reconhe- cera aqui uma necessidade sagrada: ele diz para si mesmo, aqui, algo requer ajuda, aquela unidade suprema entre a natureza e a alma de um povo precisa ser restabelecida, aquele rasgo entre o interior e 0 exterior precisa desapare- cer de novo sob as batidas de martelo da necessidade. Ora, mas que meios ele pode empregar? O que permanece para 40 FRIEDRICH NIETZSCHE ele uma vez mais como o seu profundo conhecimento se- nao o seguinte: ele espera semear uma necessidade expres- sando este conhecimento, ampliando-o e disseminando-o com as maos cheias: e o feito vigoroso surgird um dia da necessidade vigorosa. Com isso, nao deixo nenhuma duvi- da de onde tomo o exemplo daquela necessidade, daquela privagao, daquele conhecimento: assim, aqui deve constar expressamente o meu testemunho, que é a unidade alema neste sentido supremo que nés almejamos, e a almejamos mais ardentemente do que a reunificagao politica: a unidade do espirito e da vida alemdes depois da aniquilagéo da oposigao entre forma e contetido, entre interioridade e convengao. 5. A super-saturacao de uma época pela histéria parece ser nociva e perigosa a vida em cinco aspectos: por meio deste excesso é gerado aquele contraste até aqui discutido entre interior e exterior, e, com isto, a personalidade é enfraque- cida; por meio deste excesso uma época acaba por arrogar- se a posse da mais rara virtude, a justiga, em um nivel mais elevado do que qualquer outro tempo; por meio deste ex- cesso perturbam-se os instintos do povo e dos individuos, assim como se impede o amadurecimento do todo; por meio deste excesso é semeada, a todo momento, a crenga pernicio- sa na velhice da humanidade, a crenga de se ser tardio e epigono, e por meio deste excesso uma época recai na peri- gosa disposicao da ironia sobre si mesmo e, a partir dela, na disposicao ainda mais perigosa do cinismo: nesta, po- rém, desenvolve-se cada vez mais uma praxis astuta e egois- ta, através da qual as forcas vitais sao inibidas e, por fim, destruidas. Mas voltemos agora 4 nossa primeira sentenga: o ho- mem moderno sofre de uma personalidade enfraquecida. ‘SEGUNDA CONSIDERACAO INTEMPESTIVA 41 ‘Como 0 romano da época imperial tormou-se a-romano em relacéo ao mundo que se encontrava a seu servigo, como ele mesmo se perdeu em meio as ondas migratérias estran- geiras e se degradou num carnaval cosmopolita de deuses, hdbitos e artes, entio o mesmo deve suceder ao homem moderno, que prepara continuamente a festa de uma expo- sigao universal através de seus artistas histdricos; ele se tor- nou o espectador errante e fruidor, transposto para uma condicao na qual mesmo grandes guerras e grandes revo- lug6es raramente possibilitam mudar algo mais do que um instante. A guerra nem bem acabou e jé se transformou em cem mil paginas impressas, jd foi oferecida como o mais novo meio de excitacao aos paladares cansados dos vicia- dos em histéria. Parece quase impossivel que um som per- feito e forte seja produzido por meio do mais poderoso ata- que as cordas: ele imediatamente se perde de novo, no ins- tante mais prdximo jé diminui, historicamente suavizado, etéreo e fraco. Expresso moralmente: vés nao sois mais ca~ pazes de manter o sublime, vossas acGes sao rompantes re- pentinos e nunca trovao repicante. Acontece, entao, o mais grandioso e o mais maravilhoso: deve-se, apesar disso, sem som e lamento, atrai-lo para o Hades. Pois a arte foge, quan- do vés, imediatamente, cobris vossas agdes com a tenda histérica. Quem quer compreender, calcular, conceber, no instante em que deveria manter em longo abalo o incom- preensivel como o sublime, gostaria de ser chamado com- preensivo. Todavia, apenas no sentido em que Schiller fala da compreensao dos compreensiveis: ele ndo vé algumas coisas que a crianga efetivamente vé, ele nao ouve algumas coisas que a crianga ouve; estas coisas $40 justamente o mais. importante: porque ele ndo compreende isto, sua compre- ensao é mais infantil do que a da crianca e mais simpléria do que a simplicidade - apesar das muitas dobras astutas de seus rolos de papel em forma de pergaminhos e do exer- 42 Frugprict NierzscHe cicio virtuoso de seus dedos em desembaracar 0 que esta emaranhado."* Isto significa o seguinte: ele aniquilou e per- deu seu instinto, ele nao pode mais, confiando no “animal sagrado“, soltar as rédeas, se seu entendimento vacila e seu caminho conduz através de desertos. Assim, o individuo torna-se covarde e inseguro, no podendo mais acreditar em si mesmo: ele afunda em si mesmo, no seu interior, que aqui nao significa apenas: confusio acumulada do que foi aprendido - nao se produz nenhum efeito no exterior, a instru¢do nao se torna vida. Langando-se o olhar mais uma vez para 0 exterior, nota-se entéo como a expulséo dos ins- tintos pela histéria quase transformou os homens em lauter abstractis e sombras: ninguém mais ousa aparecer como é, mas s¢ mascara como um homem culto, como erudito, como poeta, como politico. Se se pegam tais masearas — porque acredita-se que se trata de uma coisa séria para eles e nio simplesmente de um espetéculo de marionetes, uma vez que todos tomam ares de seriedade -, logo tém-se, de ime- diato, apenas trapos e remendos coloridos nas maos. Por isso, ndo se deve mais se deixar enganar por elas, por isso deve-se submeté-las a uma nova voz de comando: “Tirai Vossos casacos ou sede o que pareceis!” Todo homem sério de nascenga nao deve mais tornar-se um Dom Quixote, uma vez que ele tem coisa melhor a fazer do que se engalfinhar com tais supostas realidades. Em todo caso, porém, ele pre- cisa olhar incisivamente e gritar para cada mascara o seu “Alto! Quem vem 14?’ e arraned-la do rosto. Estranho! Po- der-se-ia pensar que a histéria, sobretudo, encorajaria um homem a ser sincero - mesmo que fosse apenas para ser um louco sincero; e este sempre foi seu efeito, sé que agora nado é mais! A formagao histérica e a rocha burguesa universal dominam ao mesmo tempo. Nunca se falou de maneira tio tonitruante da “livre personalidade", nao se véem nunca personalidades; silencia-se acerca das que sao livres, mas SEGUNDA CONSIDERACAO INTEMPESTIVA 43 fala-se muito alto de homens-universais escondidos e ame- drontados. O individuo retraiu-se na interioridade, fora nao se nota mais nada dele, o que nos dé 0 direito de duvidar se € possivel que haja causas sem efeito! Ou deveria ser neces- sdria uma geracdo de eunucos para vigiar o grande harém histérico do mundo? Todavia, a pura objetividade figura, bela, diante do rosto. Quase parece que a sua tarefa fosse vigiar a histdéria da qual nada surge a nao ser histérias, mas nenhum acontecimento;)” que a sua tarefa fosse impedir que a histéria torne qualquer personalidade “livre”, ou seja, que ela atue verdadeiramente contra si, contra os outros, e, em verdade, em palavras e acdes. Somente através de uma tal atuacao verdadeira, a pentiria, a miséria interior do homem moderno vird a tona e, no lugar daquela convengao e da- quela mascarada amedrontadas e encobridoras, a arte e a religiao poderao finalmente entrar em cena como as verda- deiras salvadoras, a fim de cultivar conjuntamente uma cultura que corresponda as verdadeiras necessidades e nao apenas ensine - como a cultura geral de hoje - a nos iludir- mos quanto a estas necessidades e a nos tornarmos, por meio delas, mentiras ambulantes. Em que situagdes desnaturadas, artificiais, e, em todo caso, indignas, ha de cair, em uma época que sofre de cul- tura geral, a mais verdadeira de todas as ciéncias, a deusa nua e sincera, a filosofia?!? Em um tal mundo da uniformi- dade exterior imposta, ela permanece um mon6logo erudi- to do passeante solitario, uma presa casual do individuo, um segredo oculto de alcova ou uma tagarelice inofensiva entre velhos académicos e criangas. Ninguém deve ousar cumprir a lei da filosofia em si, ninguém vive filosofica- mente, com aquela simples lealdade que obrigava o homem antigo a portar-se como estdico onde quer que estivesse, no que quer que empreendesse, caso tivesse algum dia jurado lealdade ao Portico. Todo filosofar moderno é politico e 44 Frueprich NierascHe policialesco, limitado 4 aparéncia erudita pelos governos, igrejas, academias, habitos, e pela pusilanimidade dos ho- mens: ele permanece suspirando “mas se...” ou reconhe- cendo “era uma vez...”. No interior da cultura histérica, caso queira ser mais do que um saber interiormente contido e sem efeitos, a filosofia nao tem direito algum; fosse o ho- mem moderno corajoso e decidido, ele nao seria, mesmo filosofia; agora, ele se contenta em disfargar envergonhada- mente sua nudez. Sim, pensa-se, escreve-se, imprime-se, fala-se, ensina-se filosoficamente - até ai tudo é mais ou menos permitido; somente no agir, na assim chamada vida, é diferente: ai apenas uma unica coisa é permitida e todo o resto é simplesmente impossivel: assim o quer a cultura his- térica. Serd que ainda sao homens - perguntamo-nos entao ~ ou talvez somente maquinas de pensar, de escrever e de falar? Goethe disse certa vez acerca de Shakespeare: “Ninguém. desprezou mais 0 traje material do que ele; ele conhece muito bem o traje interior dos homens, e, neste ponto, todos se equivalem. Diz-se que ele mostrou primorosamente os ro- manos. Nao acho; eles nao passam de ingleses encamados, mas certamente sio homens, homens desde o fundo, ¢ nos quais com certeza cai igualmente bem a toga romana.” Agora me pergunto se nio seria também possivel apresentar nos- 805 literatos atuais, homens do povo, funciondrios, politi- 0s, como romanos; isto nao pode ser levado a cabo porque eles ndo sio homens, mas apenas compéndios encammados € como que concrete Abstracta. Se é que tém cardter e um modo de ser préprio, tudo isto esté tio profundamente es- condido que nao pode absolutamente desentranhar-se a luz do dia: se é que eles sao homens, eles $6 0 sio para aquele que “examina as entranhas”. Para qualquer outro eles sio algo diverso, nao homens, nao deuses, nado animais, mas ‘SACUNDA CONSIDERACAO INTEMPESTIVA 45 formagbes histérico-culturais,"* total e completamente cul- tura, imagem, forma sem um contetido comprovavel; in- felizmente apenas formas ruins, e, além disto, uniformes. Minha sentenga poderia ser entio compreendida e ponde- ftada da seguinte maneira: a histéria sé ¢ suportada por perso- natidades fortes, as personalidades fracas séo completamente dizi- ‘madas por ela. Ai reside o fato de que ela confunde o senti- mento e a sensagdo onde quer que estes ndo sejam fortes 0 Suficiente para medir o passado em si mesmo. Aquele que ‘nao ousa mais confiar em si mesmo, mas involuntariamen- te, para sentir, pede um conselho a histéria: “Como devo sentir aqui?”, torna-se paulatinamente, por pusilanimida- de, um ator, e desempenha um papel, na maioria das vezes até mesmo muitos papéis e, por isto, cada um deles de ma- neira muito ruim e superficial. Aos poucos passa a faltar toda congruéncia entre o homem e 0 seu ambito histérico; ‘vemos pequenos rapazolas petulantes passeando por ai com 0s romanos como se estes fossem seus iguais: e nos restos mortais dos poetas gregos eles revolvem e escavam, como se também estes corpora estivessem ai prontos para a sua dissecagio e nado passassem de vilia,\’ como podem ser seus proprios corpora literdrios. Suponhamos que alguém se ocu- pe com Demiédcrito, entéo, a pergunta sempre fica para mim na ponta da lingua: Por que nao Herdclito? Ou Filon? Ou Bacon? Ou Descartes? - e assim por diante, arbitrariamen- te. E, entdo: por que justamente um filésofo? Por que nio um poeta, um orador? E: por que em geral um grego, por que nao um inglés, um turco? O passado nao é grande o suficiente para encontrar algo em que vés ndo vos apresentais de maneira tao risivelmente arbitrdria? Mas, como dissemos, trata-se de uma geragio de eunucos; para 0 eunuco, uma mulher é como qualquer outra, justamente apenas mulher, a mulher em si, o eternamente inatingivel - e, com isto, é indiferente 0 que vos impulsiona, contanto 46 Frumpric NierascHe que a prdpria histéria permanega bela e “objetivamente” conservada, especialmente por aqueles que nunca podem fazer historia por si mesmos. E como o eterno feminino nunca vos atraird para si,™ vds o rebaixais até vés, e tomai, como neutros, também a histéria como algo neutro. Mas para que no se acredite, com isso, que comparo a sério a histéria com 0 eterno-feminino, antes gostaria muito mais de expressar claramente que a considero, ao contrario, como sendo o eterno-masculino: a questiio é que para aqueles que s4o inteiramente “formados historicamente”, deve ser to- talmente indiferente se ela é uma coisa ou a outra: eles pré- prios nfo sio nem homens nem mulheres, nem mesmo ain- da uma comunhao dos dois, mas sempre apenas neutros, ou, expresso de maneira mais culta, apenas 0s etermamente objetivos. As personalidades devem se tornar, antes de tudo, da maneira descrita, como sem subjetividade, ou, como se diz, objetividades: assim nada mais consegue agir sobre elas; pode acontecer algo bom e justo, como ato, como poesia, como muisica: imediatamente, o oco homem da cultura lan- gao seu olhar para além da obra e pergunta pela histéria do autor, Tenha este homem j4 criado muitas obras, ¢ imedia- tamente obrigado a ter esclarecido para si o curso prévio e o curso ulterior presumivel de seu desenvolvimento, ¢ ime- diatamente colocado ao lado de outros artistas e compara- do.com eles, é dissecado, esfacelado em fungao da escolha de seu material, do seu modo especifico de traté-lo. Em se- guida, ele é uma vez mais sabiamente recomposto, adverti- doe corrigido no todo. A coisa mais espantosa possivel pode acontecer, a horda dos homens historicamente neutros ja estd sempre a postos para visualizar o autor a uma distdn- cia considerdvel. Instantaneamente ressoa 0 eco, mas sem- pre come “critica”, por mais que pouco tempo antes o criti- co nao conseguisse nem mesmo sonhar com a possibilida- ‘SEGUNDA CONSIDERAGAO INTEMPESTIVA 47 de do que aconteceu. Em parte alguma chega-se a um efei- to, mas sempre apenas a uma nova “critica”; ¢ a prépria critica nao produz nenhum efeito, sé experimentando no- vamente a critica. Por isto, concordou-se em considerar muita critica como efeito e pouca, como fracasso. Mas, no fundo, mesmo em meio a este tipo de “efeito”, tudo perma- nece como antes: fala-se, de fato, hd muito tempo, em algo novo. No entanto, logo surge uma vez mais algo novo e faz-se entao o que sempre se fez. A cultura histérica de nos- sos criticos néo permite mais de maneira alguma que se chegue a um efeito em sentido préprio, a saber, a um efeito sobre a vida e a agao: eles passam imediatamente a borra- cha mesmo sobre 0 escrito mais negro possivel, eles borram 0 desenho mais gracioso com suas pinceladas grossas que devem ser vistas como corregGes: € uma vez mais nao resta mais nada, Todavia, sua pena critica nao para de correr, pois eles perderam o poder sobre ela e sio mais conduzi- dos por ela do que a conduzem. Exatamente nesta imode- taco de suas efusées criticas, na falta de dominio sobre si mesmo, nisto que os romanos chamavam impotentia revela- se a fraqueza da personalidade moderna. 6. Mas deixemos de lado esta fraqueza. Voltemo-nos para uma das forcas muito celebradas do homem moderno com a pergunta, alids constrangedora, se ele tem direito de se denominar, por sua conhecida “objetividade” histérica, for- te, isto é, justo, eem um grau mais elevado do que o homem de uma outra época. E verdade que aquela objetividade tem sua origem em uma elevada necessidade e exigéncia por justiga? Ou desperta, como efeito, causas totalmente diver- sas, de fato apenas a aparéncia, como se a justica fosse a causa apropriada deste efeito? Ele seduz talvez, para um 48 Frrpmcs NaerzscHe preconceito nocivo, demasiado bajulador, sobre as virtu- des do homem modemo? - Sécrates considera uma doen- §@, que é muito préxima do desvario, imaginar-se de posse de uma virtude e ndo possui-la: e certamente uma tal pre- sungado é mais perigosa do que a ilusio oposta, de sofrer por um erro, por um vicio, Pois através desta ilusdo talvez ainda seja possivel tornar-se melhor; aquela presuncao, porém, torna o homem ou uma época dia apés dia pior - neste caso, portanto, mais injusto ¢ injusta. Em verdade, ninguém faz jus em um grau mais elevado 4 nossa veneragdo do que aquele que possui o impulso e a forga para a justica. Pois nela unificam-se e escondem-se as mais elevadas e mais raras virtudes como em um mar in- sondavel que recebe correntes de todos os lados e as engo- le. A mao do justo, que é autorizado a julgar, ndo treme mais quando segura a balanga; ele coloca implacavelmente peso por peso diante de si mesmo, seu olhar nao se turva quando os ponteiros sobem e descem e sua voz ndo soa nem dura nem embargada quando pronuncia o veredicto. Fosse ele um frio deménio do conhecimento, entio estenderia em tomno de si a atmosfera glacial de uma majestade sobre-hu- mana ¢ terrivel, que teriamos de temer, nip de venerar: mas na medida em que é um homem e tenta ascender da duivida negligente 4 certeza rigorosa, da mais tolerante benevolén- cia ao imperativo “tu deves”, da rara virtude da generosi- dade a mais rara de todas, a da justica; na medida em que, agora, assemelha-se Aquele deménio sem ser desde o prin- eipio algo mais do que um pobre homem; e, sobretudo, na medida em que tem de expiar a todo instante em si mesmo sua humanidade e se consumir tragicamente em uma vir- tude impossivel - tudo isto o coloca em uma altura solitd- ria, como o exemplar mais venerdvel do género humano; pois ele quer a verdade, sé que ndo apenas como um conheci- mento frio e sem conseqiiéncias, mas como uma juiza que ‘01. CONSIDERAGKO INTEMPESTIVA a9 ardéna e pune, a verdade ndo como posse egoista do indi- viduo, mas como o direito divino de tresloucar todos os marcos das propriedades egoistas, em uma palavra, a ver- dade como o tribunal do mundo e como algo inteiramente ee cen anat acti dor. Apenas na medida em que o veraz quer incondicional- mente ser justo, a aspiragdo a verdade, tao impensadamen- te glorificada por toda parte, se torna algo grandioso, en- quanto diante de olhos obtusos conflui um grande nuimero. dos mais diversos impulses como curiosidade, medo do \édio, inveja, vaidade, impulso do jogo, impulsos que nada tém a ver com a verdade, com qualquer aspiragio 4 verda- de, que tenham sua raiz na justiga. Assim, realmente, 0 mundo parece estar repleto daqueles que “servem 4 verda- de” e, no entanto, a virtude da justiga é tao rara, tao rara- mente reconhecida e quase sempre odiada até a morte. Por outro lado, a horda dos aparentemente virtuosos é honrada © pomposamente aclamada em todas as épocas. Em verda- de poucos servem A verdade, porque apenas poucos tém a pura vontade de ser justos; e, mesmo entre estes, pouquis- simos tém a forga para serem justos. Nao é absolutamente suficiente, para isto, ter s6 a vontade: e os mais terriveis sofrimentos recaem justamente sobre os homens que pos- suem a pulsdo para a justiga sem a faculdade de julgar; por isto, nada promoveria mais o bem-estar geral do que disse- minar as sementes da faculdade de julgar tao amplamente quanto possivel, a fim de que permanecessem distintos o fanatico do juiz, 0 desejo cego de ser juiz da necessidade de julgar da fora consciente. Mas onde se encontraria um meio de plantar a faculdade de julgar?!? - dai que, quando se fala aos homens de verdade e justiga, eles permanecem eterna- mente numa divida amedrontada, se quem lhes fala é 0 fanatico ou o juiz. Desta feita, deve-se desculpé-los por te- rem sempre cumprimentado com especial boa vontade 50 ‘Frocprich Nuerascin aqueles “servidores da verdade” que no possuem nem a forga nem a vontade de julgar e que se colocam a tarefa de buscar o “conhecimento puro, sem conseqiiéncias”, ou, mais distintamente, a verdade da qual nada provém. Ha muitas verdades indiferentes. HA problemas cujo julgamento cor- reto no exige nem mesmo superagdo, para nao falar de sa- crificio. Em um tal Ambito indiferente e inofensivo, um ho- mem pode muito bem se tomar um dem6nio frio do conhe- cimento; e, apesar disto! Mesmo se, em épocas especialmente favoraveis, batalhdes inteiros de eruditos e de pesquisado- Tes se transformassem em tais deménios, sempre permane- ceria infelizmente possivel que uma tal época sofra da falta de uma justia rigorosa e grandiosa, em suma, do cerne mais nobre da assim chamada pulsdo para a verdade. Fagamos agora uma imagem do virtuoso histérico do presente: ele é realmente o homem mais justo de seu tem- po? E verdade que ele formou em si uma tal delicadeza e suscetibilidade da sensagio, uma vez que absolutamente nada de humano lhe permanece distante; os tempos e as pessoas mais diversas soam familiares imediatamente em sua lira. Ele se tornou uma placa passiva de ressonancia que age, através de seus repiques, sobre outras placas congéneres, até que por fim toda a atmosfera de uma época se enche com tais ecos confusamente sibilantes, delicados ¢ aparentados. No entanto, parece-me que sé se ouvem os tons maiores de cada ornamento histérico original: nio se consegue mais adivinhar a solidez e o poder do original em meio as vibragdes esfericamente magras e agudas destas cordas. O tom original despertava atos, necessidades, pa- vores; esta nota nos embala e nos transforma em mansos degustadores: ¢ como se tivéssemos feito um arranjo para a Sinfonia Heréica com duas flautas ¢ a tivéssemos em seguida destinado ao divertimento de sonhadores fumadores de pio. J4 se pode mensurar agora como se encontram as coi- SEGUNDA CONSIDERACAO INTEMPESTIVA 51 sas para estes virtuosos em relacdo a exigéncia suprema do homem moderno por uma justiga mais elevada e mais pura; esta virtude nunca tem algo agradavel, nao conhece nenhu- ma excitagao deliciosa, ela é dura e terrivel. Em compara- ¢ao com ela, 0 quao baixo se acha na escala das virtudes mesmo a magnanimidade, que é a qualidade de alguns ra- ros historiadores! Um numero bem maior deles, porém, s6 alcanga a tolerancia, a validacao do que nao conseguem nem mesmo negar, a ordenagéo e 0 adorno comedidamente be- névolo, na suposicao astuta, de que o inexperiente inter- pretard como a virtude da justiga, o fato de o passado em geral é narrado sem um acento incisivo e sem qualquer ex- pressao de ddio. Todavia, somente a forga superior pode julgar, a fraqueza precisa tolerar, se nao simular forca e fa- zer da justic¢a uma atriz na cadeira do juiz. Mas ainda resta uma espécie temivel de historiadores com cardter habil, ri- goroso e sincero - no entanto, com cabega estreita; aqui, a boa vontade para ser justo est4 tao presente quanto o pathos da magistratura. Entretanto, todos os veredictos sao falsos, e mais ou menos com a mesma razao pelas quais as senten- gas do corpo de jurados sao, em geral, falsas. O quao im- provavel é com isto a abundancia do talento histérico! Abstraimo-nos aqui dos egoistas e dos homens de partido disfargados que, contra a sua vontade, representam com uma mascara corretamente objetiva. Abstraimo-nos do mes- mo modo das pessoas totalmente insensatas que, enquanto historiadores, escrevem com a crenca ingénua de que justa- mente a sua época teve razao em todas as opinides popula- res e de que escrever de acordo com ela equivaleria a ser em geral justo; uma crenga na qual vive cada religiao e so- bre a qual, no caso da religido, nao precisamos dizer mais nada. Aqueles historiadores ingénuos chamam “objetivida- de” 4 mensuracao de opinides e feitos passados a partir das opinides mais disparatadas do momento; aqui eles encon- 52 Frepeace Nierzscue tram o cdnone de todas as verdades; seu trabalho é adequar © passado 4 trivialidade contempordnea. Em contraparti- da, eles denominam “subjetivo” toda historiografia que nao tome as opinides populares como canénicas. E mesmo uma ilusao néo poderia imiscuir-se na inter- pretagao mais elevada da palavra objetividade? Compre- ende-se entdo com esta palavra uma condigao do historia- dor, na qual ele contempla um acontecimento em todas as suas motivagées e conseqiiéncias de modo tao puro que este acontecimento nao produz nenhum em sua subjetividade: tem-se em vista aqui aquele fenédmeno estético, aquele des- prendimento do interesse pessoal, com o qual o pintor di- ante de uma paisagem tempestuosa, sob raios e trovées ou sobre o mar revolto, olha sua imagem interior; tem-se em vista a plena imersdo na coisa. Nao obstante, ndo passa de uma superstigao que uma imagem, ao mostrar as coisas em um homem afinado de uma tal maneira, restitua a esséncia empirica das coisas. Ou deverd naquele momento como que desenhé-las, retraté-las, fotografé-las através de sua propria atividade, em um meio puramente passivo? Isto seria uma mitologia, e, além disto, uma mitologia muito ruim. Além disto, esquece-se justamente que aquele momento é mais forte e mais espontaneo de criagao na inte- rioridade do artista, um momento de composigao do tipo mais elevado possivel, cujo resultado seré certamente uma pintura artisticamente verdadeira e ndo historicamente ver- dadeira. Pensar a histéria como objetiva é o trabalho silen- cioso do dramaturgo, a saber, pensar tudo conectado, tecer © esporddico no todo - por toda parte, sob a pressuposigao de que uma unidade do plano nas coisas deve ser alcancada, quando ela no estiver presente. Assim, o homem estende a sua teia sobre o passado e o domestica, assim se expressa seu impulso artistico — mas nao o seu impulso para a verda- de, para a justiga. Objetividade e justia nao tém nada a ver ‘S}G8N0A CONSIDERACAO INTEMPESTIVA 53, uma com a outra. Dever-se-ia pensar uma historiografia que nao tivesse em si nenhuma gota da verdade empirica co- mum e que pudesse requisitar 0 predicado da objetividade no grau mais elevado. De fato, Grillparzer ousa declarar: “© que é a histéria sendo 0 modo como o espirito do ho- mem acolhe eventos impenetrdveis para ele; que, sabe Deus, se se correspondem; que substitui o incompreensivel pelo com- preensivel; através de algo, desloca seus conceitos de con- ‘veniéncia para fora do todo, que s6 conhece movimento para © seu interior; e novamente assume o acaso, onde mil pe- quenas causas agiram. Cada homem tem ao mesmo tempo sua prépria necessidade individual, de tal modo que mi- thées de diregdes correm paralelamente em linhas tortas e retas, umas ao lado das outras, se entrecruzam, exigem, obstruem, aspiram seguir em frente ou voltar atrds ¢ assu- mem através dai, reciprocamente, o carter do acaso. Por- tanto, descontadas as influéncias dos acontecimentes natu- Tais, torna-se impossivel comprovar uma necessidade abrangente, radical, de todo acontecido.” Supée-se, porém, que justamente uma tal necessidade deve ser trazida a luz como o resultado daquela visio “objetiva” das coisas! Esta € uma pressuposigio que, se ¢ expressa como proposi¢ao de fé do historiador, s6 pode assumir uma figura muito es- tranha; Schiller tinha em verdade completa clareza quanto ao cardter propriamente subjetivo desta suposigdo, ao di- zer em relagéo ao historiador: “um fendmeno depois do outro comega a se esquivar ao dominio do acaso cego, da liberdade sem lei, ¢ a tomar seu lugar como o membro ade- quado de uma totalidade harm6nica — que todavia, existe ape- nas em sua representagio.”"' Mas, como se deve considerar a afirmagao de um célebre virtuoso histérico que é introduzi- da com tanta fé e que paira artificialmente entre a tautologia e © contra-senso: “nao se trata de outra questdo, a nao ser de que toda agao e toda motivagio humanas estdo submeti- Aad Frseprich NierescHe das ao curso silencioso das coisas, freqiientemente desaper- cebido, mas violento e irresistivel”?” Em uma tal proposi- Gao nao se percebe mais 0 enigmatico da verdade como nao- verdade sem enigma; tal como na expressio do jardineiro da corte no texto gotheano: “a natureza pode até se deixar forgar, mas ndo pode ser coagida”,” ou no cartaz de uma barraca de feira, contada por Swift: “aqui podemos ver o maior elefante do mundo, com a excegao dele mesmo”. Pois qual é afinal a diferenga entre a ago ¢ a motivagao dos ho- mens e o curso das coisas? Em geral ocorre-me que historia- dores como este que acabamos de citar deixam de instruir no momento em que comegam a generalizar e, entdo, reve- lam o sentimento de suas fraquezas por meio de obscurida- des. Em outras ciéncias, as generalidades sio 0 mais impor- tante, uma vez que contém.as leis. No entanto, se sentengas tais como a acima mencionada devessem valer como lei, entao, precisariamos contrapor que, neste caso, o trabalho do historiador desapareceu; pois em geral © que permane- ce verdadeiro em tais sentengas, depois da retirada daque- le resto obscuro e indissoltivel de que falamos, é algo fami- liar e mesmo trivial; pois esta diante dos olhos, nos ambitos mais diminutos da experiéncia. Mas incomodar povos in- teiros por isto e aplicar nisto anos de trabalho drdua nao significaria mais do que acumular nas ciéneias da natureza um experimento apés 0 outro, depois de a lei jd ter sido ha muito deduzida do tesouro presente dos experimentos: um excesso sem sentido de experimentos, do qual padece a ciéncia da natureza atual desde o tempo de Zéllner. Se o valor de um drama residisse apenas no pensamento con- clusivo e central, entéo o préprio drama seguiria um cami- nho © mais extenso possivel, indireto e fatigante até a meta; € assim espero que a significagao da histéria nao seja reco- nhecida nos pensamentos universais, como em uma espé- cie de flor e de fruto: mas que seu valor seja circunscrever SecUNDA CONSIDERACAO INTEMPESTIVA 55 expirituosamente e elevar um tema conhecido, talvez habi- tual, uma melodia do cotidiano, algé-lo a simbolo abran- gente ¢ assim deixar pressentir no tema original todo um mundo de profundidade, poder e beleza. Para tanto, porém, é requerida antes de tudo uma gran- de poteéncia artistica, um pairar criativamente acima de tudo, do tipo dado — alids, tudo isto diz respeito a objetividade, mas somente como uma qualidade positiva. Todavia, obje- tividade é muito freqiientemente apenas uma palavra. No lugar daquela quietude internamente relampejante, exter- namente imdvel e obscura do olhar do artista, entra em cena a afetagio da quietude; como se a falta de pathos e de forga moral se revestisse de uma frieza aguda da reflexio. Em eertos casos, a banalidade da meditagao, a sabedoria de qualquer um, que sé através do seu tédio dé a impressio de quietude e trangiiilidade, ousa aparecer a fim de legitimar toda condigao artistica na qual o sujeito silencia e se torna completamente imperceptivel. Busca-se tudo 0 que em ge- ral nao estimula e a palavra mais seca torna-se a mais exa- tamente correta. Sim, chega-se mesmo ao ponto de evocar aquele homem para o qual um momento do passado nao significa absolutamente nada para representa-lo. Assim se com- portam, com freqiiéncia, os fildlogos e os gregos, uns em telagdo aos outros: eles nao se interessam por nada ~ cha- ma-se isso também “objetividade”! E precisamente onde o mais elevado e mais raro devem ser representados, o inten- ional ¢ solenemente exposto ser desinteressado, a selecio- nada arte da motivagao sébria e trivial, francamente cho- cante — a saber, quando a vaidade do historiador impele-o a esta indiferenga que assume ares de objetividade. Alias, tais autores levam a concordar com o principio de que cada homem tem tanto mais vaidade quanto mais lhe falta en- tendimento. Nao, sede ao menos sincero! Nao buscai a apa- 56 Freprich Nierzscue réncia da forga artistica, que deve ser chamada de efetiva objetividade, néo buscai a aparéncia da justiga, se vés nao celebrais 0 clamor terrivel do justo! Como se a tarefa de cada €poca, para ser justa, devesse ser contra tudo o que foi uma vez. Epocas e geragdes nunca tém o direito de, até mesmo, serem juizes de todas as épocas e geracdes anteriores: mas sempre apenas aos individuos e, em verdade, aos mais ra- ros entre eles, cabe, pelo menos uma vez, uma missao tao desconfortavel. Quem vos obriga a julgar? E ainda além - colocai-vos 4 prova, apenas para ver se podeis ser justos, se vés 0 quiserdes! Enquanto juizes, precisarieis permanecer superiores em relacdo ao que deve ser julgado; mas vés apenas chegastes depois. Os convidados que chegam por ultimo 4 mesa devem com razao ficar com os tiltimos luga- Tes: e vés quereis ter os primeiros lugares? Entao fazei ao menos o que hd de mais elevado e mais grandioso; talvez se vos conceda neste caso realmente um lugar, mesmo se vés Somente a partir da suprema forga do presente tendes o direito de interpretar o passado: somente na mais intensa tensdo de vossas qualidades mais nobres desvendareis o que ha no passado digno de ser conhecido e conservado. O igual pelo igual! De outro modo, vés conduzireis o passado para bai- x0 juntamente convosco. Nao acrediteis em uma historio- grafia, se ela nao emergir da cabega dos espiritos mais ra- ros, mas sempre percebereis qual é a qualidade de vosso espirito, se [he é necessdrio expressar uma vez mais algo universal ou conhecido por todos: o auténtico historiador precisa ter a forca para converter o que é conhecido por to- dos em algo inaudito, a forga para anunciar 0 universal de maneira tio simples e profunda que nao vé a simplicidade para além da profundidade e a profundidade para além da simplicidade. Ninguém pode ser ao mesmo tempo um gran- de historiador, um artista e um cabega-de-vento: em contra- ‘SEGUNDA CONSIDERAGAO INTEMPESTIVA 57 partida, nao se devem subestimar os trabalhadores que car- regam, armazenam e ordenam o material, porque eles cer- tamente nao puderam se tomar grandes historiadores; nao se devem tampouco confundir historiadores com tais tra- balhadores, mas compreendé-los enquanto aprendizes e aju- dantes necessdrios a servico do mestre: assim mais ou me- nos como os franceses, com uma ingenuidade maior do que € possivel aos alemaes, costumam falar dos historiens de M. Thiers.** Estes trabalhadores devem se transformar paulati- namente em grandes eruditos, mas por isto nunca podem ser mestres. Um grande erudito e um grande cabega-de-ven- to - estes dois j4 se coadunam melhor um com o outro. Portanto: a histéria, escreve-a o homem experiente € superior. Quem nao vivenciou algo maior e mais elevado do que tudo também ndo saberd interpretar nada grandio- so e elevado no passado. A sentenca do passado é sempre oracular: apenas como construtores do futuro, como conhe- cedores do presente, vés a compreendereis. O efeito extra- ordinariamente profundo e amplo de Delfos se esclarece agora, em especial pelo fato de que os sacerdotes délficos eram conhecedores exatos do passado; agora convém saber que apenas aquele que constrdi o futuro tem o direito de julgar o passado. Por isso, vés olhais a frente, cravando uma grande meta, domando, ao mesmo tempo, todo impulso voluptoso e analitico, que agora vos desertifica o presente e torna quase impossivel toda calma, todo crescimento e ama- durecimento tranqiilos. Envolvei-vos com a cerca de uma grande e abrangente esperanga, uma aspiragao esperanco- sa. Formai em vés uma imagem 4 qual o futuro deva corresponder e esquecei a superstigao de ser um epigono. Vos tereis o suficiente para ponderar e inventar, na medida em que meditais sobre aquela vida futura, mas nado requisi- teis a histéria que ela vos mostre o “como?”, o “com 0 qué?”. Se ela, ao contrario, vos imiscuir na histéria dos grandes 58 FrmpicH NIETZSCHE homens, entio aprendereis dela um comando supremo para amadurecer ¢ pata escapar daquele encanto educacional paralisante da nossa época, que vé sua utilidade em nao vos deixar amadurecer para dominar e explorar a vés, os imaturos. E se desejais biografias, entio nio aquelas com o refrao “o senhor tal e tal e uma época”, mas aquelas em que 0s frontispicios deveriam chamar-se “um guerreiro contra seu tempo”. Saciai vossas almas com Plutarco ¢ ousai acre- ditar em vés mesmos, acreditando ao mesmo tempo em vossos herdis. Com uma centena de tais homens educados de maneira nio modema, isto ¢, amadurecidos ¢ habitua- dos ao herdico, toda a subcultura® barulhenta deste tempo poderia ser eternamente silenciada. 7. O sentido histérico, quando vige sem travas ¢ retira to- das as suas conseqiiéncias, desenraiza o futuro, porque des- trdi as ilusdes e retira a atmosfera das coisas existentes, a tinica na qual podiam viver. A justiga histérica, mesmo se real e exercitada com pureza de intengao, é, por isso, uma virtude terrivel, 4 proporgdo que confunde o vivente e o leva 4 decadéncia: seu julgar é sempre um aniquilar. Se por detras do impulso histérico no age nenhum impulso cons- trutivo, se nada é¢ destruido e limpo para um futuro jé vivo, na esperanga de construir sua morada sobre o solo libera- do, se a justiga vige sozinha, entdo o instinto criador é en- fraquecido e desencorajado. Uma religido, por exemplo, que precisasse se converter em saber histérico sob a vigéncia da pura justica, uma religiao que precisasse ser inteiramente conhecida cientificamente, acabaria ao mesmo tempo ani- quilada ao final deste caminho. A raz4o disto esté em que, no ajuste de contas histérieo, sempre vém a tona tantas coi- sas falsas, toscas, inumanas, absurdas e violentas, que a dis- SEGUNDA CONSIDERACAO INTEMPESTIVA 59 posicao para a ilusio piedosa, a tinica na qual tudo o que quer viver pode viver, necessariamente se dissipa: somente no amor, porém, somente envolto em sombras pela ilusio do amor, o homem cria; ou seja, somente na crenga incondi- cional no que é perfeito e correto. Todo aquele a que se obriga a nao mais amar incondicionalmente cortou as raizes de sua forga: ele se torna ressequido, ou seja, insincero. Sob tais efeitos, a histéria ¢ 0 oposto da arte: e somente se a histéria suporta converter-se em obra de arte, ou seja, tornar-se pura forma artistica, ela pode, talvez, conservar instintos e, até mesmo, despertd-los. No entanto, uma tal historiografia poderia contradizer inteiramente o trago analitico e nao ar- tistico de nossa época, sim, sentida por ele como uma falsi- ficagdo. A histéria, porém, que ndo apenas destrdi, sem que um impulso construtivo interno a conduza, torna a longo Pprazo as suas ferramentas esnobes e desnaturadas: pois tais homens destroem ilusdes e “quem destréi ilusdes em sie nos outros pune a natureza como o tirano mais cruel”. E certo que podemos ocupar-nos por um bom tempo com a historia de maneira totalmente inofensiva e irrefletida, como se esta fosse uma ocupagdo téo boa como outra qualquer; em particular, a moderna teologia deixou-se envolver com a histéria por pura inocéncia e, ainda agora, ndo se dispée a notar que, com isto, provavelmente em muito contra a sua vontade, estd a servigo do écrasez voltairiano. Ninguém su- pds por detrds dela novos instintos construtivos podero- sos; se deveria entao legitimar a assim chamada associagao protestante como o colo materno de uma nova religido e 0 jurista Holzendort (o editor e prefaciador da ainda mais problematica biblia dos protestantes), mais ou menos como Joao no rio Jorddo. Por algum tempo a filosofia hegeliana, ainda fumegante em cabegas mais velhas, talvez auxilie na propagagao daquela inocéncia por diferenciar a “idéia do cristianismo” de suas multiplas e imperfeitas “formas de 60 Frrepench NIeTZscHE manifestagdo” ¢ buscar convencer de que seria “a ocupagao preferida da idéia” revelar-se sempre em formas cada vez mais puras, até que, por fim, se revele como a forma certa- mente mais pura de todas, a mais transparente, sim, rara- mente visivel, no cérebro do theologus liberalis vulgaris atual. Todavia, escutando estes cristianismos maximamente imaaulados se expressarem sobre os cristianismos impuros mais antigos, 0 ouvinte imparcial tem freqiientemente a impressio de que nao se fala absolutamente do cristianis- mo, mas de... - em que devemos pensar agora? Se encon- trarmos o cristianismo caracterizado pelos “maiores tedlo- gos do século” como a religido que permite “sentir-se irma- nado com todas as religides reais e ainda com algumas ou- tras religides meramente possiveis”, e se a “verdadeira igre- ja” deve ser aquela que “se tora uma massa fluida na qual nao hd nenhum contorno e na qual cada parte se acha ora aqui ora ld e tudo se mistura pacificamente entre si” ..~uma vez mais: em que devemos pensar? O que se pode aprender com o cristianismo é 0 fato de ele ter se tornado esnobe e desnaturado sob o efeito de um tratamento historicizante, até que, finalmente, um tratamen- to plenamente histérico, isto é, um tratamento justo, o dis- solveu em puro saber acerca do cristianismo e, com isso, 0 aniquilou. Pode-se estudar esta circunstincia em tudo o que tem vida e que deixa de viver ao ser dissecado até o fim e vive dolorosamente doente, se iniciamos a fazer nele exer- cicios histéricos de dissecagdo. HA homens entre os alemaes que acreditam em um poder curativo, transformador e reformador da miisica alema: eles se sentem encolerizados e consideram uma injustiga contra o que hé de mais vivo em nossa cultura quando homens como Mozart e Beethoven se véem jd agora soterrados por todo um deserto erudite de biografias e devido ao sistema de tortura da critica so obri- gados a responder a uma miriade de perguntas impertinen- SEGUNDA CONSIDERACAO INTEMPESTIVA 61 tes. Nao é inteiramente desprezivel que, em seus efeitos vivos, 0 fora do tempo, o ainda nao esgotado ou ao menos paralisado, julgue o nosso desejo pela infinita micrologia da vida e obra e ai procure problemas do conhecimento onde se deveria aprender a viver e a esquecer todos os proble- mas. Transportemos em pensamento apenas uns poucos destes modernos bidgrafos para os lugares de nascimento do cristianismo ou da reforma luterana; sua moderna curio- sidade sdbria e pragmatica seria mais do que suficiente para tornar impossivel qualquer fantastica actio in distans: exata- mente como o animal mais miseravel pode impedir o surgi- mento do mais poderoso carvalho simplesmente engolin- do as sementes. Todo vivente necessita de uma atmosfera 4 sua volta, de uma névoa completamente misteriosa; quan- do lhe retiramos este involucro, quando condenamos uma religiao, uma arte, um génio, a girar como um astro sem atmosfera: entao nao devemos nos espantar mais se ele rapidamente se tornar drido, rigido e infrutifero. Como Hans Sachs diz no Meistersinger, o mesmo acontece com todas as coisas grandiosas “que nunca tém sucesso sem alguma ilusao”. Mas, mesmo este povo, sim, este homem que quer ama- durecer, carece de um tal invdlucro ilusdrio, de uma tal névoa protetora e veladora. Agora, porém, se odeia 0 ama- durecimento em geral, porque se honra a histéria mais do que a vida. Sim, triunfa-se pelo fato de que agora “a cién- cia comeca a dominar a vida”: é possivel que se alcance isso. Todavia, uma vida dominada desta maneira nao é certamente muito valiosa porque é muito menos vida e assegura muito menos vida para o futuro do que a vida outrora dominada nao pelo saber, mas pelos instintos e pelas poderosas imagens ilusdrias. No entanto, como dis- semos anteriormente, a época atual nao é uma época de personalidades prontas e amadurecidas, de personalida- 62 FriepricH NierzscHe des harménicas, mas a época do trabalho conjunto mais util possivel. E isto nao significa mais do que o seguinte: os homens devem ser ajustados aos propésitos da época, para ajudarem o mais cedo possivel; eles devem trabalhar na fabrica das utilidades genéricas antes de estarem ma- duros, sim, e com isso, nao amadurecerao — pois isto seria um luxo que retiraria do “mercado de trabalho” uma quan- tidade enorme de forgas. Cegam-se alguns pdssaros para que eles cantem melhor: nao acredito que os homens de hoje cantem melhor do que seus avés, mas sei que eles so cegados muito cedo. O meio, contudo, 0 meio infame que se aplica para cegd-los é a Iuz demasiado clara, demasiado subita, demasiado varidvel. O homem jovem € chicoteado através de todos os milénios: rapazolas que nada enten- dem de uma guerra, de uma acao diplomatica, de uma politica comercial, consideram como louvavel a sua intro- dugao na histéria politica, Mas assim como o homem jo- vem passeia pela histéria, nds modernos passeamos pelas galerias de arte e ouvimos concertos. Sente-se prontamente que uma coisa soa diferente da outra e produz um efeito diferente do outro: perder cada vez mais este sentimento de estranheza, nao se espantar excessivamente com coisa alguma e, por fim, estar contente com tudo - é isto que se chama de sentido histérico, de cultura histérica. Dito sem dourar a pilula: a massa do que aflui é grande; o estranho, o barbaro e violento, “acumulado em pilhas medonhas”, penetra tao poderosamente na alma jovem que ela sé sabe se salvar com uma estupidez proposital. Onde uma cons- ciéncia mais sutil e mais forte é a base, uma outra sensa- ao também se introduziu: o nojo. O homem jovem se tor- nou demasiado apatrida e duvida de todos os habitos e conceitos. Agora ele sabe uma coisa: em todas as épocas, isso foi diferente, ndo importa como vocé é. Em meio a uma melancdlica apatia, ele deixa passar ao seu lado uma SEGUNDA CONSIDERAGAO INTEMPESTIVA 63 opiniao apds a outra e compreende as palavras e a dispo- sigdo afetiva de Hélderlin ao ler o livro de Didgenes Laér- cio sobre a vida e a doutrina dos fildsofos gregos: “eu tam- bém experimentei aqui uma vez mais 0 que ja tinha me ocorrido algumas vezes, o fato de a transitoriedade e va- riabilidade dos pensamentos e dos sistemas humanos me tocarem mais tragicamente do que os destinos que costu- mam. ser denominados as tinicas coisas reais.” Nao, uma tal historicizagao transbordante, atordoante e violenta nao é certamente necessdria para a juventude, como bem o mostram os antigos, e é mesmo perigosa no mais alto grau, como mostram os modernos. Mas consideremos agora jus- tamente o estudante de histéria, o herdeiro de um esno- bismo que se mostra j4 muito cedo, quase na adolescén- cia. Agora o “método” tornou-se o seu proprio trabalho, a pegada correta e o tom do mestre; um pequeno capitulo do passado totalmente isolado é sua perspicdcia e 0 méto- do aprendido é sacrificado; ele j4 produziu, sim, com as palavras mais orgulhosas, ele “criou”, ele se tornou entao um servical da verdade por meio da agao e senhor no Ambito do mundo histérico. Se j4 estava “pronto” como rapazola, ele esté agora completamente pronto: precisa-se apenas sacudi-lo e entao a sabedoria cai com um grande estampido no colo; no entanto, a sabedoria é preguigosa e toda mag4 tem seu verme. Acreditem em mim: se os ho- mens devem trabalhar na fabrica da ciéncia e se tornarem uteis antes que amaduregam, entao a ciéncia esta arruina- da do mesmo modo que todos os escravos utilizados nes- ta fabrica desde cedo. Grosso modo, lamento que jé tenha- mos a necessidade de nos servir do jargao lingiiistico do proprietdrio de escravos e do empregador para a designa- ao de tais relacGes que deveriam ser em si pensadas como livres de utilidade, desprovidas de necessidades vitais: mas involuntariamente vém a boca as palavras “fabrica, mer- 64 Frieprich NterzscHe cado de trabalho, oferta, utilizagao” - como quer que pos- sam se chamar os verbos auxiliares do egoismo -, quando se querem descrever as geragdes mais jovens dos erudi- tos. A auténtica mediocridade torna-se cada vez mais me- diocre, a ciéncia cada vez mais utilizdvel no sentido eco- ndémico. Os eruditos mais recentes s6 sao propriamente sdbios em um ponto e ai certamente eles si0 mais sdbios do que todos os homens do passado, em todos os outros pontos eles sdo apenas infinitamente diferentes - dito com atengao - de todos os eruditos de velha cepa. Apesar dis- to, eles exigem honras e vantagens para si, como se 0 Esta- do e a opiniao ptiblica fossem responsdveis por tomar as novas moedas como tendo o mesmo valor das antigas. Os trabalhadores bragais firmaram um contrato de trabalho e decretaram o génio como supérfluo - ao mesmo tempo em que cada um deles foi rebatizado génio: provavelmen- te, uma época posterior vai considerar suas edificagdes como tendo sido nao construidas, mas ajuntadas por eles. O incansavel e moderno grito de batalha e sacrificio “Di- visao do trabalho! Em fila!”, deve ser dito, algum dia, de maneira clara e distinta; se vés quereis fomentar 0 mais rapido possivel a ciéncia, entao também ireis aniquila-la 0 mais rapido possivel, exatamente como as galinhas pere- cem se as impelimos artificialmente a colocar ovos répido demais. Bem, a ciéncia foi exigida nos tltimos séculos de uma maneira espantosamente rdpida. Considerai agora, porém, também os eruditos, as galinhas exaustas. Eles nao constituem verdadeiramente nenhuma natureza “harmé- ica”: 86 conseguem cacarejar mais do que nunca porque poem ovos mais freqiientemente: é certo que os ovos tam- bém foram se tornando cada vez menores (por mais que os livros tenham se tornado cada vez mais grossos). Como um resultado derradeiro e natural temos a “popularizacao” universalmente apreciada (ao lado da “feminilizacdo” e SEGUNDA CONSIDERACAO INTEMPESTIVA 65 da “infantilizagao”) da ciéncia, ou seja, o famigerado cor- te da saia da ciéncia a partir do molde fornecido pelo corpo do “ptiblico em geral”: para utilizar aqui, pelo menos uma vez, uma expressao propria a alfaiataria, uma vez que esta é uma atividade de alfaiates alemaes. Goethe viu ai um abuso e exigiu que as ciéncias sé atuassem sobre o mundo exterior apenas por intermédio de uma praxis elevada. Além disto, para as antigas geracGes de eruditos, um tal abuso parecia, por boas razGes, dificil e enfadonho: em todo caso, por boas razées, os eruditos mais jovens consideram-no facil, pois, exceto no caso de um pequenino canto do co- nhecimento, eles mesmos nao passam de um publico mui- to geral e trazem consigo as necessidades deste publico. Eles sé precisam se instalar comodamente para que lhes seja possivel também abrir o seu pequeno campo de estu- do 4 curiosidade e 4 avidez do ptiblico em geral. Além disto, pretende-se chamar este ato de comodidade de “con- descendéncia modesta do erudito em relagio ao seu povo”, mas no fundo o erudito nao fez outra coisa sendo descer ao seu nivel, uma vez que ele nao é um erudito, mas plebe. Criai-vos o conceito de um “povo": jamais podereis pensar este conceito de maneira suficientemente nobre e elevada. Se pensdsseis com grandeza o povo, entéo também serieis caridosos em relagdo a ele e procurarieis se precaver para nao oferecer 0 vosso solvente histérico como bebida refres- cante da vida. No mais intimo, contudo, vés 0 desprezais porque nao estais em condigées de cuidar verdadeira e fundamentadamente de seu futuro e agis como pessimistas praticos, ou seja, como homens que sao guiados pelo pres- sentimento de um desastre e que se tornam por isto indife- rentes e desleixados diante do bem-estar proprio e alheio. Ah, se ao menos 0 solo continuar nos suportando! Mas se ele nao nos suportar mais, também nao ha problema algum ~— assim eles sentem e vivem uma existéncia irénica. 8. Deve parecer, de fato, estranho, mas nao contraditério quando, apesar de tudo, atribuo a uma época que costuma irromper tio perceptivel e inoportuna, em meio 4 exaltagio mais despreocupada acerca de sua cultura histérica, uma espécie de autoconsciéncia irénica, uma suspeita pairando de que nada aqui seria exaltdvel, um medo de que talvez em breve esta época terd passado, com toda a festa do co- nhecimento histérico. Goethe apresentou-nos um enigma similar em relagdo 4 personalidade individual por intermé- dio de sua notdvel caracterizagao de Newton: ele encon- trou no fundo (ou melhor; no ponto mais elevado) de sua esséncia “um turvo pressentimento de seu erro”, a expres- sdo como que perceptivel, em um momento singular, de uma consciéncia reflexiva judicativa que alcangou uma cer- ta visdo irénica abrangente sobre a natureza necessdria que o habitava. Assim, justamente nos maiores e elevados ho- mens desenvolvidos historicamente encontra-se com fre- quéncia uma consciéncia sufocada e levada até 0 ceticismo mais universal, do quanto acreditar-se-ia no absurdo e na superstigao de que a educagéo de um povo deveria ser tao preponderantemente histérica como ela é agora; pois preci- samente os povos mais vigorosos, e, em verdade, vigorosos em seus feitos e obras, viveram de outra maneira, educa- tam a sua juventude diferentemente. Todavia, este absur- do e esta supersticao nos sao adequados — assim diz a obje- Gao cética -, a nds que chegamos atrasados, a nés, a ultima prole empalidecida de geragGes mais poderosas e mais feli- zes, a nés que devemos ser interpretados pela profecia de Hesfodo de que os homens um dia jd nasceriam com cabe- los grisalhos e de que Zeus exterminaria esta geragio assim que esse sinal se tornasse visivel neles. A cultura histérica é também, realmente, uma espécie de encanecimente inate e ‘SBGUNDA. CONSIDERAGAO INTEMPESTIVA. 67 aqueles que trazem consigo seu sinal desde a infancia pre- cisam chegar certamente a crenga instintiva no envelhecimento da humanidade, mas por este envelhecimento paga-se agora com uma ocupagdo senil, a saber, olhar para trés, acertar contas demasiado, fechar-se, buscar um consolo no que foi, pelas lembrangas, em suma, pela cultura histérica. Mas a espécie humana é uma coisa tenaz ¢ persistente e ndo quer ser considerada em seus passos - para frente e para tris — em termos de milénios, sim, mesmo em termos de cem mil anos, ou seja, ela ndv quer ser absolutamente considerada pelos individuos come um todo composto de pontinhos atomi- zados infinitamente pequenos. O que querem dizer afinal alguns milénios (ou expresso de outra maneira: 0 espaco de tempo de 34 geragdes consecutivas com 60 anos cada) para que ainda se possa falar, no comego de um tal tempo, de *juventude” e, no fim, jé de “velhice da humanidade”! Jé Nao se imiscui muito mais nesta crenga paralisante de que a humanidade se encontra em declinio uma incompreensio caracteristica da representagao teolégico-crista herdada da Idade Média, o pensamento do fim préximo do mundo, do juizo final esperado com temor?!? Esta representagao assu- me uma nova roupagem em meio a crescente necessidade de um juiz histérico, como se a nossa época, a ultima possi- vel, tivesse sido ela mesma autorizada a promover aquele julgamento do mundo sobre tudo o que passou, um julga- mento que a cren¢a cristé ndo esperava de maneira alguma por parte dos homens, mas pelo “filho do homem"? Anti- gamente, este “memento mori”, proclamado para a humani- dade assim como para 0 individuo, era sempre um espinho torturante e como que o dpice do saber e da consciéncia medievais. Em contrapartida, a sentenga evocada pelo tem- po moderno, “memento vivere”, soa, para falar francamente, ainda um pouco intimista; nao é enunciada a plenos pul- mées e tem em si algo insincero. Pois a humanidade ainda 68 FraspricH NorrzscHe estd firmemente assentada sobre 0 memento mori e o denun- cia através de sua necessidade histérica universal: apesar do seu mais poderoso bater de asas, 0 saber ndo pide se desprender e se langar no espago aberto. Um sentimento profundo de desesperanga restou e assumiu aquela tonali- dade histérica pela qual toda educagdo e cultura elevada esto melancolicamente ensombrecidas. Uma religiio que, entre todas as horas de uma vida humana, toma a ultima como sendo a mais importante, que profetiza um término da vida na terra em geral e condena todos os viventes a viver no quinto ato da tragédia, excita certamente as forgas mais profundas e mais nobres, Entretanto, ela ¢ a inimiga de todo novo plantio, de todo experimento ousado, de toda aspiraco livre; ela resiste a todo véo em direcdo ao desco- nhecido, porque ela ai nao ama, nada espera: ela s6 deixa 0 que vem a ser se impor contra a vontade, para alijé-lo ou sacrificd-lo no tempo certo como algo que seduz para a exis- téncia, como algo que mente quanto ao valor da existéncia. O que os florentinos fizeram ao promoverem, sob a influén- cia dos sermées de peniténcia de Savonarola,* aquelas fa- mosas queimas sacrificiais de quadros, manuscritos, espe- lhos e mascaras, o cristianismo gostaria de fazer com toda qualquer cultura que estimule o continuar aspirando e conduza aquele memento vivere como lema; e se nao é possi- vel fazer isto sobre um caminho reto, sem rodeios, a saber, por um excesso de forga, entao ele atinge igualmente a sua meta ao se aliar com a cultura histérica, na maioria das ve- zes até mesmo sem o seu conhecimento; entdo, falando a partir dela, ele recusa, dando de ombros, tudo o que vem a ser e estende sobre ele o sentimento de que chegou tarde demais e de que ele é neste sentido epigonal, em suma, 0 sentimento do encanecimento inato. A consideragdo amar- ga e profundamente rigorosa sobre a falta de valor de todos 0S acontecimentos passados, sobre o amadurecer do mun- do:para o dia do juizo, volatizou-se na forma da conscién- cia cética de que em todo caso seria bom conhecer tudo o que passou porque jd seria tarde demais para fazer algo melhor. Com isto, o sentido histérico torna seu servigal pas- sivo e retrospectivo; e quase sé a partir de um esquecimen- to repentino, quando justamente este sentido experimenta uma. certa intermiténcia; o adoentado pela febre histérica torna-se ativo para dissecar sua acdo logo que ela tenha passado, para impedir o prolongamento de sua efetivagao por meio da consideragao analitica e para metamorfosed- lo, por fim, em “histéria”. Desta feita, continuamos a viver na Idade Média e a histéria nao é¢ sendo uma teologia disfargada: exatamente como a veneragao, com a qual ¢ lei- go sem instrugdo trata a casta cientifica, é uma veneragao herdada do clero, O que se entregava outrora para a igreja concede-se agora, mesmo que parcimoniosamente, a cién- cia. Mas 0 fato de se fazer uma tal concessdo foi propiciado outrora pela igreja ¢ nao, inicialmente, através do espirito moderno, que tem, muito mais, em meio a suas outras boas propriedades, como se sabe, algo de avareza, e nao passa de um ignorante na nobre virtude da generosidade. Talvez esta observagio desagrade, tio pouco, talvez, quanto aquela dedugao do excesso de histéria a partir do memento mori medieval e da desesperanga que o cristianis- mo traz no coragao em relagao a todos os tempos vindouros da existéncia terrena. No entanto, deve-se buscar incessan- temente substituir este esclarecimento que dou com algu- ma hesita¢4o por outros melhores. Pois a origem da cultura histérica - e sua oposigao interna completamente radical ao espirito de um “novo tempo”, de uma “consciéncia moder- na” — precisa ser ela mesma conhecida uma vez mais histori- camente; a histéria precisa resolver o préprio problema da histéria, 0 saber precisa voltar 0 seu ferrao contra si mesmo ~ esta necessidade tripla é o imperativo do espirito do “novo tempo”, caso ainda haja nele realmente algo novo, podero- 80, origindrio e promissor para a vida. Ou sera verdade que nds alemaes - para nao levar em conta os povos romanicos — precisamos ser sempre em todas as questées mais eleva- das da cultura apenas “herdeiros” porque nunca poderenios ser mais do que isto, tal como o disse uma vez, Wilhelm Wackernagel, de maneira memordvel: “Nés alemaes somos um povo de herdeiros, ndo somos sendo, com todo o nosso saber superior, com toda a nossa crenga, permanentemente seguidores do mundo antigo; mesmo os que, movidos por uma disposigdo hostil, nao o querem sé-lo, respiram préxi- mo do espirito do cristianismo sem perder o espirito imor- tal da cultura cldssica; e se alguém consegue, a partir do sopro de vida que envolve o mundo interior dos homens, eliminar estes dois elementos, entao nao restaria muita coi- sa para, com isso, prolongar a vida espiritual.”"” Todavia, mesmo se féssemos, nesta tarefa, seguidores da antigiiida- de, nos trangiiilizaria bastante se decidissemos apenas em tomda-la expressa e corretamente a sério e reconhecer nisto nossa prerrogativa especifica e tinica — entdo seriamos, ape- sar disto, obrigados a perguntar se este precisaria ser eter- namente nosso destino, o de ser pupiles da antigiidade deca- dente. Algum dia talvez seja possivel colocar a nossa meta, passo a passo, mais elevada e mais distante, algum dia tal- vez conquistemos 0 direito de sermos louvados pela recria- ga0, em nds, de forma tao frutifera e grandiosa do espirito da cultura romano-alexandrina - também por intermédio de nossa histéria universal - a fim de, entao, como a recom- pensa mais nobre, podermos nos colocar a tarefa ainda mais violenta de dar um passo atrés deste mundo alexandrino, de ansiar para além dele e buscar nossos modelos de uma visdo corajosa no mundo origindrio dos grandes, naturais e humanos gregos antigos. Entretanto, também encontramos ld a efetividade de uma cultura essencialmente a-histérica e de uma cultura que é, apesar disto ou muito exatamente por isto, indescritivelmente rica e plena de vida. Se os alemaes mesmos nao fossem nada além de herdeiros, na medida em que olhassemos para uma tal cultura como uma heranga a ser apropriada por nés, nao poderiamos ser jamais. grandes e orgulhosos, a ndo ser como herdeiros. Com isto nao se tem em vista senao o fato de mesmo a idéia freqientemente penosa e encantadora de ser epigono poder garantir, pensando de maneira grandiosa, tanto para os individuos quanto para um povo, grandes efeitos e um desejo cheio de esperangas no futuro, na medida em que nos compreendemos mesmo como herdeiros e sucessores de poderes classicos e espantosos, vendo ai nossa honra, nossa espora — portanto, como empalidecidos e atrofiados descendentes tardios de geragdes mais fortes, que prolon- gam numa vida gélida antiquarios e coveiros destas gera- ges. Tais descendentes tardios vivem com certeza uma exis- téncia irénica: a aniquilagdo segue de perto o curso coxeante de suas vidas; eles estremecem diante dela ao se alegrarem com © que passou, pois séo. memérias vivas e, no entanto, eles sao tomados pelo turvo pressentimento de que sua vida seria uma injustiga, porque nao lhes da o direito de nenhu- ma vida futura, Mas, suponhamos que tais epigonos antiqudrios repen- tinamente trocassem o descaramento por aquela modéstia ironicamente dolorosa; suponhamos que se anunciem com voz estridente: a nossa geragao esta no seu zénite, pois so- mente agora ela atingiu o saber sobre si e o revelou a si mesma — assim, teriamos um espetaculo no qual, como em uma alegoria, se desvendasse o enigmdtico significado de uma certa filosofia muito célebre para a cultura alema. Acre- dito que nao houve nenhuma oscilagdo perigosa ou mudanga da cultura alem neste século que, por meio da monstruosa, 72 Prmepaictt NierzscHE e até o presente instante ininterrupta, influéncia desta filo- sofia, a filosofia hegeliana, nao tenha se tornado bem mais perigosa. Na verdade, paralisante e desanimadora é a cren- ga em ser um filho tardio de sua época. Uma tal crenga, porém, parece aterradora e dizimadora, se um dia idolatra com uma franca exaltagao este filho tardio como 4 metae o sentido verdadeiro de todos os acontecimentos anteriores, quando a sua miséria sapiente é equiparada a um acaba- mento perfeito da histéria do mundo. Uma tal forma de consideragio acostumou os alemaes a falar em “processo do mundo” e a justificar a sua propria época como o resul- tado necessdrio deste processo; uma tal forma de conside- ragéo colocou a histéria— na medida em que ela é “o con- ceito que realiza a si mesmo”, “a dialética do espirito dos povos” e o “tribunal do mundo” - no lugar dos outros poderes espirituais, a arte ¢ a religiao, como a tinica forga soberana. Chamou-se, com escérnio, esta histéria compreendida hegelianamente o caminhar de Deus sobre a terra: mas um Deus criado por sua vez através da histéria. Todavia este Deus se tornou transparente e compreensivel pafa si mes- mo no interior da caixa craniana de Hegel e galgou todos os degraus dialeticamente possiveis de seu vir a ser até a sua auto-revelagdo: de modo que, para Hegel, o ponto culmi- nante e o ponto final do processo do mundo se confundi- riam com a sua propria existéncia berlinense. Sim, ele po- deria ter dito que todas as coisas por vir depois déle teriam de ser avaliadas propriamente apenas como uma oda mu- sical do rond¢ histérico-mundial, e, mais proprianiente ain- da, como supérfluas. Mas nao o disse! Em vez disto, disse- minou nas geragées por ele fermentadas aquela admiracao diante do “poder da histéria” que praticamente converte todos os instantes em desguarnecida admiragao ahte os re- sultados positivos e conduz a idolatria do factual: para este SEGUNDA CONSIDERAGAO INTEMPESTIVA. 73 culto, em geral, se treinou agora expressao mitologizante e, além disto, com todo o direito, bem alema: “ter em conta os. fatos”. Mas quem aprendeu inicialmente a se curvar e a in- clinar a cabeca diante do “poder da histéria” acaba, por ul- timo, dizendo “sim” a todo poder, balangando mecanica- mente a cabega como os chineses, quer se trate de um go- verno ou de uma opiniao publica ou de uma maioria numé- rica, movimentando seus membros no exato compasso em que qualquer “poder” puxa os fios. Se todo evento contém em si uma necessidade racional, todo acontecimento é a vi- toria do légico ou da “idéia” - entao se ajoelhem depressa e louvem agora toda a escala dos “eventos”! O qué, nao ha- veria mais nenhuma mitologia dominante?!? O qué, as reli- gides teriam entrado em extingao?!? Vede somente a reli- giao do poder histdrico, atentai para os padres da mitolo- gia das idéias e em seus joelhos esfolados! Nao estao até mesmo todas as virtudes no séquito dessa nova crenga? Ou nado se trata de abnegacdo quando o homem histérico se deixa modelar pelo vidro do espelho da objetividade? Nao é magnanimidade abdicar de toda poténcia no céu e na ter- Ta, uma vez que se reverencia em toda poténcia a poténcia em si? Nao é justica ter sempre em maos os pratos da balan- ga e analisar com finura qual deles se inclina como o mais forte e o mais pesado? E que escola de bom-tom € uma tal consideragao da histéria! Tomar tudo objetivamente, nao se exasperar com nada, nao amar nada, tudo conceber: como isto torna suave e maleavel: e mesmo se uma pessoa educada nesta escola chegar algum dia a se exasperar e se irritar publicamente, entdo isto causa alegria, pois se sabe efetiva- mente que nao se tem em vista senéo um efeito artistico; trata-se de ira e studium, e, porém, totalmente sine ira et studio. Que pensamentos antiquados tenho em meu coragéo contra um tal complexo de mitologia e virtude! Mas algum 74 Frrepric NietzscHe dia eles terdo de se expor, mesmo que provoquem o riso. Eu diria, entao: a histéria sempre cunha um “era uma vez”; a moral: “vés ndo deveis” ou “nao devieis”. Assim, a histd- ria torna-se um compéndio de amoralidade fatica. O quio pesadamente se equivocaria aqui alguém que entrevesse a histéria ao mesmo tempo como juiza desta amoralidade fatical Ofende, por exemplo, 4 moral, que um Rafael tenha morrido aos 36 anos: um tal ser nao deveria morrer jamais. Se vés quisésseis auxiliar agora a histéria, como apologetas do factual, vés dirieis: ele disse tudo o que havia nele; em uma vida mais longa, ele sé teria podido sempre criar 0 belo como o mesmo belo, nao como um novo belo, e coisas do género. Desta feita, sois os advogados do diabo; e, em verdade, justamente por transformardes 0 evento, o fato, em vosso idolo: enquanto 0 fato é sempre burro e, em todos 0s tempos, sempre se assemelhou mais a um bezerro do que a um deus. Além disto, como apologetas da histéria, a ignorncia vos insufla pois somente porque no sabeis, como Rafael, 0 que é uma tal natura naturans, nao ficais irritados ao perceber que ela foi um dia nao serd mais. Sobre Goethe, alguém quis recentemente ensinar-nos que ele, com seus 82 anos, se teria esgotado: e, no entanto, eu trocaria de bom grado alguns anos do Goethe “esgotado” por todo um com- boio cheio de novos caminhos de vida ultramodernos, para ainda poder tomar parte em conversas tal como Goethe teve com Eckermann, ¢ desta maneira, me manter resguardado ante a todos os ensinamentos contemporaneos transmiti- dos pelos legiondrios do instante. Quo poucos viventes tém, em comparagao com estes mortos, direito 4 vida! Que mui- tos vivam e aqueles poucos ndo vivam mais, nao é senao uma verdade brutal, ou seja, uma estupidez incorrigivel, um grosseiro “assim é" em contraposigio A moral “isto nado deveria ser assim”. Sim, em contraposigao 4 moral! Pois se pode falar da virtude que se quiser, da justiga, da magnani- SEGUNDA CONSIDERACAO INTEMPESTIVA 5 midade, da coragem, da sabedoria e da compaixao do ho- mem - por toda parte ele é virtuoso, a proporgao que se levanta contra aquele poder cego dos fatos, contra a tirania do real, e se submete a leis que ndo sao as leis daquelas flutuagdes da histéria. Ele sempre nada contra as ondas his- t6ricas, seja porque combate suas paixdes como a facticidade estipida mais préxima de sua existéncia, seja porque se compromete com a sinceridade enquanto a mentira urde ao seu redor sua teia cintilante. Se a histéria no fosse em geral nada além do “sistema mundial de paixao e erro", entiéo o homem precisaria lé-la como Goethe aconselhou seu leitor a ler o Werther, como se ele gritasse: “sé um ho- mem ¢ ndo me sigas!" No entanto, ela também conserva felizmente a meméria dos grandes guerreiros que lutaram contra @ histdria, isto é, contra o poder cego do real e por isso colocando a si mesma no cadafalso, conforme destaca como as naturezas propriamente histéricas justamente aqueles homens que se preocupam pouco com o “assim é”, a fim de seguir muito mais, com um orgulho sereno, 0 “assim deve ser”. Nao levar a sua geragdo para o timulo, mas fundar uma nova geragao — isto o impele continuamente para fren- te: e se eles mesmos tiverem nascido tardiamente hia um modo de viver que produz o esquecimento disso -; as gera- gdes vindouras os conhecerio apenas como primogénitos. 9, E talvez o nosso tempo um tal primogénito? De fato, a veeméncia do seu sentido histérico é tio grande e se exterioriza de uma maneira tio universal e simplesmente irrestrita que, a0 menos neste ponto, o tempo vindouro elo- giard a sua primogenitude — caso houver afinal tempos vin- douros, entendidos no sentido da cultura. Justamente quan- to a isto, porém, resta uma diivida pesada. Bem ao lado do 76 Frueprich Nierzscue orgulho do homem moderno encontra-se a sua ironia'em relagio a si mesmo, a sua consciéncia de que precisa viver em uma disposicao historicizante e como que notuma, seu temor de nada mais poder salvar, no futuro, de suas forgas e esperangas juvenis. Aqui e ali, adentra-se ainda mais além no cinismo e justifica-se o curso da histéria, sim, o desenvol- vimento conjunto do mundo, totalmente apropriado ao uso do homem moderno, segundo o cinone cinico: as coisas devem acontecer exatamente como agora e o homem deve tornar-se como agora 0s homens o sao ¢ nao de outro modo, ninguém se pode insurgir contra este imperativo. Aquele que nao consegue suportar a ironia busca reftigio no bem- estar de um tal cinismo; além disto, ele ofereceu como pre- sente na wltima década uma de suas mais belas invengdes, uma frase perfeita e acabada para aquele cinismo: ele cha- ma seu modo de viver de acordo com 0 seu tempo e com- pletamente sem reflexdo de “a entrega total da personali- dade ao processo do mundo”. A. personalidade e o proces- 80 do mundo! O processo do mundo e a personalidade da pulga terrena! Se ao menos nao tivéssemos de ouvir eterna- mente a hipérbole de todas as hipérboles, a palavra: mun- do, mundo, mundo; enquanto cada um, sinceramente, 56 deveria falar de homem, homem, homem! Herdeiros dos gregos e dos romanos? Do cristianismo? Tudo isto parece nada para aqueles cinicos: apenas herdeiros do processo do mundo! Apices e alvos de vidro do processo do mundo! Sentido e solugao de todo o enigma do vir a ser expressos no homem moderno, o fruto mais maduro da drvore do conhecimento! - eu denomino isto uma grandiosa exaltagao; nestes sinais devem ser reconhecidos os primogénitos de todos os tempos se, apesar disto, eles chegaram atrasados. Mesmo em sonho, a consideragao histérica nunca voou para tdo longe; pois a histéria dos homens € agora apenas a con- tinuagio da histéria dos animais e das plantas; sim, nas SEGUNDA CONSIDERACAO INTEMPESTIVA 77 profundezas mais abissais do mar, o universalista histérico encontra ainda os vestigios de si mesmo, como lama viva; 0 caminho descomunal, que o homem j4 percorreu admira- do, como um milagre, oscila ao olho diante de um milagre que encobre este caminho. Ele se encontra orgulhosamente postado no alto da pirimide do processo do mundo: no que ele coloca ai em cima a pedra conclusiva de seu conheci- mento, ele parece conclamar a natureza curiosa a sua volta: “nés atingimos a meta, nés somos a meta, nds somos a na- tureza aperfeigoada!” Europeu super-orgulhoso do século dezenove, tu estds fora de ti! O teu saber nao aperfeigoa a natureza, ele apenas mortifica a tua propria natureza. Compara, pelo menos uma vez, a tua altura, como homem de conhecimento, com a tua baixeza, como homem de ago. Tu escalas em dirego ao céu pelos raios do sol do saber, mas também desces rumo ao caos. Teu modo de andar, mais exatamente como andas enquanto homem de conhecimento, ¢ tua fatalidade; fundamento e solo, segundo pensas, recuas para o interior da incerteza; para a tua vida, ndo h4 mais nenhum suporte, sé teias de aranha rompidas a cada nova intervengao de teu conhecimento. Mas uma vez que ainda ¢ possivel dizer algo mais sereno. © raivoso e impensado estilhagamento e desmantela- mento de todos os fundamentos, sua dissolugio em um vir a ser que sempre se dilui, o desfiar ¢ a historicizagao inean- sdvel de tudo o que veio a ser, através do homem moderno, a grande aranha cruzeira no né da teia cdésmica - 0s mora- listas, os artistas, os homens pios e mesmo também o polfti- co, gostariam de se ocupar e se preocupar com isso; por agora devemos apenas nos divertir com o fato de vermos tudo isto no espelho mdgico e brilhante de um parodista fi- loséfico em cuja cabeca o tempo aleangou uma consciéncia 78 Freprich Nierzscue irénica de si mesmo, e, em verdade, claramente “até a infa- mia” (para falar como Goethe). Hegel ensinou-nos certa vez: “quando o espirito muda de diregao, nés filésofos também vamos junto”: nosso tempo tomou a diregio da auto-ironia, e vede! E. von Hartmann também estava ai e jd tinha escrito a sua célebre Filosofia do inconsciente - ou para falar mais claro - a sua filosofia da ironia consciente. Raramente le- mos uma invengdo mais divertida e uma pandega mais fi- loséfica do que a de Hartmann; quem nao é esclarecido por ele quanto ao vir a ser, sim, quem é internamente organiza- do, estd realmente maduro para o ter-sido, Comego e meta do processo do mundo, do primeiro rasgo de consciéncia até o langar do vir a ser de volta ao nada, incluindo a tarefa exatamente determinada de nossa gera¢io para 0 processo do mundo, tudo apresentado a partir da fonte de inspira- g4o do inconsciente, inventada de maneira tao engragada e brilhando sob uma luz apocaliptica, tudo tao ilusério e macaqueado, com uma seriedade téo proba, como se fosse realmente uma filosofia séria e nio apenas jocosa: uma tal totalidade marca 0 seu criador como um dos primeiros pa- todistas filoséficos de todos os tempos: portanto, sacrifi- quemos um cacho de cabelo em seu altar, sacrifiquemo-nos a ele, o inventor de uma verdadeira medicina universal - para incluir uma expressao de admiragdo de Schleiermacher. Pois que medicina seria mais saudavel contra a sobremedida de cultura histérica do que a parédia hartmanniana de toda a histéria do mundo? Se quiséssemos enunciar secamente o que Hartmann nos diz acerca do tripode enfumagado da ironia inconsciente, teriamos de dizer: ele nos conta que nossa época s6 poderia ser exatamente assim como ela é, se pudesse acolher seria- mente, pelo menos uma vez, a humanidade dessa existén- cia: 0 que acreditamos de todo coragao. Esta terrivel ossifi- cago da nossa época, este chocalhar inquieto dos ossos — ‘SEGUNDA CONSIDERACAO INTEMPESTIV A 79 tal como nos descreveu ingenuamente David Strauss como a mais bela facticidade — é justificado por Hartmann nio s6 de tras para frente, ex causis efficientibus, mas até mesmo desde o principio, ex causa finali; desde o dia do juizo final o pandego deixa a luz brilhar sobre a nossa época e ai se des- cobre que ela é muito boa, a saber, para aquele que quer padecer o mais fortemente possivel de indigestio da vida, e que este juizo final no pode ser desejado de maneira su- ficientemente répida. Em verdade, Hartmann denomina a idade da qual a humanidade estd agora se aproximando de “a idade do homem’”. Porém, esta é, segundo a sua deseri- ¢ao, a feliz condigéo em que hé ainda uma “sélida medio- cridade” ¢ a arte é o que a “comédia grosseira” ¢, 4 noite, “para os homens de negécios de Berlim”, onde os “génios deixaram de ser uma necessidade da época, porque isso sig- nificaria jogar pérolas aos porcos ou também porque o tem- po progrediu além do estagio que gerou génios, para um eedencelsioyperiaaie” aquele est4gio do desenvolvimen- to social em que cada trabalhador, “tendo um dia de traba- tho que permita écio suficiente para a sua formagao intelec- tual, conduz uma existéncia confortavel”. Pandego de to- dos os pandegos, tu enuncias a nostalgia da humanidade atual. No entanto, ao mesmo tempo, sabes muito bem que, ao final desta idade do homem, o resultado serd uma for- magao intelectual voltada para a sdlida mediocridade - 0 nojo. De maneira evidente, as coisas jd se acham totalmente deploraveis e elas ainda ficario ainda mais deploraveis, pois “de maneira evidente, o Anticristo agarra cada vez mais 0 que estd em volta dele” — mas isso deve ser assim, acontecer assim, pois desse modo, estamos no melhor caminho ~ 0 do nojo pelo existente. “Por isto, em frente, vigorosos no pro- cesso do mundo, caminhemos como trabalhadores nas vi- nhas do senhor, pois somente 0 processo pode nos condu- zir A redengio!” 80 FRIEDRICH NIETZSCHE A vinha do senhor! O processo! Para a redencdo! Quem nao vé e nao escuta aqui a cultura histérica, esta cultura que sé conhece a palavra “vir a ser”, quem nao vé como ela se disfarca aqui intencionalmente em uma deformidade pardédica, como ela diz as coisas mais pérfidas sobre si mes- ma apresentando-se com uma mascara grotesca?!? Pois o que almeja, de verdade, este ultimo clamor velhaco dos tra- balhadores nas vinhas do senhor? Em que trabalho eles devem ansiar por ir, vigorosamente, 4 frente? Ou para per- guntar de outra maneira: o que resta ainda fazer ao homem com cultura histérica, ao moderno fanatico do processo que vai nadando e se afogando na corrente do vir a ser a fim de colher aquele nojo, a uva mais deliciosa daquela vinha? — ele nao precisa fazer nada além de continuar vivendo como ele viveu, continuar amando o que amou e odiando o que odiou, lendo os jornais que leu, pois para ele, s6 ha um tni- co pecado — viver de maneira diversa da que sempre viveu. Mas 0 modo como ele viveu, nos é dito na sua exorbitante clareza de caracteres de pedra, aquela célebre pagina im- pressa com grandes proposigées, sobre as quais toda a for- magdo da turba cultural contemporanea caiu em um des- lumbramento cego e em um éxtase encantado porque acre- ditava ler nestes caracteres sua propria justificacdo, e, em verdade, sua justificagdo sob uma luz apocaliptica. Pois o parodista inconsciente exigia de cada individuo “a plena entrega de sua personalidade ao processo do mundo, por causa de uma meta, querer a redengao do mundo”, Ou ain- da mais luminosa e claramente: “a afirmagdo da vontade de viver € proclamada como a tinica coisa provisoriamente correta; pois apenas na entrega plena 4 vida e suas dores, nao na remincia e no recolhimento pessoal covarde, é pos- sivel realizar algo para o processo do mundo”; “o ansiar pela negacao individual da vontade é€ tao tolo e imitil ou mesmo mais tolo do que o suicidio”. “O leitor pensante com- ‘SEGUNDA CONSIDERACAO INTEMFESTIVA 81 preenderd mesmo sem uma elucidagao ulterior como uma filosofia pratica erigida sobre estes principios se configura- tia e que uma tal filosofia sé pode conter em si no a cisao, mas apenas a plena reconciliagio com a vida.” O leitor pensante 0 compreenderd: pode-se interpretar mal Hartmann! E 0 quao indescritivelmente engragado é téo interpretado mal! Deveriam ser os alemies de hoje muito refinados? Um inglés digno sente nele a falta de delicacy of perception® e ousa mesmo dizer “in the german mind there does seem to be something splay, something blunt-edged, unhandy and infelicitous”™ - e se o grande parodista alemao © contradissesse totalmente? Em verdade, segundo a sua explicagao, estamos nos aproximando “daquele estado ideal em que a espécie humana cria sua histéria com conscién- vez ainda mais ideal em que a humanidade lé 0 livro de Hartmann com consciéncia. Se isto acontecer, entio nenhum homem permitird mais que a expressdo “processo do mun- do” escape de seus Libios sem que estes sorriam, pois esta época ser4 lembrada como aquela que escutava, absorvia, contestava, venerava, propagava e canonizava o Evange- lho parédico de Hartmann com toda a probidade da “german mind” ,*' sim, com a “seriedade contorcida da coruja”, como diz Goethe. Mas o mundo precisa seguir em frente, aquele estado ideal ndo pode ser criado em sonho, é preciso lutar por ele e conquistd-lo, e somente através da serenidade o caminho segue até a redengao, até a redengio daquela serie- dade de coruja. Ainda vird o tempo em que se abdicaré sa- biamente de todas as construgées do processo do mundo ou mesmo da histéria da humanidade, um tempo em que nao se considerard mais de modo algum as massas, mas, novamente, os individuos que estabelecem uma espécie de ponte sobre a corrente desértica do vir a ser. Os individuos nao dao continuidade, por exemplo, a um processe, mas 82 FaunoricH NusrzscHe vivem, simultaneamente, fora do tempo; gragas a histéria que permite uma tal atuagdo conjunta, eles vivem como a teptiblica do génio da qual Schopenhauer falou certa vez; um gigante conclama 0 outro através de intervalos desérticos entre os tempos, e, imperturbado pela algazarra de pérfi- dos andes que se aos seus pés, prossegue o eleva- do didlogo espiri tarefa da histéria é a de ser a media- dora entre eles ¢ assim dar incessantemente lugar 4 geragio do grande homem e lhe emprestar forgas. Nao, a meta da humanidade no pode residir no fim, mas apenas em seus mais elevados exemplares. Em contrapartida, 0 nosso divertido personagem fala com aquela dialética digna de nota que é exatamente tao auténtica quanto os seus admiradores sda dignos de consi- deragao: “Tao pouco poder-se-ia suportar isso, com 0 con- ceito de desenvolvimento, ao qual o processo do mundo atribui, no passado, uma duragao infinita, porque entao todo desenvolvimento pensavel de qualquer coisa j4 deveria ter acontecido, o que nao é ainda o caso” (6, maroto!); “do mes- mo modo, tio pouco podemos conceder ao processo uma duragao infinita no futuro; as duas coisas colocariam em suspenso 0 conceito de desenvolvimento em diregio a uma meta” (6, uma vez mais, 6 maroto!) “e equiparariam o pro- cesso do mundo aos jarros d’4gua das Danaides. Mas a vi- téria total do elemento légico sobre o ilégico” (6, maroto entre todos os marotos!) “deve coincidir com o fim tempo- ral do processo do mundo ~ o juizo final”. Nao, tu espirito hicido e trocista, enquanto o ilégico predominar tanto como hoje em dia, enquanto se puder ainda falar, por exemplo, de “processo do mundo” com a aprovagao geral tal como tu falas, o juizo final ainda estard muito distante: pois se est4 ainda muito trangiilo sobre a terra, ainda florescem algumas ilusées; por exemplo, a ilusio de teus contempo- Taneos contigo. Néo estamos maduros ainda para sermos ‘SEGUNDA CONSIDERACAO INTEMPESTIVA 83 arremessados de volta ao nada, pois acreditamos que as coisas tornar-se-40 mesmo ainda mais divertidas por aqui se comegarem a te compreender, a ti, homem do incons- ciente incompreendido. Se apesar disto, contudo, o nojo ti- vesse de surgir com forga, tal como tu o profetizaste aos teus leitores; se tivésseis efetivamente raz4o em tua descri- ga0 de teu presente e teu futuro - e ninguém desprezou tanto os dois, ninguém desprezou com tanto nojo os dois quanto tu -, estou realmente pronto a concordar com a maioria sob a forma proposta por ti, de que na noite do préximo sdbado, exatamente 4 meia-noite, teu mundo deve perecer; e 0 nosso decreto pode firmar: a partir de amanha nao haverd mais nenhum tempo e nao serd publicado mais nenhum jornal. Contudo, ele talvez nao tenha efeito algum e nds o decretamos em vao: de qualquer modo, no nos fal- ta tempo para um belo experimento. Nés pegamos uma balanga, colocames em um dos pratos o elemento incons- ciente de Hartmann e no outro 0 seu processo do mundo. Ha homens que acreditam que 0s dois terao exatamente o mente pifia e uma piada igualmente boa. Mas se a piada de Hartmann for ao menos compreendida, entao nio se utili- zaria mais a sua expressdo “processo do mundo” sendo jus- tamente como piada. De fato, jd estd mais do que na hora de atacar as digressdes do sentido histérico, o prazer desmedi- do no processo 4 custa do ser e da vida, o insensato deslo- camento de todas as perspectivas, com todas as tropas de maldades satiricas; e é preciso sempre que se diga em lou- vor do autor da Filosofia do ineonsciente que ele foi o primei- ro a sentir intensamente risivel o que ha de ridiculo na re- presentagio do “processo do mundo” e a permitir ser imi- tado ainda mais intensamente, por intermédio da serieda- de de sua apresentagao. Porque o mundo esta ai, porque a humanidade est ai, nao deve, por enquanto, absolutamen- 84 FriepricH NIETZscHE te nos preocupar, pois isso seria como se quiséssemos fazer uma piada conosco mesmos: pois a presungao do pequeno verme humano é agora a coisa mais divertida e mais hila- riante sobre o palco terrestre. Mas, para que tu, individuo, estds ai, eu te pergunto e nenhum de vés nada diz, para justificar, mesmo que a posteriori, o sentido da tua existén- cia, de tal modo que tu mesmo antevejas uma meta, um alvo, um “para isso”, um elevado e nobre — nao sei de ne- nhuma meta melhor para a vida do que perecer junto ao que ¢ grandioso e impossivel, animae magnae prodigus.” Se, ao contrario, as doutrinas do vir a ser soberano, da fluidez de todos os conceitos, tipos e géneros, da falta de toda dife- renga cardinal entre homem e animal - doutrinas que tomo por verdadeiras, mas letais - no furor habitual por instru- 40, sejam ainda jogadas no povo durante uma geracao, entao ninguém deve se espantar se o povo naufragar no que € egoisticamente pequeno e miserdvel, na ossificagao e ganancia, ou seja, para ser, antes de mais nada, povo muti- lado e extinto: no seu lugar talvez adentrem na arena do futuro um sistema de egoismos singulares, irmandades vi- sando 4 exploragao abusada dos nao irmaos, e criagées si- milares da vulgaridade utilitaria. Para preparar 0 caminho destas criacdes, continua-se escrevendo a histéria desde o ponto de vista das massas, para procurar nessa historia aque- las leis que sao deduzidas das suas necessidades, ou seja, as leis do movimento das camadas mais baixas de lama e de argila da sociedade. As massas me parecem dignas de consideragdo apenas em trés aspectos: primeiro, como cé- pias esmaecidas dos grandes homens, produzidas com um papel ruim e com chapas gastas; em seguida, como obstd- culo aos grandes e, por fim, como ferramenta dos grandes; no resto, que 0 diabo e a estatistica as carreguem! Como, a estatistica ndo demonstrou que haveria leis na histéria?!? Leis?!? Sim, ela demonstrou 0 quao vulgar e repugnante é a ‘SEGUNDA CONSIDERACAO INTEMPESTIVA 85 massa na sua uniformidade: deve-se denominar o efeito das forgas gravitacionais lei da estupidez, do macaquear, do amor e da fome?!? Ora, admitamo-lo, também se firma com isto a sentenga: tanto mais haja leis na histéria, elas nada valem e a histéria também. No entanto, valoriza-se em ge- ral agora justamente esse tipo de histdria que toma os gran- des impulsos das massas como o mais importante e princi- pal na histéria ¢ consideta todos os grandes homens ape- nas como a sua expressio mais nitida, como bolhinhas que se tornaram visiveis sobre a torrente das 4guas. Neste caso, a massa deve gerar de si mesma o grande: o caos deve gerar de si mesmo a ordem; por fim, é entoado, entdo, o hino a massa geradora: Denomina-se “grande”, entdo, tudo .o que movimentou por um longo tempo uma tal massa e foi, como se costuma dizer, “um poder histérico”. Mas isto nao signi- fica confundir com razdo, deliberadamente, qualidade e quantidade? Se a massa tosca encontrou um pensamento qualquer, por exemplo, um pensamento religioso efetiva- mente adequado, defendendo-o obstinadamente e arrastan- do-o por séculos: entdo, justamente. o criador e fundador daquele deve ser tomado como grande?!? Por que, afinal?!? O mais nobre e elevado nio produz efeito al- gum sobre as massas; o sucesso histérico do cristianismo, seu poder histérico, tenacidade e duragio temporal, tudo isto felizmente nada prova quanto a grandeza de seu fun- dador, pois isso, no fundo, voltar-se-ia contra ele mesmo: mas, entre ele e aquele sucesso histérico reside uma cama- da muito profana e obscura de paixao, erro, avidez por po- der e honra, de forgas que preservam os efeitos do imperium romanum, uma camada que recebeu do cristianismo aquele gosto e residuo terrenos que possibilitou sua continuagio neste mundo e como que lhe concedeu sua durabilidade. A grandeza nao deve depender do sucesso e Deméstenes é grande mesmo sem ter tido nenhum sucesso. Os discfpulos 86 Frepeicy Nierzscue mais puros e mais verdadeiros do cristianismo sempre co- locaram acima de tudo em questao seu sucesso mundial, seu conhecido “poder histérico” e o obstruiram mais do que © promoveram; pois eles tratavam de colocar “o mundo” fora deles e ndo se preocupavam com o “processo da idéia cristé”; por isto, em sua maioria, permaneceram totalmente desconhecidos e anénimos para a histéria. Expresso de maneira cristd: o diabo é o regente do mundo e o mestre dos sucessos e dos progressos. Ele é, entre todos os poderes histéricos, 0 poder propriamente dito e, no essencial, é as- sim que ele permanecerd — mesmo se isto soar penosamen- te aos ouvidos de uma época que se acostumou 4 idolatria do sucesso e do poder histérico. Pois ela mesma se exerci- tou, justamente, em renomear as coisas e em rebatizar 0 proprio diabo. Esta é de fato a hora de um grande perigo: os homens parecem préximos de descobrir que o egoismo dos individuos, dos grupos ou das massas sempre foi em todos os tempos a alavanca dos movimentos histéricos; a0 mesmo tempo, porém, esta descoberta ndo é nada tranqui- lizadora, embora decrete-se: 0 egoismo deve ser nosso deus. Com esta nova crenca, prepara-se a construgio, a partir de si mesmo, com intengSes bem claras, da histéria por vir: este egoismo deve apenas ser muito arguto, que se impo- nha algumas limitagSes, que o fixem, de maneira duradou- ra, como um egoismo que estuda histéria justamente para conhecer 0 egoismo tolo. Em meio a este estudo aprendeu- se que 0 Estado possui uma missao totalmente particular no sistema mundial do egoismo a ser fundado: ele deve tor- nar-se 0 patrio de todos os egoismos argutos, a fim de protegé-los com sua forga militar e policial das terriveis irrupgdes do egoismo tolo, £ para a mesma meta que a his- téria - e, em verdade, enquanto histéria do animal e do homem - também é cuidadosamente inculcada nas massas perigosas porque tolas, e nas camadas dos trabalhadores, ‘SEGUNDA CONSIDERACAO INTEMPESTIVA 87 porque se sabe que um graozinho de cultura histérica esté em condigdes de romper os instintos e desejos rudes e tos- cos ou dirigi-los para o caminho do egoismo refinado. Em suma: para falar agora, como E. von Hartmann, “pondera, olhando cuidadosamente para o futuro, mobiliar sua casa pratica e confortavelmente, na patria terrena”, O mesmo escritor denomina um tal periodo “a idade do homem na historia da humanidade” ¢ escarnece, com isso, do que é chamado agora de “homem’” — como se sob este termo sé se compreendesse o moderado egoista; como ele profetiza; em todo caso, apds esta idade, uma idade encanecida ligada a ela também nado deixa, evidentemente, de escarnecer de Nossos ancidos contemporineos: pois ele fala da sua con- templagdo madura com a qual “abarcam com o olhar todo o sofrimento que irrompe no deserto de sua vida passada e compreendem a vaidade de sua Ansia, até aqui, por preten- sas metas”. Nao, uma idade do homem do egoismo desnor- teado e formado historicamente, corresponde a uma idade encanecida e agarrada 4 vida com uma avidez repulsiva e indigna; assim, entdo, um ultimo ato, com o qual “esta rara e alternante histéria termina como segunda infancia, como total esquecer, sem olhos, dentes, paladar, coisa alguma”. Os perigos de nossa vida e de nossa cultura provém entao, ou destes ancidos ressequidos, sem dentes e sem pa- ladar ou daqueles “homens” de Hartmann: diante destas duas possibilidades queremos afirmar o direito de nossa juventude com unhas e dentes e nio cansaremos de defen- der, na nossa juventude, o futuro contra as imagens arrui- nadas do futuro. Nesta luta, porém, também precisamos perceber algo particularmente ruim: exige-se, encoraja-se — € utiliza-se o excesso de sentido histérico, do qual o presente padece. 88 Frmpmcn NierescHe Mas utiliza-se tudo isso contra a juventude, a fim de dirigi-la para aquela idade madura do egoismo almejada por toda parte, as pessoas utilizam-no para quebrar a resis- téncia natural da juventude por intermédio de uma ilumi- nagao transfiguradora, mais propriamente mdgico-cientifi- ca, deste egoismo viril-nao viril. Sim, sabe-se que a histéria possibilita uma certa preponderincia, através da qual algo que conhecemos com exatidao desenraiza os instintos mais ides dicprosineiae sve legs sua rebeldia, seu auto-esque- cimento e seu amor, diminuindo 0 calor de seu sentimento de justia, amadurecendo lentamente os desejos através do contradesejo de estar rapidamente a postos, util e frutifero para dominar ou reprimir, para, ceticamente, tornar doen- tes a seriedade e a ousadia das sensagdes: sim, a propria histéria consegue até mesmo iludir a juventude quanto ao seu privilégio mais belo, quanto a sua forga para semear em si um grande pensamento com uma f¢ exuberante e para deixar crescer a partir dele um pensamento ainda maior. Um certo excesso de histéria possibilita tudo, nés o vimos: e, em verdade, a proporgéo que, por meio de deslocamen- tos do horizonte de perspectivas, da eliminagaéo de uma atmosfera envoltéria, ndo permite mais sentir e agir a-histo- ricamente. Ele se retrai, entao, ao dominio do menor dos egoismos, tornando-se aj drido e seco; provavelmente, isso o leva a arguicia, nunca a sabedoria. Ele deixa de ser intran- sigente, acerta as contas e se pacifica com os fatos, nio se exalta, pisca e compreende que ¢ necessério procurar o pré- pric proveito ou o do seu partido nas vantagens e desvan- tagens alheias; ele desaprende o pudor supérfluo e trans- forma-se assim gradualmente no “homem” e no “ancio” de Hartmann, Mas para isto ele deve se transformar, é justa~ mente este o sentido da “plena entrega da personalidade ao processo do mundo”, agora to cinicamente exigida — em torno de suas metas, de querer a redengdo do mundo, ‘SEGUNDA CONSIDERAGAO INTEMPESTIVA 89 como E. von Hartmann, o pandego, nos assegura. Entao, vontade e meta daqueles “homens e ancidos” de Hartmann. dificilmente trazem consigo a redengdo do mundo. Entre- tanto, o mundo estaria, certamente, mais redimido, se ele 0 fosse por estes homens e ancidos. Pois assim chegaria 0 império da juventude. 10. Pensando neste lugar da juventude grito, Terra! Terra! Suficiente e mais do que suficiente, apaixonada busca e viagem errante, por mares estranhos e obscuros! Agora finalmente mostra-se uma costa: como quer que ela seja, nela deve-se ancorar e o pior porto emergencial é melhor do que retornar vacilante para a infinitude cética e sem esperancas. Fiquemos em terra firme; encontraremos mais tarde bons portos e facilitaremos a chegada dos que vie- rem depois. Perigosa e excitante foi esta viagem. O quao longe estamos agora da contemplagao tranqiiila com a qual vi- mos inicialmente nosso navio langar-se ao mar. Perceben- do os perigos da histéria, encontramo-nos expostos o mais intensamente possivel a todos estes perigos; nds mesmos ostentamos os vestigios daqueles sofrimentos que, em con- seqiiéncia do excesso de histéria, se abateram sobre os ho- mens da nossa época, e justamente este ensaio mostra, como nao quero me esconder na desmedida de sua critica, na imaturidade de sua humanidade, nas freqiientes passagens da ironia ao cinismo, do orgulho ao ceticismo, o seu cardter moderno, o cardter da personalidade fraca. No entanto, con- fio no poder inspirador que, na auséncia do génio, dirige a embarcagéo por mim, confio na juventude, ela me conduziu aqui corretamente, quando impulsionou a um protesto con- tra a educagao histdrica da juventude, conduzida pelo homem mo- 90 Frmepaicy NievzscHe derno, e quando exigiu daquele que protesta que o homem, sobretudo, aprenda a viver e 56 utilize a histéria a servigo da vida aprendida. E preciso ser jovem para entender este pro- testo, sim; pode-se, em meio ao encanecimento precoce de nossa juventude atual, ser raramente jovem o bastante para pressentir contra o que se esté propriamente protestando aqui. Gostaria de langar mio de um exemplo. Na Alema- nha, ndo muito mais do que hé cem anos, despertou em alguns jovens um instinto natural para o que se denomina poesia. Serd que se supde que a geragdo anterior e a da épo- ca destes jovens nao teria falado absolutamente nada sobre essa arte que para eles era internamente tao estranha e arti- ficial? Sabe-se o contrario: que eles refletiram, escreveram ¢ discutiram com todas as forgas corporais sobre “poesia”, com palavras e mais palavras. A eclosio deste despertar de uma palavra para a vida n4o implicou ao mesmo tempo a morte daqueles artifices da palavra; em um certo sentido, eles vivem ainda, pois, se como Gibbon diz, se nada mais que tempo, mas muito tempo, é necessdrio para que um mundo perega, entéo também nao é necessdrio senao tem- Po, mas muito mais tempo ainda, para que na Alemanha, no “pais do gradualmente”, um conceito falso perega. Nio obstante: hd agora talvez cem homens a mais do que hé cem anos atrés que sabem o que é poesia; talvez haja daqui a cem anos novamente mais cem homens que, entrementes, também aprenderam o que é cultura e que os alemaes nun- ca tiveram cultura até aqui, por mais que gostem e se or- gulhem de falar dela. O contentamento generalizado dos alemies com sua “cultura” hes parecerd inacreditavel e tolo, exatamente como nos parece o cardter cldssico de Gottsched,® outrora aclamado, ou a legitimagao de Ramler como um Pindaro alemao. Eles talvez julguem que essa cul- tura teria sido apenas uma espécie de saber sobre a cultura, e, além disto, um saber efetivamente falso e superficial. Fal- SEGUNDA CONSIDERACAO INTEMPESTIVA 91 so e superficial, em verdade, porque se sustentou a contra- dicgao entre vida e saber, porque nao se viu absolutamente © caracteristico na formagao de verdadeires povos aculturados: que a cultura sé pode crescer ¢ florescer a par- tir da vida, enquanto ela foi abandonada pelos alemaes como uma flor de papel ou langada sobre eles como uma cobertu- ra de acuicar e, por isto, deve permanecer sempre mendaz e infrutifera. Todavia, a educagdo da juventude alema parte justamente deste conceito falso e infrutifero: sua meta, pen- sada como pura e elevada, nao é de maneira alguma o ho- mem culto livre, mas o erudito, o homem de ciéncia, e, em verdade, o homem de ciéncia, o mais rapidamente util, que se separa da vida a fim de reconhecé-la clara e distintamen- te; seu resultado, visto de modo empirico-comum, ¢ 0 filisteu da cultura histérico-estética, o tagarela precoce ¢ sabichio que nao para de falar sobre o Estado, a igreja e a arte, o sensorium para uma miriade de estimulos, o estémago insa- cidvel que, porém, ndo sabe o que é uma fome e uma sede honestas. Que uma educacae com tais metas e com estes resultados seja antinatural, isso sente apenas o homem que ainda nao foi formado nela, que sente apenas o instinto da juventude porque esta ainda tem o instinto da natureza, que sé é rompido artificial e violentamente por esta educagao. Mas quem quiser romper esta educagao deve ajudar a ju- ventude a ganhar voz, deve iluminar o caminho de suia re- sisténcia inconsciente com a clareza de conceitos e transfor- mé-la em conseiéncia consciente e que fale alto. Como ele pode alcangar uma meta tio estranha? Antes de tudo destruindo uma superstigao, a da crenga na necessidade desta operagao educacional. Pensa-se, entio, que nao haveria nenhuma outra possibilidade do que justa- mente a da nossa realidade atual completamente desagra- davel. Examine-se justamente a literatura de nosso ensino superior e de nosso sistema educacional nas tiltimas déca- 2 Frieprice NierzscHe das: para o seu mal-humorado espanto, o examinador des- cobrird quao uniformemente é pensada a intengdo conjunta da educagao em meio a todas as oscilagdes das propostas, a toda a veeméncia das contradigées, 0 qudo imediatamente 0 resultado até aqui, o “homem culto”, tal como ele é com- preendido agora, é assumido como fundamento necessario e racional da educagao mais ampla. Assim sendo, aquele canone monocérdico seria formulado mais ou menos as- sim: o homem jovem tem de comegar com um saber sobre a cultura, nem ao menos com um saber sobre a vida, nem tampouco com a vida e a propria vivéncia. E, em verdade, este saber sobre a cultura é injetado ou inoculado, como um saber histérico, no jovem; ou seja, sua cabega é preenchida com uma quantidade descomunal de conceitos extraidos do conhecimento maximamente mediato das épocas e dos po- vos do passado, nao da intuigao imediata da vida. Seus de- sejos de experimentar algo por si mesmo e de sentir crescer em si um sistema coerente de suas proprias experiéncias - um tal desejo ¢ anestesiado e como que embriagado pela exuberante ilusio, como se fosse possivel em poucos anos somar em si as experiéncias mais extraordindrias e mais espantosas dos tempos antigos, e, justamente, dos mais gran- diosos. £ exatamente 0 mesmo método absurdo que con- duz nossos jovens artistas plasticos para o interior das pi- nacotecas e galerias, ao invés de leva-los para o interior da oficina de um mestre, sobretudo da unica oficina da mestra unica, a natureza. Sim, como se pudéssemos nos apropriar do estilo ¢ das artes do passado, de seu modo de vida pré- prio, enquanto passeantes distraidos no interior da histé- ria! Sim, como se a vida mesma ndo fosse um oficio que, do mais profundo, precisa ser aprendido constantemente e exercitado sem comiseragao, se é que ele nao deve deixar ignorantes e tagarelas sairem do ovo! Platéo considerava indispensdvel que a primeira gera- ‘SEGUNDA CONSIDERACAO INTEMPESTIVA 93 ¢ao de sua nova sociedade (no estado perfeito) fosse educada com a ajuda de vigorosas mentiras necessdrias; as criangas deveriam aprender a acreditar que todas elas j4 tinham, sonhando, morado por algum tempo sob a terra, onde ha- veriam sido moldadas e conformadas pelo mestre-de-obras da natureza! E impossivel se rebelar contra este passado! Impossivel reagir & obra dos deuses! Ela deve valer como uma lei invioldvel da natureza: quem nasceu como filésofo tem ouro no corpo, quem nasceu como guardiao apenas prata e, como trabalhador, ferro e bronze. Como nao é pos- sivel misturar estes metais, Platao explica que nao seria possivel misturar e confundir a ordem de castas; a crenca na aeterna veritas desta ordem é o fundamento da nova educagao e, com isto, do novo Estado. Assim, o alem4o mo- derno também acredita agora na aeterna veritas de sua edu- cagao, de sua espécie de cultura: e, no entanto, esta crenga desmorona, exatamente como o Estado platénico desmoro- naria, quando se vé colocada diante de uma verdade necessd- ria: a de que o alemao nao tem nenhuma cultura porque, em razao de sua educagao, nao pode absolutamente ter cul- tura. Ele quer a flor sem raiz e sem caule, ou seja, ele a quer em vao. Esta é a verdade simples, uma verdade verdadeira e necessdria, desagradavel e grosseira. Mas nossa primeira geragao deve ser educada nesta ver- dade necessdria; ela certamente sofre bastante por isso, pois precisa educar a si mesma através dela, e, em verdade, a si mesma contra si mesma, em diregdo a um novo habito e a uma nova natureza, para fora da antiga e primeira nature- za e do antigo e primeiro habito: de modo que ela poderia falar consigo em espanhol arcaico Defienda me Dios de my (Deus defenda-me de mim), a saber, da natureza jd inculcada em mim. Ela precisa provar daquela verdade gota por gota, como um remédio amargo e violento; e cada individuo des- ta geracao precisa se superar, julgar por si mesmo o que ele, 94 Frueprich NietzscHe como julgamento geral sobre toda uma época, j4 suportaria estragados para a vida, para o ver e 0 ouvir corretos e sim- ples, para a apreensao feliz do que ha de mais préximo e natural, e néo temos até agora nem mesmo o fundamento de uma cultura, porque nao estamos convencidos de ter- mos uma vida verdadeira em nds. Esfacelado e despedaga- do, decomposto no todo em um dentro e um fora, de ma- neira semimecanica, coberto com conceitos como com den- tes de dragio, produzindo dragdes conceituais, sofrendo, além disto, de uma doenga das palavras e sem confianga em qualquer sensagao prépria, que ainda nao esteja selada com palavras, como uma tal fabrica de conceitos e palavras sem vida, e, entretanto, estranhamente ativa, talvez ainda tenha o direito de dizer de mim cogito, ergo sum, mas nio vivo, ergo cogito. O “ser” vazio, ndo a “vida” plena e verde- jante me é garantida; minha sensagao origindria assegura- me apenas, que sou um ser pensante, nio de que sou um vivente, de que eu nao sou nenhum animal, mas no maxi- mo um ser cogitante. Presenteai-me primeiro com a vida ¢ entdo, a partir disso, terei prazer em criar-vos uma cultura! Assim grita cada individuo singular desta primeira gera- gao e todos estes individuos reconhecerio uns aos outros em meio a este grito. Quem lhes presenteard com esta vida? Nenhum deus e nenhum homem: somente a sua pré- pria juventude: arrancai-a dos grilhdes ¢ tereis com isto, li- bertado a vida. Pois a vida estava apenas oculta, na prisio, ela ainda no apodreceu ¢ se extinguiu - perguntai a vés mesmos! Mas ela estd doente, esta vida desagrilhoada, esté doen- te e precisa ser curada. Ela estd enferma de muitos males e nao sofre apenas da lembranga de seus grilhdes - ela sofre, @ que nos diz respeito especialmente, da doenga histérica, O excesso de histéria afetou a sua forga plastica, ela nio sabe SEGUNDA CONSIDERAGAO INTEMPESTIVA 95, mais se servir do passado como de um alimento poderoso. © mal ¢ terrivel, e, apesar disto! Se a juventude nao tivesse o dom da vidéncia da natureza, entio ninguém saberia que isso é um mal ¢ que um paraiso da satide foi perdido. Esta mesma juventude, porém, com os instintos curativos da mesma natureza, também decifra como ganhar este paraiso de novo; ela conhece os balsamos ¢ 0s medicamentos con- tra a doenga histérica, contra 0 excesso de histéria: como ¢ que eles se chamam? Entio, que ndo se espantem. Estes sio os nomes dos. venenos: os antidotos contra o histérico chamam-se - 0 @ histérico e 0 supra-histdrico. Com estes nomes retornamos ao de nossa consideragao ¢ A sua quietude. nivel ania dmnmendiins de poder esquecer e de se inserir em um horizonte limitado; com a palavra “supra-histérico” denomino os poderes que desviam o olhar do vir a ser e o dirigem ao que da 4 existén- cia o carater do eterno e do estdvel em sua significagio, para aarte ea religido, A ciéncia - pois é ela que falaria de venenos — vé nesta forga, nestes poderes, forgas e poderes contrarios; pois ela s6 toma por verdadeira e correta, ou seja, por cien- tifica, a consideragdo das coisas que vé por toda parte algo que veio a ser, algo histdrico, e nunca vé um ente, algo eter- no; ela vive em uma contradigao interna, do mesmo modo contra os poderes eternizantes da arte e da religido, quando odeia 0 esquecer, a morte do saber, quando procura sus- pender todas as limitagSes do horizonte, langando o homem em um mar de ondas lumi infinitamente ilimitado, no mar do conhecido vir a ser. Se ele ao menos pudesse viver ai! Como as cidades des- moronam e parecem desertos com um terremoto, e 0 ho- mem tremendo e fugidio constréi sua casa sobre o solo vul- cinico, assim também a propria vida sucumbe em si ¢ tor- na-se fraca e desalentada quando o tremor de terra conceitual 96 Frisprich NierzscHe que estimula a ciéncia retira do homem o fundamento de toda a sua seguranga e tranqiiilidade, a crenga no que per- dura e se eterniza. Serd entéo que a vida deve dominar o conhecimento, a ciéncia, ou serd que o conhecimento deve dominar a vida? Qual destes dois poderes é 0 mais elevado e decisivo? Ninguém duvidard: a vida é a mais elevada, 0 poder dominante, pois um conhecer que aniquila a vida aniquilaria ao mesmo tempo a si mesmo. O conhecer pres- supe a vida: ele tem, portanto, o mesmo interesse na con- servacio da vida que todo e qualquer ser tem na continua- gao de sua propria existéncia. Assim, a ciéncia necessita de uma inspegao e de um controle superiores; uma doutrina da smide da vida coloca-se bem ao lado da ciéncia; e uma sen- tenga desta doutrina da satide diria: 0 a-histérico e o supra- histérico sao os antidotes naturais contra a asfixia da vida pelo histérico, contra a doenga histérica. E provavel que nés, os doentes de histéria, também tenhamos de sofrer com os. antidotos. Mas o fato de sofrermos com eles nao é nenhuma prova suficiente contra a corregao do tratamento escolhido. E € aqui que reconhego a missao daquela juventude, da- quela primeira geracao de lutadores e matadores de cobras, que precede o aparecimento de uma cultura e uma huma- nidade mais feliz e mais bela, sem ter desta felicidade vin- doura e da beleza mais do que um pressentimento promis- sor. Esta juventude sofrerd ao mesmo tempo deste mal e de seu antidoto: e, apesar disto, acredita poder se vangloriar da posse de uma satide mais vigorosa e, em geral, de uma natureza mais natural do que os seus predecessores, os “ho- mens cultos” ¢ os “ancidos” do presente. No entanto, sua missao deve abalar os conceitos que o presente tem de “sati- de“ e “cultura”, provocando escarnio e édio contra mons- tros conceituais tao hibridos; e o sinal que garante a sua satide mais vigorosa deve ser justamente este, 0 fato de ela, a saber, de esta juventude, nao poder usar por sua parte ‘SEGUNDA CONSIDERAGAO INTEMPESTIVA 97 nenhum conceito, nenhuma palavra de ordem oriunda das moedas nocionais e conceituais do presente para a designa- cao de sua esséncia, mas ser convencida apenas por um poder divisor, excludente, ativo ¢ combatente nela e por ‘um sentimento de vida cada vez mais elevado, em toda boa hora. Pode-se contestar que esta juventude jé tenha cultura — mas para que juventude isto seria uma censura? Pode-se acentuar 0 seu cardter tosco e imoderado - mas ela ainda nao é velha e sabia o suficiente para se resignar; sobretudo, ela nao precisa simular e defender nenhuma cultura perfei- ta e goza de todos os consolos e privilégios da juventude, sobretudo o privilégio da sinceridade corajosa e irrefletida eo consolo entusiasmado da esperanca. Sobre estes esperangosos, sei que compreendem todas estas generalidades bem de perto e com suas experiéncias mais intimas, traduzidas em uma doutrina pensada como pessoal; os outros nada gostariam de perceber, senao tige- las cobertas que podem muito bem estar vazias, até verem, surpreendidos, com os préprios olhos, que as tigelas estao cheias, e que ataques, exigéncias, impulsos de vida, paixdes estavam misturados e comprimidos nestas generalidades, e que nao poderiam continuar tanto tempo encobertos. Re- metendo este cético 4 época que tudo traz 4 luz, volto-me por fim para aquela sociedade dos esperangosos, a fim de contar-lhes alegoricamente o curso e o decurso de sua cura, de sua salvacao da doenca histérica e, com isto, de sua pré- pria histéria até o ponto em que eles podem uma vez mais se tornar suficientemente saudaveis, impelidos pela nova histdria, e se servir do passado sob 0 dominio da vida na- quele sentido triplo, a saber, no sentido monumental, anti- quario ou critico. Nesse ponto, eles se tornardéo mais igno- rantes do que os “homens cultos” do presente, pois desa- prenderao muito ¢ perderao até mesmo o prazer segundo o qual esses homens cultos querem, sobretudo, saber; suas 98 Frreprich Nier2scHE caracteristicas sio, consideradas a partir do campo de visio dos homens cultos, justamente a sua “falta de cultura’, a sua indiferenga e a sua reserva diante do que é muito repu- tado mesmo diante de algumas coisas boas. Nesse ponto final de sua cura, porém, eles teriio se tomado homens uma vez mais e deixado de ser agregados similares a homens - isto é alguma coisa! Aqui vemos ainda esperangas! Nosso coragio nao se alegra com isto, seus esperangosos? Ecomo chegamos a esta meta?, vés perguntareis, O deus délfico chama por vés, logo no comego de vossa jornada em diregdo 4 meta, mostrando sua sentenga “conhece-te a ti _ mesmo”. E uma sentenga dificil: pois aquele deus “no es- conde, nem anuncia nada, mas apenas aponta”, como disse Herdclito.” Para onde ele aponta? Houve séculos em que os gregos se encontravam diante de perigo semelhante Aquele no qual nos encontramos, a saber: o da inundagao pelo estranho e pelo passado, de pe- recer junto 4 “histéria”. Eles nunca viveram em uma orgu- thosa inviolabilidade: por muito tempo, sua “cultura” foi muito mais um caos de formas ¢ conceitos estrangeiros, semitas, babilénicos, lidios, egipcios, e sua religido era uma verdadeira batalha entre os deuses de todo o Oriente: mais ou menos semelhante como agora a “cultura alema” e a re- ligido sio, um caos em si cheio de lutas entre todos os es- trangeiros e todo o passado. Entretanto, gracas 4 sentenga apolinea, a cultura helénica ndo se tornou nenhum agrega- do. Os gregos aprenderam paulatinamente a organizar 0 caos, conforme se voltam para si de acordo com a doutrina délfica, ou seja, para suas necessidades auténticas, e deixam mor- rer as aparentes. Desta feita, eles se apossaram novamente de si mesmos; nao permaneceram por muito tempo os her- deiros e os epigonos sobrecarregados de todo o Oriente; eles se tomaram eles mesmos, depois de um doloroso combate consigo e por meio da interpretagao pratica daquela sen- SEGUNDA CONSIDERAGAO INTEMPESTIVA 9 tenga, 0s mais felizes enriquecedores e proliferadores do tesouro herdado e os primogénitos e modelos de todos os povos de cultura vindouros. Isto é uma alegoria para cada individuo, entre vés: cada um precisa organizar caos em si, de tal modo que se con- centre nas suas necessidades auténticas. Sua sinceridade, seu cardter vigoroso e verdadeiro precisa se opor algum dia a0 que apenas sempre repete o jd dito, o jd aprendido, o jd copiado Assim, ele comegaré a compreender que a cultura também pode ser outra coisa do que decoragdo da vida, 0 que no fundo significa ainda sempre dissimulagio ¢ disfarce; pois todo adorno oculta o adornado, Assim, se lhe desvela- 140 conceito grego de cultura — em contraposig’o ao roma- no — 0 conceito de cultura como uma physis nova e aprimo- rada, sem dentro e sem fora, sem dissimulagdo e conven- g4o, como uma unanimidade entre vida, pensamento, apa- réncia e querer. Assim, ele aprende com sua prépria expe- riéncia que foi a partir da prépria forga suprema da nature- za ética que 0s gregos conseguiram a vitéria sobre todas as outras culturas, e que toda ampliagéo da veracidade tam- bém deve ser um fomento preparatério da verdadeira cultu- ra: por mais que esta veracidade possa ocasionalmente pre- judicar seriamente a formagdo que agora ¢ justamente esti- mada, por mais que ela mesma possa proporcionar a queda de toda uma cultura decorativa. Notas 1. Esta afirmagio encontra-se em uma carta de Goethe a Schiller da- tada do dia 19 de dezembro de 1798. 2. Ceterum censeo: expressio latina que significa “mas eu sou da opi- nidio”. (N.T.) 3. Ct. Goethe, Dichtung und Wahrheit, I, 13. 4. Nietzsche refere-se nesta passagem ao sofista Cnitilo. Critilo é em. verdade um apelido e significa literalmente “o poder” (kratos) “do 100 FrrepricH NietzscHe dedo” (daktylos). Aristdteles nos fala da tentativa do sofista de refutar toda e qualquer possibilidade de dizer o ser geral dos en- tes no livro IV de sua Metafisica: “Desta concepgéo surgiu, com efeito, a opiniao mais extremada entre as que mencionamos, a dos que afirmam estarem de acordo com Heraclito, tal como a sustentava Cratilo. Cratilo acreditava que nao se devia dizer nada, limitando-se a mover o dedo.” Aristételes, Metafisica IV, 1010a. (NT) 5. Cf. Goethe, Mdximas ¢ reflexes, 251 e 296, e Kunst und Altertum V 1, 1824. 6. Carsten Niebuhr (1733-1815), viajante alemao e pesquisador. Como agrimensor, chefiou, em 1760, a convite de Fredrico V da Dinamarca, uma expedicao cientifica para o Egito, Siria e Arabia e retornou apenas em 1767. Ele foi, dentre os cientistas, 0 tinico que sobreviveu 4 missdo. A origem exata da citagéo é desconhe- cida. (N.R.) 7. "E dos detritos da vida esperam receber/ O que o primeiro vivo jorro nao péde conceder.” Hume, Didlogos sobre religido natural, X. (NT) 8. Carta de Goethe a Eckermann de 21 de julho de 1827. (N.T.) 9. Polybio, historiador grego nascido em Megaldpolis entre 210 e 205 a.C. Autor de uma Histéria geral de seu tempo da qual nao restam sendo 5 livros inteiros. (N.T.) 10. CE. Goethe, Vorr duetscher Baukunst (Da arquitetura alema). O mo- numento ao qual Goethe se refere é a Catedral Notre-Dame des Vosges, em Strasburg, que embora seja uma obra coletiva, cons- truida entre os séculos XI e XV, seu tragado e plano mais impor- tantes sao atribuidos ao arquiteto alemao Erwin Steinbach. Du- rante sua estada em Strasbourg, em 1770, Goethe foi tomado de intensa emogao ao contemplar a obra. Uma tradugdo do texto de Goethe “Von Deutscher Baukunst”, se encontra em Lobo, Luiza (Org.). Teorias poéticas do romantismo. Porto Alegre: Mercado Aber- to, 1987. (N.R.) 11. Cf. Jacob Burckhardt, A cultura do renascimento na Itdlia. 12. “Que se faca a verdade e que perega a vida!” 13. Nietzsche refere-se nesta passagem ao conto de fadas intitulado “O lobo e as sete cabritas”, narrado pelos irmaos Grimm. 14. E importante frisar aqui uma significagao presente na palavra ale- ma Bildung, que estamos traduzindo invariavelmente por cultu- ta. A palavra deriva-se do verbo bilden que significa literalmente ‘SEGUNDA CONSIDERACAO INTEMPESTIVA 101 “formar”. Neste sentido, expressées como o homem culto e a cul- tura histérica possuem um acento no processo de formagao da cultura mesma. (N.T.) 15, Franz Grillparzer (1791-1872), poeta dramdtico austriaco. (N.T.) 16, Schiller, Die Worte des Glaubens (1798). 17. Nietzsche joga nesta passagem com o fato de o termo histéria (Geschichte) em alemao derivar-se originariamente do termo “acon- tecimento” (Geschehnis). Uma histéria em que nada acontece esta- ria em franca contradi¢géo com o seu proprio sentido etimolégico. (N.T.) 18, Nietzsche utiliza-se nesta passagem de um artificio lingiiistico para: ressaltar 0 fato de o homem moderno ser completamente marcado pela dindmica de realizagaéo da cultura. O termo acima traduzido pela expressio “formagées ‘histérico-culturais” é Bildungsgebilde, Este termo é composto a partir de Bilgund (cultu- Sa ee een ee 19. Do latim vilis: coisa barata e insignificante. (N.T.) 20. Nietzsche faz uma alusao as linhas finais do Fausto II de Goethe: “O eterno feminino/ nos alga (Das Ewig-Weibliche/ Zieht hinan).” 21. CF. Schiller, Was heisst und zu welchem Ende studiert man ‘Universalgeschichte (O que significa e com que finalidade se estu- da a historia universal?). 22. Nietzsche refere-se aqui a Ludwig von Ranke. 23. Carta de Goethe a Schiller, de 21 de fevereiro de 1798. 24, Adolfo Thiers (1797-1877), politico e historiador francés. (NT) 25. Afterkultur, traduzida por “subcultura”, remete a titulo da resposta de Erwin Rodhe & critica de Willamowitz- Millendorf ao “Nascimento da Tragédia”. “After”, literalmente “anus”, significa neste contexto, o que é considerado baixo e re- trégrado. Ao traduzir por “subcultura”, seguimos a sugestio da edigao francesa do texto de Rhode - Sous-Philologie ~ que conside- ramos adequada (cf. “Querelle autour de la naissance de la tragédie”, Paris, Vrin, 1995, p. 176, nota 1). Além disso, ressalte- se que Rodhe leu atentamente o manuscrito da “Segunda Intem- pestiva”, fazendo diversas sugestdes e observagdes. (N.R.) 26, Jérome Savonarole (1452-1498), dominicano italiano que tentou fundar em Florenga uma constituigéo meio teocritica, meio de- mocratica, € que foi condenado a morte na fogueira por heresia. (NT) 102 Fraepricn Nurtzscrtt 27. Wilhelm Wackernagel, Abhandlungen zur deutschen Literaturgeschichte (Ensaios sobre: a histéria da literatura alema). 28, Sem ira e dedicagio. (N.T.) 29. Sutileza de percepgao. (N.T.) 30. No espirito alemdo parece haver algo desproporcional, algo tos- camente agugado, algo desajeitado e infeliz. (N.T.) 31. Espirito alemio. (N.T.) 32. Que sacrifiea a sua vida. (N.T.) 33. William Shakespeare, Como gostais, Ato Il, cena Vil. 34. Edouard Gibbon (1737-1796), historiador inglés, autor de A histé- ria da decadéncia ¢ da queda do Império Romano. (N.T.) 35. Johann Christoph Gottsched (1700-1766), literato alemio. (N.T.) 36. Verdade eterna. (N.T.) 37. Herdclito, fragmento 93. Impresso pela gréfica Lidador. Primeira quinzena de agosto de 2008. eT MR Citetelele( MeCN emia e) rola Meee aR Ure meRe MULL Oak Rk menu D Rll) para ela, entGo talvez nenhum filosofo tenha mais razdo do que o cinico: pois a felicidade COP eR es ee een ele PCR Mal Me Mu Cla Clr MMMM ecm mele) Meee Mem (EL CM em lett MMC motte lao Du MMs au MCs cL desvairado, entre puro desprazer, desejo e Pee MM MLO ee Ce como em meio a maior felicidade € sempre uma coisa que torna a felicidade o que ela é: Cele eae oe Me emul erudita, a faculdade de sentir a-historica- mente durante a sua duracdo. Quem pode se instalar no limiar do instante, esquecendo todo passado, quem nao consegue firmar Pe LM MM Celle al) Se Meme ue eT me ae) Peeks eR Clete Relea Ted el Re ee UR La ee eco ae

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