Você está na página 1de 24
Via spirims, 4 (2997) 81-104 Ler para discutir. Livros ¢ leituras na Harmonia da Razao e da Religido (1793) de Teodoro de Almeida. «Baronesa: Mas emfim, Theodosto, dizei-me como hei-de fazer com estes livros?» “Teodoro de Almeida, Harmonia da Razdo e da Religido, 1793 A frase em epigrafe, extraida da Tarde Quarta da Harmonia da Razdo ¢ da Religido (1793)! do oratoriano Teodoro de Almeida, sintetiza a(s) area(s) de reflexdo que neste estudo se pretendem equacionar. Tributario do filio de literatura «apologética», téo comum na Franca ¢ Italia da segunda metade do século XVII — ¢ de incomparavelmente menor representagdo na Peninsula Ibérica do mesmo tempo? -, 0 texto de T. de Almeida procura responder aos argumentos de «impios ¢ Incredulos» contra a Religifio, deslocando a discussdo das «Dissertagées Theologicas» para a «conversacio familiam. As quinze «Tardes» que constituem a obra, seleccionando como guia discursive a «Raz4o» — ¢ perseguindo a Harmonia indiciada pelo titulo -, procedem ao exame sequencial e particularizante dos temas que tanto as obras de ataque como as de defesa do Cristianismo haviam tornado nucleares neste debate: a «Existencia de Deos», «...0s Mysterios da nossa Religido», «a Espiritualidade e Immortalidade da Alma», «...a Religiéo Revelada em commun»... E justamente neste amplo enquadramento de «respostay e nfo de ataque - como alids o préprio autor sublinha na + Investigagio subsidiada por INICT/PRAXIS XXI. 1 "Feodoro de ALMEIDA, Harmonia da Razao, ¢ da Religido ou Repostas Filosoficas aos Argumentos dos Incredulos, que reputdo a Religitio contraria 4 Boa Razéio, Dialogo do Author da Reereagao Filosofica sobre a parte da Metafysica, que se chama Thealogia Natural, Lisboa, Na Oficina Patriarcal, MDCCXCII. 2 Basta porcorrer o reportério cronolégico de obras proposto pelo clissico estudo de A. MONOD, De Pascal a Chateaubriand, Les défenseurs francais du Christianisme (Paris, 1916) ou 0 inventirio ~ incompleto... — tragado pelo Dicctionnatre de Théologie Catholique, para verificar enorme conjunto de textos que, sobretudo em Franga, mas também em Ititia — embora aqui em ‘menor nimero ~ tiveram como objecto a defesa da Religio Crista. Pelo que diz respeito a Espana, 0 reeditade Evangelio en triunfo o Historia de un filosofo desengaiado de Pablo de Olavide, € apenas de 1788 e 1789 (cf. Miguel BENITEZ, Bi suefio de la razén produce monstruos: El Evangelio en triunfo de Pablo de Olavide, in Actas del Congreso Internacional sobre Carlos IIT + la liustracion, Madrid, Ministerio de Cultura, 1989). 82 Zulmira Santos «Prefagdo»: «Nao fago aqui a figura de quem ataca, mas sim de quem se defende, ndo tanto a si, mas a Religido que professa...» -, que se organizam as reflexes sobre a leitura, cujos contornos nos propomos estudar, tendo em atengfio que o texto implica, por assim dizer, um duplo contexto: por um lado, o tempo ¢ o lugar da publicagao, Portugal dos anos 90, por outro, as coordenadas intratextuais seleccionadas pelo autor, a Franga da década de 70. Locais diversos e, sobretudo, tempos diversos, na evocagao nostalgica € «exemplan> de alguém para quem os recentes © contempordneos acontecimentos da Revolugdéo Francesa eram interpretados como consequéncia da multiplicidade de livros «dmpios» que haviam retirado 4 Religidio a qualidade de factor de coesdo ¢ estabilidade social. A. distingdo entre livros «pessimos» e¢ livros «excelentes» desvendada por um «mestre», que o era também de Geometria, Matematica, Fisica e Logica - Teodésio — a uma discfpula do sul de Franga — a Baronesa de Armendariz -, inscreve-se num, complexo de «saberes» polarizado por pautas de leitura, cujo dominio permite o acesso a textos considerados «{impios e Incredulos», O que ler, mas sobretudo como ier — qual a «gramaticay de leitura — constituem interrogagées a que T.. de Almeida procura responder, no quadro de um complexo de. obras ¢ autores que se movem no cendrio dos ataques ¢ defesas do cristianismo que percorreram 0 século XVII. O trabalho que nos propomos efectuar desenvolver-se-a, assim, em. trés momentos diferentes: em primeiro lugar, demonstraremos que apesar de uma tradigdio que consagra 0 titulo Harmonia da Razdo e da Religido para os dois volumes, verdadeiramente, ele convém apenas ao primeiro, objecto deste trabaiho; procuraremos, em seguida, reconstruir o duplo universo para que 0 texto remete, pelo que diz respeito A circulagdo e mecanismos de divulgagdo das obras a favor e contra o Cristianismo ¢, finalmente, estudaremos, enquadrando-o no contexto estudado no ponto anteriox, 0 complexo de referéncias a livros, leituras € formas de ler. 1. O texto: uma ou duas Harmonias? Para fazer a minha leitura mais amena, e os meus argumentos mais vivos, me vatho do estile de Dialogo, como felizmente fiz no meu nono Volume da Theologia Natural, « que dei o Titulo de Harmonia da Razio, ¢ Religiio. TT. de Almeida, Recreapiie Filoséfica sobre a Filosofia Moral ‘om que se trata dos Costumes, 1800. No conjunto da Recreagdo Filosdfica,a mais longa ¢ significativa Ler para discutir 83 obra de Teodoro de Almeida publicada, como é sabido, ao longo de quase 50 anos (1751-1800), a Harmonia da Razdo e da Religido tem vindo a ser entendida autonomamente como um texto dividido em dois tomos, mas submetido, todavia, a um titulo comum. Deste modo, 0 primeiro tomo da Harmonia, editado em 1793, € 0 nono da Recreagdo, enquanto o segundo, de 1800, ¢ o décimo e ultimo. E, no entanto, esta unidade de funcionamento, aparentemente original, parece ter resultado mais de estratégias editoriais muito provavelmente estranhas ao autor do que de uma intengao inicialmente assumida. Ao terminar 0 tomo VIII, publicado apenas um ano antes, em 1792, Teodoro de Almeida anunciava o seguinte, sublinhando a diferenga entre este ¢ os anteriores: «Theod. E he o que me ocorre, Eugenio, que possa jnteressar a vossa instrugio: o demais que alguns tratam, ndo merece 0 trabalho da disputa, nem he cousa que de luz para caminhar sem ella. Os pontos que aqui faltdo, e sto essenciaes, como v. gf. A Imortalidade da Alma, ¢ sua espiritualidade, a nossa liberdade, &c. nfo sdo pontos, em que Silvio duvide, nem temos diferente modo de pensar: eu vos farci ver esses pontos disputados com os inimigos da nossa Religiao, e essa disputa viva nos pode interessar mais...»*. Teodoro de Almeida procedia, assim, a alteragao das personagens que havia conservado ao longo dos oito tomos anteriores, durante 41 anos. Enquanto até ao tomo oitavo, o peripatético Silvio tinha servido para explicitar, pelo contraste, a «Filosofia Moderna», no presente quadro das disputas sobre a Religiao a sua permanéncia nao se afigurava necessdria a0 autor, j4 que as habituais diferencas de opinido que permitiam e justificavam a evolugao discursiva tecida pelo didlogo nao teriam Ingar. Em matéria religiosa, o peripatético Silvio ¢ o «moderno» Teodésio estavam de acordo, Por isso, Teodésio pretende enviar a Eugénio uma copia das disputas que teve com os «Incredulos», «quando vivia no meio delles», transformadas em didlogos que havia denominado «Harmonia da Razio ¢ da Religiao», ficando «desse modo completa a Instrugdo» pedida «em materia de Filosofia»®. Enquanto os ito primeiros — tomos da Recreagéo, independentemente de diferengas que nao importam a este estudo, se estribavam globalmente na antinomia Peripatéticos/Modernos, 0 tomo IX visava um inimigo que o autor acreditava comum — 0s Incrédulos — € 3 Constituida por 10 volumes, a Recreagdo Filosdfica foi publicada entre 1751, data do Tomo I. ¢ 1800, ano do dltimo. Os sete primeiros tiveram, pelo que respeita a Portugal, varias edigbes. 47 de ALMEIDA, Recreagdo..., ed. cit.,t. VHI, 310-311. 57 de ALMEIDA, Recreagdo..., ed, cit, t. VII, 310-311. 84 Zulmira Santos enfileirava assim na larga pandplia de literatura apologética que procurava desde ha varias décadas, e sobretudo em Franga ¢ ItdliaS, se bem que nao rigorosamente nos mesmos anos’7, responder aos variadissimos textos ~ em registo discursivo, formatos ¢ autorias — construtores do «processo ao cristianismo»’. O titulo completo nao deixava, alias, qualquer divida: Harmonia da Razio, e da Religido, ou Repostas Filosoficas aos Argumentos dos Incredulos que refutdo a Religido contraria 4 Boa Razao, Dialogo do Autor da Recreagdo Filosofica sobre a parte da Metafysica que se chama Theologia Natural. Na dedicatéria ao Bispo do Algarve e Inquisidor-mor, D. José Maria de Mello, o autor explicava ter sido persuadido pelo prelado a «completa a Recreagao Filosdfica com esta obra: «...¢ também que deste modo completava aquella Obra, cuja Metafysica tendo ja a Ontologia e Psicologia, necessitava da Theologia Natural, que por este modo ficava supprida, bem como a Ethica 0 ficou com o Feliz Independenten?, Isto é, T. de Almeida considerava terminada a Recreagdo, entendendo que os nove volumes impressos abarcavam exaustivamente os diferentes dominios da Filosofia, circunsténcia que permite concluir que o projecto inicial da Harmonia continha apenas um temo, 0 nono. Alids 0 rosto do tomo X nio inclui qualquer alusdo 4 possibilidade de poder ser encarado como 0 tomo Ii da Harmonia: Recreagdo Filosdfica sobre a Filosofia Moral Em que se trata dos Costumes!, Na Dedicatéria e no Prélogo nao existe nenhum elemento — ou mesmo sugestaéo — que leve 0 Ieitor a pensar tratar-se de um tomo II. To s6 os esclarecimentos de que esta ultima parte da Filosofia Moral era a Etica que, desta vez, T. de Almeida ndo considera jé «supriday pelo Feliz Independente: «faltava esta ultima parte da Filosofia Moral, a que chamdo Ethica no que empregamos este decimo ¢ iltimo volume».!! © tomo X, editado em 1800, mantinha as 6 Daf que, em nome de uma verosimilhanga que continuava a ser a pedra de toque da opgio pelo didtogo como registo discursive, Almeida situe o texto em Franga © faga da residéncia de uma familia da nobreza rural o cendrio das dispulas. T As obras italianas de refutag3o de escritos wirreligiosos» franceses publicam-se, sobretudo, a partir da década de 70. CE A. PRANDI, Cristianesimo offeso e diffeso. Detsmo e apologetica cristiana nel secondo settecento, Bologna, 1975; Daniel MENOZZI, «Philosophes» et «Chrétions Eolairés», Politica e religione nella collaborazione di G. H. Mirabeau e A. A. Lamouretie (1774- 1794), 1976; Mario ROSA, Riformatori ¢ ribelli nel '700 religioso europe, 1969; Politica e religione nel '700 exropeo, Firenze, 1974. Na feliz e conhecida expresso de P. Hazard (La Pensée européenne au AVIN siécle. De Montesquieu & Lessing, 1946, 58). 2, de ALMEIDA, Recreagéo...,Tomo IX, ed. cit. 10 0 fosto comporia ainda as indicagdes «Composta e offerecida ao Principe Regente o Senhor D. Joi por T.A.D.C.O,, Tomo X, Lisboa, Na Regia Officina Typografica, Anno M:DCCO.» 11 Pde ALMEIDA, Recreagdo..., Tomo X, Prologo. Ler para discutir 85 personagens, repetia o registo discursivo, ordenava até sequencialmente as Tardes (comegando na décima sexta, quando o tomo IX havia terminado na décima guinta), mas nio reiterava 0 titulo, retomando, no rosto, a directa filiagdo na Recreagdo... como o haviam feito todos os anteriores com excepgao do nono. Logo, tendo em conta apenas a Ieitura dos rostos nada autoriza a suposi¢ao de que se trata, no interior da Recreagao, de um texto gutonomo intitulado Harmonia da Razéio e da Religido, dividido em duas partes, Alids na dedicatoria do Tomo X, T. de Almeida afirma claramente: «Para fazer a minha leitura mais amena, e os meus argumentos mais vives, ame valho do estilo de Dialogo, como felizmente fiz no meu nono volume da Theologia Natural, a que dei 0 titulo de Harmonia da Razdo e ReligiGow. Como explicar, entiio, que cm muitos dos exemplares, mas nao cm todos..., datados de 1793 — a tinica edi¢do portuguesa — surja uma folha prévia ao rosto, isto 6, uma espécie de ante-rosto que, contrariando as afirmagdes de Teodoro de Almeida acima enunciadas, regista o titulo seguinte: Harmonia da Razdo e da Religiéio, Parte I. No que toca aos Dogmas da Fé ou Theologia Natural. Como sabia quem forneceu a informagéo, em 1793, que haveria um tomo segundo, quando o autor esorevia, trés folhas depois, na Dedicatéria, que havia completado a obra?! E no Tomo X, de que se conhece apenas a edicfo de 1800, como explicar que, quando o autor procede 4 resenha dos diferentes volumes, esclarecendo que os primeiros seis eram sobre a Filosofia Natural, o VII sobre a Racional eo Vill sobre a Transnaturai, «o nono tomo que he da Theologia Moral» que implicava a falta da filosofia Moral a «que chamio Ethica, no que empregamos este decimo e ultimo volume»!9, em alguns exemplares exista também um ante-rosto que umbilicalmente liga o tomo décimo ao nono? — Harmonia da Razéo, e da Religido, dividida em duas Partes. Parte i Do que Pertence aos dogmas da nossa Santa fé, Que faz 0 nono Tomo da Recreagdo filosdfica, e he a Theologia Natural. Parte I]. Do que pertence aos costumes da nossa Religifio. Que faz o decimo Tomo da Recreagéio Filosdfica e he a Filosofia Moral ou Ethica. Apenas uma explicacéio possivel. Nao se tendo esgotado as tiragens primitivas ¢, seguramente, para tirar proveito da independéncia que estes dois volumes efectivamente possuiam face a Recreagdo — tinham temas e personagens proprios — os editores acrescentaram, mais tarde, no sabemos exactamente quando, mas 12-7 de ALMEIDA, Reareagdo..., ed. cit, Tomo IX, Dedicatéria: «... ¢ tambem que deste modo completava aquella Obra, cuja Metafysica tendo ja a Ontologia ¢ Psicologia, necessitava da ‘Theotogia Natural, que por este modo ficava supprida, bem como a Ethica o ficou com o Feliz Independenten, 13, de ALMEIDA, Recreagao..., ed. cit., Tomo X, Prologo. 86 Zulnira Santos sempre depois de 1800, estes dois ante-rostos que, verdadeiramente, em relagdo aos exemplares primitivos, sao falsos, Como podia saber-se em 1793, quando T. de Almeida afirmava ter escrito 0 liltimo tomo da Recreagdo, pois que a tica ficava suprida pelo Feliz Independente, que surgiria um outro ©, sobretudo, que a Harmonia constituia um Tomo 1? Estratégia editorial que, com toda a probabilidade, procurava aproveitar 0 telativo sucesso indiciado pelas tradugées que trataram sempre estes dois tomos da Recreagdo como auténomos!4, Alids, parece corroborar a nossa tese 0 facto de o tradutor, o Padre Vasquez!5 — ou o editor... — da versio espanhola terem retirado a Dedicatéria do Tomo EX, em que Teodoro de Almeida assinalava, como atras sublinhémos, tratar-se do tltimo volume da Recreagéo mantendo, tao somente, 0 «Prologo» e acrescentando um outro da responsabilidade do tradutor, Esta atitude estende-se ao Tomo X, onde Vasquez utiliza, no «Prologo do Tradutor» por ele redigido, corrigindo-as até, informagdes da 14 © problema das tradugdes dos tomos IX e X merece algumma atengao. Menender y Pelayo, nes seus Heterodoxos mencionou, pela primeira ver, uma tradugao do volume IX em 1798 (Armonia de la razon y de la religion o Teologia Natural, obra escogida del P. D: Teodoro de Almeida contra fas abondas opinions de fos filosofos del dia. Este tratado particular sirve de tomo IX, y es el complemento de 1a Reoreacion Filosofia. Madrid, 1798 on la Imprenta de la Rifa del Real Estudio de Medicina Pratica). Sempre citada tendo como fonte Menendez Pelayo, osta informagio é repetida por Robert Ricard e M, H, Pivmick, que parecem, assim, nfo ter compulsado a edigio mencionada (R RICARD, Sur la diffusion des oewvres du P. Teodoro de Almeida,in Boletitn Internacional de bibliograjta luso-brasileira, 1963, 1V, 4, 626-630 e Les ouvrages du P. Teodoro de Almeida en Espagne (complément), ibid, 1964, V, 632-634, M. H. PIWNIK, Les souscripteurs espagnols du P. Teodoro de Almeida (1722-1804) in Bulletin des Etudes Portugaises et brésilfennes, Nouvelle Série, t. 42, Paris, 1981, 95-119). No entanto, lida com cuidado, a nota do autor de Heterodoxos em que se anota o titulo da obra, revela algums confusio: «Hay muchas ediciones, entre ellas una reciente de la Libreria Religiosa». Na verdade, as «Muchas ediciones» nio so apenas da Tomo EX, mas sim dos Tomos IX eX, subordinados ambos ao titulo «Armonia de Ia Razén y de la Religion» designados por Tomo I e TI, Todas as traduges espantholas da Harmonia ... que conseguimos encontrar --a tiltima, de 1850, da Libreria Religiosa, deve ser justamente aquela que Menendez Pelayo menciona.~ sio constitufdas por dois volumes ¢ nao um. Carmen Rovira trata a Armonia... sempre como uma obra em dois tomos: «semejante es el titulo que Theva su obra es la que reune varios argumentos contra los incredulos: Armonia de la Razén e de la Religion. Bl primer tomo aparece dedicado a Don Jose Maria de Mello... El segundo tomo esta dedicado al Principe Regeute (C. ROVIRA, Eolecticos Portugueses..). Acreditando, com Robert Ricard e M. H. Piwnick, que Menendez Pelayo viu a edigio de 1798 — que nunca conseguimos encontrar ~ deve ter havido uma primeita tradugdo da Harmonia... quando ainda no estava publicado 0 Tomo X, posteriormente o tradutor, persuadido pola manutengdo das personagens, pela semethanga do tema, pela sequéncia das «Tardesn, criou uma unidade que acabou, em termos editorials, por se autonomizar do conjunto da Reoreagdo, e que, com grande dose de probabilidade, influenciou os efreulos editoriais portugueses. 15 9 p. Vasquez foi, pelo menos em mimero de trabalhos, o mais constante dos tradutores espanhois de T. de Almeida (Zulmira C. SANTOS, As tradugdes das obras de espirituatidade de Teodoro de Almeida (1722-1804) em Espanka e Franga: estado da questéo, formas ¢ tempos in Via Spiritus, 1, 1994, 185-208). Ler para diseutir 87 omitida Dedicatéria, Por uma confusao dificil de perceber se da inteira € completa responsabilidade do oratoriano portugués, pode ler-se na Dedicatéria a D. Joao, futuro D. Joao VI: «...porém nada disto basta, porque a ouvir os impios Voltaire, Rousseau, LEsprit, Les Moers, d'Alembert, Diderot, e outros...», F. Vasquez, sem mencionar a citada Dedicatéria, integralmente esquecida pelas tradugGes, como observamos, escreve: «...™mas no sé yo si hallaran ocasione para esto en la filosofia moral del Padre Almeida, el cual, y las consequencias que de principios solidos ha sacado por el metodo socratico, no solo los deja sin respuesta, sino que los hace un Ja ridiculez de los sistemas de aquellos libros de L'Esprit, Les Moeurs, Homo Planta, y de los autores favoritos de los ignorantes, Voltaire, Rousseau, D'Alembert, Diderot, ete»! A Jeitura comparada das duas passagens evidencia 0 conhecimento do texto portugués, ndo apenas pela identidade do universo referencial, mas também pela correcgdo da confusio entre autores & obras no texto de origem!”. Deste modo, limitar-nos-emos ao estudo do tomo IX, 0 tinico verdadeiramente intitulado Harmonia da Raztio e da Religiao, na medida em que este explicitamente se inscreve no contexto da literatura de controvérsia que percorreu a segunda metade do século XVID, enquanto o tomo X, embora refutando ocasionalmente Voltaire ¢ Rousseau, se dedica essencialmente «aos costumes», ignorando o registo da polémica ¢ as questées relativas a leitura. 2, Os Contextos «Prevenir com esta especie de antidoio 0 mai que comega & grassar no nosso clina...Porém como esta enipresa he alta, € no nosso Paiz nova... > Harmonia da Razéo..., Dedicatéria, 1793 Na ja citada Dedicatéria ao Tomo IX, T. de Almeida esclarece as condigdes de produco da obra, fazendo-a enfileirar no vasto conjunto de texto contra «{mpios ¢ Incredulos»: «Trata-se de publicar as Repostas aos 16 7, de ALMEIDA, Armonia de la Razin y la Religion 6 Respuestas Filosoficas 4 los fagumanios de los Incredules, Dedeatoria. 17’ Curiosamente, uma estratégia editorial idéntica foi também usada. para alguns exemplares da segunda edigio, corrigida e aumentada, de O Feliz Independente (1786), que deve ter sido objecto de maiores tiragens. Com efeite, alguns volumes integram um retrato do autor, acrescentado, com toda a cetteza, alguns anos depois, j4 que na respectiva legenda se pode ler a data de nascimento ¢ de morte de Teodoro de Almeida ocorrida apenas em 1804: «Theodorus de Almeida, congreg. Oratorii olys natus die VII Jan ano MDCCXXI obit die XVIII April an. MDCCCIV». 88 Zulmira Santos argumentos, que pela parte da nossa Religio dei n'outro tempo aos Impios ¢ Incredulos quando as circunstancias me fizerfio brigar com elles com armas iguaes; isto he, com as da pura Razao.»!8 Se bem que publicado em 1793 - em pleno periodo do «Terror, 0 que néo deixa de funcionar como um «contexto» significativo — 0 texto remete para 0 anos 1768-1777, quando da estadia de T. de Aimeida em Franga!®, e também na Sabdia, conferindo-the, desta forma, a verosimilhanga que o anor nao deixa de sublinhar nas palavras introdutorias: «Feita pois esta posterior reflexdio sobre o que nos casuaes encontros, e disputas imprevistas havia ouvido ¢ respondido, julguei ser importante por em ordem esses argumentos ¢ repostas; € isto tinha feito muito tempo ha, em forma de cartas aos meus Discipulos e Amigos os Senhores d'Armendariz, a quem eu tinha instruido, junto com a Fysica e Mathematica, na solidez da nossa Religiao; por quanto servindo elles entdo nos Reaes Carabineiros em Franga, muitas vezes se me queixavdo dos ataques, que os seus amigos Ihes davam nas materias da Religido»®?. Do mesmo modo que o espago ¢ a Franga, circunstincia de que decorre um «aumento» de verosimilhanga, 0 tempo é a década de 70, como se Teodoro de Almeida sugerisse, sem nunca verdadeiramente o afirmar, 0 conjunto de consequéncias a que, em sua opinido, tinham conduzido os ataques a Religido. Remetido para um tempo anterior, o texto joga implicitamente com 0 universo de conhecimentos actuais do leitor, criando uma dupla relacdo de didlogo, instituida simultaneamente face 4 matriz textual - a literatura «apologista»que procura responder aos ataques dos «philosophes» — ¢ as circunstancias hist6ricas dos anos 90. Sabe-se como sobretudo a partir da década de 60, em Franga, e muito nas consequéncias da publicacio da Encyclopédie, a questdo religiosa alimentada por textos a favor e contra se comegou a revestir de particular acuidade. 18-7, de ALMEIDA, Harmonia...(1793), Dedicatéria. 49 7. de Almeida partiu de Portugal, tencionando dirigirse & Holanda, onde ja estava o P. Chevalier, om Setembro de 1768, fugindo a alegadas ordens de prisio da responsabilidade de Sebastido José de Carvalho e Melo. As dificuldades experimentadas na viagem por mar fizeram-no mudar de ideias e acabou por permanecer durante quase 10 anos - regressou a Lisboa apenas Margo de 1778 —em Bayonne, com estadias esporddicas em Auch e Annecy. 207 de ALMEIDA, Harmonia, ed. cit., Prefagiio. . 21 © episcopado francés havia tomado posisiio contra a incredulidade na assembleia do clero de 1755, Contudo & no Provés verbal de 'Assemblée générale du Clergé de France tenue d Paris.. an Hannée de 1775 que se enunciam com clareza as vantagens da Religizo e os efeitos ditos pemiciosos da incredulidade, mostrando que as tendéncias materialistas ¢ ate(sticas constitufam ameagas & ordem social. Sobre esta questo, para além do clissico trabatho de R. PALMER, Catholics and Unbelievers in Eighteenth CenturyFrance, Prineeton, 1939, M. ROSA, Politica ¢ religione nel '700 europeo, Fienze, 1974. Ler para discutir 89 ‘A discussao filoséfica — metafisica — sobre a existéncia, natureza € atributos de Deus, relagées com o mundo e com 0 homem em particular implicava para muitos uma cnorme erudigao filolégica, histérica ¢ exegética que obrigava a situar a discussdo no campo de um saber profundamente especializado*2, Contuda, 0 «processo a0 cristianismo», cujas raizes os defensores da Religiaio Cristé faziam recuar bem Jonge?3, mas que assumiu particular importaéncia na Franga dos anos 60-70 e na Itdlia de 70-80 escorava-se, se assim pode dizer-se, em dois tipos de texto fundamentais: por um lado a literatura do tipo do Examen Critique des Apologistes de la Religion Chrétienne (1766), titulo da célebre obra atribuida a Nicolas Fréret24, tio apreciada por Voltaire°, de uma t4o larga & diferenciada erudigéo que mesmo os mais directos opositores Ihe reconheciam valor?6, por outro a produgéio textual que pode ser paradigmatizada pelo «patriarca de Ferney», isto é, um conjunto compésito de obras que, embora utilizando um saber histérico que nao ignora a exegese biblica, tem menos rigor filolégico, mas muito mais variedade formal, na medida em que passa do 22 gobre © problema da erudigZo no quadro das provas historicas ¢ de exegese biblica, veja-se a notavel reunifio de estudos de Bruno NEVBU, Erudution et Religion aux XVI et XVIII siécles, Paris, 1994. 23 8 maioria dos chamados «apologistas» chega, naturalmente, a Erasmo, na medida em que a questio se coloca essencialmento em termos de erudigio om matéria biblica, Contudo, os nomes ¢ obras mais citados pertencem a segunda metade do século XVII e aos primeiros decénios da centiiria seguinte, Veja-se, sobre esta questo, o muito informative capitulo «Latiaco finale: la demolizione della Bibbia, limpossibile certificazione della rivelazione, confitazione del uparin pascaliano» da obra de A. PRANDIL, Cristianesimo offeso ¢ diffeso... , ¢4. cit., 113-155. 24 Nicolas Fréret (1688-1714) foi também considerado 0 autor de Lettre de Trasybule d Leucippe editada por Holbach-Naigeon em 1765, sem indicagao de impressor nem lugar de edigao. Publicados postumamente, permanece ainda hoje niio s6 a divida sobre a veracidade da atribuigio, como o desconhecimento de alguma eventual circulagiio dos manuscritos antes deste aparecimento piiblico consideravelmente tardio, Veja-se, para a biografia de Fréret, R. SIMON, Nicolas Fréret académicien, Studies on Voltaire and the Eighteenth Century, Genéve, 1961, vol. XVII. Sobre o Examen Critique...o muito itil estudo de A. PRANDI, Cristianesimo offeso ¢ aiffeso. Deisino apologetica cristiana nel secondo settacento, Bologna, 1975. Voltaire's Correspondance, Genive, 1953. 26 © italiano Nicola Spedalieri, professor na Universidade de Pisa, fez publicar, refutando 2 obra de Fréret, em Roma, em 1778 (com reedigio em 1791) a Analisi dell'Zeame Critico del Signor Fréret, afirmando no preficio: «il suo é un esame critico, nel qual si discnte si gli cristiani hanno ridotti gli argomenti che provano il {atlo ossia lesistenza delia Rivelazicne, ad un grado di certeza apace di convincere un womo ragionevolen (Anatisi...fl. xi; cilamos da edigéo de 1791, apenas por razes de comodidade). No mesmo prefiicio (fl. v ) sublinha: «é stato letto con piacere un libro in cui, inveci di epigrammi, si trovano sillogismi, riflessioni in luogo di satire ed anziché vanamente deolamare, si aspettano in silenzio I decreti della ragione per obbligar la verita a scoprire il suo volto ¢ per questo arduo sentiero, da cui Ventusiasme e [a bile la maggior parte degli sorittori allontana, & salito presso gli spiritiforti in alto grado di stiman. 90 Zulmira Santos epigrama A novela, do poema épico ao panfleto ou ao teatro””, Esta dimensdo de «qualidade de estilo» que tornava as obras contra 0 Cristianismo ~ e nao sé as de Voltaire — particularmente atraentes para 0 leitor, continha em si, no sentir dos «apologistas», 0 germe da multiplicagao, na medida em que a novela, o teatro, o pocma épico obtinham uma circulagéio bem mais diferenciada ¢ alargada que os pesados tratados a favor da Religido, que supynham uma competéncia de leitura comum a muito poucos. Para o Abbé Gauchat, que cscreve contra Rousseau, Voltaire, Montesquieu ¢ Pope, estes autores retinem contra a «verdade», «l'étalage de Iérudition, le sel de I'ironie, !'amertume de la critique, l'equivoque du sophisme, la noirceur de {a calomni: 28 Obviamente os «apologistas da religiéo orist& procuraram responder, palmo a palmo?9, ‘aos sucessivos ataques, porém néio conseguiram nunca abandonar o registo «sério», de tratado erudito, a unica forma que reputavam conveniente para tratar as questées relativas 4 religiaio??. 27 Vejam-se, a titulo de exemplo, as palavras do «Préfacen que o Abbé Gauchat escreveu para as suas Lettres Critiques ou Analyse et réfiation de divers écrits modernes contre ia Religion (Paris, Chez Claude Hérissant, 1751): «Mais, osons le dire, nul sidcle o8 Mncredulité se soit produite avec plus daudace, répandue avec plus de progrés. Il ne suflt pas de gémir sur ce scandale, iI faut tacher d'en découvrir les sources, dy remédier s'il est possible. Il on est plusieurs sans doute; mais un des plus générales, clest ce déluge de mathereux Libelles qui inondent le Christianisme, Les verités capitales que Fimpiété méme jusques ici savait osé attaquer, ne sont plus 4 Vabri des traits de ces plumes noires & hardies, qui tichent de répandre leur vénin, leurs téndbres sur la Religion & sur Ie throne méme de Dicu. Une licence effrénée conduit aux demiéres bores certains Autours nés aveo des talens pour le matheur de univers. Hs réunissent contre la verité l'étalage de l'érudition, Je sel de Fironie, Tamertume de la critique, 'équiveque du sophisme, Ia noirceur de 1a calontnie, le spécieux d'une morale séche et sans principes. On dévors hardiment oes productions de malice & derreur, sans autre motif que Ia légéreté & la curiosité; peut-tire, avec un secret esprit dincredulité & de révolte: du moins sans avoir une connaissance exacte & de fa Religion, on ose lire tout ce qui Vattaque.» - 28 GAUCHAT, Lettres Critiques, Preface. 29 4 propésito deste complexo de fendmenos eclesidstico-religiosos ou sécio-religiosos que, verdadeiramente, enquadram a apologética ¢ a controvérsia no cendrio das Luzes, permitimo-nos transcrever as palavras de M. Rosa que, em nossa opinido, traduzem com clareza a situagio em causa: «D'ora in avanti [ depois da condenagio romans. do Esprit des Lois (1751)}, pers, Ja lotta tra cattolicesimo ¢ Lumi verri condotta dai contendenti senza esclusione di colpi: dai Lumi, con 1a critica sempre pid radicale alla morale ¢ alla {eologia della Chiese, net desiderio di liberarsi dai ‘modelti tradizionali dell'autorita religiosa dominante e di una ortodossia privilegiala e persecutrice; dal catiolicesimo, con {uso sempre pit frequente degli strumenti propri di una politica repressiva eredilati dalle Controriforma, indirizali, sebbene senza grande sucesso, contro le espressioni pid significative della nuova cultura. In effetti, di fronte alle critiche dei Lumi, che andavano mutando Ia cultura e la societa, la Chiesa non solo perdera il controtio della vita intelletuale europea, ma dara complessivamente, sino alla Rivoluzione e alle soglic dell' Ottocento, una risposta inadeguata ai philosophes,» (Le Chiese Christiane fra tradizione ¢ rinnovamento in AA. VV., Europa 1700- ‘1992: storia d'un identité, La disgregazione dell’ Ancien Régime, Roma, 1992, 163. Vejam-se, como tom de um conjunto, as afirmagées de Gauchat no proficio das Leitres Critiques: «On a choisi le style épistolaire, comme plus facile & plus convenable. Les Lettres Ler para discutir 91 Evidentemente que a questao global se centrava nas provas da existéncia de Deus: nem a sublimidade da doutrina, nem os sinais extrinsecos (profecias ¢ milagres) podiam continuar a ser atribuidos a causas misteriosas © sobrenaturais e, bem pelo contrario, mediante a pesquisa de uma razéo convenientemente orientada, teriam de ser obrigatoriamente despojadas do proclamado caracter extraordindrio. Durante longo tempo, 0s apologistas cristdos foram obrigados a mover-se sobre o terreno dos principios resistindo 4s impugnagdes, em primeiro lugar, da existéncia de Deus, depois defendendo o Deus cristdo contra o Deus dos «philosophes» a quem, como autor e conservador da Natureza, se queria negar a acgdo do milagre, da profecia, da revelagao sobrenatural. Ao situar no seio da nobreza rural francesa dos anos 70 0 debate sobre a «Existencia de Deos» e os seus atributos — recordemos que as questées fundamentais se jogavam em duas frentes: os ateus negavam a existéncia Deus, os deistas, a perfeicéo — T. de Almeida aproveitava da experiéncia vivida, mas colhia também a «mais valiay que representaria para um leitor da década de 90, em Portugal, saber a que havia conduzido a admiragdo pelos livros «impios», manifestada pelos diferentes intervenientes do didlogo, que curiosamente ndo cita explicitamente um nico texto, nem anterior nem contempordneo, a favor da Religifo. E, no entanto, a década de 60 tinha assistido, em Franga, a publicagdo de um conjunto de escritos que directamente visavam textos contra a Religifo: em 1762, Claude Nonotte publica Les erreurs de Voltaire?!, em 1765, Nicolas-Sylvestre Bergier (1718-1790) faz editar, contra Rousseau, Le deisme réfuté par lui-méme ou examen des principes de Tincredulité dans les divers ouvrages de M. Rousseau en forme de lettres®? e em 1767, contra 0 Examen... de Fréret, La certitude des preuves du Christianisme®, entre 1768 ¢ 1770 saem os quatro tomos do Accord du christianisme et de la raison de Gauchat,34 que em 1751 havia editado as Lettres Critiques ou analyse et réfutation de divers écrits modernes contre exigent moins de contention: elles séparent tes matiéres: elles présentent une discussion simple & naturelle & fa portée de tout le monde. Elles ont si bien réussi aux partisans de lerreur, pourquoi ne pas profiter de cet avantage en faveur de la verité? /1 1" est pas possible de les rendre amusantes. Le ton badin, les railleries, les contes, les relations; ert un mot tout ce qui a donnd tant de cours aide certaines Lettres doit étre banni de celles-ci. Bornées aux matiéres de Religion elles exigent un style grave et sériewx. Pour les géuter il faut aimer le vrai & le solide, »{sublinhado nosso). 31 ¢ NONNOTTE, Les erreurs de Voltaire, Avignon, 1762. 32 Nicolas-Sylvestre BERGIER, Le Deisme Refuté par lui-méme on examen des principes de Uncredulité dans les divers ouvrages de Mé, Rousseau en forme de lettres, Paris, 1765 (em 1774 tinham saido j4 cinco edigdes). 33 N.S, BERGIER, La Certitude des preuves du Christianisme, Paris, 1767. 34 GAUCHAT, Accord dit Christianisme et de la Raison, Paris, 1768-170. 92 Zulmira Santos la religion, ¢ em 1769 as Lettres de quelques juifs?> do Abbé Guénée. A mesma década tinha sido também, em Franga, 0 teatro em que os textos do «processo a0 ctistianismo» haviam assumido particular relevo, em virtude de uma cadéncia editorial praticamente anual: em 1761, atribuido a N. Boulanger, mas verdadeiramente da autoria de d'Holbach, vé a luz Le christianisme Dévoilé, ou Examen des principes et des effets de Ia religion chrétienne par feu M. Boulanger 36, em 1764, o opusculo satirico do mesmo d'Holbach, L' abbé ef le rabin, em 1765 a Lettre de Trasybule a Leucippe, assacada a Fréret, em 1766 o Examen...do mesmo Fréret, em 1767 a Théologie portative, também de d'Holbach ¢ Naigeon37, L’Impostura Sacerdotale ou recueil de pieces sur le clergé traduites de l'anglais*®, Les Prétres démasqués ou des iniquités du clergé chrétien®®, L'Esprit du clergé e ainda 0 muito célebre Le Militaire Philosophe que havia circulado clandestinamente cm manuscrito®®, em 1768, de novo d'Holbach fazia publicar, como tradugio, La Contagion Sacréee ou Histoire Naturelle de la superstition e como anénimo, Lettres a Eugénie ou Préservatif contre les préjugés*!, ¢ em 1770, 0 mesmo d'Holbach, sob o nome de Mirabaud, apresentava 0 famoso Systéme de la Nature, a cuja refutagao o italiano Valsecchi procedera em 1776, na primeira parte de La Religione Vincitrice®., Era este o cendrio, pelo menos em termos editoriais, para o qual remetia T. de Almeida ao mencionar «os oito annos de continuas disputas»“? a que em Franca tinha sido submetido pelos «impios ¢ Incredulos»“4, 35 GUENEE, Lettres de quelques juifs, Paris, Amsterdam, 1769 (data que tem vindo a ser gonsiderada falsa). No mesmo ano Les Recherches sur Vorigine dte despotisme oriental ¢ L‘Antiquité dévoilé (sobre Boulanger continuam vilidas as consideragdes de F. VENTURI, L/Antichitd svelata ¢ Videa di progresso inN. A. Boulanger, Bari, 1947 e Postille inedite di Voltaire ad alcune opere di N. A. Boulanger e del barone d'Holbach, Stud! Francesi, 1958, n 2). Théologie portative on dictiomaire abrégé de ia religion chrétienne par M. Yabbé Bernier 1767). Se Recolha de optisculos ingleses com a indicagHo de Londres, 1767. 39 Tradugio de The Ax Laid to the Root of Christian Priestcraft, by a Layman (of, A. PRANDI, Cristianesimo Offeso..., ed. cit., 9). 40 Fe Militaire Philosophe ou Difioultés sur ta Religion, proposées ax R.P. Malebranche , prétre de VOratoire, par un ancien officier(R. MORTIER publicou-o, em edigio critica, om Bruxelas, 1970.) Al Sobre as condigdes de aparecimento desta obra, v. A. PRANDI, Cristianesimo Offeso e oifes0.- 04. ct, 710. VALSECCHI, La Religione Vincitrice, Padova, 1776 (A primeira parte refitta 0 Spstéme de la Nature, a segunda é uma critica ao Examen...de Fréret). T. de ALMEIDA, Harmonia... , Dedicat6 44-7. de ALMEIDA, Harmonia..., Dedicatoria. Ler para discutir 93 Porém, ao equacionar as condigdes de publicagao da obra, em 1793, frisa que duvidou «por muitos tempos publicar... estas disputas, pela julgar (a Patria) isenta do contagio, que hia devastando Paizes bem florentes, ¢ temia que os ouvidos pios, ignorando os meus intentos, me Jevassem a malo vulgarizar eu as blasfémias, que nessas disputas se ouvem da boca dos nossos inimigos»*5. Contudo, o facto de «que por centos de livros pestiferos, que nos curiosos se ach&o contra a Religifo, apenas se acha hum, ou outro dos muitos que se tem publicado em sua defeza» acabou por persuadi-lo4®. Ao sintetizar os perigos — tépicos — que a vulgarizagdo sempre acarretava, Almeida alude a uma situagdo que, do seu ponto de vista, fazia de Portugal um pais onde apenas «comegava a grassam*7 o mal, e entendia a empresa a que se propunha como «alta e no nosso Pai, nova“8, Embora nio seja facil avaliar com rigor da justeza das palavras do oratoriano, na medida em que, em relagéo 4 primeira parte da afirmagiio, nao existem estudos sistematicos sobre a circulagao dos chamados folhetos clandestinos, nem sequer trabalhos que analisem exaustivamente o teor das censuras que contém om muitos casos apreciagdes sobra a circulagdo dos «philosophes», teremos que limitar-nos As informagdes sobre os mecanismos de divulgag%o, que acabam por passar por um conjunto compésito de informagées contemplando desde pareceres da Mesa Censéria, a algumas pastorais® ou ao muito preciso Cafalogo dos Livros Defesos neste Reyno, desde o dia da Criagdo da Real Mesa Censéria athe ac prezente*°, Se bem que aparentemente dispersas, estas indicagdes tornam, todavia, possivel tracar um cendrio cuja clareza depende dos conhecimentos existentes € que, nesse sentido, preserva ainda muitas zonas de sombra. Importa-nos, assim, 457. de ALMEIDA, Harmonia... Dedicatéria. A alusio & multiplicidade de obras contra a Religido publicadas por estes anos 60-70 toma-se verdadeiramente uma espécie de leit-mottv nos prefacios dos textos dos «apologistas», Sirvam-nos como excmplo as palavras do Abbé Gauchat no preficio as Lettres Critiques ou Analyse et Réfittation de divers ecrits contre ta Religion (A Paris, Chez, Claude Herissant, MCCLVIIN: ll en est plusieurs sans doute; mais une des plus générales, cest ce déluge de malhereux Libelles qui inondent le Christianisme...», corroboradas, alids, pelo impressor da obra que no Avis du Libraire, acrescentado & segunda edigio, sublinhava: «mais les écrits de Mncredulité se maltipliant chaque jour, il ne peut encore fixer les bones précises d'une discussion aussi nécessairen. 477, de ALMEIDA, Harmonia, ed. cit., Dedicatoria. 48 T, de ALMEIDA, Harmonia, ed. cit., Dedicatoria. 49 & no apenas a tio célebre de D. Miguel de Anuuciagio (M. A. RODRIGUES, Pombal ¢ D. Miguel da Amunciagio bispo de Coimbra in Revista de Histéria das Ideias - O Marqués de Pombal e 0 seu Tempo, Coimbra, LH.T.L, 1982, 207-298), mas também, ¢ apenas como exemplo, a do fianciscano Frei Manuel do Ceniiculo, datada de 1 de Janeiro d2 1778 (CE F. da Gama CABIRO, Frei Manuel do Cendculo. Aspectos da sua actuagdo filosdfica., Lisboa, 1959). 50 Cf M, Adelaide Salvador. MARQUES, A Real Mesa Censérta e a cultura nacional-Aspectos da geografia cultural portuguesa no século XVIII, Coimbra, 1963. 94. Zulmira Santos por um lado destacar, desse mosaico de conhecimentos, algumas das referéncias a Voltaire, Rousseau, Bayle ¢ d'Holbach, que demonstram que 0 esforgo para conter a divulgagio dos «philosophes» remonta aos anos 60-70 © por outro que a «empresa» de Teodoro de Aimeida nao era tao nova quanto o autor a presumia. Se privilegiarmos, pelas razics atras apontadas — ¢ sobretudo pela regularidade de produgdo editorial das obras contra o cristianismo -, as décadas de 60-70, vale a pena ter em conta o teor da autorizacao concedida em 25 de Janeiro de 1760, a Frei Gongalo de Oliveira O.S.H., a quem, apesar do Breve pontificio, o Tribunal Régio concedeu licenca para ler livros proibidos durante cinco anos, exceptuando, todavia, «Hereziarcas, os de Astrologia judicidria, os de Materialismo, o livro L'Esprit, as obras de Nicolao Machiavelo, Carlos du Moulin, Thomas Hobbes, 0 Adonis de Marine e aquelles que a sua propria consciéncia entender que a podem offender ¢ cauzar damno»*!. Alias, a regra 14* do conjunto das que no Regimento da Real Mesa Censéria (1768) precisavam as normas a seguir na censura dos livros visava directamente «as obras dos prevertidos Filozofos destes ultimos tempos, que continuamente estao inundando ¢ inficionando o Orbe Literario com methafisicas tendentes ao Pyrronismo ou incredolidades: a impiedade ou 4 libertinagen»*. Dos diferentes pafeceres que na actividade da Real Mesa Censoria enquadram simultaneamente a circulago das obras dos «philosophes»*? ¢ respectivas tradugées, vale a pena atentar, como marca de uma atmosfera, na forma como os deputados Anténio Pereira de Figueiredo, Frei Luis de Monte Carmelo ¢ Frei Francisco de S, Bento decidiram, em 1770, da circulagao das obras de Voltaire. Enquanto os dois primeiros pretendiam a proibigao pura ¢ simples de todos os textos**, Frei Francisco de S. Bento considcrou que se deviam deixar correr as obras de Teatro, por ndo terem «couza mais digna 51 ANTT, Santo Oficio, Requerimentos, certiddes ¢ Petigbes, Est. 163, Prat. 6. 52 Cf os clissicos trabalhos de J. T. da Silva BASTOS, Hisidria da Censura Intelectual em Portugai, Coimbra, 1926, A. FERRAO, A censura Literdria durante 0 governo pombalino, Coimbra, 1927; A. A. Banha de ANDRADE, Vernei ea cultura do sex tempo, Coimbra, 1966. 53 pelo Bdital de 24 de Setembro de 1770, a Mesa havia proibido o Emile ou de !Hducation, 0 Contract Social ou Principes ..., Dedicatoria du Droit Politique de Rousseau, 0 Dictionnaire Historique de Bayle, os Elementa Philosophica de cive de Hobbes, as Lettres Philosophiques, Candide on !Optimisme e 0 Dictionnaire Philosophique de Voltaire (Cf. T. BRAGA, Histéria 4 Universidade de Coimbra, Tomo I, Lisboa, 1898). Rogistemse as palavras de A. Pereira de Figueiredo: «Ble he pessimo, ainda quando parece bom: elle diffimde © veneno, ainda quando faz oragoens a Deos: elle inspira insensivelmente hum desprezo de tudo 0 que he Religifo © piedade, ainda quando quer persuadir que so a piedade ¢ 3 Religiio o obriga a manifestar os seus sentimentos: elle emfim he impio e blasfemo ate quando se lamenta de o preseguirem por impio e blasfemo..». ANT, Real Mesa Cens6riz, Censuras, Caixa 2 (1770). Ler para discutir 95 de censura que as muitas obras deste genero que continuamente se permitem» € porque «correm em toda a Europa ¢ se representao nos Theatros com aplauzos», sendo «para esta real Meza hum grande desdouro, se as prohibir com todas as mais cbras»®5, e também as de Historia, na medida em que «Hum censor, se fosse possivel, devia ignorar 0 nome dos Authores, cujas obras examina, e atender ‘unicamente ao que se acha escripto; pois que deste modo mostraria nao ser movido nas suas censuras pelas paixGes do édio ou do amor, mas so pelo verdadeiro merecimento das obras» 56, Alguns anos mais tarde, em 5 de Dezembro 1775, ¢ a propésito da condenagdo da obra de Helvécio, Le Vrai sens du systéme de la nature (1774), um edital da Mesa Censoria chamava a atengdio para o perigo representada por aqueles que se escondiam debaixo do «pomposo titulo de espiritos fortes» e sc «hao elevado como mestres éo género humano, pretendendo extinguir a verdadeira crenga... espalhando para isto livros cheios de maximas perniciosas». ‘Ao mesmo tempo que os mecanismos de censura de livros pracuravam conter a divulgagado dos autores ditos «espiritos fortes», as décadas de 70 ¢ 80 assistiam em Portugal a tradugio de obras dos apologistas cristaos. Porém, se examinarmos, com a precisdo possivel, o quadro das tradugdes, entre 1770 ¢ 1793, data da publicagaio da Harmonia, verificaremos que, pelo que diz respeito aos «apologistas», as tradugdes se reduzem a Bergier: em 1780, a tradugdo da obra escrita contra o Examen Critique de Fréret, La Certitude des preuves du Christianisme, sob 0 titulo A certeza das provas do Cristianismo, ou refuiagao do Exame critico dos apologistas da religido christd, reeditada, pela Régia Oficina Tipografica, em 1785 e 1789 e em 1787, do mesmo autor, 0 Deismo refitado por si mesmo, reimpresso também pela Régia Oficina em 1789, enquanto, no mesmo lapso de tempo, contdmos 15 tradugdes de Voltaire>? ¢ uma de 55 ANTT, Real Mesa Censéria, Censuras, Caixa 2, Vejam-se as indicagées facultadas pelo Catalogo de livros defesos...: «Voltaire/ FM. A, / Theatre de = Hé permitido, porem deve-se notar que algumas Edtiogdes trasem no fim U'Ingenu, et la Princesse de Babilone ~Supx(M. Adelaide S. MARQUES, A Real Afesa Censéria...26 it, 204, 56 ANTT, Real Mesa Censéria, Censuras, Caixa 2. 57 Yerdadeiramente 18, pois que 3 se encontram repetidas: 1772 Historia de Carlos XII Rei da Suecia; 1773 - Alzira ou os Americanos, tradugdo de Monsieur de Voltaire, 1781 - Os Seytas, 1782 - Historia do Imperio da Reissia no tempo de Pedro o Grande, 1783 — O Orféio da China: Morte de César, on do mundo a maior crueldade; Zaira; 1784 - O disereto on o jactancioso;1785 — Historia do Imperio da Russia... ; 1785 — Alzira; 1786 — Mérope; 1788 - “Alzira ou os Americanos; 1789 ~ Henriade; 1790 — Marianne; Orestes; Sofonisba; 1791 - Morte de césar..; As Vingancas de Hermione (recorremos, como instramentc de consulta, & muito util publicagao de A. A. Gongalves RODRIGUES, A Tradupio em Portugal, Lisbon, 1992). 96 Zulmira Santos Rousseau®8, sendo as de d'Holbach posteriores 4 data limite. Tanto quanto nos é Iicito afirmar neste momento, mais nenhuma obra dos «apologistas» foi traduzida para portugués, até A data da publicagao da Harmonia 59, A tinica tradugdo que circulou por estes anos, com 0 objectivo confesso de contraditar sobretudo Rousseau, mas também Voltaire, foram as Cartas de huma mai a seu filho pelas quaes the prova a verdade da Religido Crista (1786 e 1787). Esta versio de um original francés anénimo, de que conhecemos duas edigées, uma de 1786 ¢ outra de 1787, a primeira da Oficina de Francisco Luis Ameno e a segunda da Oficina de Anténio Gomes, recria um universo muito semelhante ao escolhido por Teodoro de Almeida, ao considerar no didlogo entre um cavaleiro e um filésofo, prévio as cartas ~ e que funciona como uma espécic de prefacio — que, para ser bem recebido em determinados circulos, que a qualidade das personagens faz identificar com a nobreza, «he preciso zombar do Evangelho, ¢ declarar-se affoitamente inimigo dos prejuizos vulgares». Se a este pequeno grupo, juntarmos, como producdo nacional, a Dissertagdo sobre a alma racional, onde se mostram os. fundamentos da sua immortalidade (1778) do franciscano Frei José Mayne € a Verdade da Religiéo Crista (1787) de Antonio Ribeiro dos Santos, teremos prenchido, ‘Alzira ou os Americanos, 1789 ~ Henriade; 1790 — Marianne; Orestes; Sofonisba; 1791 ~ Morte ide césar...; As Vingangas de Hermione (recorremos, como instrumento de consulta, & muito vitif ppbliongio de A. A. Gongalves RODRIGUES, A Tradupio em Portugal Lisboa, 1992). Verdadeiramente, a tradugio de Rousseau € ligeiramente anterior & data que definimos. Trata-se de O cinto indgico do senhor Jodo Baptista Rousseau, datada de 1768. A informagio, que néo conseguinios confirmar, provm de Gongalves RODRIGUES, 4 Traduedo..., ed. cit, 153. As outras duas tradugdes de Rousseau, dentro do Iapso temporal considerado, 1770-1793, que vém anotadas no indice desta obra, nao 0 sto verdadeiramente, pois que pertencem as tradugdes em que Bergier refuta este autor. 594 obra do Abbé Lamourette Pensamentos sobre a filosofia da incredulidade ou reflextes sobre o espirito e designio dos filosofos sam religido do presente século (Lisboa, Régia Oficina Tipoersfca foi traduzide apenas em 1796 e eeitada em 1816. 60 Publicada anonimamente, em Coimbra, na Real impressfio da Universidade, A Verdade dar Religidio Crist tem sido desde sempre (veja-se Inocéncio) atribuida a Anténio Ribeiro dos Santos. Desenvolvendo as mesmas questdes dos «Defensores da Religido Cristin (Prefacio, XII), 0 autor anota explicitamente as fontes utilizadas: «Esta Obra foi recopilada principaimente dos seguintes escritos, a saber: da Demonstragédo Evangelica do Ilustre Bispo de Avranches, Pedro Daniel Huet; da Certeza das Provas do Cristianismo, de Mr. Bergier, do Deismo Refitado par si mesmo, do mesmo Autor; da Apologia da Religido Crista, também do mesmo autor, do Oraculo dos Novos Filosofos, Cartas de huma mdi a sex Filho sobre a Religido; da historia do Povo de Deos do PL Isaac José Berruyer; do Diccionario Anti-filosofico; da Verdade da Religitio Christad, de Jacome ‘Abbadie; da Verdade da Religido Christad, de Hugo Gtocio; da Theologia Fysica, e Astronomica de Guilherme Derham; daReligiag Crista provada por factos, do Abbade Houteville & c» (AR. dos SANTOS, A Verdade da Religifo Crista, Coimbra, 1787, Prefacio, XIl- XID). V. J. Esteves PEREIRA, O Pensamento Politico em Portugal no século XVIII, Lisboa, 1983 ¢ Joo Luis LISBOA, Enciclopedismo e Anti-Enciclopedismo in Prelo, 4, Julbo-Set,, 1984, Ler para discutir 97 tdo completamente quanto nos é dado saber, 0 quadro no qual T. de Almeida entendia como «nova» a xempresa» que a Harmonia da Raziio e da Religiao representava. 3. Livros e¢ leituras «Ora mandai-me vir 0 Poeme de Mr. Voltaire sobre a Religido natural dedicado a El-rei da Prissia» T, de Almneida, Harmonia... 1793 Do conjunto de personagens que participam nos didlogos que constituem a Harmonia da Razio e da Religido, hd duas, Teodésio ¢ a Baronesa, que no sé conferem unidade ao texto, no sentido em que permanecem do principio ao fim, garantindo a verosimilhanga, como sao, de alguma maneira, os elementos que mais directamente se envolvem nas questdees relativas 4 leitura ou, mais rigorosamente, 4 definigado de uma pauta de modos de ler. Através da Baronesa, aluna de Teodésio em Geometria, Matematica, Fisica e Geografia, o autor precisa os cendrios da discussdo: 0 sul de Franga (Bayonne) e a nobreza rural dos anos 70. Através de Teodésio, © contexto argumentativo: assim como ensinou a jovem aristocrata as disciplinas entendidas como necessarias, assim procurara ensinar, desta vez nao na ambiéncia de aula mas numa espécie de pratica quotidiana, como resistir aos argumentos de «impios e Incredulos», sublinhando os estilos proprios para conhecer a verdade e os modos de terS! Apesar do titulo, a Harmonia da Raztio e da Religido nao é um texto inscrito em sede de provas histéricas ou exegese biblica, mas sim um grupo de didlogos que procura «acudir ds invectivas.., contra a Religido», privilegiando a conversagdo familiar, Dai que cada uma das quinze TTardes em que a obra se divide enquadre diferentes espagos da sociabilidade, das conversas 4 mesa aos passeios ¢ assembleias, remetendo frequentemente para discusses havidas cm dias anteriores, em contextos id€nticos™, Estes 61 Curiosamente, as Cartas de uma indi a seu filho... sublinham que a educago da «Maen que vai permitir-the provar as «Verdades da Religido Cristan pela «Raziion, pela «Revelagion ¢ pelas ‘aContradigges em que incorrem os que a combatenm dependem da «felicidade de [ter sido] instruida pelo Abade **, sujeito muito zeloso, ¢ muito sabio, Em todo 0 tempo, cue elle esteve encarregado da educago de meus Inmos, nas insirugdes que nos dava, cuidou em ajuntar as provas da doutrina dg revelagio._.». Cartas de huma mit... ed it, 14. Teodoro de ALMEIDA, Armonia..., ed. cit., Prefagio: «s6 quero acudir 4s invectivas, que ma gquversagio familiar costumio fazer contra a Reigito..» ‘A definigio dos espagos contribui, no quadro da verosimilhanga, para a organizago de um universo referencial, que tora possivel, seguindo os nossos sublinhados, reconstruir, 98 Zulmira Santos curtos apontamentos, muitas vezes simples alusdes, se tecem & fundamentam a coeréncia e coesio textuais, contribuem também para deslocar as questies discutidas das «Dissertagdes Theologicas» para a conversa de saldo, justificando, de alguma forma, a aparente simplicidade de argumentacdo, ao mesmo tempo que recriam o viver quotidiano de uma certa nobreza francesa antes da Revolugao. Ea Baronesa que cabe suscitar a questo do mal que chegou e ao qual ndo sabe como resistir, instada pelos diferentes héspedes € visitas que constantemente abordam os temas relacionados com a Religidio%. Nao deixa de ser curioso notar que 4 excepgdio da Baronesa e da Mae — € obviamente de cadencialmente, o viver dessa nobreza rural, pautado por visitas, ceias, passeios, idas 4 capcla:: Tarde £, «hoje tetcis Vés & meza hum, que nfo he dos peiores», 3; «e passeando com elle os dias passados sobre o Glacis», 3; Tarde II: «Nao sabeis quanto cu me regalei hontem 4 noite, que ceei ‘aqui com o Chevalier Sansfond ...», 25; «Se Vos quereis, Theodosio, vamos todos tres para o meu quarto; ev digo aos eriados, que quando vierem visitas, as levem ao quarto de minha Mdi, ou de meu Intifio Chevalier, e que eu sahi com 0 Bardo a passeion, 27, «Vamos a passeio, Theodosio, antes que venhdo visitas, que nos incommodem, 43; Tarde 111: «No vos posso ponderar, meu ‘Theodosio, a admiragio que me fez hontem em huma certa assemblea bum nosso amigo que cu no nomeion, 44; «Esse sujeito nfo he hum, cujo nome principia por H, ¢ ceax comnosco ha cousa de quinze dias?», 46, «Vamos @ passeio., 63; «Eu dei a palavra a Madama Goveruadora que me mandou convidar para the dar o brago no passeto esta tarde...», 63; «Vamos a passeio: chamai o Bardo, que elle assim que percebeo que estava ci o Coronel cont suas Filosofias, nifo quiz entrar; mas eu bem o senti.», 64; Tarde IV: «Bu 0 convidel hoje para o passeio;», 65; Tarde V: iu reparei hontem 4 noite, meu Amigo Theodosio, que Vos 4 meza notastes huma couse, ..», 104, «...vamos a passeio, Theadosio.», 126; Tarde VI: Chagiio carrnagens, ponhamo-nos em tom de passeio, antes que nos empatem em casa», 143; Tarde VI/: «Por ora basta de especulagSes: vert visitas, vou recebellas:Adeos.», 172; Tarde VIII: «Tomara, que vos fosse permittide apparecerdes assim como estais d tarde na Assenibleay», 176; «Sendo assim, vamos para a meza, que ja ougo, que sio horas.»,206; Tarde IX: «Nao vos retircis, que elle em percebendo, que Vés estais no meu quarto, ndo tarda», 208; Tarde X: «Aposto eu, Senbor Brigadeiro, que Vis estaveis fazendo horas para me irdes buscar ao passeto costimado: aqui temos Theodosio; vamos nds sémente os tres passear até o bosque, que he frondoso, ¢ grande abrigo para o tempo de calma; e depois acabada a nossa conversagiio (que sera importante) sahiremos para os Jardins 1d pela fresca, para nos ajuntar ao rancho grande dos Cavatheiros, e Senhoras, que aqui se ajuntiéio, 250; Tarde XE: «A estas horas ja ella esta bem interessada no jogo, ¢ bem pouce se Ihe dé. dos argumentos, que Ihe fizemos.», 316; «Vamos a passear, que hoje ndo quero a companhia brithante das mais senhoras, potque no acabo de admirar a facilidade com que se admittem absurdos horrendissimos, e de consequencias de maior importancia.», 316; Tarde Xi: «...quando me encontrow sahindo da Capetta...», 317; «Crede-me Balio, pouca gente reflecte como deve ser antes que falle: nifo sejais assim, Vamos ao jogo», Tarde XIII: «V6s estavcis tho influidos na disputa, gue vido ex por toda esta rua do Jardim, nenhum de Vos me vio, até que junto de Vés vos saudei.», 341; «Basta, meus Amigos, que vem gente», 362; Tarde XIV: «...hoje oreio que nto temos ninguém, porque o ‘casamento do vosso vizinho leva todas as nossas amigas, ¢ esta tarde estaremos s6s, Eu, ¢ a Baroneza, ¢ V6s.», 363; «Agora se quereis, vanios a passear todos tres.», 387; Tarde XV: «Vamos asseary, 403, Consideremos uma vez mais o texto das Cartas de huma mdi...: «vos levanteis brevemente Apologista da Religido Crista; porque todo 0 mundo hoje se intromette com ellan. Cartay de huma Mai... ed. cit., xviii. Ler para discutir 99 Teoddsio —, todas as outras personagens, representantes de extractos varios da nobreza — militares como o Chevalier (ironicamente denominado Sansfond)®, o Coronel (tide por ateu)®°, o Major (criado com protestantes),°7 0 Brigadeiro (douto nas ciéncias naturais)®*, o Bardo (irmao da Baronesa), 0 Conde, a Marquesa (tia da Baronesa, possuidora de estudos de «bellas letras» e autora de pegas de teatro)®, 9 Balio — constituem adversarios a convencer, como se ¢ autor quisesse sublinhar, pela variedade e qualidade dos opositores, por um lado, a dimenséo da controvérsia religiosa na Franga da década de 70 e, por outro, os circulos da divulgacio: «Baronesa: O mal, que receaveis veio, e os remedios que entéo me daveis como preservative do mal, agora talvez que sirvam de o curar: pelo menos eu agora temo 0 que entio néo temia: espero qualquer dia meus irmads, que chegardo de Saumur, ¢ a vivenda no regimento néo sei se lhes tera sido prejudicial; por quanto s¢ eu aqui em minha casa me vejo summamente atacada sobre a Religiio, sendo meus pais tio catholicos, ¢ tdo attentos, que succedera a meus irmidos entre toda a variedade de sentimentos que terdo os scus companheiros?... Estes hospedes, que nos fazem favor, especialmente quando vem a jantar; porque j4 da mesa vai a questio armada, que dura até a hora do passeio; e huns com os outros se divertem em mil invectivas contra quem ndo quer sentir como eles; hoje tereis vos 4 mesa hum que nao he dos peiores; mas afflige-me, ¢ he pena, por quanto he homem de juizo, ¢ néo deixa de ter graca; mas pela sua conversago creio que he dos da moda: he o Chevalier Sansfond.»”. Ainda que o conjunto das quinze Tardes que constitui a obra procure tratar exaustivamente as questdcs mais debatidas pelos apologistas — das provas sobre a Existéncia de Deus a Imortalidade da Alma, Revelagao, Pecado Original, «Culto devido a Deos Interior e¢ Exteriom, «immutabilidade Divina e... Fogo vingador da outra vida»7! -, apenas as primeiras quatro se prendem directamente com problemas de leitura, desenvolvendo-os de formas diversas: discutem-se, na Tarde |, as diferencas 65 ‘Teqdoro de ALMEIDA, Harmonia..., ed. cit., 3: «...homem bem instruido, especialmente na “Antitharia; sabe bem a findo esta materia, ¢ tem servido com grande distincgion. 66 Teodaro de ALMEIDA, Harmonia... ed. cit., 51: ade quem ha pouce ves dizia que o tinka por Atheo.». 67 Teodoro de ALMEIDA, Harmonia..., ed. cit,, 390: «Todos os Protestantes seguem isso; ¢ cu, ainda que sou Catholico Romano, como me ctiei com elles, nilo estou muito lange de os segura. 68 Teodoro de ALMEIDA, Harmonia..., ed. cit,, 66: «Doulo he elle: nas sciencias naturaes julgo ¢ discorre bem...» 9 Teodoro de ALMEIDA, Harmonia... ed. cit. 289: «Tem muitos estudos de bellas letras; ¢ tem gomposto varias pogas de Theatron. 707, de ALMEIDA, Harmonta..., ed. cit., 2-3. 71 Teodoro de ALMEIDA, Harmonia... Appendix. 100 Zulmira Santos - entre livros pessimos e livros excelentes, qualificagdo que naturalmente se altera em fungdo do ponto de vista do leitor; considera-se, em. sequéncia, na Tarde II, 0 estilo dos livros a favor ou contra a Religido, enquanto as Tardes Ie IV pdem em pritica, refutando Voltaire e Rousseau, métodos de leitura tidos como aconsethaveis. Esta espécie de considerago propedéutica revela e define a importancia da leitura para tratar as quest6es da Religido. Para discutir ¢ preciso ler. Como? De que formas? Livros pessimos para a Baronesa e excelentes para 0 Chevalier sio as obras «contra a Religido» definidas como «muitas» e «eloquentes». Para esta Ultima personagem, que nao para a Baronesa, também os textos a favor nao faltam, mas «come nfo sao escritos com tanta eloquencia, nfo mettem appetite»?2, A diferenca fundamental entre os dois grupos equaciona-se, assim, em termos da «beleza de cstilo» que fundamenta ¢ justifica a atraccdo exercida por um conjunto de escritos tidos como favoraveis &s paixdes. Neste sentido, Teodésio traga para a Baronesa, ndo uma «biblioteca» de livros aconselhAveis — curiosamente ndo se cita um unico ~, mas uma «gramatica de leitura» que sublinha, essencialmente, uma «arte de resisténciay aos textos qualificados como perigosos, prendendo-se umbilicalmente a um conjunto de modos de ler. Embora os textos a favor da Religiiio sejam muitos, cles funcionam como poucos, no sentido’em que, qualificados como «insipidos», nao tém jeitores, Transportar a «Verdade» no basta. Pelo contrdrio, os livros «impios» multiplicam a sua influéncia, por um lado porque so agradaveis — usam de «chistes» ¢ ditos engragados’? — por outro, porque ndo apelam a uma competéncia de leitura espectfica, podendo ser lidos por todos. Contrariamente, os livros «a favon> requerem instancias intermédias entre texto e leitor, pois que suptem codificagées que os aproximam das obras de Fisica, Matematica ou Geometria...74 ¢ que ultrapassam o simples dominio lingufstico. Nao basta entender Francés, é preciso dominar uma pandéplia de saberes que permitem superar a aridez do texto e aceder 4 Verdade. 72 Teodoro de ALMEIDA, Harmonia... , ed, cit., 8. 73 Teadoro de ALMEIDA, Harmonia... ed, cit, 27-28: «O outro he mui omado com as figuras da mais brithante eloquencia, semeado com alguns chistes, ou galanterias de hum genio feliz; © acompanhado de algumas pinturas agradaveis; e além disto animado por enthusiasmo poetico (ainda fora da Pocsia) deixa escapar por aqui, ou por alli algumas gragas encantadoras, @ 4s vezes invectivas engragadas, como vemos commumente nos livros,que se escrevem contra 4 Religion. 74 Teodoro de ALMEIDA, Harmonia..., ed, cit. «Na Geometria se ensina isso quando se trata da medigo dos solidos.» - Thodosio: Ora quem nada disto tiver estudado a flundo, como poderd fallar, fir, ¢ sentenciar sem dizer mil disparates? Pois o mesmo digo dos que falliio, e decidem, ¢ zombio em materias de Religido, sem ter estudado estes pontos fondamentaimente ...dizei-me porque nao estudastes vés a Mathematica deste modo? aqui hum bocado, acolé outro? ¢ sem reflexio?>. Ler para discutir 101 Se esta é a solugiio para «entender» os livros a favor da Religiéo — que, apesar da aparente dificuldade, devem ser lidos antes dos outros’? ¢ convenientemente explicados, j4 que as convicgdes nao sedimentadas sce revelam mais faceis de abalar — como proceder com os livros «perigosos»? Ignord-los, conhecendo apenas um lado da questo? De maneira alguma. # absolutamente necessdrio ler para poder discutir. E «ler» implica, neste caso, dominar uma «arte» de Icitura que releva de uma técnica apresentada como rigorosa € eficaz. Se os livros «impios», redigidos em estilo «ameno» — bem mais agradavel que o sélido e «simples» dos livros a favor da Religido —, vivem de uma atraccdo que resulta da «Eloquéncia», disfarcando o erro pela beleza das palavras e a harmonia dos periodos, separem-se os vocdbulos das ideias. Esquecam-se as moetdforas, as repetic¢6es, a prosa ritmada ou o verso bem soante e observem-se as frases nuas e sem enfeite, Teodésio utiliza exemplarmente 0 poema de Voltaire sobre a Religido Natural e 0 Emile de Rousseau — um ¢ outro disponiveis na residéncia da Baronesa: «Theodosio. Ora mandai-me vir 0 Pocma de Mr. Voltaire sobre a Religido natural dedicado a ElRei da Prussia. - Bardo. Euo vou buscam — para exercitar esta «arte» de Jeitura que anularia a seducdo dos escritos dos «philosophes»: «Vés vereis, Baroneza, hum discurso bem alcijado, se o virmos ni, ¢ sem ornatos, mas ‘bem formoso, quando se vé com elles, como Voltaire o apresenta».,. «Ora tiremos todo o enfeite, toda a Toupagem desta figura; vejamo-la, como em si he, ¢ ent&o julgaremos, se he discurso direito, e bem formado, ou argumente corcovade, ¢ monstruoso».7 Deste ponto de vista, os textos a favor da Religiéo seriam, na esséncia, bem mais conformes 4 RazZo que os textos contra, jA que nao precisariam de recursos, a ndo ser os da argumentagdo pura. Contudo, estes exercicios de «raciocinioy que sustentavam as doutrinas a favor ndo possuiam a enorme vantagem do enfeite literario que podia traduzir a proximidade ao «dito agudo», mas se afastava das «razées sdlidas»: «A poder ser, meu Theodosio, eu prefiro o estilo ameno, que hoje todos preferem: nem hoje se lem os outros livros. Elles serio muito doutos, ¢ scientificos, mas eu os vejo cobertos de pd, ¢ comidos do caruncho, quando casualmente topo com algum nessa estantes, em que se nao bole».77 De resto, a sedugiio estilistica, equacionada por T. de Almeida como perigo maior dos textos contra a Religific, mais nao era que a 757, de ALMEIDA, Harmonia, ed. cit, 41: «Nao os ler sem primeiro ter lido seriamente os livros a favor da vossa crenga; porque sem vés estardes armada com conhecimento da verdade, nao odors suspeitar que hajanos outros livrosa mente. T. de ALMEIDA, Harmonia, ed. cit., 36-37. 777, de ALMEIDA, Harmonia, ed. cit, 31. 102. Zuimira Santos reprodug4o dos argumentos que os criticos dos «philosophes» ¢ sobretudo de Voltaire e Rousseau vinham utilizando desde a década de 50. Todos os «apologistas» sublinhavam a «cloquéncia» dos escritos contra a Religido, lamentando, ¢ tendo em vista sobretudo Voltaire, que os Poetas se quisessern tornar filésofos e tedtogos”®. O estilo «poético», dito impréprio para tratar assuntos desta natureza, funcionava como um polo mais de atracgiio de textos que s6 por si ja eram entendidos como favoraveis as paixdes: «Theod. — ..haveis de reparar, Batoneza, que hoje todos os artigos, em que 0s Senhores Filosofos do tempo se affastio da crenga de nossos Pais, sdo aquelles, em que a liberdade de costumes fica mais authorizada: nenhum se affasta de nés apertando».79 Nesta perspectiva, T. de Almeida recupera um leque de argumentos e razdes sem qualquer novidade. Alias, nas Lettres Critiques ow Analyse et Réfutation de divers Ecrits Modernes (1758) 0 Abbé Gauchat havia proposto uma metodologia semelhante, ao confrontar as «Lettres & les Pensées Philosophiques, le livre des Moeurs, te Poeme de Pope sur l'Homme...les Lettres Persannes, Turques ct juives...les Ouvrages de M. de Voltaire» usando «la preéminence éclatante de la verité. Proposée simplemente & sans fard, scule elle terrasse I'erreur, quoique embellie par le style & Yerudition, quoique armée de tout ce qui semblerait la rendre triomphant»®?, Na «Lettre Premigrey de Le deisme Refuté par lui-méme (1765), Bergier acusava Rousseau de «un style, aigre, mordant, passionné. ..»*! «..brillant, nerveux, tranchant...»®2, enquanto por si tinha apenas «la raison et la verité>®3. Em Portugal, 0 mesmo fez Fr. José Mayne ao considerar, visando «Mr. de Voiter e Joao Jacques Rousseau», que as razdes dos filésofos naturalistas mais ndo eram «que huns poucos de enthymemas retoricos, os quaes apparecem na forma de miscraveis sofismas, logo que thes separarmos a plumagem da Eloquencian®, o tradutor do Deismo Refutado (1787), Francisco Coelho da Silva, no prefacio que acompanha a versio portuguesa — «Combinai agora esta licenga popular que authorizais, 78 \Vejamse as palavras de Francisco Coelho da Silva, no jé itado preficio ao Deismio Refistado (ed. cit, XX): «Venha pois a juizn Mr. De Voltaire, e ouga de mim algumas grag2s moderadas em pena dos insultos que fez 2 Deos & Religito, ¢ do modo insolente com que zombou de quanto ha na terra de mais respeitavel, sel Ihe lersbrar nunca o papel ridiculo que fazia no mundo hum simples Porta mettido a Filosofo, Legislador e Theologon. 79 7, de ALMEIDA, Harmonia, ed, cit., 19. 80 GAUCHAT, Lettres Critiques... ed. cit, 81N, S, BERGIER, Le Deisme.. 82. § BERGIBR, Le Detsmne. 83 Ny. §. BERGIER, Le Deisme...., ed. cit, 5. 84 By, José MAYNE, Dissertagdo Theologica sobre a Imortalidade da Aima Racional, ed. oit., Iv. Ler para discutir 103 com © vosso systema de Religio Natural, que despido do enfeite, © hypocrisia das vossas palavras, propriamente se reduz a extinguir toda a casta de Religido no mundo...» ou Francisco Roussado, tradutor das ja citadas Cartas de huma mai a seu fitho...(1786), que entendia que as palavras dos «philosophes» «eram doces, os seus escritos semeados de imagens, allusdes agraddveis,; mas entre eslas s¢ esconde mais perigosamente 0 veneno», enquanto 0 anénimo autor sublinhava que ler Voltaire e Rousseau «era beber por as bordas de um vaso untado de meb». Ao fazer da Baroneza um modelo de «mulher leitora» — que sabe precisar de «intermedidrios» para os livros a «favor» & domina o saber que torna inécuos os livros «contra», argumento que no limite néo impede a sua apreciagdo estética - T. de Almeida propde um modelo alternativo 4 «dama nobre» de Fontenelle ¢ Algarotti, dona de uma competéncia cientifica que, das leis fisicas de Descartes ¢ Newton, a leva a discutir, nos cendrios da conversa de saldo, os filésofos da moda. A Religifio nio seria, assim, para @ Baronesa da Harmonia..., resultado da «credulidade» propria das mutheres, «as quaes entregavam o seu juizo a quem queria pegar delle, para o conduzir fosse para onde fosse...»®5 e a quem «clerigos velhos»®® cnsinaram trés ou quatro normas, mas fruto de um conjunto eselarecido de principios, que nao impediam mas antes fomentavam a leitura e 0 exercicio da Razio. Tivessem ou nao sido do conhecimento do oratoriano as Cartas de huma méi a seu filho..., parece indubitavel que a sua Baronesa ecoa as consideragées tecidas pelo anénimo autor a propésito da necessidade de encontrar dleitoras» que se aventurassem pelos «philosophes» armadas de cautelas e metodologias cuja divulgagiio parecia ser, em termos de eficacia, 0 Unico antidoto encontrado pela Harmonia da Razio e da Religido: «Além disto pergunto, se a entrada no Paiz da Metafysica he somente permitida as mulheres conduzidas pelos novos Filosofos, e he proibida a todas aquellas, que forem conduzidas pelos Mestres Christéos? Porventura ndo vemos todos os dias entre nés, raparigas, as mais ocupadas nas modas, é pompas, falar a linguagem dos novos Filosofos? Ellas tem a cabeca cheia de doutrinas de Voltaire, e de Rousseau; ¢ as publicio pomposamente com hum tom decisivo».87 Neste aspecto, em 1793, a Harmonia... aproveita excmplarmente um conjunto de argumentos que funcionariam, por ests tempo, Ja bastante epigonalmente, embora, na verdade, a questdo das leituras de «Impios ¢ Incredulos» se revalorizasse por esses anos que iam assistindo a Revolugio 85-7, de ALMEIDA, Harmonia... od. cit, 65. a T. de ALMEIDA, Harmonia..., ed. cit,, 3-4. Cartas de huma Mat ..., €d, ot, xviii 104 2ulmira Santos Francesa e que muitos sectores consideravam como consequéncia mais evidente da destruigao da funcdo social da Religido. Embora a Baronesa, modelo de mulher culta, que nao aderira por simples vaidade intelectual as doutrinas filoséficas da moda e se mantinha fiel ao bom uso da Razdo ¢ a0 uso da boa Razdo, consiga convencer todos os outros intervenientes, ajudada por Teodésio ¢ armada dos «modos de leituray enunciados nas quatro primeiras «Tardes», a Harmonia... sugere, assim mesmo, a penetragao que os livros «impios e Incredulos» tinham, ou o autor acredifava terem tido, nas camadas consideradas cultas. Por outro lado, ao fornecer pautas de leitura ¢ ao insistir nos modos de ler, como se esta espécie de propedéutica fosse absolutamente necessdria para discutir os assuntos relativos a Religiéo, T. de Almeida nao realizava, em termos de objective global, uma empresa no nosso pais «nova», como afirmara na «Prefagio», mas conferia a forma de apreseniar a discussio, e pelo que & nossa realidade «textual» dizia respeito, formulagdes e desenvolvimentos diversos. Deste ponto de vista, a organizagio discursiva — 0 didlogo — e a atengédo pormenorizada aos problemas da leitura, mais até que 4 questo dos livros perigosos propriamente dita, constitui a muito relativa «novidade» que 0 autor poderia reivindicar para a sua obra. Nao podemos esquecer que 0 publico leiter dispunha desde 1786 da tradugdo das Cartas de huma mai a seu filho que exploravam os mesmos temas dentro da mesma perspectiva. A diferenca fundamental que a Harmonia... representava coagulava, essencialmente, no uso directo do didlogo entre a Baronesa, Teodésio ¢ os diversos opositores, «oO que tornava mais viva a disputa», ¢ no acentuar do bom uso da Razdo que conduzia, justamente, ao sublinhar das técnicas de leitura, como se dentro deste amplo quadro, ¢ se as Luzes se identificavam com a Razio, elas devessem estar do lado da Religiao Crista, quo resistia A discussdo colocada neste campo, ¢ ndo contra ela, Zulmira C, Santos Abstract: This study deals with Harmonia da Razdo ¢ da Religitio (1793) by the oratorian Teodoro de Almeida, in the context of the «apologetic» literature which was particularly relevant throughout the second half of the 18th century. The indications ‘of books, readings and modes of reading presented and discussed by the author are emphasized.

Você também pode gostar