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1 A cidade-Estado na Antiguidade classica Rumo a uma definigaéo A cidade-Estado antiga € uma dessas nogSes que, uma vez assimiladas, sao entendidas e aplicadas sem dificuldade, mas que sao dificeis de definir em poucas palavras de ma- neira adequada e convincente. No século passado, Fustel de Coulanges, em seu es- tiido “sobre o culto, o Direito, as instituigdes da Grécia e de Roma” a que deu o titulo de La cité antique, definia a cidade-Estado dizendo que ela nao era uma reuniao de in- dividuos, e sim uma confederagado de grupos preexistentes. Assim, um ateniense, por exemplo, pertencia sucessiva- mente — nelas ingressando através de certas ceriménias religiosas escalonadas ao longo de diversos anos — a uma familia extensa (genos), a uma fratria, a uma tribo e por fim a cidade-Estado; e um romano, analogamente, perten- cia a uma familia extensa (gens), a uma ciria, a uma tribo e a cidade-Estado. O que dava forma a cada um desses grupos, bem como 4 confederacdo deles numa ci- dade-Estado, era, para esse Autor, o culto. Esta concep- ¢4o gentilicia e religiosa acerca da origem da cidade-Es- 6 tado ja nao é aceitavel, por razdes que serdo apresentadas oportunamente. Em compensacdo, a diferencga entre “ci- dade” (ville em francés) e “cidade-Estado” (cité em francés), vigorosamente tragada por Fustel de Coulanges, ainda é util. Em famoso livro editado pela primeira vez em 1893 e que, como o de Fustel de Coulanges, conheceu nume- rosas reimpress6es, eis aqui como W. Warde Fowler defi- niu a cidade-Estado: “Atenas, Esparta, Mileto, Siracusa, Roma, eram cidades, com uma quantidade maior ou menor de territério do qual tiravam seus meios de subsisténcia. Este territério era sem duvida um elemento essencial, mas ndo constituia o coracgao e a vida do Estado. Era na cidade que o coragéo e a vida se centravam, e o territério era somente um apén- dice. O Estado ateniense compreendia todas as pessoas livres que viviam em Atenas e também aquelas que viviem no territério da Atica; mas estas ultimas tinham sua exis- téncia politica, néo na qualidade de habitantes da Atica, e sim como atenienses, como cidadaos da pdélis de Atenas. Do mesmo modo, o Estado romano, mesmo quando esten- dera seu territdrio a totalidade da Peninsula Italiana, era ainda concebido como tendo seu coragéo e sua vida na cidade de Roma, com uma tenacidade que fevou a muitos problemas e desastres, e por fim 4 destruig¢éo desta forma peculiar de Estado” 2. Esta definicdo descritiva é clara e bastante adequada, salvo pelo fato de dar a entender que “todas as pessoas livres” que viviam em Atenas e na Atica eram cidadaos 1 FUSTEL DE .COULANGES. La cité antique. 22. ed. Paris, Hachette, 1912. p. 143-161. (Em portugués: A cidade antiga. Trad. de Fre- derico Ozanam Pessoa de Barros. Sao Paulo, Ed. Américas, 1966. 2v.) 2 FOWLER, W. Warde. The city-State of the Greeks and Romans. 9. reimpr. Londres, Macmillan, 1916. p. 8. 7 atenienses, quando, na verdade, existiam os metecos (es- trangeiros residentes), livres mas nao cidadaos. A cidade-Estado classica parece ter sido criada para- lelamente pelos gregos e pelos etruscos ¢/ou romanos. No easo destes iltimos, a influéncia grega foi inegdvel, embora dificil de avaliar ou medir. No entanto, apesar de tragos comuns, o desenvolvimento da cidade-Estado grega e o da etrusco-romana, mesmo admitindo a grande heteroge- neidade de evolucGes perceptivel também na propria Grécia, mostram desde 0 inicio fortes especificidades que autori- zam a suposigao, ndo de uma simples difusio, mas de uma criagdo paralela. Caracteristicas das cidades-Estados Quais eram as caracteristicas comuns a todas as cida- des-Estados classicas? Talvez possamos distinguir as se- guintes como sendo as mais importantes: 1) do ponto de vista formal, a triparticio do governo em uma ou mais assembléias, um ou mais conselhos, e certo nimero de ma- gistrados escolhidos — quase sempre anualmente — entre os homens elegiveis; 2) a participacio direta dos cidadaos no processo politico: a nogdo de cidade-Estado implica a existéncia de decisdes coletivas, yotadas depois de discussao (nos conselhos e/ou nas assembléias), que eram obriga- térias para toda a comunidade, o que quer dizer que os cidadaos com plenos direitos eram soberanos; 3) a inexis- téncia de uma separacdo absoluta entre érgdos de governo € de justica, e o fato de que a religiio e os sacerdécios inte- gravam o aparelho de Estado. Quanto ao primeiro ponto, uma vez admitida a tri- particgao em assembléia(s), conselho(s) e magistraturas, é preciso admitir também uma enorme diversidade no rela- tivo aos nomes, ao numero, 4 composicio, aos poderes, aos métodos de escolha, ao funcionamento e as relagées entre aquelas instancias basicas. Isto tanto no espaco quanto no tempo, isto é, ao considerarmos diferentes cidades-Es- tados na mesma época, ou uma mesma cidade-Estado em momentos sucessivos de sua evolucdo constitucional. Al- gumas das opcées divergentes serio analisadas nos capi- tulos seguintes. A soberania dos cidadfos dotados de plenos direitos era imprescind{vel para a existéncia da cidade-Estado. Se- gundo os regimes politicos, a proporcdo desses cidadaos em relagéo 4 populacdo total dos homens livres podia variar muito, sendo bastante pequena nas aristocracias e oligarquias e¢ maior nas democracias. Outrossim, o lugar estratégico em que tais cidadaos exerciam sua soberania podia variar igualmente: em Atenas era a assembléia popu- Jar (a Eclésia), em Roma um conselho (o Senado). Mesmo nas democracias, contudo, eram excluidos da cidadania os escravos, os estrangeiros residentes e as mu- Iheres. Tal fato leva a que certos autores duvidem da existéncia das democracias antigas — ou seja, afirmem que nfo eram democracias —, ou mesmo da representati- vidade social dos regimes politicos classicos em geral. Isto nao é aceitdvel: nao apenas porque ao historiador cabe analisar e explicar os processos histéricos, e nao emitir jul- gamentos morais, também porque, seja como for, ainda nas condig6es da Antiguidade cldssica, como indica M. I. Finley, “ ‘governo pela minoria’ ou ‘governo pela maioria’ era uma escolha significativa” e “a liberdade e os direltos que as facgées reivindicavam para si eram dignos de luta, apesar do fato de que mesmo ‘a maioria’ fosse uma minoria da populacdo total” 3, Notemos também que, embora o mundo grego e o romano conhecessem a escrita e dela fizessem amplo uso, 3 FINLEY, M. I. Politics in the ancient world. Cambridge, Cam- bridge University Press, 1983. p. 9. > o regime da cidade-Estado antiga, baseado na participacéo pessoal direta — e nao principalmente na delegacgao de poderes —, no debate que precede a votacao, implicava “yma extraordindria preeminéncia da palavra sobre todos os instrumentos de poder”*. Wernant se refere a palavra falada e a observacao vale tanto para a Grécia quanto para Roma. Por fim, a cidade-Estado desconhecia o principio da separacéo dos poderes que informa as repiblicas modernas e também as corporacées fechadas (relativamente) que so os exércitos e muitas igrejas atuais. Embora houvesse érgéos que podemos chamar de “tribunais”, certos casos eram julgados pelos conselhos ou assembléias. Os estrate- gos (strategoi) atenienses, eleitos anualmente mas reelegi- yeis, eram lideres politicos e também generais, assim como os cOnsules romanos. Os sacerdotes eram o que nés cha- mariamos de magistrados ou funciondrios do Estado, e os magistrados de mais alta hierarquia de Roma, sem serem especificamente sacerdotes, levavam a cabo sacrificios e tentavam adivinhar a vontade dos deuses (tomada dos aus- picios). A trajetéria das cidades-Estados Quando existiu, com tais caracteristicas, a cidade-Es- tado cldssica? Para que encontremos todas elas ¢ em espe- cial a mais importante — a soberania efetiva dos cidadaos — é mister climinar as monarquias, as tiranias ¢ os perio- dos de dominio estrangeiro, mesmo sendo verdade que as monarquias helenisticas e o império romano reconheceram 4 VERNANT, IJcan-Pierre. Les origines de la pensée grecque. Paris, Presses Universitaires de France, 1962. p. 40. (Em portugués: Origens do pensamento grego. Trad. de fsis Lana Borges. Sido Paulo, Difel, 1972.) certo grau de autogoverno as cidades-Estados e municipios existentes em seus territérios, a nivel estritamente local, diminuindo decisivamente, porém, sua liberdade de deci- so e sua real independéncia. O regime da cidade-Estado em sua pureza (e em miiltiplas variantes) existiu na Grécia somente entre o VIII ou VII século a.C. e o final do século IV a.C., devendo descontar-se os periodos das tira- nias em cada cidade (mesmo se os tiranos costumavam manter as instituigdes da pdlis, sem tentar entretanto insti- tucionalizar sua prépria funcéo); e na Roma republicana. No caso dos etruscos, a cronologia é dificil de estabelecer — talvez nos séculos V e IV a.C. Certas varidveis sao essenciais quando se tenta com- parar a trajetéria das cidades-Estados antigas: populacéo (global e de cidadaos), extensao territorial, disponibili- dade de recursos (cereais, madeira, metais), grau de urba- nizacgao, etc. Atenas era uma cidade-Estado muito grande no contexto grego, tendo unificado toda a Atica. Em con- traste, a pequena ilha de Amorgos (uma das Ciclades) tinha sua superficie dividida entre trés infimas pdleis. Na medida em que o podemos afirmar, tendo em vista uma documentacdo muito deficiente, pareceria que, abaixo de um certa limite de extenséo, populagao e recursos — que, porém, nao é possivel determinar em cifras precisas —, a cidade-Estado nao conseguia estabilidade politico-social e tinha dificuldade em manter sua independéncia. No pdlo oposto, mesmo sendo verdade que a conquista ou o domi- nio (direto ou indireto) sobre territérios estrangeiros trazia grandes vantagens as cidades-Estados maiores, capazes de se expandir pelas armas, a incorporagdo continua de novas terras e novos cidadaos acabaria tornando invidvel o fun- cionamento dessa forma politica, na qual era muito im- portante a possibilidade de uma participagao pessoal di- reta: foi o que aconteceu no caso da Republica romana, embora ninguém saiba dizer com exatidio quando foi atin- i —_—_—— ores gido o limite superior (isto é, o ponto acima do qual Roma deixou de ser vidvel como cidade-Estado), nem defini-lo quantitativamente. Houve sem divida cidades-Estados instéveis e eféme- ras. Mas aquelas sobre as quais temos mais documentagao — Atenas, Esparta, Roma, até certo ponto Corinto —, mesmo atravessando conflitos sécio-politicos As vezes gra- ves e passando por numerosas transformagdes, conheceram séculos de existéncia estivel, com forte sentimento de iden- ti@ade entre os cidadfos e com foros inequivocos de legi- timidade. Ora, este é€ um fato que exige explicagio, ja que, mesmo nas cidades-Estados democrdticas, como Ate- nas, por muito tempo os lideres politicos sairam das filas da aristocracia e, mais em geral, elas nao eram de fato igua- litérias. Houve, portanto, fatores que garantiram a hege- monia dos grupos sociais dominantes, de tal modo que a prépria desigualdade social fosse considerada legitima — até certo ponto pelo menos — pelas grandes massas da popula¢ao, incluindo os nao-cidadios. Neste ponto, é facil tornar-se vitima de posicdes idea- listas e simplificadoras. H4 autores que atribuem a estabi- lidade do regime a um “sentimento de identidade”, um “modo de vida”, uma “viséo do mundo”, quando é exata- mente isto que deve ser explicado. Christian Meier, por exempio, afirma que “a identidade politica diminuilu as diferencas existentes entre as situagdes sdcio-econémicas dos atenienses em Broveite de sua identidade como cidadéos”, € mesmo que, ao participar ativamente da vida de sua pélis, nenhum cidadao procurava atingir através da poll- tica objetivos que nao fossem politicos. Em outras pala- Vras, a participacdo politica seria, para os cidadaos pobres, um fim em si mesmo, devido 4 consideracdo, ao respeito, 12 4 valorizagéo enfim do status de cidadao pela opiniao pu- blica! 5 Mecanismos ideolégicos Entre os mecanismos ideolégicos que sustentavam a legitimidade do Estado, citemos em primeiro lugar a reli- gido. Cada cidade-Estado tinha suas divindades protetoras e a blasfémia contra elas era crime de morte, cuja punicao incumbia ao governo, exatamente como a de qualquer outra ofensa civil ou criminal. Antes do inicio das delibe- ragdes da assembléia popular ateniense, determinados sa- cerdotes (peristiarcoi) imolavam porcos no altar, com cujo sangue tragavam um circulo sagrado a volta do povo reunido. Em Roma, antes de uma batalha ou de uma ati- vidade publica importante, eram consultados os auspicios e realizados sacrificios. No entanto, apesar de a religido ter um efeito legitimador sobre o regime como um todo, nao servia para apoiar individualmente um dado magis- trado ou uma dada decisdo coletiva. Acreditamos que Finley tem raz&o ao dizez que o governo da cidade-Estado antiga, na pratica, se nfo na aparéncia, havia-se seculari- zado §, Outro elemento ideoldgico bdsico era a crenga, co- mum a gregos e romanos, independentemente dos regimes politicos, de que na cidade-Estado governavam, nao os homens, mas as leis. A legitimidade da “lei consuetudind- ria” — ndémos (lei) ou patrios politeia (constituigdo an- cestral) pata os gregos, mos maiorum (costumes dos ante- passados) para os romanos — decorria da antiguidade 5 Mer, Christian. Introduction a Vanthropoiogie politique de l'An- tiquité classique, Paris, Presses Universitaires de France, 1984, p. 52. © FINLEY, M. I. op. cit. p. 94. 13 veneravel que Ihe era atribuida em forma histérica, ou, com maior freqiiéncia, miticamente. E assim que, na peca As suplicantes, de Euripedes (representada aproximada- mente em 420 a.C.), vemos o mitico herdi fundador de Atenas, Teseu, declarar que em sua cidade nao governava um tinico homem; tratava-se de uma cidade livre, gover- nada pelo povo através de magistrados que se revezavam anualmente: em Atenas, ricos e pobres tinham os mesmeos direitos. Temos ai a proclamagao da igualdade diante das leis, ou isonomia, e da liberdade, esta ultima interpretada em formas bem variadas, mas sempre afirmada. Ora, sendo o lendério Teseu um monarca, suas afirmacdes soam estra- nhas em nossos ouvidos, mas aparentemente nao nos dos espectadores de Euripedes quando da estréia da pega, Ana- logamente, no caso romano, Tito Livio, escrevendo na época do imperador Augusto, dizia que, depois de realizar uma cerimGnia religiosa, Rémulo — © mitico primeiro rei e fundador de Roma — “convocou os seus siditos e deu- -Ihes leis, sem as quais a criagio de um corpo politico unificado nao teria sido possivel”; logo adiante, atribuia ao mesmo rei a criagdo do Senado, érgao central da Rept- blica romana 7. Estes mecanismos de legitimagéo, e outros que carre- gavam consigo a hegemonia dos grupos dominantes, trans- mitiam-se em primeiro lugar pela educacdo formal e in- formal. Tal educagao inculcava valores hierdrquicos nos &cegos e romanos de toda extragdo. Ainda os analfabetos, pela participagdo pessoal nas atividades do Estado — em nivel maior nas cidades democraticas do que nas oligér- quicas —, “educavam-se” politicamente, absorvendo ao mesmo tempo muitos elementos legitimadores do regime politico e da divisio social. TVer sobre este tema Fintey, M. I. La constitucién ancestral. In: — . Uso y abuso de fa historia. Trad. de A. Pérez-Ramos. Barcelona, Critica, 1977. p. 45-90. 14 Por outro lado, por mais que isto desagrade aos idea- listas como C. Meier, os cidadaos mais pobres esperavam, e muitas vezes obtinham, vantagens tangiveis de sua par- ticipagao na vida publica e da munificéncia dos lideres aristocraticos que ocupavam o proscénio mesmo nas demo- cracias, ainda mais visivelmente numa cidade como Roma, As cidades-Estados maiores, através de conquistas ou do dominio indireto sobre outras cidades ¢ regiGes, puderam distribuir beneficios concretos a seus cidadaos: os espar- ciatas, senhores de Esparta, nao precisavam trabalhar em atividades produtivas; os atenienses da época de Péricles contaram com colénias (cleruiquias) para as quais desviar os camponeses sem terras e usaram os tributos pagos por seus “aliados” (de fato siditos), da Liga de Delos, em obras piiblicas na cidade, na remuneracdo de atividades politicas e navais de Atenas, na subvencdo aos cidadiéos mais pobres da cidade para que pudessem assistir as fun- gGes teatrais (que eram também religiosas e civicas); a exploragdo das provincias permitiu a Roma isentar a Italia inteira do imposto, ainda sob a Republica, e mais tarde proceder a distribuicdes de trigo gratuitas aos cidadaos romanos (a 320 000 deles no inicio da ditadura de César). Os aristocratas gregos e os membros da nobilitas romana da Repiblica usavam sua fortuna pessoal de modo a for- mar clientelas piiblicas e privadas. Na Grécia, os ricos financiavam — de forma ao mesmo tempo compulséria e honorifica — a Marinha e os festivais ptiblicos de carater religioso (através das liturgias), enquanto em Roma certos magistrados (pretores, edis) deviam pagar com seu pré- prio dinheiro os festivais e espetéculos, bem como certas obras ptiblicas. Eram estes mecanismos que serviam com freqiiéncia A legitimagdo e ao clientelismo politico das grandes familias que dominavam os cargos piblicos. Outro mecanismo — que em Atenas se quis destruir, quando da implantagao da democracia, com o sistema de circunscri- gGes topograficas artificiais (demos) e com a tiragem a 15 _ sorte de muitas funcdes ptblicas — era a solidariedade local baseada em empréstimos e outros favores que, sobre- tudo em zonas rurais, as familias ricas faziam aos neces- sitados, obtendo assim muitas vezes o seu apoio politico. Para terminar este capitulo, convém recordar um ponto que nos ocupara freqiientemente nos capitulos se- guintes. As cidades-Estados antigas s6 podem ser enten- didas no contexto global das respectivas sociedades. O militarismo especializado de tempo integral dos esparciatas era possibilitado e ao mesmo tempo explicado por seu dominio sobre numerosa populacdo servil (os hilotas) na Lacénia e na Messénia, sempre pronta a rebeliaéo. Uma vez abolida a servidao por dividas — e por conseguinte a possibilidade de recrutar macigamente os camponeses lo- eais como mao-de-obra dependente — em Atenas (592 aC.) e em Roma (talvez 323 a.C.}, 0 surgimento e a consolidagdo da categoria téo tipica do apogeu dessas ci- dades-Estados — os homens livres/pequenos proprietarios/ /cidadaos/soldados — dependeu do estabelecimento e da expansdo do escravismo como principal relagdo de pro- ducgao. 2 A Grécia antiga: o mundo das “péleis’ , A origem da cidade-Estado grega A chegada 4 Grécia continental e as ilhas do Mar Egeu de migrantes de lingua indo-européia, ponto de partida da hist6ria helénica, parece ter ocorrido por volta de 2200- -2100 a.C., havendo ainda discussdes acerca de ter havido uma tnica onda migratéria ou varias. Os novos povoa- dores sofreram o impacto das culturas que encontraram na regiéc — em especial da brilhante civilizagao minoana ou cretense — e foi no contexto de tal contato cultural que se iniciou a civilizagéo grega. Durante a segunda metade do II milénio aC, na Grécia continental, na ilha de Creta e provavelmente na de Rodes, com influxos que atingiram as outras ilhas do Egeu, a costa da Siria e da Asia Menor e, para ocidente, a Sicilia e o sul da Italia, desenvolveu-se a civilizagdo do Perfode Tardio do Bronze chamada micénica, caracteriza- da pela existéncia de centros palacianos quase sempre for- tificadds — Tolco na Tessdlia, Tebas e Gla na Beécia, a acrépole da futura Atenas na Atica, Tirinto e Micenas na Argélida, Pilos no sudoeste do Peloponeso, Cnossos em 7 ee Creta — que, copiando talvez o sistema minoano, contro- lavam burocraticamente reinos que parecem ter sido mais extensos do que as futuras cidades-Estados. As pesquisas que se seguiram A decifragio (comecada em 1952) da es- crite sildbica usada nos paldcios (linear B) permitiram-nos yislumbrar uma organizagio administrativa que recorda a dos impérios do Oriente Préximo — uma “civilizagio do escriba”. Os palacios eram centros também de armazena- gem de produtos obtidos através de tributacdo e presta- gdes de trabaiho, os quais alimentavam um sistema de dis- tribuigao de rag6es. Apesar de ser, no conjunto, um tipo de sociedade que pouco tinha em comum com a da Grécia posterior das cidades-Estados, com grande dificuldade — pelas limitagGcs da leitura dos caracteres e¢ pelas préprias caracteristicas das fontes — podemos éntrever alguns dos elementos que futuramente, depois de grandes modifica- ges, tomariam parte na formag&o da polis grega: entre o tei (wdnax) e o supremo chefe militar (lawagetas), por um lado, e por outro 0 “povo” (damos) — nao sendo este de fato unificado, mas dividido em damoi, que poderiam ser comunidades aldeds, se for correta a interpretacdo de certo tipo de terras (ktonai kekemenai) como terras co- munais —, adivinhamos diversas categorias de guerreiros, sacerdotes e proprietarios de terras (basilewes, lawoi, teles- tai, equetai, etc.) que podem ter-se fundido numa aristo- cracia, uma vez eliminada a monarquia dos paldcios micé- nicos. Entre 1200 e 1100 a.C. todos os centros palacianos foram destruidos, numa época de intensa movimentacdo de PoOvos, que também viu o fim do reino hitita e as tentati- vas de invasio do Delta do Nilo pelos “povos do mar”. No caso grego, uma tradicao preservada por Tucidides (I, 11) fala da “volta dos Herdclidas”, ou seja, dos descen- dentes de Héracles ou Hércules, episédio identificado tra- 18 dicionalmente com a chegada de grupos tribais que falavam unr dialeto prego, o'dério. Esta identificacio tem sido con- testada, porque de fato pareceria que o quadro dialetal grego atestado na Epoca Arcaica ¢ na Epoca Classica — jénio (Atica, Eubéia, maior parte das Ciclades, Jénia), dério (Argélida, Lacénia, Messénia, Creta, Rodes, algumas Ciclades meridionais, Dérida), edlio (Tessdlia, Bedcia, E6élida), arcado-cipriota (Arcadia, Chipre: quase segura- mente um remanescente do grego micénico) — formou-se num processo lento, posterior a 1200-1100 a.C. Seja como for, inaugurara-se um periodo de grandes transformagies dificeis de seguir, pois desaparecera a es- crita (que sé reapareceria, em forma alfabética derivada da fenicia, entre 800 e 750 a.C.): dependemos unicamente da arqueologia. Esta nos mostra alguns elementos de con- tinuidade — a ceramica chamada proto-geométrica (1100- -900 a.C.) era uma evolugaéo da ceramica micénica, com alguma influéncia do geometrismo do norte da Siria —, mas também mudancas nos assentamentos populacionais. Algumas das localidades que haviam sido sedes palacianas foram abandonadas para sempre (Pilos, Gla), outras (Ate- nas, Tebas} continuaram sendo habitadas, mas sobre novas bases de organizagio, enquanto regides antes aparente- mente pouco povoadas receberam muitos imigrantes. Isto mostra que houve um periodo, apés o impacto de 1200- -1100 a.C., de movimentagdes e reacomodagdes de pes- soas; periode durante o qual, entre 1000 ¢ 900 a.C., como também confirma a arqueologia, fundaram-se numerosos assentamentos gregos na costa da Asia Menor (regides da Eélida, Jénia e Dérida}. A distribuigzo dos centros de poder se regionalizou, preparando a pulverizacao politica tipica da Grécia das péleis. O comércio, as comunicagdes e a arte regrediram por alguns séculos. Em compensacao, difundiu-se o uso do ferro. 19 Tampos homéricos Qs poemas atribuidos a Homero — a Miada, fixada oralmente por volta de 750 a.C., ¢ a Odisséia, cuja fixacio oral talvez se tenha dado meio século depois — e os poemas de Hesiodo (quigé também de 700 a.C. aproxi- madamente) mostram um mundo bem diferente do que é iJuminado pelos documentos escritos em linear B no mi- lénio anterior; um mundo no qual jé se estava dando o surgimento da cidade-Estado grega ou polis. Nessa Grécia dos tempos homéricos e do inicio da Epoca Arcaica, jf existiam aglomeragées aparentemente urbanas onde, num descampado (agord) reunia-se a popu- jJagfo .para escutar, sem direito a intervir, os debates dos aristocratas, chamados de “reis” (no meio dos quais o rei propriamente dito era simplesmente um primeiro entre iguais — primus inter paresy. Em outras passagens, tem- -se a impressao de que o Conselho aristocratico que acon- selhava o rei se reunia primeiro, dando a conhecer depois suas deliberacBes ac resto da populagdo. No entanto, os debates no conduziam, ao que tudo indica, a qualquer deciséo por voto, ¢ a nocgdo da polis como uma comuni- dade de cidadios nao surgira ainda. As oposigdes cida- dio/estrangeiro e livre/escravo, tio tipicas posteriormente das pdleis gregas, s6 existiam embrionariamente, sem cla- reza. O centro da organizagdo social era a familia aristo- cratica que se julgava descender de um herdi ou de um deus — o genos —, certamente uma familia patriarcal ex- tensa em que vérios casais podiam conviver sob a autori- dade de um unico chefe; mas néo um “cla”, como era usualmente definida, sob a influéncia de Morgan e Engels, até as primeiras décadas deste século. Acreditava-se, entdo, que 0 genas fosse um cli possuidor de terras'‘em comum © que de sua diferenciagdo interna surgira a polarizagao em aristocracia e povo; mas tal interpretacdo carece de 20 base. O genos era invariavelmente sé aristocratico e nao ha sinais de propriedade coletiva nos poemas homéricos e nos de Hesiodo. Telémaco, filho de Odisseu ou Ulisses, nao contou com qualquer ajuda “‘clanica” contra os pre- tendentes 4 m4o de sua mae que dilapidavam sua heranc¢a € os casos de vinganca aparecem, nos poemas, ligados 4 iniciativa de amigos e parentes proximos por sangue ou alianca — pais, filhos, sogros, genros —, nao se tratando de “vinganga coletiva do cla”. E em Hesiodo vemos uma disputa em tomo da divisiéo da heranga paterna entre ir- miaos, nfo qualquer divisdo de terra “comunitéria”. Assim, se estiver correta a interpretagdo das ktonai kekemenai como terras comunitérias, havia muito j4 o tinham dei- xado de ser. Cada genos era o niicleo em torno do qual se orga- nizava uma “casa” real ou nobre, o oikos, que reunia pes- soas — além da familia, diversas categorias de agregados livres e de escravos — e bens variados (terras, rebanhos, o “palacio” — de fato bem modesto —, um “tesouro” constituido por reservas de vinho e alimentos, objetos de metal, tecidos preciosos, etc.), todos e tudo obedecendo ao chefe do genos em questao. Fora do oikos, achamos: uma categoria de “trabalhadores da coletividade” (demiur- gos), gozando de certo r-estigio social — artesdos es- pecializados, profetas, médicos, arautos, poetas cantores (aedos), etc. —, que iam de uma “casa” nobre a outra na medida em que fossem solicitados seus servigos; cam- poneses sem terras (fetes), que alugavam quando podiam sua forga de trabalho e eram muito malvistos; e — sabe- mo-lo por Hesiodo — pequenos proprietarios de terras. A polis aristocratica 21 titufda por magistrados eleitos pela nobreza de sangue entre seus proprios membros, /persistindolo!Conselhoy antes 61220 consultivo do rei, agora com freqiiéncia o centro da vida politica. Bstavevolucao, que parece ter ocorrido entre a segunda metade do século VIII a.C. € o inicio do século seguinte, significou, por um lado, uma subordinagio do genos © do orkos\a Comunidade (seguida do enfraqueci- mento destas formas tradicionais de organizagdo pré-urba- na), € por outro lado ha indicios de que, de algum modo, os aristocratas se apoderaram das terras melhores e mais extensas. O surgimento da polis também esteve vinculado aeum)vigoroso\aumento da \populagio, que a arqueologia . comprova a partir de aproximadamente|800)aIC) FE pos- sivel que a populagdo da Atica, por exemplo, haja quadru- plicado entre 800 ¢ 750 a.C., e quase duplicado entre 750 e 700 a.C., se estiverem corretos os calculos tentados. | Este acréscimo demografico, juntamente com uma retomada do Progresso tecnoldgico, artesanal e comercial, foi fator de répida urbanizagio. Os gregos de épocas posteriores conservavam a lem- branga de que, em certos casos, |o aparecimento das poleis ligara-se, no passado, a um movimento de concentracio populacional e fusado politica: chamavam simpolitia a unido de ydrias coletividades para formar outra maior e sine- cismo o mesmo fendmeno quando, paralelamente, dava-se © transplante de boa parte dos habitantes 4 aglomeracdo mais importante ou a uma cidade especialmente fundada paraytal! Isto é confirmado por movimentos semelhantes corridos na Epoca Classica, por exemplo ao formarem- -se as péieis de Elis ¢ de Mantinéia, no Peloponeso, no século V a.C, Do ponto de vista topografico, uma pdélis, no seu nicleo urbano, dividia-se com freqiiéncia em duas partes, que podiam ter surgido primeiro independentemente: a acrépole, colina fortificada e centro religioso, e a dsty ou cidade baixa, cujo ponto focal era o lugar de reuniio (pos- 22 teriormente também um meércado com lojas), a dgora. Um terceiro elemento muitas vezes presente era o porto, mas este podia também formar uma aglomeracao separada, ¢m- bora préxima (é 0. caso do Pireu, principal porto de Ate- nas). Por fim, o territério rural semeado de aldeias (khéra) completava o quadro da cidade-Estado. Esta visio topogréfica é mais nossa do que dos gregos, para Os quais uma cidade-Estado era formada pela comunidade de seus cidadaos: dai que mencionassem, falando de pé- Jeis, “os atenienses”, “os lacedeménios”, “os corintios”, e nado Atenas, Esparta ou Corinto, Note-se que as cidades-Estados nfo se formaram em toda a Grécia antiga. Ao surgirem e se desenvolverem em certas regides mas ndo em outras, acentuou-se um desen- volvimento desigual que provavelmente tinha raizes bem mais antigas. M. Austin e P. Vidal-Naquet propuseram duas interessantes tipologias dos Estados. gregos, clara- mente perceptiveis talvez 56 do século VI a.C. em diante. Em primeiro lugar, distinguiram o ethnos e a pdlis, isto é, o Estado sem centro urbano ¢ o que tinha uma cidade » como nicleo, Atenas, Corinto, Mileto, sao exemplos de poleis; Tessdlia, Macedénia, Arcadia e-outras regides rurais atrasadas foram por muito tempo ethné. Em segundo lugar, separaram os Estados “modernos” — relcve-sc a lingua- gem pouco adequada — dos Estados “arcaices”, querendo significar por um lado aqueles Estados que passaram pelo conjunto das transformagées ocorridas na Grécia arcaica e clssica e, por outro lado os que conheceram evolugio mais limitada e preservaram longamente estruturas aristo- craticas atrasadas, Os Estados “modernos” eram sempre péleis (Atenas, Mileto); os “arcaicos” podiam ‘ser pédleis (Esparta, as cidades-Estados cretenses) Ou @fhné (Tessé- lia, Lécrida)1. 1 Austin, Michel & Vipat-Naquet, Pierre, Economies et sociésés en Gréce ancienne. Paris, Armand Colin, 1972. p. 92-6. (Colegio U 2). ’ 23 As grandes linhas de evolucdo das cidades-Estados Quando as cidades-Estados gregas comegam a ser mais bem iluminadas pelas fontes escritas, nés as achamos, na Epoca Arcaica (séculos VIII-VI a.C.), mi) plena crisé social e politica (stdsis), entregues a luta entre faccdes. A raiz primeira desta crise parece ser o resultado da com- binagao do aumento demografico) (continuo durante toda essa fase da histéria grega) pcompancircunstanciaydevesta= rem, como se disse anteriormente, muitas das melhores terras monopolizadas pela aristocracia de sangue, que dis- punha de todo o poder politico e judiciario. Em contraste, os lotes dos camponeses pobres, devido a continuas parti- thas sucess6rias, podiam chegar a tamanhos infimos. Mas o detalhe nos escapa: o unico exemplo relativamente menos obscuro € o de Atenas, que sera examinado no préximo capitulo. Em todo caso, algumas das caracteristicas que podemos entrever na Atica parecem bastante gerais. Uma delas é o empréstimo in natura (sobretudo de cereais) que os proprietarios mais ricos faziam aos camponeses pobres, do qual podia resultar a perda da terra pelos iltimos, con- tinuando o ex-dono a trabalhar a parcela, agora como arrendatario; e mesmo uma forma de escravidio ou servi- dio por dividas, j4 que o pagamento destas era garantido pela pessoa do devedor e de seus familiares. Partindo da luta entre proprietérios e despossuidos, credores e devedores, 'a evolucao da pdlis dependew tam- bém de outros fatores, entre os quais os que apontam para a urbanizagao, a divisio do trabalho, a importancia cres- cente da economia mercantil. A arqueologia permite com- Provar um artesanato cuja qualidade estava aumentando, a exportacdo de ceramica grega nos séculos VI] e VI a.C., a importacfo de artigos de luxo orientais, o surgimento dé templos imponentes e outros monumentos, mais tardia- mente So inicio da eton6mia monetaria (cuja expansdo 24 entre as cidades-Estados gregas foi sobretudo um fato do século VI a.C.) lendetumsistematécnicovespecificamente helénico a partir do século VI a.C. Uma interpretagado anacr6nica e exagerada de alguns desses fatores, tipica de fins do século XIX e inicios do século atual, baseada numa énfase excessiva nos aspectos mercantis e no papel dos ar- tesaos e comerciantes, levou a uma forte reagéo em sentido contrario nestas Ultimas décadas. Ressaltou-se o carater macicamente agrario da sociedade grega e o fato de nao terem sofrido os corintios qualquer catdstrofe perceptivel quando Atenas superou Corinto na exportagaéo de cera- mica. Mostrou-se que a moeda, inventada no reino da Lidia ainda no século VII a.C., dali passou as cidades gregas em processo que se escalona ao longo de muitas décadas, mas que a arqueologia prova ser mais tardio do que os textos escritos disponiveis poderiam fazer _supor; ¢ que o seu surgimento péde dever-se a fatores extra-econd- micos, pelo menos de inicio: vontade de afirmar uma ética da eqiiidade nas relacGes sociais, de proclamar a soberania das pdleis —- sendo a cunhagem de moedas um simbolo de independéncia —, de facilitar 0 pagamento de impostos e multas exigidos pelas cidades-Estados, mais tarde de fi- nanciar tropas mercenérias, etc. E possivel, porém, que se tenha ido longe demais na minimizagao do comércio e dos fatores econdmicos nao- -agrarios. Afinal, a nao ser que (unialriquezaestranhajaos padrées tradicionais dos nobres possuidores de terras ex- tensas\itenhafeito'suaaparicao, seria dificil explicar a in- dignagao de Tedgnis de Mégara por nao desdenhar o aris- tocrata casar-se com a filha de um homem rico de nasci- mento inferior e por dominarem os comerciantes (TE6c- Nis, 185 et seqs., 349), ou a de Alceu de Mitilene diante da riqueza que faz o homem (fragmento 49), ou ainda a afirmagéo de Siménides de Ceos (citado por Aristételes) acerca de ser o “bom nascimento” mera riqueza herdada, para néo mencionar a asseveracgéo mais antiga do bedécio 25 Hesiodo de que a virtude e a gloria seguem a riqueza (Os wabalhos e os dias, 313). A colonizagao grega Ao mesmo tempo conseqiiéncia da crise agraria, para a qual constitufa uma saida, e fator de um progresso eco- ndmico diversificado, a colonizac&o grega foi um dos acon- tecimentos essenciais dos séculos arcaicos, embora com impeto menor e algumas modificagdes se estendessem igual- mente aos séculos cléssicos (V e IV aC.). Sém aavida, foi a busca de terras cultivaveis que, em primeiro lugar, levou expedicdes fundadoras gregas ao Mediterraneo Oci- dental, ao norte da Africa, ao norte do Egeu, 4 Propén- tide=(atual-Mar-de"Mérmaray"e "40" Ponto" Euxine = (atual Mar Negro), num extraordinério movimento de multipli- cagao das poleis helénicas — cujo numero chegaria a apro- ximadamente 1 500 a 2000. O)prépriofato de que) co" munidades gregas tenham passado a existir em todo o contorno do Mediterraneo e de seus anexos, porém, inten- sificou muito a navegac¢io e o comércio. Com o tempo, também surgiram fundagdes de indubitdvel finalidade co- mercial: Emporion na Espanha, Néucratis no Egito; de fato, Al-Mina, sem divida um “empério” ou micleo mer- cantil no norte da Siria, surgira bem antes, no século IX ac. A colénia grega tipica, ou apoikia, era uma cidade- -Estado independente, fundada por uma metrdpole que en- viava um guia ou fundador (oikistés) e financiava a expe- digG0; esta, no entanto, podia contar com contingentes de vArias pdleis. Na maioria das vezes, buscava-se uma pla- Hicie litoranea fértil, cujas terras eram divididas igualita- Tiamente entre os primeiros colonos, sendo que se conhe- cem redivisSes provocadas pela chegada de novas ondas 26 de migrantes e que a situago primeira de igualdade nao foi durvel. A intervengao das autoridades metropolitanas era clara: nao se tratava de migracdes espontaneas organiza- das\em Carater privado, Platdo (Leis, 735e-736a) via nos homens desprovidos de recursos um perigo, ja que ambi- cionavam os bens dos ricos, e na colonizagdéo uma expul- séo benigna, para que a pdlis deles se desembaragasse. Uma tradi¢ao conservada por Herédoto (IV, 153) acerca da fundacdo de Cirene mostra que, pelo menos em certos casos, O governo da cidade-Estado designava por sorteio as pessoas que deveriam partir; uma inscricio do século IV a.C. confirma a autenticidade da afirmagdo e adiciona outras informagSes: a penalidade para quem se negasse a partir quando designado era a morte, acompanhada de confisco dos bens; além dos escolhidos pela sorte, eram aceitos voluntarios, Tudo isto acentua os aspectos agrarios da crise, e da colonizagaéo como uma de suas solucdes. |Mesmo assimy € bem possivel que, ainda na criag&o de colénias fundamen- talmente aprarias, ndo estivessem ausentes outras motiva- gGes, como o aprovisionamento em metais (de que a Grécia é, no conjunto, bem pobre). Nao se deve esquecer de que, no século V a.C. — mais documentado —, wertas, razées econdmicas da colonizag&o s4o claramente mencio- nadas pelas fontes: busca de terras nas quais estabelecer cidadios pobres, sem divida; mas também controle de portos comerciais e minas de ouro na Trdcia (TucipIpEs, I, 100, referindo-se & colénia de Anffpolis, fundada pelos atenienses e seus aliados através do envio de 10 000 colo- nos), cortes de madeira para construgao naval na mesma regido (Tucipines, V, 108). Outrossim, uma das razoes invocadas pelos enviados de Corcira (atual Corfu) para convencer os atenienses a que prestassem ajuda 4 sua cidade — colénia insular de Corinto em conflito com sua metrépole — foi a posicdo estratégica da mesma em rela- 27 -_ ov oO Oa gio 4 rota de navegacao da Grécia continental 4 Magna Grécia (sul da Italia) e 4 Sicilia (Tucipwwes, 1, 36). Nao h& razGes para supor que consideragdes como estas ndo se fizessem sentir ja anteriormente, por mais que alguns dos fatores econédmicos que pesaram muito no século V a.C. — por exemplo a busca de fontes de abastecimento de cereais ¢ do controle das respectivas rotas — somente no final da Epoca Arcaica de fato comegassem a ter alguma incidéncia. Na longa e variada histéria da colonizagio grega aconteceram quase todas as possibilidades imaginAveis. Os gregos as vezes se estabeleceram através de acordo amig4- vel com os indigenas, outras vezes explorando-os como servos. Houve colénias que por sua vez fundaram colé- nias. Grupos de colonos enviados por uma cidade inicia- vam um estabelecimento e posteriormente eram expulsos por recém-chegados: Zancle, na Sicilia, depois chamada Messina, foi fundada por colonos provenientes da ilha Eu- béia, os quais foram substituidos por migrantes da ilha de Samos e da J6nia que fugiam dos persas, expulsos por sua vez pelo tirano da cidade de Rhegion, que ali instalou pessoas de variadas procedéncias (Tucfpipes, VI, 4). Diodoro da Sicilia (V, 9) fala-nos de homens de Cnido e de Rodes que, impedidos de se estabelecerem na Sicilia pelos fenicios, misturaram-se 4 populagdo indigena das ilhas Lipari (por volta de 580 a.C.), cujo sistema comu- nitério de propriedade da terra adotaram por muito tempo. Repercussées politicas Que repercussées politicas tiveram, em seu conjunto, Os fatores j4 mencionados: crise \agraria, ‘colonizacao, ur banizacio, progressos tecnoldgicos, expansdo do artesanato e da economia mercantil? 28 Aparentemente, como ocorreria alguns séculos depois em Roma, a diferenciacgao social resultante de tais fatores levou também a uma diferenciag&o das reivindicagGes. Aos pobres interessava a abolicéo das dividas — e sua conse- quéncia, o fim da escravidio ou servidéo por dividas — © a partilha das terras. As pessoas enriquecidas mas que nao pertenciam 4 aristocracia tradicional, importava sobre- tudo obter a fixagdo das leis por escrito ¢ certos direitos politicos. O monopélio das magistratures e da justicga pelos nobres de sangue j& era visto por Hesiodo como fonte de injustica, quando mencionava os “homens comedores de presentes” (Os trabalhos e os dias, 220-221) — ou seja, magistrados corruptos, suborndveis. [Foi nas col6nias oci- dentais, segundo parece, que surgiram os primeiros legis- ladores — Zaleucos de Locres (663-662 a.C.), Carondas de Catania; em seguida foram nomeados legisladores tam- bém ia Grécia continental (Filolau de Corinto em Tebas, Dracon em Atenas) 'e nas cidades gregas da costa da Asia Menor. Nesta iiltima regiéo eram chamados aisymnetai, titulo que significa terem por fungdo regular equitativa- mente os direitos: o que mostra bem que os legisladores nao se limitaram a fixar por escrito © direito aristocratico e consuetudindrio, mas agiram também como reformadores politicosve"sociais, chamados que foram como mediadores das faccdes em conflito. Nomeados vitaliciamente ou por tempo limitado, gozaram de poderes extensos de tipo le- gislativo € executivo. Uma das raz6es que explicam a possibilidade de in- fluirem os no aristocratas detentores de alguns recursos na transformagéo parcial do regime politico foi a cha- mada “revolugéo hoplitica”. Por volta de|700 aC. ou pouco depois, 6 antigo modo dé combate, que se limitava no essencial a duelos entre nobres que iam ao campo de batalha a cavalo mas combatiam a pé, cedeu o lugar a infantes armados de uma couraca metdlica, de um escudo 29 Jeve no braco esquerdo e¢ de uma langa, nao mais arma de arremesso, mas com a qual, segura na mao direita, se avangava diretamente ao encontro do inimigo num movi- mento coletivo e ritmado que exigia muito treinamento conjunto. Esta infantaria pesada dos Aoplitas apareceu em fungdo da reunido de uma série de transformacdes técnicas que foram surgindo aos poucos ¢ finalmente con- fluiram num sistema coerente. A mudanga no modo de fazer a guerra implicava uma mudanga social: o combate singular era préprio de uma reduzida aristocracia militar que monopolizava, ou quase, o uso das armas; a falange hoplitica exigia um grande mimero de combatentes bem treinados. Para adquirir o armamento de um hoplita era preciso ser pelo menos um camponés médio, com alguma - renda. Isto levou, mesmo assim, a uma partilha, ainda que limitada, do poder politico: a assembiéia popular, que reunia 0 povo (demos) ou, pelo menos, © seu setor capaz de armar-se, comecou a sair do siléncio que no passado lhe havia sido imposto nas assembiéias cantadas por Ho- mero, nas quais s6 aos aristocratas fora permitida a pa- lavra. Na medida em que os problemas fundamentais das Massas populares néo eram cabalmente solucionados pelas transformagées politicas j4 mencionadas, abria-se a possi- bilidade do surgimento de um regime politico peculiar: a Hrania. A partir de meados do século VII a.C., € por tais de cem anos, diversos lideres populares, quase sempre devorigemnobré, considerados usurpadores por uma tra- digo aristocratica antiga que os autores atuais curiosa- Mente repetem, tomaram o poder pela forca ov ardilosa- mente. Em Corinto foram tiranos Cipselo e seu filho Pe- Fiandro (655-585 a.C.);, em Mégara, Tedgenes chegou ao poder em 640 a.C, e uns dez anos depois apoiou, em /Ate> Has, o golpe abortado de seu genro Cilon; Sicion, no norte do Peloponeso, foi governada por Ortagoras!le iClistenes durante um século, até aproximadamente 550 a.C.; najeosta a da Asia Menor e nas ilhas vizinhas houve também nume- rosos tiranos, sendo os mais famosos Trasibulo de Mileto (fim do século VII a.C.) e Polfcrates de Samos (derrubado pelos persas por volta de 520 a.C.). De fato, dasicidades mais importantes, s6 Esparta e Egina n&o conheceram a tirania. Que um regime tao generalizado, por mais de um século uma das formas de governo principais da Grécia, seja considerado por historiadores de hoje como uma “irre- gularidade constitucional” ou simplesmente como um “re- gime de transigiio”, é prova de uma aceitacio acritica do mau humor de escritores aristocraticos ou oligdrquicos do passado, bem como da lembranca deformada da tirania pelo povo em épocas posteriores, causada pelos aspectos de rigor e impopularidade que ostentou em seus dltimos tempos na fase arcaica (pois houve depois, sobretudo em areas periféricas do mundo grego, novas tiranias, sendo a mais famosa a de Dionisio, o Antigo de Siracusa, 405-367 a.C.). Qs tiranos chegaram ao poder de diferentes maneiras: reig que almejavam livrar-se da tutela dos aristocratas; magistrados eleitos que pela forca se mantiveram no cargo ao expirar o seu mandato; por fim, lideres militares de grande popularidade que deram bem-sucedidos golpes de estado (ArisTéTELes, Politica, V, 1310b). Trés caracte- risticas do regime aparecem com clareza: 1) o governo do tirano era de tipo pessoal e considerado ilegal pelos aris- tocratas, embora ele mantivesse o aparelho tradicional dos Grgiiosde\sua\pdlis| (de certo modo, a tirania se exercia paralelamenie a tais 6rgaos); |2)) sua legitimidade @ sua base social vinham do fato de proteger os populares contra ayelasse(dominante| (ou seja, governaram a maior parte do tempo apoiados pela maioria da populagado, o que torna um tanto estranho considerar ilegal 0 governo dos tiranos, exatamente como faziam os nobres por razdes Gbvias: fora a sua legalidade que os tiranos romperam); 3) em quase 3 todos os casos, o tirano era um nobre, ou pelo menos par- cialmente descendente de nobres (esta ultima possibilidade — © tizano resultante de casamento misto — sendo ilus- trada por Cipselo de Corinto e Pitaco de Lesbos). Quis-se explicar a ascensio da tirania pela “revolucdo hoplitica”. A verdade, entretanto, '@ que, mesmo quando haviam sido Lideres militares, uma vez no poder os tira- nos faziam uso de mercendrios, nio da milicia de cidadios. Ao apciar-se politicamente nas massas populares, em favor das quais tomava diversas medidas — que normalmente nao inclufam, porém, qualquer redistribuicdo radical das terras —, a tirania promoveu a configuragio do demos como forga politica mais estruturada do que o fora até ent&o: ela significou, assim, a destruicgio, néo dos aristo- cratas, mas da sociedade ¢ do regime aristocraticos mais Culimenssvexclusivos) Por isso mesmo, a titania arcaica foi seguida pela democracia ou por regimes cligarquicos bem menos estreitos do que os do passado *, Evolugdes divergentes Terminada a era dos tiranos arcaicos, ao iniciar-se o petioda cldssico (séculos V e IV a.C.), perccbemos no mundo grego evolucdes divergentes, seja em direg&o 4 de- mocracia, seja para regimes oligarquicos. Estas evolucdes dependeram tanto do resultado das lutas sociais e politicas internas quanto da intervencdo das cidades-Estados maio- fés, umas nas outras e no régime das menores. Esparta aparecia como camped dos regimes cligarquicos e inimiga das tiranias e democracias: interveio para derrubar diver- sos tiranos, inclusive os Pisistratidas de Atenas, e a favor do estabelecimento ou restauragao de oligarquias, em es- 2Ver Mossé, Claude. Ea tyrannie dans la Gréce antigue. Paris, Presses Universitaires de France, 1969. p. 203-5. 32 pecial — mas nado somente — no Peloponeso (Tucipmes, I, 19; VI, 59). Atenas era a defensora dos regimes demo- craticos, que instalava nas cidades-Fstados que eram suas aliadas, transformadas em suditas, e em suas coldnias (cle- rdquias). Durante as lutas pelo poder, og aristocratas ¢ oligarcas tendiam a apelar para Esparta (Tucipipes, I, 107; Ili, 65, etc.; XENOFONTE, Helénicas, IV, 8, 20), os democratas para Atenas (Tucfowes, I, 115; IL, 47; VI, 21, etc.), Quanto a Tebas, se no século V a.C. apoiava os oligarcas (Tucipwes, II, 2; VI, 95), com a mudanca do seu proprio regime no século seguinte passou a intervir a favor dos democratas (XENOFONTE, Helénicas, VI, 1,. 4i a 46}. Analogamente, quando da opgfe por aliangas extemmas, as cidades democraticas tendiam a aliar-se as de mesmo regime e as oligfrquicas a outras oligarquias (Tu- cfores, V, 31, 44). Tomemos trés exemplos de evolugdes divergentes no final do século V a.C.; Corcira, Mégara ¢ Melo (Milo). Em conflito aberto com Corinto, sua metrépole, desde 435 a.C., Corcira apelou alguns anos depois para Atenas. Um dos chefes do partido democratico, Peithias, conseguiu, nos tribunais, condenar cinco dos mais ricos cidadios da itha a uma forte multa, alegando terem cometido um crime religioso. Os acusados, informados de que Peithias iria apresentar ao Conselho de Corcira, de que era membro, um projeto de alianga defensiva e¢ ofensiva com os atenien- ses, organizaram um ataque armado ao mencionado Con- selho, matando o lider democrata e outras sessenta pes- soas. Conseguiram deste modo impedir a alianga. A che- gaia de um barco de Corinto e de enviados lacedeménics encorajou os oligarcas a atacarem os democratas, vencen- dc-os momentaneamente. A noite, porém, o povo tomou a acrépole e 14 se fortificou, ocupando igualmente um dos portos; os cliparcas, por sua vez, ocuparam a 4gora, onde residiam ¢ tinham suas lojas — tratava-se de uma oligar- 33 quia sobretudo de comerciantes —, e © outro porto. Ambas as facgdes tentaram obter o apoio dos escravos, prometendo-lhes a liberdade: estes, na sua maioria, opta- ram pelos democratas, enquanto os oligarcas recrutaram oitocentos mercendrios ilirios no continente. No combate que se seguiu, do qual também participaram as mulheres, os populares foram vitoriosos. Os oligarcas incendiaram a 4gora — e portanto seus préprios bens — para barrar aos inimigos o acesso ao arsenal naval e seus armamentos. © barco corintio e os mercendrios se retiraram furtiva- mente. Chegaram reforcos enviados por Atenas e mais de quatrocentos oligarcas se refugiatam num templo. A si- tuac%o mudou com a chegada de numerosos barcos pelo- ponésics, que combateram e derrotaram os navios de Cor- cira (que nao contaram com ajuda dos atenienses). Os democratas decidiram entrar em acordo com os oligarcas. Mas os peloponésios se retiraram, enquanto as tropas tra- zidas pelos barcos de Atenas foram introduzidas na cidade. Seguiu-se um terrivel massacre de oligarcas, mesmo nos templos, o qual durou sete dias. Os devedores aproveita- ram para desembaragar-se de seus credores, matando-os (427 a.C.). Os sobreviventes dentre os oligarcas, instala- dos numa montanha da ilha, dedicaram-se a uma guerra de guerrilhas. Aceitaram, posteriormente, parlamentar com os atenienses, que lhes deram garantias e aos quais se renderam; mas foram entregues traigoeiramente aos de- mocratas de Corcira. Muitos foram massacrados e outros se suicidaram, enquanto suas mulheres foram escraviza- das. A facc%o oligarquica foi, portanto, literalmente ani- quilada, em 425 a.C. (Tucfpwwes, WI, 70 a 81; IV, 46 a 48). Diferente foi o resultado da disputa entre democratas e oligarcas em Mégara, mais ou menos na mesma época. Os democratas foram a principio vitoriosos, e os oligarcas, em parte expulsos, pilhavam o territério da cidade, que 34 jA sofria com os ataques de Atenas — j4 que Mégara era aliada de Esparta durante a Guerra do Peloponeso. Os partidarios da oligarquia que permaneceram na cidade de- fendiam a volta dos banidos. Os democratas entraram entéo em conversagdes com os atenienses, pois estavam decididos a entregar Mégara a Atenas para evitar a volta dos exilados e do regime olig4rquico. Os atenienses com- binaram com eles um plano de agdo militar, mas, se bem que tal plano tivesse sucesso inicial, os lacedemdnios c beécios intervieram e acabaram vitoriosos. Apesar de pro- messas de cleméncia e de composicao politica, os oligarcas, uma vez investidos de magistraturas do Estado em Mégara, conseguiram condenar 4 morte uma centena de democra- tas. Implantaram entéo “um regime francamente oligér- quico” (Tucipmes, IV, 66 a 74). . A ilha de Melo recusara-se a entrar para a Liga de Delos controlada por Atenas. Em 416 a.C., os atenienses organizaram contra ela uma expedigao militar, com ajuda de Quio e Lesbos. Acampadas as tropas na ilha, emiss4- Tios atenienses se dirigiram 4 cidade de Melo, governada por uma oligarquia. Os governantes nfo permitiram que falassem & assembléia popular, forgando-os a discutir so- mente com os magistrados ¢ o Conselho de notdveis da cidade — coisa que fot ironizada pelos emiss4rios: estes observaram que os oligarcas temiam a discussdo aberta, a qual poderia induzir “a massa dos cidadaos” a se deixar convencer pelos argumentos dos atenienses. Nao houve acordo. Depois de um ano de cerco, Melo caiu em poder dos seus inimigos. Os homens adultos foram massacrados, as mulheres e criancas escravizadas e as terras da ilha re- partidas a quinhentos colonos (clerucos) atenienses, Neste caso, portanto, a queda do regime oligdrquico significou também a aniquilag&éo da pélis (Tucinwes, V, 84 a 116). A oapcdo pela democracia ia além de objetivos pura- mente politicos para as massas populares, que continuavam 35 reivindicando a redivisdo das terras (ver um exemplo — o de Leontini, na Sicilia — em Tucipwes, V, 4). Se acreditarmos em Aristételes (Constituicdo de Atenas, XL, 3), em certas cidades os democratas, ao tomarem o poder, procederam efetivamente a tal rediviséo. Conhecemos bem mal as instituigdes democraticas fora de Atenas. A mais antiga das democracias gregas seria a de Quio, anterior mesmo 4 ateniense. FE sobretudo por inscrigGes que sabemos terem as cidades democraticas érgdos grosso modo andloges aos de Atenas — Eciésia ou assembléia popular, Bulé ou Conselho, magistrados eleitos ou sorteades —-, mas entrevemos algumas diferencas: menor poder dos tribunais, inexisténcia de remuneragdo por ati- vidades politicas, inexisténcia do ostracismo (salvo em Si- Facusa antes de 405 a.C. e em Argos}. No século IV a.C., anteriormente 4 intervengio da Macedénia, havia mais péleis democraticas do que oligarquicas na Grécia. As cidades-Estados oligarquicas, tal como as demo- craticas, tinham assembléias populares (Ecclesfai, Haliai), conselhos e magistrados. Mas as condigGes de acesso a cidadania plena eram distintas, apesar de bem variadas, como sabemos por Aristételes principalmente. Havia uma diferenga entre cidad&cs que chamariamos passives, exclui- dos dos direitos politicos tanto quanto es estrangeiros resi- dentes {metecos) e os escravos, e cidadaos ativos {poli- teuma), cujo numero podia variar (mil em Célofon ou Crotona, seiscentos em Massdlia, etc.). Em geral, eram critérios de fortuna ou renda anual que faziam a diferenga entre as duas categorias de cidadaos. Por outro lado, nas oligarquias, com freqiiéncia a assembléia popular tinka po- deres restritos, sendo o Conselho o orgao de governo mais importante. Em cidades onde certas familias aristocraticas ainda dominavam (cidades da Tessdlia, Massalia, Cnido, Heracléia), as magistraturas eram hereditdrias e nado ele- tivas. Havia, outrossim, limites legais minimos de idade e de riqueza para o acesso 4 magistratura e ao Conselho. 36 Além da cidade-Estado: ligas e federacGes de cidades Nao obstante o particularismo estrito da pdlis grepa, desde a Epoca Arcaica temos noticia da existéncia de associagdes que englobavam certo namero de cidades-Es- tados. As mais antigas foram as anfictionias, organizadas em toro de um santudtio pan-helénico para o culto comum — como ocorreu, por exemplo, no famoso san- tudério de Apolo em Delfos. Cada anfictionia tinha um Conselho integrado por representantes das cidades-mem- bros, mas sem fungdes propriamente politicas, ja que sé cuidava de acordos diplomaticos. Os gregos chamavam simaguia um acordo ou associa- cao militar, em principio para a defesa, o qual podia en- globar diversas cidades que permaneciam independentes ¢ dispor de um Conselho. A mais famosa foi a simaquia peloponésia, também conhecida como Liga do Peloponeso, formada no século VI a.C. por iniciativa de Esparta, que se ligou 4 maioria das cidades oligdrquicas peloponésias por tratados bilaterais, 4s vezes complementados por ou- tros tratados das demais cidades entre si. Uma excecdo de peso foi Argos, polis democratica e tradicional inimiga de Esparta, a qual se recusou a participar. O nome oficial desta simaquia — “os lacedeménios e seus aliados” — mostra bem que, embora os membros mantivessem em principic sua autonomia interna, o predominio espartano era claro. © Conselho da liga era convocado e presidido por magistrados de Esparta (éforas) e cada cidade nele tinha um voto. A segunda cidade em importincia da si- maquia peloponésia era Corinto, por sua riqueza e sua frota de guerra. No século V a.C., depois da guerra contra OS persas, ¢ mais ainda apds a vit6ria sobre Atenas em 404 a.C.,.Esparta conseguiu maior centralizagio em seu beneficio da simpatia peloponésia. 37 A unido dos gregos pata enfrentar a ameaca dos persas levou 4 formagao, alias dificil, da chamada Liga pan-helénica de Corinto em 481 a.C., simaquia cujo co- mando terrestre e maritimo coube a Esparta. De fato, grandes porgGes da Grécia permaneceram neutras (Creta) ou apojaram os persas (Tessélia, Bedécia). Espécie de alar- gamento passageiro da simaquia peloponésia, a Liga de Corinto foi, no entanto, bem mais frouxa em sua orga- nizacao. Ainda no decorrer da guerra contra os persas, em 476 a.C., Atenas conseguiu formar 4 sua volta uma liga maritima com a finalidade de libertar as cidades gregas da Asia Menor, ainda sob o jugo do império persa — o que foi conseguido em 449 a.C. —, e atacar e pilhar este Ultimo em represdlia pelas guerras médicas. A associacdo, cujo tesouro comum ficaria depositado na ilha de Delos, centro religioso dos jénios do Egeu, é conhecida como Liga de Delos. Dela participavam a maior parte das ilhas Ciclades, a ilha Eubéia, algumas das ilhas costeiras da Asia Menor, partes das costas da Tracia ¢ do Mar de Mar- mara. As cidades maiores contribuiriam com barcos de guerra, as menores com dinheiro. Atenas teria o comando, tas no Consetho da liga cada cidade disporia de um voto. Trataya-se, no inicio, de uma simaquia, cujo nome oficial era: “os atenienses e seus aliados” Com o tempo, porém, a Liga de Delos se transformou em um império maritimo submetido a Atenas. Esta passou a castigar as cidades que tentassem abandonar a alianga, o tesouro comum foi trans- ferido para Atenas (454 a.C.), onde passou a ser usado ~em despesas da prépria pdélis ateniense e nao da liga, o Conselho desta desapareceu e colénias (cleriiquias) de ate- nienses que conservavam sua cidadania de origem foram criadas em territérios vazios ou em terras confiscadas aos insurretos, para vigilancia do império. O regime democrd- tico foi imposto a muitas das cidades da Liga de Delos que eram antes oligarquicas, bem como a moeda e os 38 pesos e medidas de Atenas tiveram de ser adotados por todas. Quando Esparta derrotou Atenas e seus aliados na Guerra do Peloponeso (404 a.C.), a Liga de Delos foi dissolvida; reapareceu, porém, menor e menos estruturada — mas sempre sob hegemonia ateniense — em 377 a.C. Além das associagées de cidades até agora menciona- das, houve outras menos extensas. A mais importante foi a Liga Bedécia, na verdade um Estado federal disfargado, controlado por Tebas. A liga, formada pela primeira vez em meados do século VI a.C., consolidou-se um século mais tarde; foi dissolvida em 386 a.C. e reestruturada em 374 a.C. Na Liga Beécia os direitos e deveres das cida- des participantes eram determinados pelas respectivas ci- fras de populacdo, dai decorrendo o predominio tebano. Dividia-se em onze distritos e, no Conselho federal de 660 membros, 240 eram de Tebas. Havia onze beotarcas ou magistrados, dos quais quatro eram tebanos, com fun- gdes principalmente militares, um tesouro comum e um tribunal coletivo. Oligarquica no século V a.C., com a transformagaéo de Tebas numa democracia no século se- guinte, também a Liga Bedécia passou a ter um carater de- mocratico, eliminando-se a distingéo entre cidaddos ativos € passivos e passando a assembléia popular coletiva a ter grandes poderes. O fim das cidades-Estados aut6nomas O grande surto da escravidao e das relagdes mercantis que marcara o final da Epoca Arcaica prolongou-se pelo século V a.C. Ja no século seguinte, muitos historiadores modernos créem perzeber uma crise. A longa Guerra do Peloponeso caracterizara-se pela freqiiéncia com que os campos dos inimigos eram devastados, as colheitas quei- madas, as arvores cortadas. A propriedade, muito par- celada, tendeu a se concentrar: especuladores compravam 39 as terras arruinadas a baixo preco, seja para recupera-las e revendé-las, seja para praticar uma agricultura de expor- taco com mao-de-obra escrava. A urbanizacéo se acen- tuava: Atenas passou a concentrar 50% da populacdo da Atica, ¢ na cidade um nimero consideravel de pessoas em- pobrecidas viviam dos desembolsos crescentes do Estado. A dependéncia do cereal importado se acentuou. E ver- dade que os aspectos cconémicos da crise do século TV a.C. sio pouco claros e 4s vezes contraditérios, ndo ha- vendo unanimidade a respeito — pois indubitavelmente existiram também elementos de progresso ¢ expansao 3. Nao ha muitas dividas, no entanto, de que a partir de 380 a.C. alguns dos parimetros basicos da sociedade grega tenham sofrido r4pida mudanga, que em meio século conduzizia 4 ruina do sistema de cidades-Estados indepen- dentes. Novos centros e elementos de poder politico e militar surgiram e influenciaram fortemente a situacdo. Se a hegemonia espartana apés 404 a.C, significara até certo ponto a continuidade de padrées relativamente tradicio- nais de guerra e de politica, apés a segunda década do século IV a.C. o uso crescente da cavalaria, as mudangas no sistema hoplitico e o nimero cada vez maior de mer- cendrios, minando a equacdo tradicional do exército com o “povo em armas”, a ascensaio da hegemonia de Tebas e em seguida o grande peso de uma monarquia macedé- nica muito fortalecida nos negdécios gregos, revelaram ser fatores radicalmente novos. As sucessivas tentativas de hegemonia desde o século anterior apontavam, no fundo, ao fato bdsico de que a pélis, quadro demasiadamente estreito, estava em desa- cordo com o avango constante da integragao econdémica e cultural da Grécia, bem como dos perigos externos. No entanto, os politicos e os pensadores na sua maicria nao 8Ver Must1, Domenico. L'etoriamia in Grecia, Roma, Laterza, 1981. p. 125-34, 40 encontravam solucées alternativas: os Estados ideais vis- lumbrados por Plato e Aristételes eram pdéleis. Alguns ja viam a solucio numa unifio dos gregos, federando as cidades-Estados em associagSes mais vastas: era o caso de Isécrates, para quem tal uniao deveria passar pela vitéria sobre os persas e que acreditava ver em Filipe da Mace- d6nia o lider capaz de realizar té9 ambicioso plano. O grande adversério das manobras macedénicas na Grécia, Deméstenes, percebera com maior lucidez que a vitéria de Filipe deixaria subsistir somente uma caricatura da democracia ateniense ¢ da independéncia das pdleis gregas, Foi o que ocorreu apdés 338 a.C., quando os gregos foram derrotados em Queronéia pelos macedénics. A civilizagao da pdlis morreu entéo, por mais que, for- maimente e numa visdo superficial, tudo parecesse indicar a sua persisténcia. o Atenas e Esparta Aristételes e seus discipulos elaboraram, num traba- Iho de equipe, 158 monografias acerca das constituigdes de outras tantas cidades-Estados, das quais uma sé (Car- tago) nao era grega. Ora, todas se perderam, com excecao da que se refere a Atenas, recuperada em 1891 ao ser publicada uma c6pia quase completa proveniente do Egito. Se bem que elementos contidos nas monografias perdidas foram incorporados por Aristételes em sua Poli- tica, a verdade € que s6 a respeito de Atenas e Esparta 0 conjunto das fontes antigas disponiveis fornece dados suficientes para uma visdo relativamente satisfat6ria, em- bora persistam muitas lacunas, muitas perguntas sem res- postas seguras, mesmo quanto a estas duas pdleis. As circuntancias inescapaveis da documentagao trans- formam, assim, dois casos no fundo extremos, e portanto atipicos quando comparados a outras cidades-Estados he- Iénicas, em paradigmas respectivamente dos regimes de- mocraticos e oligarquicos da Grécia cldssica. Atenas e Esparta controlavam territérios bem mais extensos do que os da imensa maioria das pdleis e através da lideranca exercida sobre numerosas cidades reunidas em ligas atin- 42 giram, no seu apogeu, niveis de poder também muito supe- riores aos que estavam ao alcance das outras cidades. Seja como for, é verdade, igualmente, que as organizagdes poli- ticas que ostentavam na Epoca Cl4ssica apresentam nume- Tosos pontos comuns com as de outras cidades democré- ticas e oligérquicas, motivo pelo qual — como também pela propria lideranga que exerceram — sua anélise apre- senta um interesse que excede o dos simples estudos mo- nograficos, Atenas A mais antiga organizagao politica que podemos co- . nhecer com alguma seguranca remonta a uma época — segundo parece os séculos VIII e VII a.C, — em que a monarquia havia desaparecido, sendo o “rei” agora um magistrado entre outros — que chegaram a nove —, todos conhecidos posteriormente como arcontes. O arconte reéi tinha sobretudo fungées religiosas; o polemarco, militares; 0 arconte propriamente dito, ou arconte epdnimo, dava seu nome ao ano {ao tornar-se anual o arcontado, em época nao determinada com precisdo) ¢ tinha fungoes reli- giosas e judicidrias; os seis tesm6tetas, surgidos mais recen- temente, eram encarregados de redigir ¢ tornar piblicas as decisdes consideradas obrigatérias ¢ gozavam de poderes judicidrios. Os arcontes eram eleitos somente entre os aris- tocratas, primeiro em car&ter vitalicio, depois por dez anos, por fim anualmente. O Conselho — chamado Aredpago — tinha fungSes politicas extensas mas mal precisadas pelas fontes; atuava como tribunal supremo e guardiao do tegime. Formavam-no membros vitalicios (ex-arcontes). Em 621-620 a.C., um legislador, Drécon, introduziu teformas politicas cuja lembranca, nos tempos cldssicos, havia-se tornado imprecisa. E possivel (cf. ARISTOTELES, Constituigdo de Atenas, TV, 2) que 0 essencial dessas) mid" 43 dificagSes tenha consistido na admissao de todos os hopli- tas — incluindo os de origem nao nobre — a cidadania, com direito a eleger os arcontes (embora nio pudessem talvez ser magistrados ¢ portanto ingressar no Areépago). Seria estranho que a “revolugao hoplitica” nao tivesse efeitos em Atenas por essa época. Se esta interpretacio das reformas de Dracon for cor- reta, elas deram satisfagdo aos atenienses mais ricos que nao fossem aristocratas, mas nao aos camponeses pobres. Estes, através do mecanismo do endividamento, tornavam- -se “clientes” (peldtai) e atrendatdrios (hectémoroi) dos ricos, pagando — as interpretacdes divergem — um sexto ou cinco sextos da colheita como aluguel da terra que haviam perdido ao nfo poder ressarcir o que deviam; e mesmo, persistindo sua insolvéncia ao ponto de ndo paga- rem o aluguel, e j4 que as dividas eram garantidas por suas pessoas e as de seus familiares, podiam, com suas mulheres e filhos, ser vendidos como escravos fora da Atica, ou nesta trabalhar como servos de seus credores. A terra estava concentrada em poucas m4os. Uma tal si- tuacdo levou a “que os nobres e a multidaa entrassem em (conflite durante longo tempo” (ArisTOTELES, Consti- tuigGo de Atenas, Il, 1 e V, 1). Os detalhes do conflito nao sfo conhecidos, mas em 592-591 a.C. Sélon foi eleito arconte com amplos poderes, encarregado de proceder a reformas sociais e politicas. Ele nao efetuou a redivisio das terras reclamada pelos popula- res, mas realizou uma radical aboligdéo das dividas e proi- biu, no futuro, tomar as préprias pessoas como garantia dedividas, Ao que parece, os pequenos proprietdrios que haviam perdido suas terras voltaram 4 plena propriedade destas; os que haviam sido vendidos como escravos no exterior foram, na medida do possivel, comprados aos seus donos pelo Estado ateniense e alforriados. Atribuia-se pos- teriormente a Sé6lon também uma reforma dos pesos ¢ me- didas e do sistema monetario, mas a arqueologia demons- 44 tra que a moeda nao havia ainda aparecido na Atica em sua época, : Do ponto de vista politico, Sélon introduziu um sis- tema censitirio, dividindo os cidadios em quatro classes segundo o rendimento agricola anual de que dispunham: pentacosiomédimnoi (isto é, aqueles cujas terras rendessem quinhentas medidas de cereais e/ou de azeite), cavaleiros, zeugitas e tetes, com rendimentos decrescentes. Somente a primeira classe tinka acesso ao arcontado, as trés pri- Mmeiras a magistraturas menores, os tetes unicamente 4 Eclésia (assembléia popular) e aos tribunais. Atribuia-se a Sdélon também a criacgio de um segundo Conselho, a Bulé de quatrocentos membros, ao lado do Aredpago, que continuava sendo o guardido das leis. | Ao que tudo indica, as reformas ‘de Sélon sé apazi- guaram por pouco tempo a luta social ou sfdsis. Depois de algumas décadas de conflitos e tentativas de acordo entre as facgdes —- que tinham uma expressdo topogra- fica: a “planicie” oligarquica, a ““montanha” democratica e o “litoral” moderado —, o chefe aristocratico da facgao popular, Pisfstrato, tomou o poder como tirano, Ele e pos- teriormente dois de seus filhos permaneceram no poder — intermitentemente no caso de Pisistrato — dé)561)a/510 a.C. O povo foi desarmada, alguns dos aristocratas foram exilados ou executados e suas terras talvez divididas entre camponeses pobres, Pisistrato instituiu juizes itinerantes para o territério rural da Atica e um sistema de emprés- timos aos pequenos cultivadores. Criou ou encorajou a colonizagaéo ateniense na Tracia, realizou obras publicas que acentuaram o cardter urbano de Atenas e deram em- prego a cidadaos pobres, transformou a cidade num grande centro cultural ¢ fortaleceu os seus lagos religiosos com o Egeu (participagio ateniense nas. ceriménias em Delos). Ao morrer, foi sucedido por seus filhos. O regime tornou- -se duro apés o assassinato de um deles, O outro, Hipias, 45 foi por fim derrubado pelo genos banide dos alcmedénidas, com apoio do ordculo de Deifos e dos hoplitas espartanos. Esparta favoreceu a formacdo, em Atenas, de um regime oligdrquico, mas dois ances depois da queda da tirania, um Alcmednida, Clistenes, conseguiu, com forte apoio popular, impor reformas que inauguraram o regime democratico em 508 a.C. 0 corpo de cidaddos foi aumen- tado pela admissao de certo niimero de metecos (estran- geiros residentes) ¢ libertos 4 cidadania ateniense. Vi- sando a eliminar as facgGes de base regional ¢ o jogo de influéncias nas zonas rurais, Clistenes dividiu os cidadaos em dez tribos (em lugar das quatro tribos “étnicas” tradi- cionais dos jénios) e 160 divisdes administrativas, os demos, repattidos em trinta circunscricdes eleitorais — sendo que cada tribo reunia trés destas circunscricées: uma da cidade, uma do litoral e uma do interior. Alguns autores chamam a atengdo para esta intima relacao entre “espago civico”, “espaga geométrico” e “espago geogra- fico” na obra de Clistenes}. As reformas propriamente politicas de Clistenes sao mal conhecidas: na verdade, tendia-se no século ¥ a.C. a atribuir-lhe grande niimero de mudangas de fato postcrio- Tes. Assim, por exemplo, a criagSo da nova magistratura eletiva constituida pelos dez estrategos ou generais data de fato sé de 501-500 a.C.: eleitos por um ano, eram reele- giveis indefinidamente. O Conselho ou Bulé teve o nimero de conselheiros elevado para quinhentes (cingiienta por tribo, tirados 4 sorte), sendo suas fungdes o controle das magistraturas ¢ talvez j4 entéo a preparacdo dos projetos de resolugGes que seriam submetidos & assembléia popular. Clistenes conservou as classes censitérias estabelecidas por Séion, Alguns autores antigos atribufam-lhe a instituicdo 1 Ver por exemplo VERNANT, Jean-Pierre. Espace et organisation politique en Gréce ancienne. In: — . Mythe et pensée chez les Grecs, I. Paris, Maspero, 1974, p. 207-29. 46 do ostracismo, que no entanto foi posterior, tendo sido aplicado pela primeira vez em 488-487 a.C.: em assem- bléia cujo quorum nao podia ser inferior a seis mil cida- dios, e tendo ocorrido em assembléia anterior a decisdo de proceder a tal votagaéo, votava-se (sendo o voto neste caso escrito e secreto, enquanto ordinariamente era esta- belecido pela contagem das maos levantadas) por maioria simples a expulsao com cassac¢4o de direitos politicos (ati- mia) por dez anos de um cidadio denunciado como poli- ticamente perigoso ou subversivo. O condenado poderia receber no estrangeiro a renda proveniente de seus bens e, ao voltar a Atenas —- passados dez anos ou sendo cha- mado antes por deciséo popular —, recuperava automa- ticamente os plenos direitos de cidadaio. [A medida era encarada como recurso contra a ameaga de uma volta a tirania. Durante os séculos V e IV a.C. a democracia ate- niense se completou com diversas medidas tomadas ao longo de varias décadas. Em 487-486 a.C. instituiu-se a tiragem & sorte dos arcontes segundo listas elaboradas pelos demos. Contando-se nove arcontes mais um secre- tario, havia um por tribo. Isto enfraqueceu a mais antiga das magistraturas em proveito dos estrategos, que eram eleitos. Pouco a pouco, as exigéncias censitdrias foram sendo legalmente derrubadas ou caindo em esquecimento para as diferentes fungGes, mesmo as mais altas. Como o Aredépago havia concentrado outra vez grandes poderes quando da guerra contra os persas, o lider popular Efial- tes fez com que a Eclésia votasse uma reforma que o privou de tais atribuigdes em favor da Bulé e do tribunal popular dos heliastas (cujos membros eram sorteados), por volta de 462°461/a'C, No periodo de Péricles — lider do genos dos Alemedénidas que, simplesmente como um dos estrate- gos, de fato dirigiu a vida politica ateniense entre 460 e 429 aC. — restringiu-se 0 acesso 4 cidadania, agora sé possivel aos filhos de pai e mae atenienses, em 451 a.C. 47 (anteriormente era suficiente que o pai fosse ateniense), @ a criagdo da mistoforia ou retribuigfo monetdria ao exer- cicio de certos cargos ptiblicos e aos marinheiros da pode- rosa frota que a cidade construira por influéncia de Temis- tocles, sendo que essa remuneracao se estendeu muito no século IV a.C.; talimedidaliperiitia que 6s |icidadaos mais pobres pudessem participar da politica sem perda dos meios de subsisténcia. Como na época de Péricles era o tesouro da Liga de Delos, transformada em império (arkhé) ate- niense, que financiava estas e outras despesas estatais, a supressao da liga depois da derrota frente aos espartanos em 404 a.C. criou sérios problemas para as financas pi- blicas. Atribui-se ao final do século V a.C. a criag&o da grafé pardnomon, disposi¢ao que consistia na possibilidade de se intentar processo a qualquer cidadao, acusando-o de submeter 4 Eclésia uma proposicdo contrdria as leis vi- gentes, mesmo se tal proposigao tivesse sido aprovada, Considerando agora o funcionamento das instituigdes democraticas de Atenas no seu apogeu, os direitos politicos pertenciam aos cidadaos do sexo masculino de mais de de- zoito"anos!(embora dos dezoito aos vinte anos, na pratica, © servico militar ou efebia restringisse a participagéo dos jovens), sendo que para certas fungGes exigia-se a idade minima de trinta ou mais anos. O centro da vida politica era a assembléia popular ou Eclésia, formada em principio por todos os cidadaos no gozo de seus direitos, com amplas fungées legislativas, executivas (votacdéo da guerra ou da paz, decisio acerca das negociagdes diplomaticas e dos tratados}, judicidzias) (embora na maioria das vezes os casos fossem enviados pela assembléia aos tribunais) ¢ elei- torais (elei¢do, confirmagao e eventual suspensao das ma- gistraturas eletivas, cassagdo eventual também dos cargos que dependiam de sorteio). Uma limitagéo ao seu vasto poder era, no século V a.C., o fato de sé poder votar pro- jetos de leis ou de decretos preparados pela Bulé (probu- Jéumata)}, mas tal restrigio desapareceu no século seguinte. 48 O Conselho ou Bulé de 500 membros — cidadaos de mais de trinta anos tirados & sorte por um ano (86 se podia ser buleuta duas vezes na vida), de inicio entre as trés pri- meiras classes censitdrias, e submetidos a um exame de cidadania legitima e de moral, pelo Conselho em fim de mandato, antes de tomar posse, bem como 4 prestagdo de contas ao sair do cargo — preparava projetos de legisla- ¢4o, controlava os tesourcires e recebia as prestagdes de contas dos magistrados quando deixavam o cargo, recebia embaixadas, encaminhava processos de alta traicio, O Conselho raramente se reunia em sesséo_plendria: suas fungdes principais eram exercidas durante um décimo do ano por cada pritania (sec4o de cingiienta membros), en- carregada também de convocar e presidir a Eclésia. O Conselho mais antigo ou Aredpago, composto de membros vitalicios (ex-arcontes), teve seus poderes restringidos ao julgamento dos assassinatos voluntarios de cidados ¢ de certos crimes religioscs. Mas os tribunais populares tira- dos™aesorte_— os 51 éfetas, os juizes dos demos (30 até 403 a.C., depois 40), os 6000 heliastas (de fato divididos em tribunais menores ou dicastérios), etc. — virami-sé atti- buir a maioria da justica civil e criminal. A partir de fins do sécule V a.C., um corpo de legisladores (nomotetas) sorteados dentre os heliastas foi encarregado de estabelecer um repertério de toda a legislagdo em vigor. Quanto aos magistrados, os mais antigos, os arcontes — de fato dez, um por tribo, contando-se o secretario —, tirados 4 sorte desde 487-486 a.C., ficavam um ano no cargo; suas fungées foram remanejadas e, no conjunto, di- minuidas no periodo democratico: por exemplo, o arconte polemarco perden a chefia do exército e passou a ser res- ponsadvel pelas ceriménias fiinebres em honra dos cidaddos mortos em combate, além de tornar-se uma espécie de juiz dos metecos ou estrangeiros residentes, cuidando da instrugdo dos processos que os envolviam. Os magistrados mais importantes eram sem diivida os dez estrategos, de 49 inicio eleitos pela.-Eclésia 4 raz&o de um por tribo, depois sem tal limitagéo, por um ano, mas reelegiveis indefinida- mente. Deveriam ser casados legitimamente e propriet4- rios rurais na Atica (a funcdo de estratego nao era remu- nerada). Além de suas atribuicdes militares, repartiam o imposto de guerra sobre o rendimento agrario e sobre a tiqueza monetaria, estabeleciam o imposto devido pelos metecos e o tributo pago pelos “aliados” da Liga de Delos. Podiam convocar a assembléia popular em cardter extra- ordinario e nela tinham prioridade na apresentagao de suas mogées; assistiam se quisessem as sessdes da Bulé (mesmo as secretas). Havia magistrados menos importantes do que os j4 mencionados; eram escolhidos por sorteio. Entre eles estavam os dez tesoureiros (um por tribo), para os quais se manteve por mais tempo a exigéncia de pertencer & primeira classe censitdria. Ja no século V a.C., por duas vezes, em fungado de graves derrotas militares — depois da catastrofe sofrida pela expedigao enviada pelos atenienses 4 Sicilia, em 411 a.C. e apés perder Atenas a Guerra do Peloponeso para Esparta, em 404-403 a.C. — ocorreram duas breves ten- tativas de estabelecimento de governos oligdrquicos. A guerra contra Esparta causara sérics problemas 4 agricul- tura, interrompera setores artesanais fundamentais e em especial afetara a extragao de prata no monte Lauria, ao ocorrer em 413 aC. a fuga maciga dos escravos da Atica (Tucipwes, VII, 27). As dificuldades resultantes se pro- longaram no século IV a.C., afetando a vida das instiwi- gSes democraticas da cidade: s6 a remuneracdo garantia a afluéncia A Eclésia e¢ a dificuldade de obter recursos con- duziu a processos as vezes escusos contra cidaddos ricos, paral confiscar-lhes\os\bens! Tornou-se mais rara, outros~ sim, a possibilidade de fundar clerdquias no exterior, assim aliviando na Atica a tensdo agréria. Ainda mais grave, tal- vez, fosse a mudanca do carater da magistratura dos estra- tegos, devido A faléncia do exército hoplitico tradicional e 50 4 extensio do uso de soldados mercenarios, fiéis somente aos seus chefes e portanto utilizaveis em apoio de politicas de promocio individual. Os adversdrios da democracia pretendiam, também, que desde a morte de Péricles o re- gime passara a ser orientado por “demagogos” irresponsa- weis: acusacdo que deveria ser analisada com cuidado e em detalhe, pois em parte pelo menos decorria do despeito de pensadores reacion4rios, com freqiiéncia de origem aris- tocratica. Mesmo assim, ha razGes suficientes para pensar que o apogeu do regime democriatico ateniense jd passara hd muito quando sua autonomia foi decisivamente restrin- gida pela vitéria de Filipe II da Macedénia em Queronéia (338 a.C.)}. Pouco depois, em 322 a.C., a democracia foi substituida em Atenas por uma oligarquia censitaria. Esparta Nos fins da Epoca Arcaica e nos tempos classicos, Esparta nos aparece como uma pdlis extremamente atipica. Em primeiro lugar, a urbanizacdo da cidade nunca se com- pletou: permanecia constituida por um conjunto de al- deias e seus templos e construgdes no mostravam esplen- dor nem arte refinada (Tucfoipes, I, 10}. Em segundo lugar, o termo que designava oficialmente a polis espar- tana — “os lacedem6nios” — nao era sinédnimo do con- junto dos cidadaos, como nas outras cidades-Estados: com- preendia, sem diivida, os cidadaéos ou esparciatas, mas também os periecos, siditos de Esparta sem que fossem metecos, os quais gozavam de autonomia interna em suas cidades ¢ povoados (a impressio é a de uma evolucéo no sentido do surgimento de varias pdleis na Lacénia, que tivesse sido interrompida em algum ponto, para dar lugar a uma associagiéo ou subordinacéo sui generis). Em ter- ceiro lugar, o territério controlado por Esparta, depois da conquista da Messénia, era de pouco mais de 5 000 km’, $1 em contraste com os 2 500 km? da Atica, que era ja con- siderada grande em comparacdéo com a maioria dos terri- t6érios das cidades-Estados helénicas: Esparta era auto-su- ficiente em cereais e, coisa ainda mais rara na Grécia, dis- punha de minas de ferro na Lacénia. Por fim, e princi- paimente, os esparciatas constituiam um caso extremo de especializagao militar: as atividades econdémicas eram dei- xadas aos periecos e aos hilotas, escravos do Estado espar- tano postos a servico dos esparciatas, vivendo estes ilti- mos “como exército acampado e nao como pessoas fixadas em cidades” (PLATAO, Leis, II, 666e), a tal ponto que os homens adultos tomavam em comum as refeicgdes (syssi- tias), repartidos em grupos que na guerra combatiam juntos, em jugar de fazé-lo em suas casas, Embora alguns dos tragos da organizagao espartana — o hilotismo e as refeigSes coletivas, por exemplo — fossem encontrados também em outras cidades do mundo grego (as de Creta em especial), no conjunto tratava-se de um caso muito peculiar. Como explicé-lo? Os pré- prios espartanos e seus contemporaneos da Epoca Classica atribuiam a constituicao espartana — resumida num do- cumento conhecido como “Grande Retra” — a um pe- tiodo muito antigo e a um legislador mitico inspirado pelo deus Apolo: Licurgo. A arqueologia, no entanto, bem como fragmentos que se conservaram da obra de certos poetas arcaicos (Alcman, Tirteu), mostram que por muito tempo Esparta teve uma evolucdo similar & de outras cidades da Grécia, por exemplo em matéria de lutas so- ciais ¢ de histéria intelectual, ¢ que somente entre 600 ¢ 500 a.C. se completou o processo que a transformou num caso & parte. Acredita-se que o episddio fundamental no sentido de dar forma a Esparta tal como a conhecemos foi a con- quista da Messénia, regio do Peloponeso vizinha 4 La- c6énia, e a transformacgao de seus habitantes em hilotas, como jA ocorrera com parte da populagéo da Lacénia, 52 segundo muitos autores devido A conquista de etnias ante- riormente estabelecidas pelos invasores dérios (embora niio haja provas de que periecos e hilotas nao fossem dérios). A primeira guerra da Messénia parece tet ocorride no século VIII a.C., na época do rei Teopompo (fragmento 4 de Tirteu)}. No século seguinte, a revolta dos messénios levou & segunda guerra da Messénia, que segundo se cré coincidiu com o auge da luta social em Esparta pela redi- visio das terras ¢ com a adogdo do sistema hoplitico de combate. Esta coincidéncia foi decisiva. Como as divi- s6es entre os esparciatas estavam dificultando a vitéria, num momento em qué uma forma de lutar que exigia coeséo havia-se tornado essencial, decidiu-se a redivisao das terras da Lacénia e da Messénia outra vez derrotada (na Lac6nia havia também terras que pertenciam aos pe- tiecos, as quais nao foram tocadas) em lotes, de inicio ignais, com os hilotas que os habitavam. Este fato explica que Esparta nao tenha conhecido a tirania, enquanto 0 dominio sobre numerosos hilotas sempre prontos @ rebe- liao — fato confirmado por miltiplos exemplos de revol- tas em diversas épocas — permite entender a especializa- go militar. O poeta Tirteu, contemporaneo da segunda guerra da Messénia — provavelmente em meados do sé- culo VII a.C. — define (fragmento 3) 0 governo de Es- parta como consistindo em dois reis — outra peculiaridade da pédlis espartana —, Conselho de ancidos, e os homens do povo, cujo dever & a obediéncia aos superiores. Esta obediéncia era conseguida mediante uma educacio espe- cialissima, que entre outras coisas proibia terminante- mente aos jovens a discussdo da legislacZo espartana no que pudesse ter de bom ou ruim, obrigando-os “a procla- Mar com uma s6 voz e com uma s6 boca que tudo é nela excelente, posto que seus autores foram os deuses” (PLA- TAO, Leis, I, 634d). No entanto, foi s6 no século VI a.C. que o sistema espartano adquiriu todas as caracteristicas ptincipais que Ihe conhecemos. 53 Passando agora a descrigdéo da organizacao politico- -social de Esparta nos termos classicos, devemos nos refe- rir em primeiro lugar 4 divisdo social basica em esparcia- tas, periecos e hilotas. Os esparciatas, chamados “os iguais” (homoioi), eram os cidadaos gozando de plenos direitos. Os adultos entre eles, ou seja, os chefes de familia capazes de portar armas e dotados de lotes de terra, nunca foram muito numerosos; além disso seu nimero diminuiu sem cessar: talvez nove ou dez mil quando da redivisdo da terra civica em porgdes iguais, eram oito mil no inicio do século V a.C. e nao mais de dois mil no século IV a.C. Isto aponta a uma tremenda concentracéo da propriedade sobre a terra civica a se processar nos tempos classicos, caindo com o tempo a maioria dos esparciatas na situagao dos “inferiores”, ao nao poder mais contribuir com alimentos e vinho para as refeicdes coletivas. De fato, no comego tanto a terra civica quanto os hilotas eram propriedades do Estado, atribuindo- -se somente o seu usufruto aos cidadaos; mas com o tempo os esparciatas passaram a tratar estes bens como proprie- dade privada, o que possibilitou a sua concentragéo, num processo cujos detalhes alias nos escapam. A partir dos sete anos de idade, as criancas espar- ciatas do sexo masculino eram separadas de suas familias e recebiam uma educacao pré-militar. Aos dezoito anos comegava o servico militar propriamente dito — o qual compreendia um rito de iniciacéo conhecido como criptia, que incluia operagdes de terrorismo ou “guerrilha” contra os hilotas, talvez com a finalidade de reprimir preventi- vamente os lideres de possiveis revolias? —, e s6 aos 2Ver a explicagio “estruturalista” da criptia pot VipaL-NaQueT, Pierre. Les jeunes: le cru, l’enfant grec et le cuit. In: Le Gorr, J. & Nora, P., eds. Faire de histoire, 111 — Nouveaux objets. Paris, Gallimard, 1974. p. 137-68. (Em portugués: Os jovens gre- gs: 0 cru, a crianga grega e o cozido. In: Le Gorr, J. & Nora, P., eds. Histéria: novos objetos. Trad. de Terezinha Marinho. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1976. p, 116-40.) 54 trinta anos o esparciata se casava e adquiria direitos poli- ticos, continuando até os sessenta anos a ser um soldado sempre disponfvel para o combate. Muitos indicios mos- tram que a pretendida “igualdade” entre os esparciatas nunca foi conseguida, apesar de medidas drdsticas como a severa limitagao da circulagio monetdria, a proibigio da permanéncia de estrangeiros em territério espartano ¢ de viagens dos cidadfos ao exterior. Boa prova disso é o fato de terem nove esparciatas obtido doze vitérias nas corridas de carros — esporte extremamente caro — nos Jogos Olimpicos, entre 550 e 400 a.C. Entre os siiditos dos esparciatas, os periecos tinham situagdo relativamente favorivel. Se por um lado nao podiam participar da vida civica de Esparta — o que nao os eximia do combate como hoplitas, sob mando es- parciata —, monopolizavam o comércio e 0 artesanato (pela proibigio de viverem metecos na Lacénia e na Mes- sénia e pela proibigfio das operagdes de comércio com o exterior, salvo aquelas em que os periecos agissem como intermedidrios), podiam ter bens e terras (distintas das terras civicas} ¢ comprar escravos. Governavam as. suas comunidades com autonomia quanta aos negdcios internos, mas sob a vigilancia de um governador esparciata nomea- do para cada uma delas; naturalmente nfo podiam ter uma politica externa prépria. Nao séo conhecidas revoltas de periecos a n&o ser tardiamente, Os hilotas, camponeses que durante muito tempo foram vistos como escravos pUblicos, trabalhavam nos lotes atribuidos aos esparciatas, entregando-lhes de inicio a metade da colheita ¢, mais tarde, segundo parece, uma quantidade fixa de produtos. Podiam possuir bens e cons- tituir familia, mas eram tratados com grande dureza. Jam a guerra em principio como auxiliares e¢ servigais; mas a intensificagdo das guerras externas fez com que fosse neces- sério armar como hoplitas a muitos hilotas. Estes s6 po- diam ser alforriados pelo Estado. Suas revoltas — cruel- mente reprimidas mas sempre recomecadas — e o fato de que eles e os periecos com o tempo passassem a constituir a grande maioria do exército espartano foram fatores de enfraquecimento do regime tradicional. Do ponto de vista politico, os espartanos reconhe- ciam em primeiro lugar dois reis, hereditdrios (nado neces- sariamente em linha direta, nem segundo o principio de primogenitura) em duas familias, os Agidas e os Euripén- tidas. Os reis tinham altas fungdes religiosas ¢ comanda- vam o exército; ndo tinham poderes politicos efetivos, a nao ser como membros ex officio do Conselho de anciaos, eram obrigados a jurar lealdade 4 constituicio e vigiados | de perto pelos magistrados ou éforos. A Genisia ou Con- selho de ancidos era composta pelos dois reis, mais 28 ci- dadios com mais de sessenta anos (isto é, liberados das obrigacdes militares). Eram vitalicios e eleitos de forma curiosa: os candidatos ao cargo — ao abrir-se vaga pela morte de algum dos gerontes —, desfilavam diante da assembléia popular ¢ eram aplaudidos; juizes encerrados numa casa préxima, de onde nio podiam ver o desfile ¢ que desconheciam a ordem (estabelecida por sorteio) em que passariam, avaliavam qual dos candidatos fora o mais aplaudido —- se o primeiro, o segundo, o terceiro, etc. —, sendo este o vencedor. A Gerdsia aparentemente tinha fungdes semelhantes 4s da Bulé ateniense quanto 4 prepa- ragdo dos projetos de lei a serem votados pela assembléia e funcionava como tribunal para a justica criminal. Quanto a assembléia popular ou Apela, formada pelos cidadaos de mais de trinta anos e em pleno gozo dos direitos, reunia- “se ao ar livre, elegia os gerontes e os éforos e votava sem discutir —- por aclamacgdo ou, em caso de diivida, divi- dindo-se em dois grupos (Tucipwes, I, 87) — as pro- postas que lhe fossem submetidas pelos éforos ou pela Gerdsia. Se tentasse ir conira o costume e discutir as pro- ' postas, ou tomar qualquer decisio contréria a constitui¢ao, os reis ¢ a Gerisia tinham o poder de dissolvé-la. Os Gnicos magistrados espartancs eram os cinco éforos, eleitos por um ano pela Apela entre todos os esparciatas, sem qualquer disting&éc de riqueza ou nascimento. No século VE aC, parece ter ocorrido um reforgo de suas atribuigdes (reforma atribyida ao éforo Quilon), O presidente do colégio dos éforos era epénimo, ou seja, dava o seu nome ao ano em que exercia suas funcdes. Presidia a Apela, em especial quando cram recebidos embaixadores estran- geiros ou se votava a paz ou a guerra. Em caso de guerra, os éfores ordenavam a mobilizago e estabeleciam a estra- tégia a ser seguida; dois deles acompanhavam o rei que, para a campanha em questiio, tecebesse o comando su- premo, A fangaio principal dos éforos era, na verdade, a de controlar a educagio dos jovens e vigiar a vide social € politica de Esparta, com a finalidade de evitar qualquer desvio em relagSo ao regime tradicional. Tinham grandes atribuigdes judicidrias, podendo julgar mesmo os reis, Sen enorme poder era limitado pelo cardter anual ¢ colegiado do cargo. No conjunto, entéo, apesar da presenga dos reis, 0 regime espartano era oligérquico ¢ niéo mondérquice, mas de um tipo muito especial. A necessidade de participar de grandes guerras no exterior do Peloponeso a partir do século V a.C. foi o principal fator que contribuiu para o enfraquecimento ¢ posterior dissolugio do sistema espartano, aco favorecer o poder individual dos reis e generais, as diferencas de for- tuna, a mobilizag&o militar crescente dos periecos e hilo- tas, bem como o recurso a-tropas mercendrias. O dese- quilfbric j4 era claro no regime de Esparta no inicio do século IV a.C.: revolta dos cidadios decaidos (“‘inferiores”) tentada por Cinadon; independéncia da Messéaia coase- guida com o apoio de Tebas em 370 a.C., formando os messénios uma nova polis. Tal desequilibrio 56 fez au- mentar com o tempo, preparando a violenta crise politica e social atravessada pela debilitada Esparta no século Tit ac. 4 Roma como cidade-Estado O povoamento da Italia, os etruscos e os inicios de Roma No complicado processo de povoamento da peninsula italiana e da Sicilia, tendo como guia os dados lingiiisticos e a arqueologia, é possivel distinguir um substrato ante- rior ao indo-europeu, representado em tempos histéricos pelos ligures do noroeste, pelos messapios e iapigios do sul ¢ pelos sicanos da Sicilia. A partir provavelmente de 2200-2100 a.C., grupos de lingua indo-européia ganharam a Italia, onde povoariam sobretudo o centro e o sul da peninsula (povos chamados “‘itdlicos” ou “italiotas”) e a Sicilia (os siculos). Hoje se distingue um primeiro subs- trato indo-europeu, chamado proto-latino (origem do latim, do falisco, do véneto e do siculo) e, a partir de fins do segundo milénio, um segundo substrato (do qual deriva- ram o imbrio e 0 osco, bem como os dialetos aparentados ao segundo, por exemplo o sabino). Do VIII ao VI século a.C., os gregos fundaram nume- rosas cidades na regiao costeira do sul da Italia e na Sici- lia; esta expansio colidiu com a dos fenicios — e poste- riormente de Cartago, cidade-Estado de origem fenicia do norte da Africa — em terras sicilianas, e com seus aliados, os etruscos, no Mar Tirreno. A origem dos etruscos — cujo niicleo inicial foi o territério situado entre o Mar Tirreno a oeste e os montes Apeninos a leste, entre o rio Arno ao norte e o Tibre ao sul —, de fato um problema ainda nao resolvido, é uma das quest6es em que a arqueologia e o testemunho dos textos antigos em parte se chocam. Arqueologicamente, n&o ha solugdo de continuidade entre a cultura da Idade Inicial do Ferro conhecida como cultura de Vilanova (aproximadamente 900-720 a.C.) e a civilizacao etrusca — cujo apogeu independente pode ser datado de aproxima- damente 720-300 a.C., j4 que depois foi absorvida pela expansdo romana —, com suas fases arqueoldégicas orien- talizante (Arcaico IJ, 720-600 a.C.) e helenizante (desde fins do século VII a.C., acentuando-se no século seguinte).* Ora, se a arqueologia mostra uma continuidade sem cortes drasticos apesar de inegdveis e fortes influéncias externas, Herddoto (I, 94) pretendia que os etruscos fossem oriun- dos da Lidia, na Asia Menor; é verdade, porém, que Dio- nisio de Halicarnasso (I, 30, 2) considerava-os autéctones. Estas teses opostas foram retomadas por autores moder- nos. Em todo caso, se existiu, a imigragao procedente da Asia Menor deve ser recuada até o segundo milénio a.C. e integrada 4 formagao da propria cultura de Vilanova. A lingua etrusca nao é indo-européia: a sua unica afinidade comprovada é com a lingua falada na ilha egéia de Lemnos até a conquista desta pelos atenienses — o que alids nao deixa de reforgar a possibilidade de algum vinculo de ori- gem com a Asia Menor. O povoamento da Italia antiga se completou, em tempos histéricos, com a irrupcio dos gauleses (grupo 1 Brown, A. C. Ancient Italy before the Romans. Oxford, Ashmo- lean Museum, 1980. cap. VI e VII. 59 celta, de lingua indo-européia) no infcio do século IV a.C., os quais de inicio estenderam bem para o sul da pe- ninsula suas expedigdes de saque ¢ pilhagem (tomada de Roma em 390 a.C.) e se estabeleceram no vale do rio Pé (Galia Cisalpina). Foi com os etruscos que surgiu, na Itélia, a cidade- -Estado. © aparecimento da civilizagao etrusca no final do século VIII a.C. foi marcado, justamente, pela urba- nizagio de sitios da cultura de Vilanova, dando origem, entre outras, as cidades de Veios, Caere, Tarquinias, Vulci, Vetulénia, Populénia (grande centro metalérgico gracas 4 vizinhanga das minas de ferro da ilha de Elba), Volterra, Volsini, Orvieto, Clusium, Arezzo. Os etruscos, aliados a Cartago, mantiveram até o inicio do século V a-C. seu pre- dominio naval no Mar Tirreno. No seu apogeu, a nagdo etrusca formava uma confederag&o de doze povos (cujas metrépoles néo sio facilmente identificdveis, numa lista de cidades bem mais numerosa), sistema que desenvolveriam os etruscos também ao colonizar o vale do Pé (fundando, anteriormente 4 chegada dos gauleses, cidades como as fu- turas Bolonha, Mantua e Milfo) e, para o sul, o Lacic e a Campania, onde Volturno (Capua) parece ter sido fundada bem cedo, como um posto avangado do comércio ¢trusco com os gregos da Magna Grécia. A “dodec4pole” etrusca central na Toscana, tinha um santudrio comum no templo do deus Voltumna, perto de Volsini. A organizacio federal das cidades dé a impressiic, entretanto, de datar sé do final do século Vi a.C. e o “Conselho da Etrdria” nao aparece mengionadg antes de 434 a.C, (Tivo Lfvio, IV, 33, 5). Seja como for, a federagio era enfraquecida pela independéncia das cidades-Estados, por sua rivalidade e desunido em momentes decisivos. Os romanos foram herdeiros do urbanismo etrusco, baseado em ritos de fundagao que delimitavam o territério “sagrado” da cidade e — nas cidades etruscas mais recen- tes — num plano regular em que duas ras principais (o cardo eo decumanus dos romanos) se cortavam em 4n- guio reto no centro da aglomeracio. Governadas por reis (lucumées) até o século VI a.C., no século seguinte passa- ram as cidades-Hstados dos etruscos a um regime rigida- mente aristocraético, com magistrados eleitos anualmente, alids mal conhecidos (os zilath ou pretores, os mtaru equi- valentes talvez aos edis da Roma republicana primitiva), e um Senado ou Conselho de nobres; mas néo uma assem- bléia popular, No século IV aC. uma revolta do povo parece ter aberto caminho a uma participagao mais ampla na vida politica. InstituigSes romanas como a clientela, formada pelos dependentes das familias aristocrdéticas, e simbolos do poder como o bance de marfim, os oficiais ou litores que acompanhavam os magistrados, etc. so de clara derivacfio etrusca. No inicio da Idade do Ferro, 0 Lacio, regiao de Roma, povoado pelos latinos e posteriormente também por sabinos, era o ponte de encontro das culturas italia- nas do norte (Vilanova), do oriente ¢ do sul (cultura das tumbes de fossas), ¢ de uma velha tradic¢io formada ainda ha Idade do Bronze (cultura apeninica, tipica de um pova de pastores transumantes); a esta mescla de influéncia se d4 o nome de “cultura lacial”. A arqueologia mostra que o sitio de Roma, no mo- mento em que surgiam as primeiras cidades etruscas, carac- terizava-se por numerosas aldeias independentes -—- latinas e talvez também sabinas, embora alguns autores recuem até a Reptblica a imigragao dos sabinos no Lacio — de agricultores e sobretudo ‘pastores, construfdas no alto das colinas, enquanto os cemitérios ocupavam as depresses. Algumas dessas aldeias — aparentemente s6 as latinas — _reunitam-se numa liga ou federagio de cardter religioso e quicd defensivo (o Septimentium). As escavagdes em Roma da escola sueca de E. Gjerstad conseguiram resul- tados interessantes. Elas constataram que, por volta -de 575 a.C., as aldeias se uniram numa comunidade urbana 61 . Whica, processo marcado por um remanejamento do espaco (abandono de certos cemitérios, destruigaéo de cabanas no _ que veio a ser o Férum), pela pavimentacaéo rudimentar do Férum (centro civico e mercado), pela abertura de ruas regulares, pela instalagéo de um segundo Forum (Fo- rum Boarium) junto ao rio Tibre, enfim pela eregéo de templos e edificios piblicos. As cabanas deram lugar aos poucos a verdadeiras casas. O estudo da ceramica, em especial, mostra trés fases na urbanizacao primitiva de Roma: a primeira, relativamente lenta, entre 575 e 530 a.C.; a segunda — de rapida e maxima expanséo — entre 530 e 500 a.C.; e a terceira, de estagnacao e talvez ligeiro declinio, entre 500 ¢ 450 a.C. A interpretagao de Gjerstad é de que entre 575 e 530 a.C. teriamos uma urbanizagao pré-etrusca, correspondendo ao lendario periodo dos reis latinos e sabinos, e que por volta de 530 a.C. os etruscos teriam tomado Roma, transformando-a numa tipica cidade etrusca, nela permanecendo até meados do século V a.C. — contrariamente 4 cronologia tradicional, que data de 509 a.C. a expulsdo do terceiro e ultimo rei etrusco e o inicio da Republica romana. Outros autores preferem atri- buir ja aos etruscos a primeira urbanizagéo em 575 a.C. Com os dados disponiveis atualmente, é impossivel entrever a evolugdo das instituigdes romanas até meados do século V a.C.: antes da Lei das Doze Tabuas (450 a.C. segundo a tradicao), as informagdes de Tito Livio e outros autores tardios estéo irremediavelmente contamina- das por anacronismos republicanos projetados no periodo mondrquico anterior. Parece bem estabelecido, porém, que podemos aceitar — nao em seus detalhes, mas de modo geral — certos pontos dessa tradigéo. O primeiro se refere 4 organizagdo basica da civitas romana no periodo monarquico: rei, Con- selho de anciaos (Senado) e assembléia das curias (comi- tia curiata), sendo estas dltimas, de inicio, subdivisées das 62 trés tribos que serviam de base 4 cobranca de impostos e ao recrutamento militar. © segundo ponto que nao pa- rece ser contestavel refere-se 4 adociio das técnicas hopli- ticas de combate no século VI a.C. e 4 conseqijente dis- tingdo censitdria, atribuida ao segundo rei etrusco de Roma, Sérvio Tilio, entre os que podiam e os que nio podiam financiar o seu equipamento militar (a criagio, ja nessa época, de um sistema censitério complexo com varias divisSdes e de uma assembléia de centurias militares - com atribuigGes politicas — comitia centuriata — é algo pelo contrério bastante improvavel). O terceiro ponto, logicamente ligado ao anterior, 6 a substituicio das tribos “étnicas” por quatro tribos urbanas de tipo topografico, numa reforma (também atribuida a Sérvio Tilic) similar, até certo ponto, 4 de Clistenes em Atenas, embora de alcance bem mais limitado politicamente. Se os t6picos acima merecem ampla aceitagao (se bem que nao universal), 0 mesmo nao acontece com a crenca de que ja no perfodo mondrquico existisse a tradicional divisaéo estamental da sociedade romana em patricios (com sua organizagdo gentilicia) e plebeus, atribuida por Tito Livio (I, 8, 7; I, 13, 6; I, 17, 7) ao primeiro rei mitico, Rémulo. Em 1945, H. M. Last defendeu a idéia de ter sido somente sob a Republica que se formou uma oligar- quia patricia, fechando-se esta em estamento, barrando aos poucos o acesso dos demais — os plebeus — ao Senado e 4s magistraturas e mesmo proibindo (por pouco tempo) © casamento entre patricios e plebeus. Quatro dos reis tra- dicionais de Roma tinham nomes de ressonancia plebéia e as listas de magistrados contém nomes plebeus ¢ etruscos entre 509 e 486 a.C., e de novo nomes plebeus entre 461 e 452 a.C. Assim, a constituicfo do patriciado — e, por exclusio, da plebe — teria sido o resultado de uma evo- lugdo que se processou durante a primeira metade do sé- culo V a.C.,, completando-se somente por volta de 450 63 a.C.? Last e outros autores, como P. de Francisci, acre- ditam que a sociedade romana do periodo monérquico, sem ser de forma alguma igualitéria, formava no entanto um s6 corpo de pessoas com os mesmos direitos privados e partilhando os parcos direitos politicos concedidos pela monarquia (excluindo-se, é claro, os escravos, alias pouco numerosos entdéo). De forma mitigada — ou seja, admi- tindo-se que o processo de formagao do patriciado j4 havia comegado sob os iltimos reis —, a tese de Last continua sendo bem mais convincente do que a tese tradicional. A Republica romana Se iniciarmos a andlise em meados do século V a.C., a situacdo politica e social em Roma — refletida na Lei das Doze Tabuas de 450 a.C. — recordar-nos-4 a de Ate- nas_anteriormente_ ao arcontado de Sélon. Uma aristocra- cia de proprietarios de terras — os patricios —, organi- zada em familias extensas (gentes) estruturadas a volta de um culto familiar, monopolizava a vida politica e, prati- cando empréstimos pré-monetdrios que levavam ao endi- vidamento, podia matar os devedores insolventes, vendé- -los como escravos fora do territério romano, ou — 0 que parece ter sido mais freqiiente — usd-losscomommio-de= -obra servil para cultivar as terras e pastorear os rebanhos dos nobres, ao lado dos clientes, nesta época, ao que pa- rece, sobretudo trabalhadores rurais e soldados a servico de uma gens nobre, em troca de ajuda e protegio (a gens dos Fabii podia mobilizar 306 de seus membros e 4 000 a 5000 clientes: Tito Lfivio, II, 49, 4; II, 50, 1). (Os endividados e clientes eram recrutados no seio da plebe, multidio sem organizagao gentilicia cuja origem parece ter 2 Last, H. M. The Servian reforms. Journal of Roman Studies, 35:30-48, 1945. 64 Ssid@Mvatiada: migrantes atraidos pela prosperidade da Roma etrusca, talvez grupos cuja situacdo foi resultante de uma diferenciagao econémico-social interna, etc. A evolugao a partir desta situacdo inicial também recorda em alguns aspectos a de Atenas. No quadro da luta entre patricios e plebeus, travada no contexto de uma retomada da prosperidade econdmica e da urbanizacao em seguida 4 depressdo e ruralizagdo que marcaram a pri- Meira metade do século V a.C., notamesellos\efeitoside uma estratificagdo interna entre os plebeus: as reivindica- gies dos plebeus pobres (aboligéo das dividas e da servi- dao por dividas, repartigfio das terras) e ricos (acesso as instancias do poder) eram distintas, embora s6 a unido da plebe como um todo pudesse fazer avancar o processo da transformacdo social e politica. Também em Roma che- gou-se a uma divisao censitaria do corpo dos cidadiies em varias categorias (talvez ao serem criados os magistrados chamados censores, em 443 ou 435 a.C.) como base do recrutamento politico e militar. E ocorreu a abolig¢aéo das dividas ¢ da servidio por dividas (lei Poetelia Papiria, 323 a.C.), abrindo caminho a expanséo do escravismo, ja solidamente instalado no inicio do século III a.C., ao dei- xarem de estar disponiveis come mio-de-obra dependente os camponeses endividados. Outra semelhancga: nao ocor- reu a redivisio do solo romance original e sim o recurso a colonizacéo, se bem que no caso romano ela se desse por muito tempo na prépria peninsula italiana. Do comeco da Repiiblica até 218 a.C., pelo menos 9 000 km? haviam sido distribuidos a colonos romanos e¢ latinos (o que equi- valia a dez vezes o territério total de Roma no final do século V aC.). As diferencas, porém, sao no conjunto mais notdveis do que as semelhancas. O acesso 4 cidadania romana — por certo, origem em si mesma de menos direitos e pode- res do que nas cidades gregas democraticas — estendeu-se 6s com grande rapidez a boa porcao dos italianos e mesmo aos libertos (que, na Grécia, tornavam-se metecos). O carater mais diretamente sagrado do poder em Roma, baseado na comunicagao por sacerdotes especiais de um poder sobrenatural aos magistrados (augirio) e na possibilidade de tais magistrados consultarem a vontade dos deuses através da observagao de signos como o véo das aves (auspicios), permitiu aos patricios, no curso da luta politica que se estendeu até o século III a.C., \eriar novas magistraturas reservadas a si préprios quando eram obrigados a partilhar as magistraturas mais antigas com os plebeus ricos ou a conceder qualquer outra vantagem a plebe; também puderam invocar razées religiosas para manter por muito tempo o monopdlio patricio do sacer- décio, mais integrado a vida politica e 4 carreira dos ho- mens piiblicos do que na Grécia. Inédito foi também que, em fun¢ao da luta, uma das iniciativas dos plebeus consistisse em criar instituigdes pro- priamente plebéias — o tribunato da plebe, os edis da plebe, 0 concilium plebis ou assembléia dos plebeus —, © que quase cindiu a civitas ou cidade-Estado romana em duas civitates, uma patricia e outra plebéia. Isto, no entanto, nao chegou a acontecer, e mal ou bem as instituigdes criadas pelos plebeus foram integradas a0 régime: Os tribunos da plebe, dotados de inviolabilidade pessoal e residencial (sendo suas casas lugares de asilo), adquiriram o direito de vetar as decisdes dos magistrados e outros érgaos republicanos e de impedir uma dada agdo contra um plebeu simplesmente opondo-se a ela (inter- cessio), tornando-se portanto protetores eficazes da plebe; 0 Cconcilium plebis, com o tempo, dew origem) & assembléia das tribos (comitia tributa), um dos Srgaos legislativos e eleitorais fundamentais da Roma republicana. Os métodos de controle social e politico utilizados no caso romano pelas classes dominantes foram também sui generis. Um deles era um complicado sistema de votacdo 66 na assembléia do exército ou comitia centuriata, principal assembléia dos primeiros tempos da Repiblica, de modo a evitar qualquer participacéo efetiva dos cidadaos mais pobres nela presentes. Outro método foi a instituciona- lizagio da clienrela, que foi perdendo seu sentido marca- damente econdémico ¢ adquiriu o de um apoio eleitoral — € mesmo armado, quando necessério — dos clientes aos membros das grandes familias em sua atuacao na politica. O patriciado, com sua familia extensa ou gens (a qual no entanto nfo era um “cla”: hé mesmo autores que acreditam que a familia restrita precedeu a gens, que se teria formado através de uma reuniao de familias aristo- créticas; e nao, como antes se afirmava, que a gens se tivesse dividido com o tempo em familias restritas), e mais tardiamente_a_prépria plebe, chégaram(laiconstituirlesta= mentos sociais com estruturagao juridica claramente insti- tucionalizada, coisa sem precedentes na Grécia. A instituigéo da terra ptiblica — ager publicus —, propriedade do Estado obtida pelo confisco de terras nas regides conquistadas, é uma particularidade que vem recor- dar ter sido o papel das guerras no caso romano bem maior do que no mundo grego, quanto 4 conformagao do quadro sécio-politico e institucional. O ager publicus podia ser arrendado pelos cidaddos, mas tendeu na pratica a ser concentrado e mesmo apropriado privadamente (de forma ilegal) pelos ricos (Tro Lfvio, II, 41, 3; II, 48, 2). Até 218 a.C., 10000 km? de terras tomadas em guerra haviam sido vendidos ou arrendados pelo Estado romano — uma extenséo um pouco superior, portanto, 4 que no mesmo periodo foi destinada ao estabelecimento de cold- nias, O casamento entre patricios e plebeus foi autorizado em 445 a.C, e foi-se constituindo, pela unido das familias plebéias ricas com as patricias, uma nova aristocracia, a nobilitas, nao institucionalizada juridicamente em esta- mento, mas que constava de um grupo reduzido e exclu- 67 sivo de familias: aquelas cujos membros, depois de terem exercido as magistraturas mais elevadas, tinham ingressado no 6rgéo méximo da Repdblica, o Senado. De 233 a 133 a.C., o8 mais altos magistrados, os cOnsules, foram duzen- tos, mas sairam de somente cingiienta e oito familias, sendo que cinco destas forneceram cinqiienta ¢ dois cdnsules. A’ nobilitas 86 renovava os seus quadros, com o ingresso de “homens novos”, em forma lenta e limitada: houve quinze deles entre 284 ¢ 224 a.C. e¢ apenas quatro entre 200 ¢ - 146 aC, Tais “homens novos” eram oriundos da mais elevada classe censitdria, os eqiiestres ou cavaleiros, de que alguns historiadores modernos quiseram fazer, absur- damente, uma “burguesia” oposta 4 “nobreza senatorial”. De fato, tanto a nobilitas quanto os cavaleiros tinham for- tunas sobretudo agrdrias; os senadores e seus parentes, come os eqiiestres, nic desdenhavam dedicar-se A explora- gao das minas, ao comércio maritimo e ao empréstimo a juros, ao arrendamento de impostos provinciais ou de obras pGblicas e a outras atividades rendosas, pessoalmente ou por meio de testas-de-ferro que podiam ser, eventualmente, os seus libertos (o que tornava indcua a proibigdo feita em 218 a.C. aos senadores da participacio no grande comércio). No século II a.C. e na maior parte do século se- guinte — fase que inaugura a expanséo romana fora da peninsula italiana —- a Repiblica senatorial chegou ao seu apogeu e a uma espécie de equilibrio constitucional, por certo bem mais complexo do que o de qualquer polis grega, em fungao das caracteristicas especificas da evolu- cao romana, algumas das quais j4 foram mencionadas. Esta a fase por nés escolhida para uma descrigdo suméria- da organizacao institucional republicana, Como os gregos, 08 romanos acreditavam que a liber- dade politica consistia no governo por magistrados eleitos por periodo limitado e na sujeicao a lei e nao ao arbitrio deaindividuas (Tiro Livio, JI, 1, 1). O historiador grego Polibio, escrevendo no século HI a.C., assim definiu a cons- tituigfo romana (VI, 11, 11-12): “...havia trés partes efetivas na constitulgéo; todas estas tinham sido téo bem e propriamente reunidas de di- versos modos a administradas pelos romanos, que nenhum dos que viveram sob ela poderla dizer com seguranga se @ sistema como um todo era arletocratico, democrético ou monérquico. E era esta uma impressdéo multo naturel de se ter: pois quando fixamos nossa stangio nos poderes dos cénsules, ele parece ter sido inteiramente monérquico @ real; quando o fazemos nos do Senado, sristocrético; e quendo consideramos os poderes da multidéo, certamente damocratico”. Esta era, porém, uma visio idealizada, sob influgncia da teoria grega acerca da ‘exceléncia das “constituigdes mistas”, Na realidade, o nome oficial da cidade-Estado romana, “O Senado e o povo de Roma”, marcava bem a hierarquia efetiva das instancias, num governo basicamente oligarquico. Por outro lado, poderes tio extensos quanto o dos mais altos magistrados romanos eram, na Grécia, atribuigdes de Conselhos ou assembléias, nio das magis- traturas (com a possivel excecdo parcial dos éforos de Es- parta). Isto porque entre os gregos eles pertenciam ao demos (no sentido restrito de conjunto dos cidaddos), mas n&o assim ao populus romano: /ém) Roma) o poder sobe- rano residia mais no Senado e nos magistrados do que nas assembléias populares, Entre as magistraturas, é preciso distinguir as. que eram investidas do imperium e da potestas, e aquelas que 36 recebiam a potestas. Esta consistia numa forma dé air toridade legal que dava aos seus beneficidrios poderes ad- ministrativos, a possibilidade de ditar o Direito (jus edi- cendi) e de impor suas prescrigGes, se necessério exercendo coacdo (coercitio). O imperium era um amplo direito de comando civil e militar de natureza sagrada, garantida pelo 69 direito 4 consulta dos auspicios, dando aos seus detentores poderes de vida ¢ morte, além da possibilidade de coman- dar as legides, de exercer fungdes judicidrias (sem apela- Gao no campo militar) ¢ de convecar ¢ consultar o Senade e as assemblcias. Gs magistrados superiores, reunindo imperium ¢ po- testas, eram os dois cénsules, que dirigiam 0 conjunto dos negécios piblicos alm de serem generais supremos, e os dois pretores, que também podiam receber comandos mili- tares: © pretor urbano tinha a funcdo principal de orga- nhizar a justi¢a © pretor pereprino (criado a meados do século TH a.C.) a de cuidar dos litigios civis ou criminais que envolvessem estrangeiros. Em caso de grave perigo de tipo militar, os cénsules ou o Senado podiam nomear, por seis meses, um magistrado supremo, o ditador, que por Sua vez nomeava um chefe da cavalaria (rmagister equi- tum) como sey assessor, Os magistrades dotados unicamente da potestas eram: os dois edis curuis, encarregados do policiamento dos mer- cados, do calgamento das mas, dos edificios publicos e da organizacio de certos jogos; os oito questores, auxi- liares militares dos cénsules e¢ encarregados da gestio do tesouro ptiblice e das financas; os dez tribunos da piebe, que constituiam uma magistratura especial, dispondo da possibilidade de vetar medidas e leis, de atribuicgdes de de- fesados'plebeus) (dentro da cidade e num pezimetro de até uma milha a volta dos limites urbanos de Roma), ¢ da possibilidade de (proporileistaicomitialiributa;, os dois edis da plebe, que com o tempo se tornaram indistingui- veis dos edis curuis. De cinco em cinco anos eram eleitos os dois censores — sem imperium mas com direito 4 con- sulta aos auspicios —, osiquais|permaneciamnorcargorde zoito meses, estabeleciam a lista dos cidadaos e dos sena- dores e vigiavam os costumes, As magistraturas romanas caracterizavam-se — com excecio da ditadura — por sua colegialidade e por poder 70 qualquer magistrado opor-se 4 iniciativa de outro magis- trado do mesmo tipo (intercessio); ¢, com excegdo da censura e da ditadura, pela duracdo anual. No século II a.C. tomou forma a idéia de que, na carreira politica, era necessdério comecar pelas magistraturas menores para atin- gir depois as magistraturas superiores e por fim o Senado (cursus honorum), QO Senado, Conselho constituido por trezentos mem- bros vitalicios recrutados em principio entre os ex-magis- trados, votava o que teoricamente era apenas uma re- comendacgéo (senatusconsultum) ¢ perdera o direito de recusar ou impedir as leis votadas nas assembléias. No entanto, nele se encarnavam a continuidadegdayRepi- blica e os “costumes dos antepassados” (mos maiorum), bem como uma forte auteridade moral (auctorilas patrum). Outrossim, gozava de amplos poderes administrativos, fi- nanceiros, relativos 4 politica externa e 4 disposi¢ao das provincias, ¢ quanto & religido civica. No fundo, serayo centro da Repiiblica e se ocupava de todos os assuntos importantes. Quanto 4s assembléias, a mais antiga comitia curiaia ou assembléia por cirias, téve) seus /poderes limitados a concessio do imperium 48 magistraturas superiores ¢ a certas questées religiosas. A comitia centuriata ou assem- bléia das 194 centurias do exército reunia-se fora do peri- metro sagrado de Roma (pomerium) — jA que era proi- bido 4s tropas penetrar na cidade — e votava segundo um complicado sistema que privilegiava as trés classes censita- tias mais elevadas, deixando impotentes os membros das Classes mais baixas. As atribuig6es principais desta assem- biéia, no periode que consideramos, eram eleitorais — ele- gia os magistrados com imperium e¢ os censores —, [dé decisao acerca de iniciar ou terminar as guerras e de recep- ¢ao ao apelo dos condenados 4 morte. J4 as fungées legis- lativas tinham passado a pertencer sobretudo 4 assembiéia dos cidadaos repartidos nas 35 tribos topograficas (quatro 7 urbanas, as demais rurais) de Roma, ou comitia tributa, que elegia os magistrados inferiores, ratificava os tratados de paz e votava muitas das leis (plebiscita); reunindo-se na sua forma original de concilium plebis ou assembléia da plebe (com excluso dos patricios), elegia também os tribunosevedisidalplebem Tanto a assembicia das centi- rias quanto a das tribos s6 podiam se reunir quando con- vocadas por um magistrado ¢ sé podiam aceitar ou rejeitar 0s projetos de resolugdo que lhes fossem submetidos, sem a possibilidade de emendé-los. A crise da cidade-Estado romana A conquista propiciou uma valvula de escape as ten- sdes agrérias pela possibilidade da colonizagaéo, mas tam- bém introduziu um elemento de descontentamento, devido ao monop6lio do ager publicus pelos cidadaios mais ricos. Ao mesmo tempo, allmobilizagaoquase|\permanenteyde enormes contingentes de cidadaos ao longo de muitas dé- cadas, os efeitos econdmico-sociais da expansdo romana e da exploraco das provincias, o avanco das grandes pro- priedades cultivadas por escravos, fizeram-se sentir através de uma violenta crise agraria. Aqueles dos italianos que nao haviam recebido a cidadania romana, e que no en- tanto estavam intimamente associados a Roma pelas exi- géncias de tropas e impostos que esta lhes fazia, |mani- festavam crescente descontentamento. Por fim, uma in- compatibilidade cada vez maior se fazia sentir entre as instituigdes da civitas romana — uma cidade-Estado — eo fato de que, no final da Republica, Roma governava quase todas as regides banhadas pelo Mediterraneo. Todas estas dificuldades explodiram, em proporcdes e combinacGes variadas, fa)crise final day Republica | To- mana, entre a tentativa extemporinea dos irmaos Gracos no sentido de restabelecer a pequena e média propriedade 72 rural — base do recrutamento e da vida civica — e a instalagio de uma forma disfarcada de monarquia (133- -27 a.). O assassinato do tribuno da plebe Tibério Graco por hobres senatoriais e seus asseclas, ilégal mas de certa forma legalizado a posteriori pelo Senado através da cria- ¢4o de uma monstruosidade juridica — o senatusconsul- tum ultimum, resolugio senatorial declarando o Estado em perigo e convocando os magistrados a drasticas agdes de- fensivas de emergéncia, aplicado sobretudo entre 121 ¢ 43 a.C. —, marcou o inicio de um conturbado periodo de mais ou menos um século, caracterizado em fases poste- riores pela transformagiic do exército de cidadios em tropas mercendrias a servigo de ambicdes pessoais, pela guerra civil, pelas proscrigdes ¢ pelos massacres de adver- sdérios derrotados, pelo desvirtuamento crescente das ins- tituigées republicanas, pelos golpes e tentativas armadas de facgdes, pela exploraciio de miltiplos conflitos sociais em favor de objetivos e poderes de individuos ricos e ambi- ciosos, Em tal processo, que nao podemos descrever aqui, desapareceu finalmente a Repiblica e com ela a cidade- -Estado romana: pois no Principado inaugurado por Au- gusto em 27 a.C., apesar da cuidadosa manutengao de uma fachada institucional republicana, nic seria exato afirmar que existissem decisdes tomadas soberanamente, sem inter- feréncia imperial, pelos érgios republicanos tradicionais, Como diz Finley, ao prevalecer como principio que “o que o imperador decide tem. forga de lei”, jf nado pode haver polftica no sentido forte da palavra, isto é, como atividade prépria de um Estado no qual “decisdes odri- gatérias sio atingidas por discussio, por argumentagao e finalmente pelo yoto” 3, a Pintey, M. 1, Politics in the ancient world, op. cit. p. 52. oO Coneclusaéo Para os gregos de todas as tendéncias politicas, a “boa vida” — por mais que os filésofos a definissem de dife- rentes maneiras — s6 poderia ser vivida numa pdlis; o homem bom era mais ou menos equivalente a um bom cidadao; e os escravos, os “barbaros” e as mulheres eram seres inferiores ¢ portanto excluidos naturalmente de qual- quer debate. Dai a definigéo dada por Aristételes do homem — entenda-se 0 homem grego — como sendo um animal cuja finalidade natural seria a vida associativa numa pélis (Politica, 1252b9). Analogamente, embora vivendo e escrevendo no sé- culo [ a.C., em plena crise da sua cidade-Estado, 0 orador e pensador Cicero nao conseguiu transcender em sua teori- zacdo politica o quadro da civitas de Roma e aplicou todo © seu esforco 4 sistematizacio dos pontos de vista acerca do Estado romano contidos na jurisprudéncia, segundo um quadro de pensamentos filosdficos herdados da Grécia, Alguns autores modernos, numa ordem de idéias quase do mesmo tipo, tentam demonstrar que era na es- trutura politica da pdlis ou da civitas que se fundamenta- 74 vam, no mundo classico, a economia e a totalidade do social 1. Paradoxalmente, nao sabemos responder convincente- mente 4 pergunta: por que surgiu a cidade-Estado e nao outra forma de organizacio? A explicacaéo 4 base do de- terminismo geografico — a Grécia compartimentada pelas montanhas e pelo mar — se esboroa sob o golpe de exce- ¢6es numerosas demais e no caso de Roma carece mesmo de qualquer sentido. A explicagdo “existencial”, baseada numa viséo do mundo, levaria 4 necessidade de explicar esta visio do mundo. A razao ultima deste estado de coisas é que no dispomos de documentagdo abundante e fidedigna sobre o processo de formacao das cidades-Esta- dos antigas: quando surgem em forma plena 4 luz da his- téria, seu periodo formativo j4 terminou. Saibamos ou nao explic4-la, porém, ela constitui a espinha dorsal, o elemento organizador sem o qual a civi- lizagdo classica permaneceria ininteligivel. Outrossim, foi uma novidade sem precedentes e de enorme alcance o fato de que, num determinado periodo da hist6ria da Anti- guidade, camponeses, artesdos, pequenos comerciantes e eventualmente mesmo cidadaos totalmente desprovidos de recursos tenham podido participar do governo de suas co- munidades, mesmo de forma limitada. Cidadania, partici- pagao politica, democracia: eis ai nogdes bdsicas e atuais que foram ventiladas pela primeira vez no mundo das cidades-Estados antigas. Trataremos agora de sintetizar os debates contempo- raneos acerca da cidade-Estado antiga e suas estruturas econémico-sociais, politicas e ideolégicas, desenvolvidos principalmente desde fins dos anos sessenta. Influiram em tais debates fatores diversos, que vao da valorizagéo de um texto inédito de Marx (Grundrisse), dado a conhecer 1 Ver a Introdugéo do editor a VEGETTI, M., ed. Marxismo e societd antica. Milao, Feltrinelli, 1977. p. 41, em especial. 75 hé poucas décadas, a uma utilizagaéo de conceitos de M. Weber e do antropélogo K. Polanyi, passando por influén- cias do estruturalismo. Como resultado dessas discussdes, formou-se aos pou- cos uma espécie de nova interpretagdo geral, de ampla — mas nao universal — aceitagdo entre os especialistas. Os autores mais influentes na constituigéo do novo paradigma interpretativo talvez tenham sido M. Austin, P. Vidal-Na- quet, J.-P. Vernant e M. I. Finley. Historiadores como Austin, Vidal-Naquet e Vernant acreditam na funcg&o central da politica para a manuten- cao, no antigo mundo classico, do equilibrio de uma so- ciedade que nao era baseada em classes sociais — insis- tiu-se muito, em especial, em negar o carater de classe dos escravos — e sim em estamentos. Para Austin e Vi- dal-Naquet, por exemplo, no mundo grego a estrutura poli- tica da coletividade — a pdlis — servia de fundamento a economia ¢ também 4s proprias estruturas sociais, A ci- dade-Estado agiria como uma organizag&o reguladora do consumo e da distribuigao de riquezas entre os cidaddos e outros membros livres da comunidade. Os antagonismos sociais existiriam — em especial os que se vinculassem a questdo da terra (luta entre proprietérios e nfo-proprieta- rios, que eventualmente desembocava numa luta entre cre- dores e devedores); mas sem 0 carater de lutas entre clas- ses sociais: os antagonismos revelariam, pelo contrario, o embate entre os estamentos que se apresentavam em intima vinculagdo as estruturas politicas do Estado. Outras opo- sigdes — complementares e nado antagénicas — seriam as existentes entre velhos e jovens, homens e mulheres, ou entre os préprios estamentos. Quanto a Finley, tratou de negar qualquer autonomia ao nivel econédmico no mundo greco-romano, A cidade- -Estado era um centro de consumo, vivendo numa relacao até certo ponto parasitdria com o meio ambiente (o campo, os povos estrangeiros com que tinha contato), ao qual 76 oferecia — ou impunha — os servicos politico-militares ti- picos do funcionamento daquela medalidade de organiza- cao politica. O Estado sé intervinha na atividade econd- mica para garantir o seu préprio financiamento através da apropriacgdo de excedentes. Do ponto de vista social, Finley leva ao maximo o exagero do fator estamental: a escravidéo e numerosas formas intermedidrias entre liber- dade e ndo-liberdade so apresentadas como formando uma vasta gama de status, aspectos, subdivisées e situa- gGes — o que explica que o Autor ao mesmo tempo reco- nhega a base escravista da sociedade antiga e retire dessa constatagao qualquer possibilidade de fundamentar uma anélise de conjunto da sociedade das cidades-Estados clas- sicas. Pela influéncia dos autores j4 mencionados e de ou- tros, criou-se gradativamente o paradigma interpretativo a a que aludiramos. Resumidamente, afirmava-se que, no mundo antigo, dominava o valor de uso sobre o valor de troca, o consumo — dos homens livres — sobre a pro- ducgZo — servil, isto é, realizada através de numerosas mo- dalidades de trabalho compulsério, entre as quais a escra- vidio propriamente dita. Do ponto de vista social, o nivel politico, a prépria cidade-Estado e os estamentos prevale- ceriam como entidades organizadoras principais. As Jutas. sociais — aquelas causadas por questdes ligadas 4 pro- priedade da terra, por exemplo — nfo passavam, no fundo, de lutas juridico-politicas travadas entre os homens livres. Quanto 4s eventuais revoltas de escravos — mais nume- rosas no mundo romano do que no grego —, jamais inclui- ram qualquer projeto de uma nova sociedade: os cativos buscavam exclusivamente a libertagdo individual de cada um deles — o que viria provar a impossibilidade de se falar numa classe social a propésito dos escravos. Tudo isso equivalia, de fato, a descrever as sociedades em que se desenvolveram as cidades-Estados clisscias como nfo estando atravessadas por antagonismos ou contradigies 7 realmente portadoras de transformagSes radicais: os anta- gonismos reais podiam ser e eram constantemente absor- vidos pelas formas de funcionamento do regime vigente. Sendo assim, com freqiiéncia atribuia-se a fatores ideold- gicos, psicolégicos, mentais enfim, a explicagaéo da esta- bilidade dos organismos sociais classicos. Se essa linha de interpretagio estava j4 bem assen- tada nos ambientes universitd4rios europeus a meados dos anos setenta, ela nfo deixou de suscitar criticas e oposicdes, em especial entre os marxistas que — diferentemente de Vernant ou Vidal-Naquet, por exemplo — nao aceitavam a influéncia de Althusser e do estruturalismo (e ainda menos a de Weber e de Polanyi). Tratava-se, para tais marxistas, de marcar sua ruptura ndo somente com seus antagonistas da interpretagéo dominante, mas também sua nao-aceitagio dos esquemas simplificadores da época de Stalin, quando por exemplo as explicagdes evolucionistas derivadas de Morgan e de Engels eram aceitas sem qual- quer critica, apesar de algumas debilidades evidentes, Antes, porém, de mencionar algumas das criticas mais radicais, examinemos uma posicéo que pode ser conside- rada intermedidria: a que foi desenvolvida em livro re- cente por M, Godelier*, O cerne de sua argumentagao acerca das sociedades antigas é a de apoiar a tese de seu cardter estamental, mas nado no tipo de argumentacdo de- rivado de Weber. Os estamentos aparecem-Ihe como uma codificagio de relagdes novas de dominagdo, correspon- dendo A dissolugio apenas parcial das formas comunité- tias de propriedade do solo ¢ dos meios de produgio, res- pondende a vontade de manter e por vezes mesmo de re- construir as relagées comunitdrias, de subordinar o novo desenvolvimento econdmico e social 4 reprodugao de rela- ges comunitarias. Assim, as formas da cidade-Estado an- tiga, repousando sobre modalidades de propriedade e de 2 Gopeier, Maurice. Liidéel et ie matériel. Paris, Fayard, 1984. 78 producaéo que se diferenciavam das formas mais arcaicas ¢ a elas se opunham, ndo as aboliram de todo no entanto. ¥sso porque, do ponto de vista material, a vida da maioria nao podia se realizar sem dispor de recursos comuns (pas- tos, Aguas etc.); do ponto de vista social e juridico, por- que persistia a necessidade de solidariedades religiosas, mi- litares e culturais que contribuiam para modos de vida nos quais ainda se afirmava o principio arcaico da dominagéo da comunidade local sobre seus membros. Eim tais con- digdes, a submissio de uns grupos a outros podia ser ideo- Jogicamente apresentada como uma cooperacde necessdria para reproduzir uma realidade que permitia a vida. A and- lise bastante abstrata de Godelier tem parentesco evidente com algumas passagens dos Grundrisse de Marx; no caso da Antiguidade greco-romana, nao parece convincente. Mario Vegetti ¢ outros autores italianos criticaram, na posi¢aéo intelectuaimente hegemOnica vinculada a Fin- ley, Vernant e outros, a incapacidade de perceber as con- tradigdes presentes nas estruturas sociais das cidades-Esta- dos antigas, para além das mediagies politicas, razio pela qual os autores criticados ficariam de certo modo prisio- neiros da descrigéo, e sobretudo da ideologia dos antigos (que nao sabem criticar). G. Sainte Croix pensa que a teoria weberiana dos estamentos nao passa de um pretexto ideolégico para mascarar a realidade das classes sociais e suas lutas na sociedade classica das cidades-Estados. A solugao do préprio Sainte Croix consiste em opor, 4 deseri- go (que um conceito como o de estamento permite fazer, de maneira est4tica), uma explicacéo do processo, do mo- vimente social, que s6 as classes podem proporcionar. Afirma, portanto, que a ldgica reai do sistema social tipico das cidades-Estados ultrapassa a superficial aparéncia es- tamental; é preciso buscd-la na modalidade de exploracio econémica ¢ social — baseada em mecanismos extra-eco- ndmicos como ocorre em todas as sociedades pré-capita- listas — tipicas do modo de produgdo escravista antigo. 719 Uma outra opg¢éo — especialmente no caso da his- toria romana — tem consistido em seguir de perto a and- lise de Marx nos Grundrisse. A cidade apareceria como a sede dos habitantes do campo, nao existindo uma opo- si¢gao campo-cidade como a da Idade Média. A condigao prévia da apropriacgéo do solo pelo individuo seria, para este, o fato de pertencer 4 comunidade de cidadaos. Em Roma, 0 solo se dividiria em uma parte privada e outra coletiva, gerida pelo Estado (ager publicus). A contra- dicio entre os dois tipos de propriedade levou ao fim da propriedade de Estado. Ao mesmo tempo, a igualdade relativa entre os cidadaos/pequenos produtores, nunca per- feitamente realizada, foi crescentemente solapada pelo de- senvolvimento do capital comercial (ao qual se ligava a usura), pelas conseqiiéncias das guerras de conquistas, pela introdug&o de escravos estrangeiros. Assim, a situacdo ini- cial — o “modo de produgao antigo” de Marx — cedeu lugar ao escravismo antigo plenamente constituido, pri- meiro na Grécia, mais tarde em Roma. No entanto, per- sistiu uma importante limitagdo espacial 4 expansdo do es- cravismo; 0 mundo antigo, visto no seu conjunto, mesmo sob o Império romano, estaria constituido por “ilhas” de escravismo e de relagdes mercantis mais avancadas, cer- cadas por formas mais atrasadas: pequenos camponeses, comunidades rurais, estruturas tribais. A relativa unidade politica e cultural alcangada no fim da Antiguidade pela civilizagéo que nascera nas pdleis gregas e na civitas ro- mana, opor-se-ia entdo uma grande diversidade econémico- -social $. . Obviamente, nfo nos foi possivel esgotar o campo de controvérsias ativas e cambiantes, ainda em pleno de- senvolyimento. Os exemplos apresentados devem ter sido suficientes, no entanto, para mostrar que a tematica da 3 Capoorossi, L.; GiaRDINA, A.; SCHIAVONE, A., eds. Analisi: mar- xista e societa antiche. Roma, Editori Riuniti, 1978.

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