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CHP-Baasl, Cutalogaciona Publcasto ‘Camara Braselm 40 Livro, SP Santos, Joel Rufino dos, 1941: asso“! que é taciimo / Joel Rufino dos Santoe. "" ‘sip Paulo Abs Coleral Braslense, 1984, ‘Coleio primezos passos ; 8) 1, Brasil ~ Questzo racial 2. Racis 3, Raciemo Bras 1. Titulo, Uh. Sete: Primeires pasos : 8. 7. epp-3205 Ie 32036 Sons 18 3oLesios i Borasossi 24.1617 12 3014810420960 Indices para catilogo sistemitica: 1 Brasil "Racemo’ : Sociologia 301-0981 (17.) 301.680¢20981 (18) 2, Raciemo: Ideologia police 320.5 (17) 320.56 (18) 3. Raciemo” : Sotiologa 30145 (17) So.es1082 (ia) Joel Rufino dos Santos O que é RACISMO B Abril Cultural Editora Brasiliense 1984 (Carieaturas: Emilio Damiani Revisia: Nelson Nicolai ‘Jose E. Andrade ©Copyright 1980 by Joe! Rufino dos Santos ©Copyright desta edipso, Abr S.A. Cultural, Sto Paulo, 1984, Publicado sob licenga da Eaitora Brasiense S.A., So Paulo, Geese Introdugao Oqueé 0 Racismo . ‘Quem so 08 melhores dangarinos do mundo? © paraiso dos racistas Na pracinha, domingo de manha O dia em que os europeus comecaram a ter insénie . . Esses pobres felds egfpcios, de costelas & mostra ““Bom-di, segundo 0 Servigo de Meteorolo Para que serve a cor des pessoas? A ciilizag pertnce aos brancon, Até quando? Snags Em conclusao Joel Rufino dos Santos Existe racismo no Brasil No Maracané, domingo & tarde . Brasileiro pilhado em flagrante de racismo roage... Neguinho sem-vergonha quer ser Sérgio Chapelin quando crescer Racismo de brasileiro, zelosamente guardado, aparece em momento de competi¢ao “Ora, & apenas um negro”. cs “Nocé no vence na vida? £ culpa sua, voce ‘tem complexo de cor”. Broncos sempre esperar que os outros cumpram o seu dever . Negros no créem em “democracia racial”. Dio troco a brancos Principais modelidades do racismo brasileiro. - ‘Onde os pretos so maioria... . Discriminado porque tinha bunda epinads- "'Também ja fui crioulo, doutor” Machado de Assis X Lima Barreto. Mao Branca X mos negras . “Quem cospe nos outros 6 judeus. E j ispones ‘Ago dé no cour” Quatrocentos e oitenta anos de estupro . Os indios saiam da frente para o Brasil passar. 40 40 42 45 4B 51 4 57 INTRODUCAO Sob efeito da opiniéo ptiblica, um juiz havia decretado integragdo racial nas escoles do Estado. ‘A pequena'Judith ia enfim sentarse num benco de madeira pera aprender 2s-coisas que faziamo orgulho dos adultos. Sua mie ouvira no noticiério matinal ‘que 0 mundo inteiro prestava atencdo nos Estados Unidos, no Texas, naquela modesta escola de Dalles, nna sua pequena Judith, mas foi com serenidade que the preparou a lancheira e os cadernos, Um irm5o ‘acompanhou Judith até perto. Nao foi comum seu primeiro dia de aula, Nenhurna crianga branca comparecera, de forma que a profes- sora, em saber onde por as mos, ensinou tude soz nha para ela — e, na verdade, para centenas de solda- dos que do lado de fora garantiam sua integridade. ‘Ao comer a merende, Judith continuavas6. Meio-dia, | | | Joel Rufino dos Santos 0 que ¢ Racismo ‘quando guardou seus pertences para voltar a case, jé go se sentia nada contente. As dues fileiras de sol- dados faziam um corredor para ela passar. Por detras eles apareceram, entdo, centenas de carinhes bran- cas — xingando, vaiando, cuspindo. Havia adultos, ‘também, mas Judith no quis olhar ninguém. Seus ppassos eram firmes, até onde uma garota de 7 anos pode andar assim. O coro @ perseguiu até & praca, ‘em frente a escola. A pequena Judith sentou-se, entéo, num banco de pedra e abaixou 0 rosto. Um homem branco veio na ‘ua direggo — 0s soldados, por um instante, chegaram a pensar numa agressSo. Ele pos a mo no seuombro, de leve, e segredou: “Judith, nao deixe eles verem que voc estd chorando”. Fatos reais, como este, pontilharam a crdnica dos Estados Unidos na década de 1960, parecendo con- firmar que ali 6, por defini¢go, a pétria do racismo. Nenhum pafs do mundo, entretanto, desconhece, ou desconheceu, uma forma qualquer de racismo. Até mesmo o Brasil, cujos governantes sempre se orgu- tharam de sermos uma “democracia racial”, tem dado provas de que o fendmeno universal. Este pequeno livro que vocé vai ler, procura responder 8 pergunta: 0 que 6 0 racismo?", primeiro no mun- do ocidental, de que fazemos parte; depois no Brasil. Naturalmente, nos achamos em melhor posi¢go para ver o racismo aqui do que Ié fora, mas, até mesmo para compreender o nosso, precisamos de um termo de comperacio. Para muita gente, 0 racismo — que basicamente 6 uma agressio contra 0s outros — s6 se combete com ‘outra agrossdo. Esté bem: quem foi discriminado tem © direito, ¢ até o dever, de reagir. (A propria teoria dos Direitos Humanos, tdo em voge hoje, queles que séo vitimas de ume opressio d di liquidar com ela.) O racismo, entretanto, néo é s6 uma atitude — come, por exemplo, ados que valaram, cuspiram e xingaram a pequena Judith que s6 queria estudar. O racismo 6, também, uma teorie, defendida fem livros @ salas de aules com argumentos e teses "eientiticas”. Para brigar contra ele seré preciso, antes, desmontar esses argumentos ¢ teses. O que é Racismo n a O QUE EO RACISMO Quem sfo os melhores dancarinos do mundo? Se um estudante francés quisesse saber 0 que é ra cismo, possivelmente abriria seu Petit Larousse um diciondrio de prestigio universal: “Racismo. s.m. Sis- ‘tema que afirma a superioridade racial de um grupo sobre outros, pregando, em particular, o confinamen- ‘to dos inferiores numa parte do pais (segregaco ra- cial) (...)". Como toda definicgo, esta 6 como uma goma de mascar: pode aumenter, diminuir ou ficar do mesmo tamanho, conforme o seu gosto. Estamos no primeiro caso, naturalmente. © que quer dizer © Larousse com sistema? Certamente um conjunto de idéias e praticas, pessoais e coletivas, de pequeno e longo alcance. Um exemplo de id pessoal: ““Néo gosto de drabes porque sdo traicoeiros””. Um exemplo de pratica coletiva de longo aleance: ha 4480 anos a sociedade brasileira recusa aos seus fndios 2 posse da terra (embora eles jé morassem aqui mi- thares de anos antes de o Brasil ser “descoberto"). 0 racismo 8 um sistema que afirma a, superior: dade de urn grupo racial sobre outros . *. O que & tum grupo racial? A pergunta parece tola: ninguém confunde um preto com um braneo, um indio com tum japonés e, se for um bom observador, néo con- fundiré, também, um judeu com um italian. Nenhurn ddesses grupos de pessoasé, porém, uma raga. Pretos & brancos so apenas conjuntos de individuos que tém 8808 cores — nada mais. (Um sujeito preto pode, por exemplo, estar biologicamente mais préximo de um branco do que de outro sujeito preto.) Indios e ju deus ndo"séo racas, s80 povos (grupos de pessoas de racas cistintas que vive juntas num mesmo territé- rio). Quanto a japoneses¢ italianos, sio nacionalida- es, assim como 0 s0 brasileiros, angolanos, dina marqueses, etc. J se v8 que hé poucas palavres to confusas quan: to raca. Masnao foi por acaso que @ baralharamn tanto que jé nada quer dizer. Governos e ideologias conser- vvadores usarem e abusaram dela, através da Historia, para se defencerem © propagandearem seus propési- 10s erealizacBes. Nes Olimpladas de 1936, por exer plo, um jovem e ousado governante alernao axigiu que seus atletas derrotassem os representantes de “races, inferiores” para provar a “inconteste superioridade a raga ariana’". Venceu-os um crioulo norte-ameri: 2 Joel Rufino dos Santos O que é Racismo 1B cano, Jesse Owens — 0 que também ngo provou nada, exoeto que er melhor corredor. (Em tempo: 0 governante racista chamave-se Adolf Hitler.) Em 1936, mesmo no mundo cientifico, muita gente acreditava em “racas puras. Sabe-se hoje que regas puras nunca existiram: um grupo humano que tivesse se mantido puro, sem se misturar com outro, do sofreria mutagdes e, dentro de algum tempo, desapareceria, Além disso, em absolutamente nenhum lugar do nosso planeta, um grupo assim conseguiria viver isolado dos outros. O que charamos raga — negra, branca, amarela, caucasiana, etc. — & apenas um elenco de caracterfsticas anatémicas: a cor da pele, 2 contextura do cabelo, a altura média dos individuos, ete. Se pudéssemos despir as pessoas dessa anatomia, verfamos por dentro um outro elenco de caracteristicas — as caracterfsticas gené- ticas, Pois bem: esse elenco decaracteristicas internas pouco tem a ver com as exteriores. Os cientistas chamam a esses conjuntos internos de “races invi siveis”. A raca preta, por exemplo, estd formada de indmeras “ragas invisiveis". Como espécie humana sempre se misturou, concluise que uma “raca invisivel” de pele preta pode ser igual a uma “raca invisfvel" de pele brance, ou amarela, ou vermetha, etc. Traduzindo num exemplo concreto a teoria das “ragas invisiveis". Um turista, maravilhado diante das Esoolas de Samba, poderia dizer: “Os negros sio (0s melhores dangarinos do. mundo”. Esté bem, os turistas tém o direito de dizer 0 que quiserem, mas cientificamente @ frase 6 um equivoco. O correto seria dizer: “H8 grupos de negros que sao 0s melhores dangarinos do mundo”. Quem jé viu, boquiaberto, numa tela de cinema, o branquissimo Charles Chaplin fazer do corpo 0 que queria, 20 som de uma banda da roca, néo pode achar que “bréncos no do para danca”. Chaplin possivelmente pertencia a uma "raga invisivel!” to dangarina quanto a de muitos negros do Rio de Janeiro. O racismo assenta, assim, numa falsidade cientffica, © que torna facil a qualquer colegial bem informado Gesmonté-lo. Recéntemente, nos Estados Unidos, foram apresentadas “provas” das diferencas genéticas entre as racas negra e branca. Os cientistas que a6 apresentaram continuam, portanto, trebalhando com © velho e duvidoso conceito de raca: individuos com ‘© mesmo desenho externo. Coerentemente, 0 que dizem os jornais que se interessaram pelo fato, esses cientistas pertencem & direita politica, sempre obstinada em explicar diferencas sociais por fatores iolégicos. Supondo que consigam provar que os negros so inferiores aos brancos — em inteligéncia, capacidade de iniciativa, de concentracéo, etc. estaria aos anti-racistas um argumento decisiv muito bem, hé, em alguns aspectas, ra¢as inferiores e racas superiores, mas todo grupo humano merece, pelo fato de ser humano, o mesmo tratamento. Se de provar nesses assuntos racials, além .de de espécie humana: qualquer grupo “4 Joel Rufino dos Santos 0 que é Rectsmo normais ¢ saudaveis. coabitarem. : Diz 0 Larousse que o racismo preg, em particular, _A propria palavra afrikaaner encobre uma men- ‘© confinamento dos “‘crupos inferiores” dentro dé tira: no so africanos os brancos que controlam o ‘um pais (segregapao racial). Isto sugere, para comecar, pals, reservando-se para si tudo o que a civilizago ‘que hé diversas formas de racismo, sendo 2 segrega- @80 apenas a mais ostensiva. A segregacio, por sua ver, apresenta diverses modelidadese, ao penser nos pases em que ola existe, logo nos ocorrem duas: a /e ga! lexpressa em leis), coro na Africa do Sul, em que (0 negros estdo expressamente proibides de resiir e/ou freqdentar determinados bairros; ea extralegel, como na Bolivia, em que indios echolos (mesticos de {ndio com branco} séo impedidos de morar e/ou per- manecer em cortos locais, embora no se encontre qualquer proibigge escrita nesse sentido. paraiso dos racistas Um turista despreocupado pode trazer da Africa do Sul a mais sorridente des lembrancas. Afinal, os afriksaners tém um dos. mais altos padres de vida do mundo, estradas repletas de Mercedes Benz ranjas sofisticadamente mecanizadas. Pode, também, voltar aterrorizedo pelo mals absurdo dos regimes racistas que jé se concebeu: 0 apartheid. Este &capaz, por exemplo, de mandar para a cadeia uma patroa banca porque deixou dormir no quarto dos fundos 2 sua empregada preta—eisto pele simples raz5o de ‘que a leis do apartheid profbem a negros e brancos 2 0 dinheiro oferecem de bom, 0s cinemas, as praias, 0s hospiteis, as escoles ¢ até’as simples casas. Afri: canos 380 2 maioria esmagadora de negros (4/5 da populacéo total) que lé viviem quando chegaram ‘05 primeiros portugueses para contornar © Cabo da Boa Esperanca (hoje Cidade do Cabo); cento e ccinglienta anos depois, comegaram a chegar 08 pri meiros holandeses, antepassados dos atuais senhores. Van van Riebeeck, um cofonialista que saiu corrido do Brasil em 1652, batizou os pretos, que vieram recebé-lo emistosamente, dentro do melhor figurino raciste, de “swart atinkende Hondon”, cachorros negros fedorentos.) © apartheid é recordista mundial de condenacio, ‘amaldicoado pelas mais importantes organizacbes democréticas do planeta — 0 Conselho Nacional Africano, a Anistia Internacional, a ONU, etc. 1978 foi declarado pela ONU 0 Ano Internecional contra © Apartheid, sendo intimeros 0s pafses que se con- ‘essam meros parceiros comerciais do regime de Pre- t6ria, isolando seu embaixador do corpo diplomético como se ele portasse incurével doenca contagiosa. Eis uma pequene amostra do regime raciste do ‘apartheid, em vigor desde 1948: © Mesmo que resida legelmente numa cidade, sno possui Odireitode ter consigo Joel Rufino dos Santos mulher, fithos, sobrinhos ou netos por perfodo superior a 72 horas. © Sempre que julgar oportuno, o presidente do Estado pode declarer uma érea propriedade do grupo branco, mesmo que até entéo ela tenha sido ocupada por ngo-brancos. ‘© Qualquer africano maior de 16 anos é obrigado a carregar um ‘“‘livro de referéncia™. Se for pego sem ele, serd punido com multa e priséo de um més. ‘© Um operério africano que se ausente do traba- tho por 24 horas, além de ser demitido, seré punido com multa e priséo de trés meses. ‘@ Se um trabalhador branco morre em acidente de trabalho, seus descendentes tém direito @ indenizaedo e, ainda, a pensdo mensal baseade fem seu salério. Os descendentes de um africano ‘que morra por acidente de trabalho nao tém direito a penséo mensal, somente a uma indeni- zacdo fixada pelo comissério do trabalho. ‘© Um africano que dirija uma classe de leitura & escrita em sua propria casa, mesmo gratuita, pode ser multado e preso durante seis meses. ‘@ Aquele que, durante uma reunifo, incitar um ‘auditério negro a ago de protestos contra a6 leis do apartheid seré multado e aprisionado por cinco anos. ‘© Nenhum africano pode ser membro de um jGri formado para um processo penal, mesmo que o acusado seja um africano. O que é Racismo “no-brancos "Na Africa do Sul escadasseparadas para brancos 18 Joel Rufino dos Santos Na pracinha, domingo de manh Todos os paises que foram, algum dia, colonias de metrépoles brancas — China, Nigérie, Brasil, S80 Domingos . . . — conhecem, invariavelmente, 0 racismo. © passado colonial pesa-Ihes na cabega e no coraggo como 0 pecado original de que fala a Biblia. Isto quer dizer que outro tipo de pais — a Russie, Inglaterra, Grécia, etc. — que nunce foram colénias de ninguém, desconhecem o racismo? Nao, absolu- tamente. O' racismo 6 fendmeno universal. Seria, ento, um irremediével componente da natureze humana? Alguns cientistas acham que sim; alegam que 0 homem esta sempre defendendo seu espago contra 2 invaso de outros, 0s quais, freqlentemente, pertencem a outras racas. Embora possamos discor dar no essencial, 6 uma opinigo séria, com sua indis- cuttvel dose de verdade. Observemos um grupo de inocentes criancas brincando numa pracinha domingo de manha. Em pouces minutos voos teré assistido a diversas brigas, por causa da bola colorida, que se ache, agora, em poder daquele menininho loiro. E como se ele tivesse demercado um circuloa sua volta, o seu espaco, onde Ihe & mais facil defender a sua bola, € fécil ver que ele © defende contra qualquer um, preto, branco, ama relo, pele-vermelha. ‘Se esse menino precisar explicar sua inseguranca (os que chegarem perto vo me tomar a bola”) ¢ O que ¢ Racismo justificar @ sua agresséo ("‘dou um soco em quem ‘entar me tomar a bola”), possivelmente notaré que 1 outros s80 pretos, amarelos, brancos, pelesverme- las — isto 6, possuem algo que os diferencia dele. "Os outros querem me tomer a bola porgue s80 cor.” Neste momento apareceu o racismo, uma idéia negativa a respeito do outro, nescida de uma dupla necessidade: se defender e justificar a agressio. ‘Com o tempo e a experiéncia, ele poderia supor que “todas 2s criangas de cor so tomadores de bola". Isto the tornaria a defesa e agresséo muito mois seguras. Seu racismo amadureceu, atingindo, neste ponto, o plano dos estereétipas; visdo simpli- ficada e conveniente de um grupo qualquer. (Por exemplo: “Os judeus s80 gananciosos”, “os russos so sempre imperialistas”, etc.) Se a inseguranca desta hipotética crianga fosse ‘num crescendo (ela tivesse, por exemplo, de disputar ‘uma vage na escola priméria com um dos “'tormado- res de bola”), poderia assumir a seguinte opinio: “As ctiancas de cor, que s£0 tomadores de bola, nBo devem entrar na mesma escola que eu”. Seu racismo evoluiu para o segregacionismo. Se, enfim, uma bela meanhd esta crianga acordasse com a idéia de que “os tomadores de bola ngo tém mesmo jelto e alguém precisa acabar com eles”, fez jusa uma carteirinha de racista genocida (que pede ou participa do exterminio dde uma raga). Esta pardbola talvez sugira que as pessoas chegam a0 racismo sozinhas. No é verdade. As idéias vr 19 Joel Rufino dos Santos da sociedede para dentro das cabeges, através das palevras, dos exemplos, da imitagéo, das crenges Teligiosas, de uma infinidade de grandes e pequeninos canais, "Vood esté preto de sujeira!” Quem ouve jsto desde os primeiros meses de vida, dificiimente, mais tarde, faré uma idéia positiva dos negros, Nossa parébola pressupde, também, que 0 sentimento de propriedade naspa com 25 pessoas, 0 que, provavel- frente, ndo é certo. A idéia de que es minhas coisas devam ser protegidas dos outros 6 relativamente nove na histérie da humanidede. O dia em que os europeus comegaram a ter insdnie Esta pardbola da crianga que comega defendendo sues coisas e acaba racista serve, também, como ‘alegoria do que aconteceu & nossa civilizagdo ociden ‘al. Nossos avés brigaram muito tempo por espaco até que os diferentes grupos se ajeitassem no seu. Muitos eles continuaram, porém, inseguros ¢ agressivos, uma vez que tinham muitos bens a defender — ‘assim, acabaram descobrindo que 0s outros eram diferentes de si. Os gregos, ponto de partida de civi lizagéo que temos hoje, por exemplo, notaram que 0 vizinhos néo tinham pensamento articulado ~ & isto acontecia, certamente, “porque no falavam 0 O que é Racisma rego, ‘nica lingua capaz de express idéiese senti- mentos profundos”. Bérbaras so todos aqueles que nfo falar rego: esta é uma des formas mais antiges de “racismo"” que se conhece. (Uma curiose sobrevi véncia deste preconcsito: barbarismo 6, ainda hoje, © vicio de linguagem que consiste em empreger palavras inexistentes ou deformacas.) Para os romanos — que passaram @ maior parte o sua vide conquistendo outros povos —, bérbaros eram todos os que no tinham Direito, conjunto de leis que regulam a vide coletiva. Bérbaros eram tanto 608 brancos macedénios, primos dos gregos, quanta os nébios, de pele negrissima. Durante 2 Idade Média (do século V 20 XV), 05 europeus consideravam inferiores os néo-cristdos — drabes, meometanos; africanos, inclusive egipcios judeus de qualquer parte do globo; e asiaticos, in Clusive chineses. Os europeus 36 haviem mudado de Opinio a respeito dos germanos, frencos e eslevos, 08 bérbaros de antes: 6 que tinham se convertido & 16 de Cristo Foi, porém, no limiar da época moderna, a partir dos anos 1400, que 0 racismo dos povos europeus amadureceu, pasando a se basear na caracteristica ‘mais notével dos outros: a cor,da pele. Por qué? A partir desta época, os pafses da Europa ocider tal tornaram-se senhores de tras continentes: Asia, Africa e América. Seus antepassados haviam acusado os bérbaros de crugis e desumanos; pois em matéria 24 Joel Rufino dos Santos de barbérie deixariam, agora, érabes e germanos na condiedo de anjos celestiats. Hernan Cortés, olhando: ‘a distancia, pela primeira vez, a capital dos astecas, ‘teve um sobressalto: era muito mais bela e limpa que Madri, Mandou destrui-la. ‘As circunstdncias forcaram os europeus 2 organizer gigantescas exploracdes de acticar, tebaco, algoddo e mingrios nos trés continentes. (O engenho colonial brasileiro é um exemplo.) Nelas, forgado ainda pelas circunsténcias, instalou 0 trabalho escravo. Como se explica que esta forma de trabalho, desaparecida desde o século V, ressuscitasse agora? Essas gigantescas exploracdes eram um empreen- dimento capitalista e, como tal, buscavam 0 maximo de lucro. Seus organizadores eram banqueiros ¢ co: ‘merciantes estabelecidos em Lisboa, Londres e Ams- terd, 0s mesmos que bancavam 0 trafico nogreiro havia mais de cinqdenta anos. Que méo-de-obra en- vvieriam para as suas exploragdes? Sé podia ser 2 escrava. Da Asia tiravam especiarias; da América, agiicar, fumo, algodéo, metais preciosos; da Africa, uma mercadoria muito especial: gente. ‘A. partir desta época 0s europeus comecaram @ ter insonia, $6 voltariam a dormir quando resolves- sem dois problemas: 19) Como defender tamanha Fiqueza? 29) Como justificar-se por tanto sofrimento jo a tanta gente? 'Se voc duvida que o scfrimento dos outros povos nas méos dos europeus tenha sido, de fato, tZ0 gran- de, eis aqui: os bandeirantes brasileiros eliminaram, aa 0 que é Racismo em cingiienta anos, 1 , da Africa, foram negociadas para a América, em trezentos anos de escravido, mais de 20 milhdes de pessoas. © historiador portugués Oliveira Martins deixou- nos uma vivida descricio deste rendoso negocio: “Havia 14, no selo do_navio balougado’pelo mar, lutas ferozes, uivos de célera e desespero. Os que a sorte favorecia nese ondear de carne viva e negra, aferravarse & luz e olhavam a estreita nesga do céu. Na obscuridade do antro, os infelizes, promiscua- mente arrumados a monte, ou cafam inénimes num torpor letal, ou mordiam-se, desesperados e cheios de fairies, Estrangulavernse: a um saiam-lhe do ven- tre as entranhas, a outro quebravam-se-Ihe os mem- bros nos choques dessas obscuras batalhas. (. . .) ‘Quando 0 navio chegava 20 porto de destino — uma praia deserta e afastada — 0 carregamento desembar- cava; @ & luz clara do sol dos trépicos aparecia uma coluna de esqueletos cheios de pistulas, com 0 ven- tre protuberante, as rotulas chagadas, a pele rasgada, comidos de bichos, com 0 ar parvo e esgazeado dos jiotas. Muitos ndo se tinham em pé; tropecavam, sm, e eram levados aos ombros como fardos « © capitio, voltando a bordo, a limpar 0 porgo, achava 08 restos, a quebra da carga que trouxera: havia por vezes cinqlenta e mais caddveres sobre ‘quatrocentos escravosi” (Citado por José Capela Escravatura: a empresa de saque — O Abolicionismo (1810 p91.) 1875). Porto, Edigées Apontamento, 1974, 23 Joel Rufino dos Santos 0 que € Racismo 2s Esses pobres felis egipcios, de costelas a mostra A polvore ~ inventada por um chinés — ajudou os europeus a resolverem o primeiro problema: nenhurs povo de cor conhecia armes de fogo. Para restituir thes 0 sono, porém, foi preciso algo mais sofisticado que um bacamarte de dois cenos: uma concepsao Facista que os isentasse de culpa por tantosofrimen fo causado cos outros. Os europeus comeraram @ preger que 08 povos de cor, que habitavem os trés Eontinentes, eram assim mesmo: incapazes e servis. mE nos nfo os estamos maltratando, mas cvilizando”. ‘Ouero exempiificar com Ginés de Sepdlveda, inte- lectual colonialista espanhol que, no século XVI, comparou os {ndios a macacos e porcos: mOs espanhéis tém todo o direito de exercer seu dominio sobre estes bérbaros do Novo Mundo eilhas adjacentes, os quais em prudéncia, inteligénciae tods fespécie de virtudes © sentimentos humanos séo to inferiores 20s espenhdis quanto as criengas com relagzo 208 adultos, as mulheres com relaco 20s ho- mens, pessoas cruéis e desumanas com relacdo_a pessoas mansas, pessoas desequilibradas com relacdo 2 pessoas equilibradas; e, enfim, estou prestes @ admitir que com relado 30s espanhéis esto na posicdo de macacos em relacgo a homens. (...) S30 tomo porcos: esto sempre olhando pare © cho, ‘como se nunca tivessem visto 0 o&u.’ Dal, Ginés de Sepilveda extrafa uma conclusé “Tudo isto no prove que eles sf0 esoravos de natureza? (. . .) Esses homenzinhos téo barbaros, ‘Zo incultos, to desumanos . . .” (Citado por Alejandro Lipschutz. El Problema racjal_en le conquiste de América y el mestizeje, Santiago do Chile, Ed. Austral, 1963. p. 72-3.) A partir deste momento, como se v8, 0 recismo deixou de ser puramente cultural ("No gosto dele porque ele no fala grego” ou “No gosto desta gen- te porque néo & crista"). Passou a ser também bioldgico: “Nao gosto dele porque ele é preto”” ou “NBo topo esta gente porque ela esté mais perto dos animais que de nés, humanos”. Como os Indios norte-americanos tivessem @ mesma cor que os europeus, inventou-se, pare rebaixé-los a “povo de cor”, @ “pele vermelha’; enquanto os teélogos, Bf- bia debaixo do brago, tretavam de explicer que a paravra indian no passeva de corruptela de judeus. Néo, néo ere pecedo enché-los de bordoadas. Por volta de 1860, o sistema cepitalista dew um vvigoroso passo adiante, na Europa ocidental e Esta- dos Unidos. © navio @ vapor, a energia elétrica e logo depois, 0 automével e 0 avido fizeram empali- decer os maravilhosos inventos de antes; nesceram © capital financeiro e os grandes conglomeredos de empresas, enquanto as nacbes mais ricas iniciavarn 2 exportagio de capitais para as nacées mais pobres. Um escuro felé egipcio, de costeles & mostra, jamais, teria conta num banco, mas os banqueiros de Lon- Joel Rufino dos Santos ddres, ou Bruxelas, é que decidiam, agora, 2 sua vida. Corts explicar tanta sujeigSo © miséria? Os intelectusis europeus — dignos sucessores daquele Ginés de SepGlveda, que comparava as eens @ simios @ porcos — comegaram a ensinar Que “nos trépicos a pobreza é inevitdvel: aqui o ho- hem $6 tem energia para pensar em sexo e baixezes. Sendo, slém disso, habitades por gente de cor, seu futuro é triste.” Nao admira que os europeus acreditassem em tanta baboseira, Imesmo porque, semelhente @ tanta porearia qué se dé s criangas, ela vinha embruthads bm eolotido papel cientifico — cada época, cada Classe social, cada grande poténcia faz a ciéncia que the interessa fazer. Curioso, mas também explicével, é que nos paises brutalmente explorados por eles também se acredi tasse nisso. O complexo de superioridade geogréfico racial dos europeus era o nosso complexo de inferio- ridade, como as duas feces de uma mesma moeda. ‘Os mais famosos criadores desta ciéncie colonia- lista foram Friedrich Ratzel (1844 - 1904) que, fembore morto em 1904, ainda tem sequidores; € 0 conde de Gobineau (1816 - 1882), um troce-tintas, (que passou 8 vida tentando demonstrar que Deus Ado fora decente ao criar as rages, trando qualidades, ide umas para dar as outras. Dos pensadores bresilei- os © que melhor expressou esta “ideologia do colo pialismo" foi, sem davida, Oliveira Viens. | SD ‘Nos quairos de Debret, a vio pltoresce do tno bras, no inicio do Século XIX. : Joel Rufino dos Santos 0 que é Racismo 2» “Bom-die, segundo o Servigo de Meteorologia”’ Oliveira Viana morreu ao comegarem os anos cin- qlenta. Que possufsse um método para analisar a sociedade brasileira, no pesado e no presente, ndo era de admirar. No seu tempo nasceu 2 sociologia brasileira, saindo de moda as interpretagdes mora- mente impressionistas. Pelo menos zrés autores, hoje famosos, j& haviam esbocado sinteses da formecdo brasileira: Gilberto Freyre, Nélson Werneck Socré & Sérgio Buarque de Holanda, sem falar nos estudos parcializados de Caio Prado Jénior. que adimira naquele mulato fluminense, de pena facil, 6 0 rigor com que obedeceu ao seu método, a disciplina, _@ coeréncia por que pautou tudo 0 que esereveu. E escreveu multo: Populardes meridionais do Brasil (2 volumes), EvolugSo do povo brasileiro, 0 ocaso do impéria, InstituigSes politicas brasifeiras (2 volumes), Raga @ assimilagao, etc., etc. Isto para 6 falar nos t/tulos mais importantes. Admira, também, a fama de que desfrutaram os seus trabalhos. Num pais, como 0 nosso, em que se comenta mais o autor do que se Ié a obra, ele deve zer sido um dos pensedores meis lidos, um dos que, efetivamente, mais influenciaram a geragdio que hoje beira os 40 anos. Na primeira metade dos anos cin- Genta os jovens citavam-no quase tanto quanto se cita hoje Caio Prado, por exemplo. Em 1980, pou: | uissimos sabem sequer de sua existéncia. Oliveira Viana foi para 0 sétéo do pensamento brasileiro, Por que admirévamos tanto, ha 30 anos, um autor hoje esquecido? Em primeiro lugar porque. Oliveira Viana levava seu pensamento ao melhor aljaiate. Tal exigéncia foi posta, de uns 20 anos a esta parte, em termos diferentes dos do passado. Escrever bem, agora — e este é um sinel positivo dos nossos dies — 6 excrover claro, é ter o que dizer e dizé-lo concise: mente. Oliveira Viana era elegante, maneiroso. ‘Comparado com os ensafstas de atualmente, ele era tum esteta e estes ins meros atiradores de pedracas. Em segundo luger, Oliveire Viana era dado 2 citapées. Amava tanto este habito que, dizem, cum- primentava assim: “Bom-dia, segundo o Servico de Meteorologia”. Ora, num tempo como equele, em ouco — tanto quanto hoje — os citadores impressionavam, pondo panca de sabichées. Outra circunsténcla, ligada a esta, também Ihe dava incon- teste autoridade intelectual: citar em inglés ealemao. Naquele tempo poucos liam 0 inclés, rarfssimos alemdo. A maioria lia em francés — néo somente os ‘autores franceses, mas os de outra origem vertidos para o francés. Nos tempos antigos pesava até mesmo a infémie sobre as traductes: se treduzfamos, era por burr E, porém, no método que copiou dos racistes europeus, que se encontra a explicagéo pare o pres- tigio deste repetidor brilhante: a sociedade brasileira necessitava de alguém que Ihe expressasse, com Joe! Rufino dos Santos “argumentos cientificos” ¢ boa prose, o sentimento de inferioridade racial. (Foi urna ironia que o esco- Ihido para esta misséo fosse um mulato de Niter A Historia também escreve certo por linhas tortes.) Na falta de melhor expresso, vamos chamar a ‘esse método de “método eugénico”. (Que se baseia ra eugenia: ciéncia que tern por objetivo a “melho- ra das racas humanas”.) Eis seus principios bésicos. 19)0s acontacimentos da vide de um povo se explicar pela sua formagao racial. 29)0 comportamento psicolégico de um povo é determinado pela sua race. (Assim como 0 temperamento de uma pessoa é determinado pola sua morfologia.) 30)A raca negra, que tem um comportamento psicolégico instével, munca criou nem vai criar civlizagéo. Este conjunto de ideias, conveniente aos paises ricos que exploram pafses pobres, se encontra quase puro em Oliveira Viana. Uma s6 amostra: “0 negro puro, portanto, ndo foi nunca, pelo menos dentro do campo hist6rico em que o conhe- comes, um eriador de civilizacées. Se, no presente, (98 vernos sempre subordinados aos povos de raca branca, com os quais entraram em contato; se, nos seus grupos mais evoluidos das regides das grandes plan{cies netivas, s80 0s elementos mesticos, so os individuos de. tipo negrdide, aqueles que trazem doses sensiveis de sangue semita, os que ascendem as Classes superiores, formam a aristocracia e dirigem a siehginnsininiusususnsnesenenenencians 0 que é Racismo massa dos negros puros; como no o seriam também nnestas épocas remotas, em que se assinalam estes grandes focos de civilizagao? Que os estudos do passado e as investigacdes dos arquedlogos assinalam a existéncia dos grandes cen- tros de cultura nas regides centrais da Afric, é 0 que do ponho em davida; mas que estas civilizagbes sejam criacdes da raga negra, é 0 que me parece contestivel. Nao sei se 0 negro é realmente inferior, se é igual ou mesmo superior és outras racas; mas julgando pelo que os testemunhos do presente e do ppassado demonstram a conclusdo a tirar é que, até ‘agora, a civilizagdo tem sido apandgio de outras racas que nao a negra; e que, para que os negros pos- sam exercer um papel civilizador qualqier, faz-se preciso que eles se caldeiem com outras races, especialmente com as racas arianas ou semitas. Isto &: percam a sua pureza.” Raga e assimilagao. Ed José Olympio, Rio, 1932. p. 206. Para que serve a cor das pessoas? Pouco antes de morrer, O. Viana tomou conheci- mento de que os arquedlogos haviem descoberto poderosas civilizagSes na Africa — no golfo de Benin ho Zimbabwe, no alto Nilo. .. Para negar este fato apelou para 0 seu “método eugénico”: negros $6 criam civilizacgo se tiverem um pouco de sangue branco misturado, 31 32 ‘Joe! Rufino dos Santos Criariamos, algum dia, uma civlizeeo no Brasil? Fiel a0 seu método, curiosamente sua resposta era afirmative, Bastava o sangue brenco ir predominando sobre 0 negro e o indio — 0 que estave, felizmente, acontecendo desde 0 século XIX, quando se iniciou a grande imigrapdo européia (entre 1850 ¢ 1930 recebemos cerca de 3 mithdes de europeus). A misci genecdo e a alta taxa de mortalidade das pessoes de cor limpariam 0 resto. O que hoje vemos methor do que hé trinta anos (e que O. Viana podia ter visto se parasse de repetir autores estrangeiros colonialistas) 6 que as nacdes, civilizades, antes de serem brancas, so napbes- patroas; ¢ 23 pobres, antes de serem de cor, 80 nnages-ermpregadas. (NagGes-empregadas sio 2 que trabalham hé séculos pare enriquecer os amos. As da América Latina, por exemplo, sempre estiveram de “"yeias abertas”, seu sangue fluindo para alimentar 05 Estados Unidos e a Europe.) Outra coisa que compreendemos melhor hoje: a divisio mundial do trabalho condenow uns paises 2 produzirem artigos caros — objetos, tecnologia, cigncia . . .; outros, a produzirem artigos baratos — matérias-primas, alimentos, seres humanos . . . A cor encaixou-se nesta diviséo como luva: os primei ros eram brancos, os segundos, de cor. Tanto era coincidéncia isto, ¢ néo uma coisa causa da outra, ‘ue, @ partir da Segunda Guerra Mundial (1939-45), diversos povos de cor abandonaram a incémoda posicgo de antes; enquanto isso, muitos povos Oe 0 que € Racismo brancos, dominadores outrore, s6 a muito custo se cconservam ricos e civilizados. So bons exemplos de um e outro caso a China e a Inglaterra, Sendo @ diviséo mundial do trabalho apenas a ampliagio do que acontece dentro de cada pais esenvolvide, hd, no seu interior, ricos’e pobres, classes-patroas e classes-empregadas. A linha de cor ajuda, entéo, a marcar as diferengas: brancos em cima , de cor embaixo. Nos Estados Unidos é fécil constatar esta superposigio de classe @ raca, desde 08 estratos mais altos (descendentes de irlandeses) até 03 mais baixos (negros, porto-riquenhos, latino: americanos em geral}, passando pelos intermediérios de fanques (descendentes de ingleses), judeus, esla- vos, etc., que constituem a classe média, ‘Além desta curiosa especializacdo de cor, 0 capi: talismo mais desenvolvido inventou o “exército de reserva’: sobra permanente de mao-de-obra que pé mite aos empresirios pagar aos trabalhadores o menos possivel. (Funciona aqui a lei da oferta e da procura, outra invencZo do sistema: quanto-mais vooé ofere cer, no caso 0 trabalho, menos valeré o seu produto; © viceversa.) Ora, em pafses que abrigam varias “ragas” — como a Inglaterra, @ Franca, a Alemanha a Austrdlia, a Argentina, etc. — este “exérciio de reserva", encolhido e miserével, é sempre de cor. E rele que se recrutam lavadores de privada, varredores de rua; guardas de seguranca para exocutivos e poli ticos importantes; lutadores de boxe; prostitutas; proxenetas; b6ias-frias em época de colheita; e ope- 33 # ‘Joel Rufino dos Santos O que ¢ Racismo 35 rérios eventuais para substituir grevistas despedidos como punigio. (Bdias-rias: trabalhadores ciaristas dda roge, chamados assim porque levam marmitas pa- 1@ 0 trabalho. Em geral nfo tém salério nem direitos iguais aos de outros trabelhadores.) ‘A cor da pele nio foi, naturalmente, uma invencéo do capitalismo, nem de sistema algum — foi produto das diferentes ‘condigSes ecolégices que o homem encontrou na sua disperséo pelo planeta. Mas pres- ‘tou 20 capitalismo um inestimavel servico, separando, neste fantéstico mercado em que se compra e vende mo-de-obre, 2 mercadoria de primeira da de segunda (mais ou menos como fazem os vendedores de tomate: os methores, 80; 0s piores, 50). Em nosso pals, 0 “exército de reserva’ esté por toda parte. Nas rodovigrias, com seus sacos sujos as costas; ne Baixada Fluminense, com seus peitos nus & mostra; nas feiras do Nordeste, agachados & espera de “trabaio”; nes filas dos Snibus, 05 filhos esquilidos esmolando uns centavos. 0 Brasil é uma grande feira de trabalhadores baratos, invariavelmente de cor. (Baixada Fluminense: assim ficou conhecido © Grande Rio: Caxias, Nova lauacu, Belford Roxo, Nilépolis, etc. Tem baix/ssimo nivel de renda esté entre as regides mais violentas do mundo.) A civilizagao pertence aos brancos. Até quando? © racismo no & produto de mentes desequilibra- as, como ingenuamente se poderia supor: nem existiu sempre, ou existiré sempre, como tolamente se poderia pensar. (Os recistas tém naturalmente interesse em definir 0 racismo como uma caracter{s- tice da “natureza humane’; como a “ingtureza hu- mana” @ imutével, 0 racismo, por cofseqiéncia, Jamais desaparecers.) O racismo & um dos muitos filhos do capital, com a peculiaridade de ter cres- cido junto com ele. Como os melhores filhos, porém, o racismo tem sobrovivido, @ sucedido, ao proprio pai. Nos paises socialistas, que se orgulhem de haver liquidedo as formas essencieis da exploragio do homem pelo homem, permanece, enfezado e renitente como uma planta que ndo se consegue arrancer. ‘Se poderia argumentar que nos paises socialistes qualquer que seja 0 seu caminho, a Unido Sovié , @ Ching, Cuba, Vietnd, Argélia, Albani competiggo, que estimule o racismo, nBo desepareceu de todo, O argumento & verdadeiro, mas no basta. (0 racismo esté dapasitado no mais fundo da cabeca dos homens — assim como certas sementes que resis tem 85 mais violentas mudangas de temperature e, subitemente, voitam @ brotar. Hé nele uma dose de irracionalismo que nenfum sistema social, até hoje, foi capar de liquider. (A antropofagia, que acompe- nhou a humanidade durante milheres de anos, lembra, neste aspecto, o racismo. A guerra, que @ sociedade continue a usar para resolver determinados problemas, é outro exemplo de instituigso persistente Joo! Rufine doe Santos aie ¢ Ractsmo Adolf Hiltier (18891945) € irracional que pode, ingenuamente, ser tomada ‘como propria da “natureza humana”) O exemplo mais escandaloso de racismo foi, con: tudo, o regime nazi-fascista alemao (1933-45). Junta am-se naquele fantéstico caldeiréo todos os ingre- dientes conhecidos do édio racial: preconceitos vul+ gares, velhos de séculos ou recém-fabricados pela propaganda politica; prejuizos cientiticos avalizedos or pensadores de ultradireita; exterm (nios em massa de criaturas indefesas. dividido © mundo entre si, como quem divide um bolo. (Naquele ano, por exemplo, a Africa fora miseravelmente “partilhada’” entre’ elas, sem que um $6 africano estivesse presente.) Diante do fato consumado, @ burguesia elem estava na situacdo de quem chegou tarde & festa — 6 restam,migalhas do bolo sobre a toalha manchada. Virou a fnesa. Sua progressiva agressividade percorreu todos os cami- rnhos conhecidos. Desprezo pelos outros, apelo & “raga”, & “pureza do sangue”, & superioridade dos “mais capazes” — nada foi inventado pelo nazismo, (95 outros povos europeus jé tinham recorrido a tudo isto no passedo. A novidade estava no grau e na intensidade, arrastando a humanidade 2 um conflito cujas cicatrizes néo desapareceram ainda. Ha quem prefira ver no episédio nazi-fasci ‘apenas irracional e o absurdo. (Estéo em moda, hd alum -tempo, as explicagdes sobrenaturais & ‘cOsmicas para fatos historicos.) Claro, eles estive- ram presentes; digamos, na percentagem de 1%. nazi-fascismo — com seu cortejo de misérias e 6 racial — foi uma saida momentinea para o capitalis- mo alemao. O pais se etrasara na corrida colonial; 0 tempo era de grave crise econémica (a “orande depressio"}; 2, enfim, a burguesia se sentia irreme. diavelmente acossada pela classe operéria. Por que 0 racismo se abateu, em especial, como uma avalancha, sobre a cabeca dos judeus? Os judeus eram © nico outro disponivel na Alemanha: trans- (9 outro que se podia agredir, detinham uma parte Por volta de 1885, poténcias européias js tinham formaram-e em bode expiatdro deal. Além deserem | ( 38 Joel Rufino dos Santos Oque ¢ Racismo 39 de riqueza nas suas mios: toméla abria espaco para 09s empresirios “autenticamente alemées” e aumen: tava as verbas do Ministério da Fazends. Ajudava também os governantes a provarem seus propésitos “socialistas” (no eram os judeus “exploradores do povo"’?). Num filme jé cléssico, Queimada, de Pontecorvo, ‘hd uma cena didética. José Dolores, lider negro da independéncia do pats, vai sendo levado para @ force. Um inglés, que 0 ajudara antes — para exter- miné-lo depois — vem se despedir e ouve a seguinte ago esté com vocés, hem, inglés! Mas até quando?” Em conclusfo 0 racismo, segundo o Larousse, &: © Sistema que afirma a superioridade racial de um grupo sobre outros. . . © Esta superioridade 6 uma hipétese cientlfica no provada, apesar dos esforgos da “ideologia do colonialismo", interessada em justificar a miséria © atraso dos palses subdesenvolvidos. © Os cientistas que se empenham em prové-la ‘trabalham com 0 velho conceito de raga (con- junto de caracteres externos das pessoas). © Mesmo que consigam proves conclusivas da superioridade de um grupo racial sobre outros, injusto, pois a espécie humane é ume coisa sé. pregando, em particular, 0 continamento dos inferiores numa parte do pats. A segregaco & apenas a forma mais escandelose do racismo (como 0 apartheid na ‘Africa do Sul). Mas 0 fenémeno é universal, ocorrendo ro $6 nos paises que foram colénias européies, mas também nos capitalistas desenvolvidos e nos socialistas. © racismo néo fez parte da “natureza humana”. Nasceu, talvez, da necessidade de defender 0 seu espaco; e é apenas uma instituigdo irracional de prolongade duraeio (essim como a antropo- fagia ea guerra). Sob a forma atual, beseado na cor de pele, & filho do colonialismo; e atingiu o seu extremo ‘com o aparecimento do capitalismo financeiro. Dentro dos paises capitalistas desenvolvidos, ‘que no foram colénias (como a Inglaterra e a Franga, por exemplo), 6 fruto da competic¢go da diviso do trabalho. © édio racist chegou_a0 méximo durante 0 nazi-fascismo aleméo (1933-45), que confinou € ‘exterminou milhées de judeus. O nazi-fascismo foi uma safda momentigea para 0 capitalismo alemao; e em matéria de ddio racial apenas ‘exagerou o que ja se fizera antes, «BD «pap «cD O que é Racismo 41 Ir EXISTE RACISMO NO BRASIL No Maracan&, domingo a tarde Um amigo meu, famoso atar de TV, assistia a um Flamengo e Grémio, no Maracan8, Toda vez que Cléudio Adgo perdia um gol — e foram varios — um sujeitinho se levantava para berrar: "Criouto burro! Sai dai, 6 macaco!”” Meu amigo engolia em seco. Até que Carpegiani perdeu uma oportunidade “debsixo dos pau”. Eleachou que chegera a sua vez. “Ai, bran- co burro! Branco tapado!” Instalou-se um sdbito e denso mal-estar naquele setor das cadeiras ~ 0 nico preto ali, é preciso que se diga, era o meu amigo. Passado um instante, 0 sujeitinho nfo se conteve: “Olha aqui, garotéo, vocé levou a mal aquilo, Nao sou racista, sou oficial do Exétcito”. Meu amigo, ‘aparentando naturalidade, encerfou a conversa: "E eu ndo sou”. Jogo correndo, toda ver que Paulo Céser pegava uma bola, algumes fileires atrés um solitério torce- dor do Grémio amaldigoava: “Crioulo sern-vergonhal Foi a maior mancada o Grémio compraryeste fres- co ..”" Meu amigo virou-se entéio para o primeiro su: jeito e avisou: “Olha, tem um outro oficial do Exér- cito af atras..” Considero este caso, extrafdo de uma intermina vel lista de conflitos raciais que conhego, bastante itustrativo: 12) Nés brasiiéiros, quando somos pilhados em flegrante de racismo nos assustamos, reagindo, de imediato, contra quem denuncia. (Aquele inimigo do Claudio Adio, por exemplo, alegou sua condicao de oficial do Exército para “prover” que nBo podia ser racista.} 28) Nosso preconceito racial, zelosamente guards. do, ver & tona, quase sempre, num momento de competiao. (O futebol & um caso mais que tipico de “momento de competi¢g0”.) 39) Em nosso pais os brancos sempre esperam que es minorias raciais cumpram corretamente os pa- péis que Ihes passaram — no caso do negro, os mais, comuns so artista e jogador de futebol. Se fraces- sam, Ihes jogam ma cara a suposta razdo do fracasso: a cor da pele. (O sujeito achava muito natural ligar © fracasso de Cléudio Adio & sua cor preta; mas néo aceitou que se ligasse 0 erro de Carpecieni & sue cor branca.) a Joel Rufino dos Santos 0 que é Racismo 43 49) Muitos negros, sobretudo de classe média, costumam hoje em dia dar o troco ao racismo dos branoos, assustando as pessoas que ainda eréem numa “democracia racial brasileira”. (Meu amigo confessa ‘que a partir do incidente foi olhiado como um negro Perigoso, desses que parecem dispostosa brigar& toa.) Usamos, na primeira parte deste livro, um verbete do Larousse como ponto de partida. Tomarei, 2g0- "este ces0 como qui para abordr racsmo no asi Brasileiro pilhado em flagrante de racismo reage A idéia de que “aqui néo temos desses problemas” esté profundamente enraizada em nossas cabegas, E comum, também, encerrarmos uma conversa sobre violéncia no mundo com uma frase imbecil: “Ainda bem que aqui no acontece nada disso", enquanto do lado de fora das nossas janelas morrem, em ascal- tose choques com a policia, mais pessoas por dia ‘que no apogeu da guerra do Vietnd. Convido as pessoas que ainda créem na “democra- cia racial brasileira”, na “cordialidade inate do bra- 0", @ balelas que tais, a prestarem um pouco fe atengéo & sua volta: os jornais noticiam, em dois casos de discriminacao racial por més; e dois cesos de tortura por dia. Considerando que os jJornais no apanham sequer um centésimo dos casos ) humilde que caia na suspeita da policia. ‘A cabega de uma sociedade é, em geral, feita pela 19) 0 1.B.GiE. (Instituto Brasileiro de Geografia «¢ Estat{stica), drgdo do governo encarregado de pro- ceder 20s levantamentos de populagdo, retirou do lltimo censo (1972) a perqunta: “Qual é 2 sua cor?” Isto aconteceu, precisemente, num momento em que 0 racismo brasileiro comegava a ser denunciado e discutido amplamente (milhdes de negros safram & tua, nesta década, no Rio, em Séo Paulo, em Porto Joel Rufino dos Santos 0 que é Recismo 48 Alegre, exigindo direitos e exibindo seu cabelo black). Neguinho sem-vergonha quer ser Retirar aquela pergunte do venso, néo teria sido uma isk ' maneira de s2 subtrair 0 movimento negro 0 po- Sérgio Chapelin quando crescer deroso argumento numérico (os lideres negros afir mam que os de cor sfo em maior némero que os Recentemente assisti a um espetéculo garo: um brancos)? O presidente do 1.B.G.E. apressou-se em hogar: 0 item fora retirado porque 6 indil saber quantas so as pessoas de cor, j4 que “no temos Milhées de nao-brancos que sofrem discrimine- ‘ges todo dia — quando procuram emprego, more ia, parceiro amoroso, clube social, médico, ete — no esto, absolutamente, de acordo com isso. 29) No dia 12/5/76, em Salvador, um casal de pratos foi impedido pelo porteiro de subir pelo ele- vvador social; no portavam ferramentas nem estavam em trajes de banho, o que explicaria aquela proibi- p80. Como fosse um casal de classe média, bem rela- ‘Gionado, 0 incidente ganhou os jorneis. O Presidente da Repiiblica recomendou uma sindicancia 30 Mi- nistro da Justica, este recomendou-a a0 governador, que, antecipando-se & Justica, respondeu: “Esse acontecimento é de cardter de excepcionelidade to- tal e deve ser encarado como tal”. © que esté em todos os prédios do pafs— entradas, para brancos bem vestidos, social; e entradas para pretos, mal ou bem vestidos, de servico — a autoride: cde chama de “excepcionalidade total” carcereiro do DOPS chorar. M, era um préto alto e forte, que trabalhava sempre & noite. Aquela vez me confidenciou que o filho queria ser “locutor de tale visio”, quando crescesse: “Igual ao Sérgio Chapelin”, explicou. Desejei boa sorte 20 garoto, mas ele recu- sou: "Vocé acha que um neguinho sem-vergenha, co- mo 0 meu, pode chegar a Sérgio Chapelin?!” Vi que M. estava meio bébado quando comegou a fazer cara de choro: “Esse moleque ¢ a razéo da minha vida. E quer ser 0 Sérgio Chapelin ..." Concorde’ que era mesmo impossivel a um pretinho suburbano, filho de tira, chegar a astro da Rede Globo, Bastou con- cordar ‘para M. me olhar profissionalmente ¢ dar a sua sentenga: “Nas vocé esté dizendo isso porque é subversivo. “Estou dizendo_o mesmo que vocé", ponderei. E ele: “No Brasil no tem dessa néo, 6 ce: ra”. Alem de acreditar na sua “democracia racial", 0 brasileiro acha que falar no problema ¢ subversdo. Que concluséo extrair dai? O mito da democracia ra- cial 6 uma forma brasileirissima, bastante eficaz, de controle social. que espanta os estrangeiros que nos visitam no é esta democracia racial ~ em que s6 nés acreditamos ~, 6 a nossa ingenuidade em acredi- tar nela, Quando 0 senador norte-americano Bob 46 Joel Rufino dos Santos Kennedy visitou a Pontificia Universidade Catélica, do Rio (1967, creio), um grupo de estudantes enter deu de agredi-lo mencionando 0 édio racial no seu pais. Ele se defendeu com uma pergunta que ficou no ar, pesada e sem resposta: “E os negros brasileiros, or que no estou vendo nenhum aqui entre voo8s?”” A mim, pessoalmente, me agrada muito uma velha alegoria para explicar’a diferenca da questi racial | e aqui. Nos Estados Unidos © negro tem uma pis: ‘tola apontada para sua cabeca; no Brasil, ela esté apontada para as suas costas. Para quem segura @ pistola, a segunde situacdo é, sem divide, mais cb- moda. Esta tética de esconder conflitos, para diminuf- los, & to brasileira quanto 0 peixe de coco — pode ‘ser que facam igual em outra parte do mundo, me- thor no. As rebelides indigenas, por exemplo, pon: tilharam nossa historia colonial, s6 que os manuais didéticos no falam delas, preferem exaltar bandei- antes genocidas (assassinaram 1 milhgo de Indios ‘em 50 anos), ¢ a “gloriosa epopéia das bandeiras”, ‘etc, etc. Outro exemplo: a escraviddo chegou ao apo. geu durante 0 Império, quando 4/5 da populacgo ‘rabalhavam a forga, sob torturas; pois bem: as pala- vias escravidio e tortura no podiam, oficialmente, ser proferidas no Parlamento. £, por fim, um exem- plo recente: no governo Médici (1969-1974) nenhum jornal, grande ou pequeno, podia publicar nada so- bre Indios, esquadrao da morte, movimento negro @ guerrilha — era como se, por decreto, tais problemas ‘Agénci ores “Téenicos da tsura, tais se tomaram os judeus em quase toda parte por um processo de especializapao quase bio- lgica que thes parece ter agupado 0 perfil no de ave de ‘rapina, a mimica em constantes ‘gestos de aquisigio ¢ de posse, as mios em gurras incapazes de semear ¢ de criar Capazes sb de amealhar.” — Gilberto Freyre em Casa-Gran- de & Senzala — 108 ed. p. 314. Joel Rufino dos Santos ro existissern. Dizem os especialistas que 0 primeiro passo para curar um toxicémano 6 fazélo admitir que o é. As- sim, se a sociedade brasileira deseja acabar com a violencia e o racismo, deve confessar que é violenta e recista. Pode nos consolar, talvez, a idéia de que néo estamos sozinhos: todas 35 ex-coldnias européias — Uganda, El Salvador, Vietnd ... — tém a mesma per sonalidade bésica. Tal foi a heranca do colonialismo. Racismo de brasileiro, zelosamente guardado, aparece em momento de competi¢go Caso n? 1, Elvira & uma publictaria bem suce da: freqientemente consultada por colegas impor- ‘antes, ganha, por més, entre 70 e 80 mil cruzeros. ‘A fim de dar maior conforto & sua mée e a dois ir mos em idade escolar, adquire, ainda na planta, um epartamento de luxo no Jardim América. Tudo cor- re bem até 0 49 més, quando, certa noite, 20 regres: sar do trabalho, encontre a mie chorosa, Apés uma briga comum de criancas, a vizinhe do 3° agredira ““moraimente” seus dois irmos: “Vocés néo tém ce- ‘egoria para morar num prédio como este ‘Caso n° 2. Mério 6 convidado pelos colegas "ja- poneses” do cursinho que freqiienta a entrar num t- me de futebol de saléo. No primeiro treino, verifica 0 que é Racismo cy que s6 tem “‘japonés”. “Por qué?”, indaga. “Voce pensa que eles chamam a gente pro time deles?”, Ihe respondem. Mério se recusa a integrar um time 6 de “patricios” — e termina 0 ano sem jogar em time nenhum e de relagdes cortadas com ps outros “japoneses”. Caso n9 3. Alain aproveita a camaredegem do professor de Resisténcia de Materiais para convocar 08 interessacios em formar um grupo de estudo. Est Giante da classe, 0 professor as suas costas, quando, Ihe atiram a primeira bolinha de papel ¢ o primeiro. “*xingamento”: "Sai dai, 6 judeu!”” “Vai procurer tua turma no Bom Retiro!” “Vei vender gravata, 6 Jacé!” Alain desiste de tudo, os olhos cheios de |é grima, O professor repreende asperamente a turma e, depois de esclarecer que no é judeu, inicia uma pre- lego sobre os males que o nazismo alemao causou Aquela gente. ‘O que tém em comum esses trés casos reais de ra- cismo? A negra Elvira, 0 japonés Mario e o judeu Alain pareciam dispostos a competir com os outros ~ ela queria morar “em lugar de branco”, o segundo queria “jogar em time de brasileiro” e 0 estudante judeu queria estudar com néo-judeus. As pessoas que 08 agrediram, em outra situaco, no compet tiva, possivelmente seriam amistosas com eles; ¢ @ qualquer meno de racismo, no Brasil, se mostra riam descrentes e indignadas. tipo de racismo que tivemos no passado foi pa- ternalista: discriminago sem conflito; neste século, = Joel Rufino dos Santos. 0 que € Racismo 31 acompanhando nosso desenvolvimento capitalista, transformou-se em racismo aberto: discriminac3o com conflito. Até cerca de 1900, com efeito, nossa sociedade girou na érbita da grande fazende, os espiritos dos ccoronéis da roca pairando sobre tudo. Em cima, uma “esmagadora minoria” de latifundisrios, embaixo uma multiddo de escravos e servos, no meio uma in significdncia de “classe média"”. Os lugares estavam ‘marcados 20 nascer: 0s de cima eram sempre brancos; 8 de baixo, de cor. Podia acontecer de uma pessoa de cor irromper, subitamente, em cima, a cultura funcionande como trampolim; como podia sucecer, igualmente, de uma criatura branquissima descer a ponto de se confundir com e “gentalha” que se com- primia nas senzalas e corticos. As excerdes, entre- ‘tanto, por definigdo, nada querem dizer. A nossa re ‘ora é 2 linhe de classe se confundir Goma linha de cor. ‘Quando um brasileiro de cima se referia ao seu pals, num aconchegante café de Berlim, por exer: plo, no estava se referindo aos negros e caboclos que penavam nas construgées © fazendas do pais real para que ele pudesse ter uma vide de contorto. Estava falando dos seus iguais, brancos, alfabetiza- dos e ricos como ele. Esta cisdo entre 0 pars real € 0 ‘pais imagindrfo acabou vincando 0 pensamento das nossas elites até hoje. Quando um brasileiro descre- ve, em 1980, 0 Rio de Janeiro para um estrangeiro, fala de Ipanema, bairro sofisticado da classe médie branca; no faia do subirbio, onde vive a imensa maiorie da populaco, pobre e de cor. s indiianistas, no século passado, justica seja fei ‘2, tentaram incorporar ao pafs-imagindrio uma par- cela do pais real: puseram o indio nos seus romances @ poemas. Os sertanistas, no comeco deste século, acrescentaram, mais tarde, uma outra fatia: 0 ho- mem da roca. Ora, 0 indio e o homem da roga sé0 de cor — moreno, jambo, caté-comleite, acabocle do, uma infinidade de cores, reais e imaginérias. (No penéltimo censo houve até quem se autoprociamas- se “cor de burro quando foae".) A sociedade brasi- leira nao tinha, natuele tempo, condigées de ir além. Os “morenos” so, de fato, a maior parte do nosso povo, mas a melhor somos nés, os brancos; ninguém precisa, também, ficar preocupado, 2 tendéncia do Brasil é embranquecer — era, mais Ou menos, 0 que pensava um intelectual brasileiro, no final do século, sobre as relages raciais do seu pais. “Ora, € apenas um negro” Durante esse longo perfodo, as pessoas de cor Allo ameagaram a posic3o de ninguém. Faziam so- mente trabalhos manuais e viviam, em geral, nas par ‘es mais atrasadas do pais (no Norte e Nordeste, no interior do Rio de Janeiro e Minas Gerais). Estavam segregadas, social e geosraficamente, mas esta verda~ de nem de leve passava pela cabeca de ninguém (com as honrosas excegbes de sempre), Quando vinha & 2 Joel Rufino dos Santos O que é Ractsmo 3 bila sua marginalidade e pobreza, os d@ cima encon- travam uma fécit e cmoda explicargo: "O pais 6 po- bre, que diebo; no hé oportunidades ainda para todos e, além disso, eles n&o esto preparedos pare 2 complexidade davvida moderna. Quanto aos negros, fem especiel, tenham paciéncia: a escraviddo acabou ha pouquissimo tempo, sua ascensdo social nBo se fara da noite para 0 dia”. (O argumento continua a ser usado ainds hoje, 100 anos apés 2 Abolicdo: se (0 niegros esto embaixo & porque foram escravos. E lum argumento que nos exime de culpa: 0 problema no 6 nosso, é historico.) Pretos, mesticos e indios ndo eram vistos, naquele tempo, como racas. Eram vistos como subespécies. Mulaco & apenas uma derivecdo linglitstica de-mula; quanto 0s indios, os teélogos discutiram mals de cam anos so eles teriam ou néo uma alma. Ora, voos pode ter tudo com relagdo a uma outra espécie, ou Subespécie, menos preconceito. Vacé nfo. precisa ter, pois ele no 6 absolutamente seu igual. A viajan- te inglese Maria Graham, que the reprovou, certa vez, maltratar um eriado, um latifundiario respon- eu com naturalidade: “Ora, 6 apenas um negro ..” Sintomaticamente, as expresses "discriminacio re- cial”, “conflito racial", “‘preconceito recial" eram desconhecidas de nossos avés: eles no precisavam doles. Nem mesmo a Campanha Abolicionista (1878-1888) encarou © negro como gente. Ela se baseou em dois argumentos principals: 19) Era preciso acabar com a escravido para mo- derizar o Brasil (e para os crentes na “‘cordialidade brasileira’ eis aqui um recorde nacional: fomos o dt: timo pafs do mundo a abolir oficialmente a escravi- do), 2°) Era preciso acabar com a escraviddo para ali viar 0 sofrimento dos pobres pretos. Ora, compaixao, pelos pretos & 0 mesmo que, por exemplo, compai- xo pelos pobres macacos, que estejam sofrendo de alguma forma. (De passagem, lembremos que “maca- co” 6 um dos xingamentos preferidos de brancos contra negros.)* ‘Ao comecar este século, a cabeca dos brasileiros, em geral, estava cheia de idéias desfavoréveis com re- lao 20s néo-brancos. Nada mais natural: ha 300 nos véamos o negro como escravo, 0 Indio como ser- vo, 0 mestigo como vagabundo {por nao haver traba- Iho para ele, é claro). Tanto é verdade que, ne hore de extinguir @ escravidéo, ninguém pensou em usar 05 ndo-brancos como trabalhadores livres. Formu- lou-se, entdo, uma regra muito clara (sem trocadi- tho}: quanto mais branco o trabalhador, melhor. Nossos fazendeiros s6 apreciavam colonos alemées, suigos, eslavos e, na pior das hipéteses, italianos. Por que os de cor no serviam? Na concep¢go ra- cista dos nossos latifundidrios, “ndo eram capazes de acompanhar 0 novo trabalho, inteligente e res ponsavel”. Haviam escrevizado os povos de cor ¢, ‘agora, como bagagos, os atiravam na beira da estra- da, 3 i Joel Rufino dos Santos ‘As mudangas sociais s6 contribufam para reforgar aqueles esteredtipos. Désde 1850, as regiées Sudeste @ Sul vinham se desenvolvendo mais do que as ou- tres. Como 0 imigrantes europeus, branqufssimos, se concentravam nelas, 0s racistas brasileiros podiam explicar: “Esto vendo? Onde tem menos preto o progresso é maior”. Esqueciam que a arrancada ini- cial do café, que enriqueceu o tridngulo Rio-Minas SS. Paulo, foi dada por negras e tapuias. Esqueciam, ‘também, que, se 2 maior parte das pessoas de cor continuavam a viver em regiGes estagnadas (confine mento geogréfico) e nos degraus mais baixos da so- lade (confinamento social), nao era por culpa sua, Nessas regides e nesses degraus ndo poderiam jamais, mesmo que fossem capazes, mostrar valor algun. “"Vocé nao vence na vida? E culpa sua, ‘voc’ tem complexo de cor”. Nos dltimos 50 anos, porém, a sociedade brast leira mudou bastante. Mudou tanto, nos seus aspec- tos econdmico, politico e cultural que, se voce tives- se morrido em 1920 e ressuscitasse em 40, pensaria estar em outro pals, Presse, competigao desenfreada, individualismo, falta goneralizada de escripulos “es- ‘ragaram” 0 Brasil de nossos avos. © espeticulo no era novo: ocorrera muitos anos antes na Europa e Estados Unidos. (Londres, para 0 que ¢ Racismo ‘exemplificar, tinha em 1850 a populaco que Séo Paulo s6 veio a ter em 1940: 1 milhdol) No ere no- vo, mas era assustador. ‘As novidades foram trazidas pelo capitalismo. Co- mo em outras partes, aonde chegou antes, ele pare- cia oferecer oportunidades a todos — dépendia de esforco e sorte. Os ngo-brancos teriam, também, a sua chance. Tiveram? Nao. As estatisticas provam uma marginalizacéo maior dos no-brancos hoje do que antes. A politica de “integrago” do indio fracassou e a disténcia que (5 separa, atualmente, de nés s6 pode ser medida em anos-luz. (Em 1985, 20 ser criada a FUNAI, Funda: eo Nacional do Indio, em substituicgo ao Servigo de Protecgo 20 Indio, confessou-se, sinceramente, aquele fracasso.) Quanto aos negros, 2 expectativa otimista de que 0 desenvolvimento econdmico leva: ria ao aparecimento de uma ““burguesia negra”, prés pera e integrada, frustrou-se integralmente: os negros Ficos sao meia dazia de gatos pingados, imprensados e solitérios numa classe média que os olha de través. Pode-se objetar que nos titimos 50 anos diver 50s negros ganharam destaque na sociedede brasiei ra (diversos negros, mas, curiosamente, nenhum {n- dio). Néo € novidade isto: no século passado alguns deles chegeram até 20 cfrculo intimo do Imperador. Nem € novidade, também, © processo de trezé-los, para cima: o gancho, que os afasta, completamente, da sua gente e permite exibi-los comé prova da “de ‘mocracia racial”. Desde Henrique Dies, no século 55 Joel Rufino dos Santos 0 que ¢ Racismo XVII, até Pelé, a lista de homens de cor assim “pen:

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