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OCTAVIO IANNI A IDEIA DE BRASIL MODERNO editora brasiliense Copyright © by Octavio Ianni Nenhuma parte desta publicacio pode set gravada, armazenada em sistemas eletrénicos, fotocopiada, reproduzida por meios mecénicos ou outros quaisquer sem autorizacao prévia do editor. ISBN: 85-11-08075-9 Primeira edigio, 1992 Preparacio de originais: Ana Maria Lins e Silva Revisio: Ana Maria M. Barbosa e Adalberto Couto Capa: Quatro Design/Claudio Ferlauto, Juliana Vasconcelos Av, Marqués de Sao Vicente, 1771 01139 - Séo Paulo - SP Fone (011) 825-0122 - Fax 67-3024 Telex (11) 33271 DBLM BR IMPRESSO NO BRASIL 1. AS TRES RACAS TRISTES L Na histéria da sociedade brasileira, desde a Indepen- déncia, a problemética racial sempre representou, e con- tinua a representar, uma perspectiva importante para a compreensdo de como se forma 0 povo. Todos os que se preocupam em compreender as peculiaridades da so- ciedade brasileira, em diferentes momentos da sua his- téria, se defrontam com a problematica racial. Indianis- mo, europeismo, arianismo, lusitanismo, democracia ra- cial, negritude, indigenismo, entre outros, sao temas que expressam as orientaces de pesquisas e controvérsias s0- bre o significado das racas e mesclas de racas na forma- Gao da sociedade nacional. De permeio a essas pesqui- sas e controvérsias, h4 muito racismo aberto ou velado. Da mesma forma, hé um singular debate sobre o que se- tia o povo. Toda discussao sobre a problemética racial é uma espécie de debate sobre as metamorfoses das ragas e mesticos em povo. Para uns, 0 debate se restringe a transformacao das racas e mesticos em uma populacéo de trabalhadores, Outros avancam no sentido de com- preender como se dd a emergéncia do povo, enquanto uma coletividade de cidad4os. E ha aqueles que procu- ram ver as racas e mesticos nao somente como uma po- n6 OCTAVIO IANNI Ppulagao de trabalhadores e um povo, mas também co- mo um complexo de grupos raciais e classes sociais. Os estudos antropolégicos realizados por Nina Ro- drigues, Oliveira Viana, Roquette Pinto, Afranio Peixo- to, Castro Barreto e Arthur Ramos, entre outros, apre- sentam contribuicGes de interesse também para a com- preensao da metamorfose do povo. Esses autores esta- vam preocupados em caracterizar as racas e os mesticos. Em geral, partiam do reconhecimento de que a popula- cao brasileira se forma a partir do fndio de origem mon- goldide, portugués de origem caucaséide e africano ne- gréide. Escrevem sobre as caracteristicas biolégicas, ge- néticas, fenotipicas e outras das racas vermelha, negra e branca. Destacam duas épocas na histéria da branca: 08 trés séculos iniciais de predominio do portugués e os séculos XIX e XX, durante os quais ingressam no pa{s os imigrantes alemdes, sufcos, italianos, arabes, poloneses, ucranianos e outros. Os japoneses entrados no século XX aparecem como um capitulo especial, 4s vezes como um grupo que se torna importante na populacao do estado de Sao Paulo. Simultaneamente aos dados e andlises antropoldgi- cos apresentados por esses autores, afirmam-se ou insi- nuam-se os atributos psicolégicos, morais, culturais e ou- tros considerados peculiares de cada raca e cada mesti- ¢0. Por meio de uma taxionomia inocente, constroem-se os elos e as cadeias de uma estrutura na qual se distri- buem os puros e impuros, superiores e inferiores, civili- zados e barbaros, histéricos e nao-histéricos. As coleti- vidades anormais, fétichistas, fandticas, carisméticas po- dem ser compostas de racas classificadas como inferio- res, ou mestigos nos quais predominam os tracos dessas ragas inferiores. Fala-se, 4s vezes, em mesticos superio- Tes, Os raros que tém a sorte de ganhar os tracos dos bran- cos que entraram na mescla. Em certos casos, predomi- Na a preocupacao com o encadeamento entre raga, clima e satide, Ha de tudo: determinismo geografico, racismo, AS TRES RACAS TRISTES 17 darwinismo social, positivismo e outras correntes de pen- samento. Mas também hé a perspectiva social, histérica. Oliveira Viana expressou uma parte importante desse debate, na direco do arianismo, europeizacao ou bran- queamento da populacao. “Em suma, o que nés desejamos — os que investigamos, como antropossociologistas, como biossociologistas, co- mo antropogeografistas, como demologistas e demogra- fistas, os problemas da raga — ¢ que os nossos antropo- metristas e biometristas nao dispersem os seus esforcos’ e orientem as suas pesquisas no sentido de nos dar as ba- ses cientificas para a solucdo de alguns problemas mais urgentes e imperativos, como os que se prendem.a for- magio da nossa nacionalidade no seu aspecto quantitati- vo e no seu aspecto qualitativo. Por exemplo: o problema da mesticagem das racas. Ou o da selecao eugénica da imigracao. Ou o da distribuicao racional das etnias aria- nas segundo o critério da sua maior ou menor adaptabili- dade as diversas zonas climaticas do pais.’’1 Roquette Pinto afirmou que os resultados do cruza- mento racial devem ser avaliados tendo-se em conta as causas ou condicées sociais, e nao apenas os fatores bio- légicos. Do ponto de vista fisiolégico, dizia, os cruzamen- tos entre branco e negro e branco e indio resultam em tipos normais. As vezes, no entanto, ele ainda cede a uma espécie de psicologia das racas ou, pelo menos, dos mes- tigos. “Do ponto de vista intelectual, os mestigos nao-se mos- tram, em coisa alguma, inferiores aos brancos. E verdade que eles nao sao tao profundos, embora sejam, as vezes, mais brilhantes. Mas ainda ai é possfvel citar exemplos denunciando que é sobretudo uma questo de cultura, orientada segundo qualidades que os povos latinos pre- zam de modo particular. Os mesticos que recebem ins- 1. Oliveira Viana, Raga e Assimilagio, Companhia Editora Nacional, S40 Paulo, 1932, p. 86. ° 18 OCTAVIO IANNI trucdo técnica (mec4nicos, operdrios especializados etc.) so tao bons quanto os europeus. Os que nao conhecem sendo os mesticos degradados das grandes cidades, on- de o meio cosmopolita corrompe facilmente aqueles que a educacio nao fortifica, e os que s6 conhecem os mesti- sos opilados ou impaludados do interior nao podem fa- zer idéia da perseveranga, da firmeza, da dedicac&o de que da prova o do hinterland, cuja sobriedade é prover- bial. Do ponto de vista moral, no entanto, é preciso reco- nhecer que os mesticos manifestam uma acentuada fra- queza: a emotividade exagerada, étima condi¢ao para o surto dos estados passionais.’’2 Arthur Ramos fez um largo balanco das classificacdes das racas e mestigos. Como outros antropdlogos, exami- nou a distribuicdo racial da populacdo brasileira pelas di- ferentes partes do pafs, indicando os lugares, estados e regides em que predominam uns e outros, tipos puros e mestigos, E reconheceu a influéncia das expressdes po- pulares nas denominagées usadas por cronistas, histo- riadores, médicos, cientistas: indio, caboclo, Negro, mu- lato e branco. Sugeriu a idéia de branqueamento. ““O que nao ha diivida é que a base geral da populacio brasileira esta constitufda pela mistura inicial, do elemento lusitano com o indio e o negro, formando esse substrato comum luso-negro-indio sobre o qual se enxertaram novas misturas ou novos elementos de extracdo européia. Mui- to tém discutido os nossos sociélogos sobre a proporcio- nalidade desigual dessas misturas, no decorrer dos tem- Pos, acenando alguns para uma ‘progressiva arianizacao’ ou um progressivo ‘branqueamento’ das populagées bra- sileiras, em virtude do estancamento da entrada do ne- gro e as crescentes afluéncias do imigrante europeu, e ain- da procurando provar o progressivo ‘branqueamento’ das 2. E, Roquette Pinto, Ensaios de Antropologia Brasileira, 2° ed., Compa- nhia Editora Nacional, Sao Paulo, 1978, p. 95. A 1% edig&o desta obra é de 1933. AS TRES RACAS TRISTES 19 populacdes mesticas pela reversao ao tipo branco que se- ria ‘dominante’, em face das leis de Mendel.’’> Em todo 0 caso, acrescenta, as pesquisas realizadas, ain- da que incompletas e fragmentdrias, permitem “verificar que mesticagem nao acarreta nenhuma ‘dege- nerescéncia’ ou perda de vigor biolégico. Muito pelo con- trario, ela é fator da formacao de fenétipos resistentes, de relativa homogeneidade, que estao possibilitando a cons- trugdo de uma civilizagao nos trépicos’’.4 E lembra os escritos de Gilberto Freyre, Caio Prado Ju- nior, Josué de Castro e outros que teriam abandonado 0 critério racial no estudo da populacao brasileira. “Em todos esses trabalhos se verifica o condicionamento social e histérico, econémico, geografico, alimentar, cul- tural dos fendmenos humanos, no Brasil, corrigindo o cri- tério estreito do fator racial. As grandezas e misérias do homem brasileiro, de qualquer matiz epidérmico, sao in- juncGes e resultados de multiplas influéncias que nada tem a ver com a raga." HA muita antropologia, biologia, psicologia, sociolo- gia, economia, geografia e histéria na larga e fantastica metamorfose das ragas em populagao e povo. A ‘‘demo- cracia racial’ proposta por Gilberto Freyre entra nessa histéria. Em todos os setores da sociedade, no passado e no presente, hd sempre um debate sobre a problematica ra- cial. Mais do que os intelectuais, politicos e governan- tes, os préprios indios, negros, imigrantes e outros vi- venciam situag6es nas quais as diferencas, hierarquias, preconceitos e discriminagGes aparecem. Na fazenda, fa- 3. Arthur Ramos, Infrydupio @ Antropologia Brasileira, 2 vols., Livraria Edi- tora da Casa do Estudante do Brasil, Rio de Janeiro, vol. I, 2? ed., 1951, e vol. IL, 1 ed., 1947. Citacdu do vol. Il, p. 384. 4. Tbidem, p. 461. 5. Tbidemt, p. 462. 120 OCTAVIO IANNI brica, escritério, escola, familia, igreja, quartel e outros lugares o pluralismo racial brasileiro manifesta-se tanto como caleidoscépio como espaco de alienaco. Na literatura, muito expressivamente, a problemé- tica racial esté sempre presente. No século XX, desde Lima Barreto a Anténio Callado, sao muitos os que re- velam preocupacao com 0 indio, negro, imigrante e mes- tigos. Em Lima Barreto, ao colocar-se a condisao do ne- gro na sociedade brasileira, também se realizava uma es- pécie de deruincia do cardter injusto e autotitdrio da so- ciedade burguesa em formacao na época. Em Callado, No seu romance Quarup, hé certo fascinio pelo indio, que aparece como um mistério, impenetrdvel. Na floresta, nao hé sinais de Sénia, que se foi com Anta. O fndio e o branco, a comunidade e a sociedade, dois mundos mesclados mas diversos, reciprocamente impenetraveis, remotos, As racas se constituem, mudam, dissolvem ou recriam historicamente. £ ébyio que tm algo a ver com catego- tias biolégicas. Mas tém muito mais com as relacdes so- iais que a8 constitiem e modificam, As Tac¢as sao cate- gorias histéricas, transitérias, que se constituem social- mente a partir das relacdes sociais: na fazenda, engenho, estdncia, seringal, fabrica, escritério, escola, familia, igreja, quartel, estradas, ruas, avenidas, pracas, campos e.cons- trugdes. Entram em linha de conta caracteres fenotipicos. Mas 0s tracos raciais visiveis, fenotfpicos, séo trabalha- dos, construfdos ou transformados na trama das telagdes sociais. Quem inventa o negro do branco é o branco. E € este negro que o branco procura incutir no outro. Quem transforma o fndio em enigma é 0 branco. Nos dois ca- sos, o branco é o burgués que encara todos os outros co- mo desafios a serem desfeitos, exorcizados, subordinados. O modo pelo qual se cria o negro foi registrado por Isafas Caminha, personagem de Lima Barreto. Faz um breve retrospecto da sua vida e anota que desde certa épo- AS TRES RACAS TRISTES 121 ca sua condicao comega a mudar, Isafas Caminha se cons- titui como diferente, outro, negro, na teia das relacdes sociais nas quais predomina o branco. Pouco a pouco, torna-se diferente do outro e de si mesmo. A metamor- fose desgasta sutilmente 0 eu, ao mesmo tempo que.cons- titui_o negro do branco. “Verifiquei que até ao curso secundério as minhas ma- nifestacdes, quaisquer, de inteligéncia e trabalho, de‘de- sejos e ambicGes tinham sido recebidas, se nao com aplau- 80 OU aprovacao, ao menos como cousa justa e do meu direito; e que daf por diante, dés que me dispus a tomar na vida o lugar que parecia ser de meu dever ocupar, nao sei que hostilidade encontrei, nao sei que estipida m4 vontade me veio ao encontro, que me fui abatendo, de- caindo de mim mesmo, sentindo fugir-me toda aquela so- ma de idéias e crencas que me alentaram na minha ado- lescéncia e puerfcia. “Criei-me fora de minha sociedade, fora do agrupa- mento a que tacitamente eu concedia alguma cousa e que em troca me dava também alguma cousa. ‘Nao sei bem o que cri; mas achei tao cerrado 0 ci- poal, téo intrincada a trama contra a qual me fui debater, que a representacao da minha personalidade, na minha consciéncia, se fez outra, ou antes esfacelou-se a que ti- nha construfdo.’”6 Em todas as épocas e diferentes situacdes, subsiste 0 dilema: raca, populacao ou povo; indio, caboclo, ne- gro, mulato, imigrante, isto é, colono, camarada, serin- gueiro, pedo, sitiante, posseiro, volante, operdrio rural, operério urbano, empregado, funcionério ou cidadio; ra- ¢a ou classe. Dilema esse que pée e repde a importancia da problemética racial na explicacdo da questao nacional. 6, Lima Barreto, Recordagdes do Escrivito Isalas Caminha, Prefacio de Fran- cisco de Assis Barbosa, Editora Brasiliense, So Paulo, 1956, p. 41. Citacdo extrafda do prefécio escrito por Lima Barreto para a1! edicéo, parcial, do ro- mance, em 1907, aayrevita Floreal, e que foi inclu(do pelo autor em “Breve Noticia”, que abre a’ 1909. * edig&o completa, da Livraria Cl4ssica Editora, Lisboa, 2. NEGROS E BRANCOS O problema da formagao do povo brasileiro se colo- ca de modo particularmente freqiiente e obsessivo no que se refere ao negro, 4 sua presenc¢a nessa histéria. Mais do que outras etnias (ou ragas, entendidas em termos so- cioldgicos), ele desafia o pensamento e a pratica de mui- tos dentre aqueles que pretendem compreender as con- dicgdes de formac4o do povo, sociedade civil, Estado, na- ¢ao. E claro que a questo racial compreende toda a ga- ma das etnias, ou racas, e suas mesclas, que compdem a populacao. E nao hd duividas de que alguns desses gru- pos se deparam com dilemas muito sérios, no que se re- fere as suas relacdes com os outros, a sociedade com- preendida como um sistema de instituicées, as agéncias compreendidas no Estado nacional. O problema indige- na continua a ser fundamental tanto no que se refere & luta pela terra como no relativo as condi¢Ges de preser- vagao da cultura. Em certas partes do estado do Parand é evidente 0 preconceito contra o polonés. O mesmo se pode falar do arabe, japonés, alemdo, italiano, judeu e outros, conforme o lugar e a situacao social. Alids, o pa- norama racial no Brasil se caracteriza por algo que se po- de denominar de um caleidoscdpio de preconceitos mais ‘NEGROS E BRANCOS 123 ou menos coloridos, visfveis, sentidos, E tudo isso entra na controvérsia sobye como se forma 0 povo, o cidadao, a nacao. Mais do que qualquer outro grupo, no entanto, o negro desafia o pensamento e a pratica de muitos den- tre os que buscam compreender as condi¢des de forma- ¢40 do povo, cidadao, sociedade civil, Estado nacional. O que esté em causa é a metamorfose da populacao de trabalhadores em povo de cidadaos. E verdade que nem sempre se coloca esse problema dessa maneira, de modo explicito. Ao contrario, em geral est4 pouco ela- borado, ou apenas implicito. Também ocorre que alguns simplesmente se preocupam com a populacao de traba- lhadores. Alias, essa é uma tendéncia forte, talvez pre- dominante. A despeito das ambigiiidades de uns, ao la- do das conviccGes nitidas de outros, é inegdvel que o sen- tido mais geral do debate sobre as racas, a mesticagem e outros aspectos da questo racial pe e repée o proble- ma da metamorfose da populacao em povo. Esse é um tema permanente e obsessivo do pensa- mento brasileiro. J4 estava posto na Colénia, acentuou- se ao longo do Império e continua a desenvolver-se na Republica, no curso das varias republicas que se criam no século XX. Manifesta-se de forma mais ou menos aber- ta em José Bonifacio, Varnhagen, Tavares Bastos, Joaquim Nabuco, Perdigao Malheiros, Sflvio Romero, Nina Ro- drigues, Manuel Querino, Alberto Torres, Oliveira Via- na, Manoel Bomfim, Arthur Ramos, Gilberto Freyre, Do- nald Pierson, Sergio Buarque de Holanda, Caio Prado Ju- nior, L. A. Costa Pinto, Thales de Azevedo, Roger Basti- de, Florestan Fernandes, Clovis Moura e outros. O tema ressoa também nos escritos de Gregério de Matos Guer- ta, José de Alencar, Castro Alves, Machado de Assis, Cruz e Souza, Lima Barreto, Lino Guedes, Solano Trindade, Jorge de Lima, Cassiano Ricardo, Jorge Amado e muitos outros. A pintura de Portinari e Di Cavalcanti passa por ele. Inclusive o cinema focaliza alguns aspectos, com Nel- son Pereira dos Santos, Cacd Diegues, Geraldo Sarno e 124 OCTAVIO IANNI outros. As pesquisas sobre a musica brasileira realiza- das por Mario de Andrade resgatam muito das contri- buicGes populares, destacando-se solucées afro-brasilei- ras. Tomado em sentido amplo, compreendendo as cién- cias sociais, a filosofia e as artes, o pensamento brasilei- ro revela um compromisso continuo, As vezes desespe- tado, com o modo pelo qual o negro se insere na fisio- nomia do povo, na formagao da sociedade civil, na his- téria da nacao. -O tema do negro brasileiro, principalmente nas cién- cias sociais e na literatura, j4 recebeu a atencdo de vé- trios pesquisadores. Ha balancos criticos breves e amplos, Nos quais se registram as contribuicdes cientfficas e as formulacées ideolégicas da maioria dos cientistas sociais e escritores que lidaram com o tema. E claro que se po- de retomar e aprofundar essa pesquisa, mas um mapea- mento bdsico esté feito, com sugest6es do maior inte- resse. No campo das ciéncias sociais, balangos realizados por Arthur Ramos, Guerreiro Ramos, Edison Carneiro, Clovis Moura, Nélson Werneck Sodré, Roque Larais, Tho- mas Skidmore e outros permitem situar aspectos funda- mentais, localizar impasses ideolégicos, constatar ambi- gitidades. Em diferentes gradacdes, os estudos criti- cos desses autores permitem acompanhar os contornos de uma histéria 4s vezes bem nuancada do pensamento brasileiro, no que se refere ao negro. E assim que adqui- timos novos elementos para avaliar os escritos de qua- se todos os autores, de Silvio Romero a Florestan Fer- nandes e Clovis Moura. Em todos, no entanto, ressalta o empenho em compreender a relevancia do negro na estrutura da populacao, nas diversas formas de organi- zacao do trabalho, na producao cultural, na express&o re- ligiosa, nos movimentos sociais, na formagao do povo. Uns e outros querem compreender as condicées sob as quais as diversidades raciais se revelam nas diversidades NEGROS E BRANCOS 25 e desigualdades sociais que caracterizam a presenga do negro nos movimentds da sociedade nacional.” No campo da literatura, os estudos realizados por Raymond S. Sayers, Gregory Rabassa, David Brookshaw, Oswaldo de Camargo, Zila Bernd e Benedita Gouveia Da- masceno, entre outros, mostram a presenga do negro no imagindrio sobre a cultura, a sociedade, a histéria, as lu- tas sociais, 0 povo, as vezes mais do que nos estudos de ciéncias sociais. Na literatura revelam-se aspectos novos e surpreendentes sobre as condicées e os impasses sob os quais o negro entra na formacéo do povo.® Talvez se possa dizer que o tema do negro brasileiro se coloca de modo particularmente nitido nas épocas em que a sociedade vive conjunturas criticas. Criticas no sen- tido de agravamento de desafios e contradicdes, de emer- géncia de impasses e perspectivas. E claro que o tema nao surge apenas nessas ocasiGes. Manifesta-se continua- mente, em diferentes lugares e situacdes, em Ambito lo- 7. Arthur Ramos, O Negro na Civilizagdo Brasileira, Livraria Editora da Casa do Estudante do Brasil, Rio de Janeiro, 1956, especialmente cap. XIV; Bdison Carneiro (org.), Antologia do Negro Brasileiro, Editora Globo, Porto Alegre, 1950; Edison Carneiro, Ladinos ¢ Crioulos (Estudos sobre o Negro no Brasil), Editora Civilizacao Brasileira, Rio de Janeiro, 1964, especialmente “Os Estudos Brasi- leiros do Negro’; Guerreiro Ramos, Cartilha Brasileira do Aprendiz de Socidlogo (Prefacio a uma Sociologia Nacional), Editorial Andes, Rio de Janeiro, 1954, especialmente ‘"O Problema do Negro na Sociologia Brasileira’; Nélson Wer- neck Sodré, A Ide ia do Colonialismo, Editora Civilizacto Brasileira, Rio de Janeiro, 1965; Clovis Moura, Brasil: As Ratzes do Protesto Negro, Global Edito- ra,.Sd0 Paulo, 1983, especialmente ‘‘Correntes dos Estudos Africanistas no Brasil’ e “‘Apéndices'’; Thomas K, Skidmore, Preto no Branco (Raga e Nacio- nalidade no Pensamento Brasileiro), trad. de Raul de $4 Barbosa, Editora Paz ¢ Terra, Rio de Janeiro, 1976; Roque de Barros Laraia, “Relacdes entre Ne; e Brancos no Brasil’’, Boletim Informativo e Bibliogrifico de Ciencias Sociais, AN- POCS, n° 7, Rio de Janeiro, 1979, 8, Raymond S, Sayers, 0 Negro na Literatura Brasileira, trad. de Antonio Houaiss, Edicdes O Cruzeiro, Rio de Janeiro, 1958; Gregory Rabassa, O Negro na Ficgio Brasileira, trad. de Ana Maria Martins, Edigdes Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 1965; David Brookshaw, Rara & Cor na Literatura Brasileira, trad. de Marta Kirst, Mercado Aberto, Porto Alegre, 1983; Oswaldo de Camargo, O Negro Escrito (Apontamentos sobre a Presenca do Negro na Literatura Bra- sileira), Imprensa Oficial do Estado de Sao Paulo, Sic Paulo, 1987; Benedita Gouveia Damasceno, Poesia Negra no Modernismo Brasileiro, Pontes Editores, Campinas, 1988; Zil4 Bernd, Negritude e Literatura na América Latina, Mercado Aberto, Porto Alegre, 1987, especialmente cap. IV, “A Construgdo de uma Identidade Negra na Poesia Brasileira’. Iv RACA E POVO 26 OCTAVIO IANNI cal, regional e nacional. Est4 sempre vivo. Mas talvez se possa dizer que adquire uma conotacao mais aberta e nf- tida nas épocas em que a sociedade atravessa conjuntu- ras criticas, quando se agravam desafios e se revelam pers- pectivas. Nesse sentido é que as rupturas histéricas sim- bolizadas pela Declaracao de Independéncia assinada em 1822, a Abolicaéo da Escravatura e a Proclamagao da Re- publica em 1888-1889 e a Revoluc&o de 1930 assinalam momentos decisivos nos quais 0 pensamento torna a debrugar-se sobre a presenca do negro no meio do po- vo, no tecido da sociedade civil, mais freqiientemente es- tranho ao Estado nacional. Nessas conjunturas, parece que os varios grupos e classes, movimentos sociais, par- tidos polfticos e correntes de opiniao publica procuram desvendar o presente e descortinar o futuro. Por isso mer- gulham no passado préximo e remoto, em busca de raf- zes, antecedentes, licGes a seguir, impasses a evitar. De quando em quando, volta-se a falar nas trés racas tris- tes, na mesticagem herdada da colonizacao portuguesa, no arianismo chegado com a politica imigratéria favore- cendo a entrada de europeus, na democracia racial na- turalmente resultante da amenidade da escravatura bra- sflica, no preconceito racial que se mescla e reafirma por dentro e por fora das classes sociais formadas com a so- ciedade urbano-industrial. Em cada ruptura histérica, os movimentos sociais e os partidos politicos sao levados a formular uma nova Constituicdo para o pais. Nesse mo- mento, todos voltam a perguntar-se, como em 1823, quem é brasileiro e quem pode ser cidadao brasileiro. Desde 1891, as constituicdes estabelecem que todos maiores, al- fabetizados, nascidos no pafs sao cidadaos brasileiros, in- dependentemente das diversidades raciais e outras. Na pratica, no entanto, o problema continua em aber- to. E 0 que se observa no desenrolar das lutas sociais, na marcha do movimento social negro, lado a lado com os desenvolvimentos do pensamento brasileiro. As di- versidades raciais tanto se recriam continuamente como sempre escondem desigualdades sociais, econémicas, po- Ifticas e culturais. 3. POVO E NACAO Na histéria da sociedade brasileira, a questao nacio- nal foi colocada pelo menos trés vezes. Em termos parti- cularmente fortes, foi colocada com a Declaracao de In- dependéncia em 1822, a Abolicado da Escravatura em 1888 e a Revolucdo de 1930, Essas datas marcam apenas o mo- mento inicial de uma nova época de lutas sociais, deba- tes, conquistas e derrotas que compreendem diferentes etapas da questao nacional. Em cada uma dessas épocas, a sociedade se pée diante de problemas tais como: raga, mestigagem e populacao; povo e cidadao; terras devolu- tas, indigenas, ocupadas, griladas e tituladas; provincias, ou estados, e Estado nacional; centralismo e federalismo; regido e nacao; lingua nacional, l{nguas portuguesa, in- digena, africana ou lingua brasileira; lingua e dialetos; religiao oficial e religises populares; cultura oficial, eru- dita, popular, indigena, africana, européia ou brasileira; sociedade nacional, independéncia e soberania; naciona- lismo e imperialismo; sociedade civil e Estado nacional. Em cada época, a sociedade brasileira se pe diante de alguns ou todos esses problemas. Vejamos como tem sido colocada a problemitica ra- cial, vista no Ambito da questo nacional e tendo em conta 128 OCTAVIO IANNI as trés épocas mencionadas. A probleméatica racial pode ser uma perspectiva eficaz para a andlise da formacao do povo, da metamorfose das racas e mesticos em povo. O passado e o presente estéo nessa histéria. Durante o século XIX, enquanto a sociedade estava apoiada no regime de trabalho escravo, o debate nacio- nal polarizou-se em termos de indianismo, inicialmen- te, e europeismo, depois. Logo apés a Independéncia houve um surto indianista. A mesma literatura que tra- balhava o mito da raiz indfgena da sociedade brasileira trabalhava também uma imagem mais abrangente da so- ciedade brasileira como um todo. Ao privilegiar o {ndio, mesmo nao lidando maiormente com os outros, a poe- sia de Goncalves Dias e 0 romance de José de Alencar situavam e articulavam escravos e livres, indios, negros e brancos, portugueses e brasileiros, ou raga, populagdo e povo. Da mesma maneira, 0 indigenismo inicial de Jo- sé Bonifacio e Varnhagen também entrava na elaboragéo da fisionomia da populacao brasileira. Todos estavam in- ventando a nacao. O abolicionismo e a politica de incentivo & imigragao européia alteram o quadro inicial. Introduzem uma cres- cente valorizacao do imigrante, implicando a proposta de europeizacao, isto é, branqueamento da populagéo. Ao lado da idealizagao do {ndio, em contraposicgéo ao por- tugués e negro, desenvolve-se a idealizacao do europeu, também em contraponto com o negro. Com a abolicéo do regime de trabalho escravo e a Pro- clamacao da Republica, o poder estatal passa 4s maos da oligarquia cafeeira, que jA se achava apoiada no colona- to de imigrantes europeus. Para essa oligarquia, o indio, © negro e mesmo o branco nacional eram colocados em segundo plano. Valorizava-se o imigrante. Aproveitou- se a imigrac4o para provocar a redefinicAo social e cultu- ral do trabalho bracal, de modo a transformé-lo em ativi- dade honrosa, livre do estigma da escravatura. Tao hon- rosa que o negro e o {ndio somente poderiam exercé-la RACA E POVO POVO E NACAO. 19 se a executassem como 0 imigrante. As modificacdes das condicées de producao — isto é, forcas produtivas e re- lagées de produ¢gado — ocorrem simultaneamente com a modificagao das idéias, princfpios ou categorias. A rigor, estava em marcha a revolucdo burguesa. Re- volu¢ao que implicava o radical divércio entre a proprie- dade da forga de trabalho e a propriedade dos meios de producao. A sociedade burguesa comegava a desenvolver- se sem os entraves do regime de trabalho escravo, que atava o trabalhador aos meios de producao, baralhava as forgas produtivas e as relacées de producao. Esse foi o contexto em que se acentuou a valorizacao do trabalha- dor branco, imigrante europeu, como agente ou simbo- lo da redefinicao social e cultural do trabalho bracal. O arianismo vem por dentro da revolugao burguesa em marcha, por dentro desse processo fundamental de redefinicao do trabalho e trabalhador, ou seja, forca de trabalho. Tanto assim que um ingrediente desse mesmo arianismo é a tese de que o indio, o negro, e até mesmo 0 trabalhador nacional branco se entregavam a luxtria ea preguica. Tristeza, luxuria, cobica e preguica eram os pecados do indio, caboclo, negro e mulato, enquanto nao se ajustassem as exigéncias do mercado de forca de tra- balho, do trabalho submetido ao capital, na fazenda, en- genho, usina, estancia, seringal, oficina, fabrica. Tratava- se de redefinir o trabalhador para redefinir a forca de tra- balho. Redefinir as condicdes de producao do lucro, ou mais-valia, ao mesmo tempo que o trabalhador, j4 que este era o proprietdrio da principal forca produtiva. O lema “‘ordem e progresso”’ expressa 0 cardter da revolucado burguesa em marcha. Os massacres de Canu- dos e do Contestado foram alguns exemplos da realiza- ao da ordem preconizada pelo lema. O colonato, a pro- letarizacdo no campo e cidade, a industrializacao, a emer- géncia da burguesia industrial, ao lado da expansao ca- Pitalista no campo, foram exemplos da realizacao do pro- gresso preconizado no lema. Estava cumprida a metamor- fose do trabalhador escravo em trabalhador livre. 130 OCTAVIO IANNI O ano de 1930 assinala uma alterac4o fundamental no enfoque do problema racial brasileiro. Todo um largo debate, que vinha de décadas anteriores, parece organi- zar-se em algumas correntes principais, a partir da rup- tura representada pela Revolucao de 30. Pouco a pouco, nos anos e décadas posteriores, delineiam-se as interpre- tacdes mais importantes, com as quais se defrontam pos- teriormente todos os que vivem e estudam o problema racial brasileiro. Primeiro, formula-se a tese da democracia racial. Segundo, retoma-se, em linguagem diversa, em geral mais discreta, o racismo embutido na tese arianis- ta. Terceiro, desenvolve-se o indigenismo, compreenden- do sertanistas, antropdlogos e, principalmente, os prd- prios indios. Quarto, coloca-se o problema no 4mbito da reflexdo sobre a sociedade de classes. E possivel dizer que essas colocacées fazem parte de um debate mais amplo, no qual se acham engajados mo- vimentos sociais e partidos politicos, grupos raciais e clas- ses sociais, politicos e intelectuais, igrejas, militares e se- tores do poder estatal. O que estd em causa, fundamen- talmente, é a metamorfose da populacao em povo, entendendo-se a populacao como uma pluralidade de ra- gas e mesclas, e povo como uma coletividade de cidadaos. Uns querem circunscrever os membros da populacao & condicao de trabalhadores: sem luxtiria nem preguica. Outros querem a transformacao do negro, mulato, {ndio, caboclo, imigrante em cidadao. E hd aqueles que procu- ram mostrar as desigualdades sociais, econdémicas, poli- ticas e culturais que constituem e reproduzem as desi- gualdades raciais. No conjunto, todos estao lidando com as condicées de constituicao e organizacdo da sociedade civil, A marcha da revolucdo burguesa, na medida em que expressa os desenvolvimentos de uma formacio so- cial capitalista, implica a instituicao da liberdade e igual- dade entre proprietérios de mercadorias. Compradores e vendedores, principalmente de forca de trabalho, pre- cisam de liberdade e igualdade para realizar 0 contrato. POVO E NACAO. 131 Esta em causa o principio da cidadania da mercadoria, que aparece como se fora atributo de compradores e ven- dedores, principalmente de fora de trabalho. A Frente Negra Brasileira, criada em 1931, teve tam- bém esse significado: fortalecer o negro e o mulato na sociedade de mercado, burguesa, em expansao. Além das reivindicagées de cunho politico e cultural, expressou a reivindicacéio de um largo contingente de trabalhadores, isto é, vendedores de forca de trabalho. Eles queriam con- dicdes mais justas, ou seja, semelhantes as que desfru- tavam os trabalhadores brancos, entdo bastante identifi- cados com imigrantes europeus e seus descendentes. A Frente Negra foi um dentre muitos outros movimentos sociais e associac6es criados com a finalidade de lutar con- tra o preconceito e a discriminacao no trabalho, escola, familia, igreja e outros lugares. Durante a Segunda Guerra Mundial, o governo bra- sileiro adotou uma politica de nacionalizacdo forcada de alemaes, italianos, poloneses, japoneses e outros imigran- tes de primeira e outras geracdes. A ditadura do Estado Novo agiu militarmente nos partidos, movimentos, as- sociacées, igrejas, escolas e outros circulos de atividades, Era uma decorréncia da adesao do Brasil a guerra contra 0 nazi-fascismo alemio, italiano e japonés, de acordo com uma politica continental formulada pelo governo dos Es- tados Unidos da América do Norte. Depois da guerra, aos poucos apagaram-se as mar- cas da nacionalizagio forcada. Os remanescentes das pri- meiras geracdes e os descendentes de alemaes, italianos, japoneses, poloneses e outros reiniciaram e desenvolve- ram a sua participacao nas atividades econémicas, polf- ticas e culturais. Reduziram-se entraves e Ppreconceitos. Mas nfo se eliminaram preconceitos diversos, inclusive entre os descendentes dos imigrantes. Ao longo dos anos da democracia populista, desen- volveu-se bastante o indigenismo, de base antropoldgi- ca. Multiplicaram-se os cursos, as Ppesquisas e os deba- 132 OCTAVIO IANNI tes sobre o problema do indio. A defesa das terras, a Ppro- tecao da cultura e a preservacao das condicdes de vida e trabalho do indio ganharam énfase. Ressurgiram os ideais de José Bonifacio e Rondon — isto é, do iluminis- mo e positivismo —, fortalecidos ou modificados pelos Novos ensinamentos da antropologia. Essa foi a época em que o Servico de Protecao aos Indios (SPI) ganhou maior dinamismo. Também o Museu do Indio desenvolveu bas- tante as suas atividades, em termos de cursos, pesqui- sas e debates, Entretanto, a protecdo efetiva da comuni- dade indigena esteve sempre prejudicada pela ingerén- cia dos negociantes de terras, militares e outros grupos com fortes interesses representados no poder estatal. A partir de 1964, sob a ditadura militar, as linhas prin- cipais da problematica racial continuaram a ser aquelas desenvolvidas apés a Revoluco de 30: democracia racial, racismo disfarcado, indigenismo, raca e classe. Mas houve algumas alteracdes significativas. Ficou bem mais dificil falar em democracia racial em um pais no qual o povo em formaciio foi jogado de novo no nivel de simples populacdo de trabalhadores. Esse pro- cesso se disfarcou sob a tese de que as pessoas, os gru- Pos, as associacdes, os movimentos sociais, os partidos Politicos, as idéias podiam ser suspeitos, perigosos, no- civos 4 seguranca do Estado. Os governantes nao preci- saram revelar o seu racismo; simplesmente passaram a tratar toda a populacaio de trabalhadores como indefesa, incapaz para 0 voto, sujeita 4 demagogia e carisma, sus- peita, carente do mando do Estado militarizado: Ppopu- lagdo conquistada. Ao mesmo tempo, desenvolveu-se o contetido geo- polftico do indigenismo governamental. O problema in- digena passou a ser encarado, de forma mais aberta que em épocas anteriores, como um problema de seguranc¢a nacional. A pretexto de que o indio poderia sofrer a in- fluéncia de movimentos de esquerda, laicos ou religio- Sos, a ditadura militar conferiu categoria geopolitica & pro- POVO E NACAO 133 blemética indfgena. Simultaneamente, aproveitou para favorecer a expropriacdo das terras ind{genas, como ocor- re, por exemplo, na Amazértia. Sob varios aspectos, 0 cacique e deputado federal Ju- runa simboliza o protesto indigena contra a forma pela qual o Estado burgués tem lutado contra a comunidade indigena. Juruna, Megaron, Marcos Terena e muitos ou- tros expressam 0 protesto indigena: lutam pela reconquis- ta ou preservacao das suas terras, pelo direito de preser- var o seu modo de vida, trabalho e cultura. Expressam uma forma de pensar e sentir e agir que nada tem a ver com a sociabilidade burguesa. Ainda que mesclados, ema- ranhados, em esséncia a comunidade e a sociedade, ou a aldeia e a cidade, sao dois universos distintos. “Era bom quando branco nao ameacava a gente. Agora nao. Temos que conhecer como vive, como pensa, como faz branco. Nao adianta fugir. Ficar dentro Sao Marcos, na aldeia, sem sair, é pior, Sempre vou cidade. Trago um, dois, trés indio comigo. Nao trago muito, nao. Trago aos pouco. Vou ensinando, mostrando. Indio entio fica abis- mado. Tudo diferente. E com medo. Indio nao entende como tanta gente, e quase ninguém se fala. Todo o mun- do de cara fechada. Triste. Cidade é muito triste. Indio fica triste também na cidade.’”? Houve inclusive uma espécie de ressurgéncia do in- dianismo literdrio, 4s vezes também roméntico, a despeito do embasamento antropolégico. Algumas producdes ar- tisticas, tais como os romances Quarup de Anténio Cal- lado e Maira de Darcy Ribeiro, a peca de teatro Supyséva de Aurélio Michiles e 0 filme Uird de Gustavo Dahl, ex- pressam esse neo-indianismo. Recolocam o divércio en- tre o indio e o branco, a aldeia e a cidade, a comunidade ea sociedade. Dois mundos diversos, alheios, apesar de mesclados. O fascinio do intelectual, em geral burgués, 9. Mario Juruna, cacique xavante, em entrevista a Edilson Martins, Nos- 805 fndios, Nossos Mortos, Editora Codecri, Rio de Janeiro, 1978, p. 285. 134 OCTAVIO IANNI pelo indio tem muito a ver com o mistério deste, com 0 fato de que o indio é outro. Modo de ser. Naturalmente também o negro e o mulato entram na ciéncia e na arte do branco, enquanto burgués, Inclusive nesse caso est presente o dilema, fascfnio ou mistério do outro. Os filmes Xica da Silva, de Cacd Diegues, e Amu- leto de Ogum, de Nelson Pereira dos Santos, sao duas amostras dessa inquietacao. Um acaba por folclorizar 0 negro; transforma-o em divertimento, em lugar de des- fazer o dilema. Outro se debruga sobre o dilema, deixa- se levar pelo mistério. Ao mesrno tempo, o negro e o mulato preservam e alargam o seu espaco de vida e criacao. A despeito das condicGes adversas, criam e recriam muito de sua singu- laridade no interior e nos poros da sociedade. Afirmam- se tanto na religido, musica, canto, danga e outras ativi- dades culturais como na sociologia, antropologia e ou- tros campos da ciéncia. A medida que vivem e sofrem a cidade, também se apropriam dela. Transformam a ci- dade em um caleidoscépio de outras possibilidades. Desde antes da Abolicado, os negros libertos organi- zavam-se. Muitos clubes combinavam atividades recrea- tivas, assistenciais e culturais. O clube Floresta Aurora, criado em Porto Alegre antes de 1888 e em atividade até © presente, é um marco nessa histéria. No século XX criaram-se muitos clubes, associacGes, publicagGes e mo- vimentos sociais, O jornal Clarim da Alvorada e o movi- mento denominado Frente Negra Brasileira ficaram na histéria das lutas sociais do negro brasileiro como mar- cos importantes. Ao lado das atividades recreativas, as- sistenciais e culturais, desenvolviam-se também as poli- ticas. Sob certos aspectos, 0 Movimento Negro Unifica- do Contra a Discriminacao Racial, criado em 1978, reto- ma algumas dessas reivindicacdes. Em todos os casos, de forma aberta ou velada, h4 uma luta permanente con- tra o preconceito e a discriminacao. Uns reivindicam os direitos de cidadania. Outros engajam-se na critica da ci- POVO E NACAO 135 dadania burguesa, formal, pouco efetiva, que recobre as desigualdades dos grupos raciais e classes sociais. Todos jutam de modo a alcancar a'transformacao do negro em povo. “Como se combater este preconceito que gera marginali- zacao econdmica, social e cultural de ponderdvel faixa da atual populacao brasileira? Para nés, nao adiantam cam- panhas humanitérias, educacionais ou de fundo filantré- pico. Necessita-se criar um universo social nao competi- tivo, fruto da economia de uma sociedade que saia do pla- no da competicao e do conflito e entre na faixa da planifi- cacao e da coopera¢ao.’” Em poucas palavras, essas 40 as trés épocas princi- pais da histéria da problemética racial brasileira. Duran- te o Império predominou o indianismo literdrio, como uma afirmacao abstrata da nacionalidade brasileira em fa- ce do lusitanismo predominante na Colénia. Mas logo emerge o europefsmo, por meio do qual se valoriza o imi- grante europeu, como trabalhador livre, Alids, ocorre in- clusive a valorizagao das produgées econémicas, polfti- cas e culturais européias. Na Primeira Republica, 4 me- dida que crescem as atividades econdmicas no campo e na cidade, emerge o arianismo. Trata-se de uma valori- zac&o mais ostensiva do europeu, como civilizado, su- perior, histérico e branco, em face do negro, mulato, in- dio e caboclo. Em seguida, com o predom{nio do popu- lismo, inicialmente, e militarismo, depois, desenvolvem- se varias teses. A democracia racial aparece principalmen- te nos discursos das classes dominantes. O indigenismo de antropdlogos e escritores passa a contar com uma pre- senca cada vez mais forte do proprio indio. E a discrimi- nagdo racial é vista principalmente pelos proprios negros, mulatos, indios e caboclos, entre outros, mas também por aqueles que estudam a sociedade como um complexo de grupos raciais e classes sociais. 10. Clovis Moura, O Negro ~ De Bom Escravo a Mau Cidadao?, Conquista, Rio de Janeiro, 1977, p. 87. 136 OCTAVIO IANNI Visto em perspectiva ampla, é possfvel dizer que o debate sobre a problemética racial aparece como uma es- pécie de exorcismo. Esse debate sempre fez parte da dis- cuss4o mais geral sobre o povo brasileiro, sociedade, Es- tado, cultura, civilizacdo, evolucao, progresso, moderni- zacao, desenvolvimento. Realizou-se simultaneamente & controvérsia sobre escravatura de negro e {ndio, aboli- cionismo, imigracao européia. Também tem sido contem- pordaneo das lutas sociais, fugas, quilombos, motins, re- voltas, revolugées, muckers, Canudos, Contestado, Joa- zeiro, cangaco, massacres indigenas, lutas pela terra, li- gas camponesas, sindicatos rurais e urbanos, comicios, Ppasseatas, greves, movimentos sociais os mais diversos. Nina Rodrigues e Euclides da Cunha sao contemporaneos de Canudos, Abolicao, imigracao, Reptiblica. Oliveira Via- na estava repensando tudo isso, levando em conta Con- testado, Joazeiro, cangaco, e buscando teorizar sobre as exigéncias de um Estado forte, em face de uma socieda- de civil débil. Nesses e em outros autores hd sempre al- gum ou muito exorcismo. Trata-se de explicar as lutas so- ciais em termos raciais. Querem descobrir as rafzes do atraso, barbérie, fetichismo, fanatismo das coletividades, multidées. Em lugar de compreender as condicdes eco- némicas e politicas das desigualdades sociais, buscam ex- plicagdes geogrdficas, raciais, evolucionistas, darwinistas, disfarcadas de antropologia cientifica, em geral a antro- pologia formulada no ambito do colonialismo e imperia- lismo da Inglaterra, Franca, Alemanha, Estados Unidos e outros paises. Sob varios aspectos, a ciéncia que fun- damenta as interpretacdes de Nina Rodrigues, Oliveira Viana e outros aparece como uma técnica conveniente também para exorcizar a emergéncia do povo; exorcizar as lutas sociais por meio das quais o povo aparece na histéria. Pode-se dizer que a revolucao burguesa ocorrida no Brasil nao resolveu o problema racial. Na perspectiva do indio e do negro, o problema racial continua em aberto. POVO E NACAO. 137 O camponés, operdrio tural, operdrio urbano, emprega- do, funcionario ¢ outras catégorias de trabalhadores con- tinuam a defrontar-se com as diferencas raciais, além das de classes. Mais freqiientemente, as desigualdades so- ciais compreendem e mesclam diversidades raciais e de classes sociais. Sem esquecer as diversidades de cunho regional, religiosas, culturais e outras, presentes nas con- dicdes de trabalho e vida de todos. A revolucao burguesa resolveu muito bem o proble- ma da transformacao das ragas em populacao, compre- endendo-se esta como uma coletividade de trabalhado- res. Desde a abolicao do regime de trabalho escravo, 0 imigrante, negro e indio foram reeducados para o traba- Tho livre. Houve uma vasta reeducacao de uns e outros para que se ajustassem as exigéncias do mercado de for- ¢a de trabalho. Agora todos sao iguais e livres, enquan- to proprietdrios de forca de trabalho. Como os outros pro- prietarios de mercadorias. Mas ai terminam a liberdade e a igualdade. Talvez se possa dizer que a revolucao burguesa rei- tera a tese de que a humanidade se divide em povos his- toricos e nao-histéricos. Todos os europeus e seus des- cendentes brasileiros seriam histéricos, civilizados, bran- cos, superiores, dominantes. Todos os outros, no caso do Brasil, indios e negros, seriam nao-histéricos, fetichis- tas, barbaros, inferiores, dominados. Nesse sentido é que a revolucdo burguesa nao resol- veu o problema racial. Transformou negro, indio e imi- grante em trabalhadores; mas nao os transformou em ci- dadaos. Nos institutos juridicos obviamente esta estabe- lecido o principio de que todos sao iguais perante a lei, independentemente de raca, sexo, religiao, classe e ou- tras diversidades sociais. Mas essa igualdade juridica é formal, abstrata, iluséria, quando se trata de campone- ses, operarios, empregados, funciondrios, na fazenda, f4- brica, escritério. Na pratica, ha uma larga desigualdade racial, entre outras desigualdades sociais, além das dife- 138 OCTAVIO [ANNI rengas entre as classes. No maximo, uns e outros apare- cem como cidadaos para vender e comprar mercadorias, destacando-se a forca de trabalho. Por isso 0 povo nao se constitui, senao com muitos obstdculos. Todos sao ci- dadaos de categoria inferior, apenas para exercerem a sua func4o de trabalhadores. Os movimentos sociais e os par- tidos politicos, na medida em que expressam reivindica: ges raciais, culturais, regionais e de classe, sao periodi- camente bloqueados, ou simplesmente desbaratados. A cooptacao, o diversionismo e a violéncia sao as técnicas de poder que as classes dominantes pGem em acao para reduzir ou anular a forca dos movimentos e partidos. Em geral, as classes dominantes organizam o Esta- do jogando com as desigualdades raciais, regionais, cul- turais e outras, além das desigualdades entre as classes sociais. Em certa medida, as varias desigualdades sao ca- pitalizadas pelas classes dominantes. Uma das razdes da reiteracdo do Estado autoritario no Brasil esté na realida- de das desigualdades raciais, regionais e culturais, o que permite que as classes dominantes joguem com elas, de modo a enfraquecer a capacidade de reivindicacao e luta de amplos setores da sociedade civil. Entretanto, o fato de que a revolucéo burguesa nao resolveu o problema racial acaba por criar outra gama de contradigées sociais. Junto com as contradicges de classes, desenvolvem-se as contradi¢ées raciais. Em mui- tos casos, o camponés é também negro, mulato, indio ou caboclo. Da mesma forma, o operério e outras cate- gorias de trabalhadores. As varias classes sociais revi- nem inclusive as reivindicacdes de cunho racial, cultural e regional. Nessa perspectiva, a revolucao burguesa, com o de- senvolvimento da formacfo social capitalista, implica a criac&o, reiteracdo e desenvolvimento de uma complexa rede de contradicGes sociais. As contradigées de classes, raciais, culturais e regionais, entre outras, constituem-se como fundamento de outra revolucado. A revolucao po- POVO E NAGAO 139 pular, que se esboca em muitas ocasides na histéria da sociedade brasileira, tent: muito a ver com esse comple- xo de contradicées. Muitos acontecimentos, passados e presentes, podem ser vistos nessa perspectiva. Movimen- tos sociais, motins, revoltas e outras manifestagGes com freqiiéncia combinam as reivindicagdes de trabalhadores que sao negros, mulatos, {ndios e caboclos. Nesse senti- do é que a emancipacao do operdrio e camponés passa pela emancipacao do indio e negro. ud Vv CULTURA E SOCIEDADE n 7 n~ 1. UMA CULTURA BRASILEIRA? CI . Acultura nao é inocente. Todas as expressdes cultu- rais, compreendendo valores e padrées, maneitas de pen- sar e dizer, modos de viver e trabalhar, criam-se e recriam- se na trama das relacdes sociais. As diversidades e os an- tagonismos sociais, politicos e econ6émicos manifestam- se também no Ambito.da cultura. f verdade que a cultura apresenta especificidades, sistemas significativos, conjuntos que articulam passado e presente, construcdes ideais, representagdes roméanti- cas, realistas, naturalistas, parnasianas, modernistas e ou- tras. Simultaneamente, no entanto, todas as expressbes culturais criam-se e recriam-se no jogo das relacdes so- Giais. Mesmo quando parecem paradas, acham-se em mo- vimento. A cultura tem vida, com a vida da sociedade, dos grupos raciais, regionais, religiosos e outros, da mes- ma forma que com a vida das classes: burguesia, campe- sinato, operariado, setores médios. As palavras e as coi- sas, o passado e o presente, o préximo e o distante, 0 contrato e a prestacao pessoal, a sociedade e a comuni- dade, o tempo e a duragao, a luz do dia e a poeira do tempo, sao varias as determinacdes histéricas, sociais e outras que entram e saem na construgao de valores, pa- drdes, ideais, modos de ser, visdes do mundo. 144 OCTAVIO LANNI O empresdrio chama o operdrio de trabalhador; e a si também trabalhador. O fetichismo das relagdes sociais apaga as diversidades, os antagonismos. Mas 0 operario sabe que é operdrio, que a sua forca de trabalho € coti- dianamente consumida em beneficio do outro, alienada. Para o latifundidrio, a terra pode ser reserva de valor. Para o sitiante, posseiro, parceiro, arrendatario, colono, mo- rador, ela pode ser principalmente objeto e meio de tra- balho, uma fonte de meios de subsisténcia, do seu mo- do de vida. O governo apresenta o Estado como espelho e intérprete da sociedade como um todo, o representan- te da nacio, a vontade geral. Toda constituicao burgue- sa, mesmo sob ditadura militar, estabelece que todos sao iguais perante a lei, sem distingdes de classe, crede, se- xo, raca. Mas 0 povo sabe que as desigualdades sociais, politicas, econémicas, culturais, raciais, religiosas, entre “ 0s Sexos e outras atuam abertamente. Isso sabe o indio e o caboclo, o negro e o mulato, o amarelo e o branco, o homem e a mulher, o operdrio e o camponés. Muito da diversidade, desigualdade e antagonismo que constitui a sociedade aparece no Ambito da cultura: nomes das coisas, significados das palavras, imagens, me- téforas, alegorias, simbolos, signos, idolos. Mesmo em um pais no qual parece que nao ha dialetos, a lingua fa- lada pelas classes dominantes nao é exatamente a das clas- ses subalternas; a escrita dos eruditos pouco tem a ver com a escrita de operdrios e camponeses; 0 escrito tam- bém é diverso. A lingua é multipla, como sugere Mario de Andrade. “A lingua, no seu sentido, digamos, abstrato, é uma propriedade de todo o grupo social que a emprega. Mas isto é uma mera abstracdo, essa lingua nao existe. O tem- po, os acidentes regionais, as profissdes se encarregam de transformar essa Ifngua abstrata numa quantidade de linguagens concretas diversas. Cada grupinho, regional e profissional, se utiliza de uma delas. Deus me livre ne- gar a existéncia de uma lingua ‘culta’, Mas esta é exclusi- UMA CULTURA BRASILFIKA? 15 va apenas cle um dos grupinhos do grande grupo social. Essa ¢ a lingua escrita, por exceléncia, tradicionalista por vicio, canservadora por cacoeté especifico de cultismo. Ou de classe. Mas.ja est§ mais que observado que os mes- mos individuos que escrevem nessa lingua culta muitas vezes se esquecem dela quando falam. Essa lingua escri- ta nao é a mesma que a linguagem da classe burguesa, que é falada e nao tem pretensées aristocraticas de bem falar. ... E finalmente existem as linguagens profissionais, a linguagem do carreiro, do sapateiro, do advogado.’’? “O fato da linguagem culta se assemelhar a uma lin- gua morta e manifestar tendéncias, algumas falsas e al- gumas utilitérias, para a estratificasao ¢ apenas uma ver- dade facil e preliminar. Outras verificagdes se ajuntam a essa verdade preliminar, que, a revelia dos indiv{duos, obrigam a linguagem culta a ir se modificando com os tem- pos. O espirito de épocas diferentes, as influéncias exte- tiores, as invencdes novas, por exemplo, sao outros tan- tos elementos poderosos que modificam cronologicamente a linguagem culta imutavel.’’ “A linguagem culta, especialmente quando artistica, é também uma lingua viva. E mesmo a tinica lingua viva que congraca em sua entidade todas as linguagens par- ciais de uma lingua. E das outras... Ela tem o direito de empregar qualquer voz, qualquer modismo, qualquer sin- taxe. As linguagens parciais nao tém este direito.’”3 * Apenas na aparéncia a cultura vigente na sociedade brasileira é “uma” cultura. O que parece ser ‘’uma cul- tura brasileira’ é um complexo de modos de viver e tra- balhar, ‘sentir e agir, pensar e falar que nao se organizam em algo tinico, homogéneo, integrado, transparente. As formas de trabalho sao diversas, multiplas. No campo e na cidade proliferam as mais diferentes modali- 1. Mario de Andrade, O Empalhador de Passarinho, Livraria Martins Edi- tora, Sdo Paulo, s/d, pp. 177-178. Citacao extrafda de ‘‘A Lingua Radiofénica’’. 2, Mario de Andrade, op. cit., 9. 182. Citagdo extraida de “A Lingua Viva’”. 3, Tbidem, p. 184. 146 OCTAVIO [ANNI dades de organizacao de vida e trabalho. Operdrio urba- no, operdrio rural, camponés, empregado de empresa pri- vada, funciondrio publico, fazendeiro, empresario, tec- nocrata, civil, militar, cada um a seu modo, todos sao le- yados a organizar o seu trabalho e a sua vida em dife- rentes formas. Os valores, padrées, universos verbais, modismos de linguagem, acesso a escola, livro, revista, jornal, radio, televisao, teatro, religiao, em cada umeem todos esses elementos da cultura material e intelectual uns € outros setores da populagao participam diversamen- te. O modo de pensar e falar nao é precisamente o mes- mo, se colocamos em confronto 0 operério e o empresa- rio, o camarada e o fazendeiro, 0 indio e o chefe do pos- to indfgena, o padre e o cardeal, o soldado e o general. O lucro, juro, renda, saldrio, soldo, vencimento, comis- sao, propina, presente nao sao o mesmo dinheiro; expres- sam distintas relaces sociais, de apropriagdo econémi- ca e dominac4o politica. Cada grupo, classe; movimento, partido lida diferen- temente com o acontecimento, a situacao, as forgas so- ciais, o fato, o mito. As lutas sociais, presentes e pretéri- tas, sao vistas, guardadas e recriadas de formas diversas por uns e outros. A relagéo dos acontecimentos histéri- cos nao 6 a mesma para todos. As idéias de lfngua na- cional, sociedade brasileira, nacao, Estado nacional mu- dam conforme as condicées de vivéncia e sofrenca. Sob varias perspectivas, nao hd isso de ‘’uma cultu- ra brasileira’, se queremos significar modos de vida e tra- balho, pensar e sentir, fazer ¢ falar. Sempre muda 0 jei- to ea fala, a palavra e o significado, 0 dito e 0 feito. 2. NAGAO E CULTURA CJ A questo da cultura recoloca a problemética da so- ciedade civil, naco e Estado nacional, compreendendo as diversidades e os antagonismos que se expressam nas préticas de grupos sociais tais como os raciais, étnicos, religiosos, regionais e outros, e das classes sociais agra- rias e urbanas, dentre as quais se destacam as diversas burguesias, operarios urbanos e rurais, camponeses € Se- tores médios. Em varias ocasides, os movimentos sociais e os partidos politicos expressam aspectos fundamentais da realidade nacional, inclusive em sua dimensio cultural. O debate sobre a cultura, em termos histéricos e so- ciais, reabre o debate sobre a questdo nacional. Recoloca- se o tema da relacdo da cultura dominante com a na¢ao. Também o da cultura subalterna com a nagao. Em for- mas diversas, todas as manifestagdes mais complexas e abrangentes da cultura reabrem o problema do relacio- namento entre cultura e nacdo. Alids, a questao nacional esté em José de Alencar, Ma- chado de Assis, Lima Barreto, Mario de Andrade, Gra- ciliano Ramos, José Lins do Rego, Erico Verfssimo e ou- tros. Da mesma maneira que em Varnhagen, José Veris- simo, Silvio Romero, Euclides da Cunha, Alberto Torres, 148 7 OCTAVIO IANNI Oliveira Viana, Gilberto Freyre, Sergio Buarque de Ho- landa, Caio Prado Jtinior, Florestan Fernandes e outros. HA producées culturais que surgem desde logo co- mo nacionais, ou transformamt-se em nacionais. Indepen- dentemente de estarem vinculadas a cultura dominante ou subalterna, sao incorporadas por muitos, a grande maioria ou mesmo todos. Ressoam amplos setores da so- ciedade, captam as diversidades sociais, politicas, eco- némicas ou culturais, refletem as modulagoes do tempo. Ha muito da sociedade brasileira em Triste Fim de Poli- carpo Quaresma de Lima Barreto, Macunafma de Mario de Andrade, Vidas Secas de Graciliano Ramos, Rasga Cora- ¢Go de Oduvaldo Vianna Filho. Também na obra de pin- tores como Almeida Junior, Di Cavalcanti, Portinari; na de compositores como Heitor Villa-Lobos, Chico Buar- que de Holanda, Milton Nascimento. Em muitos casos, no entanto, as produces culturais tendem a expressar a visio do mundo de determinados grupos ou classes, as vezes por intermédio de movimen- tos sociais, partidos politicos, correntes de opiniao, ins- tituicdes, igrejas, seitas. O candomblé tem muito a ver com 0 afro-brasileiro, descendente de escravo, negro e mulato, subalterno, religiao de determinados setores so- ciais, condic6es hist6rico-sociais.de vida e trabalho. E ver- dade que hé terreiros ou tendas nos quais se mesclam brancos de classe média, ou mesmo brancos de classe alta. Mas para esses jd nao se trata do candomblé origindrio, no qual a religiosidade faz parte de um modo de ser, vi- ver, visio do mundo. O candomblé, umbanda, centro es- pirita, pentecostalismo e outras manifestacées religiosas raramente adquirem o ar-do catolicismo das igrejas, a so- lenidade burguesa das catedrais. Ha religies burguesas e populares, santas e fetichistas, teoldgicas e magicas. O problema reaparece — naturalmente em outros ter- mos — quando se examina a romaria, procisso, feira, mercado, carnaval, futebol, danca, musica, conto, cau- so, hist6ria, estéria, romance, abecé. NACAO E CULTURA Mg Em outro nivel, recoluca-se a mesma problematica quando se trata de fatos e personagens histdéricos. A Praieira, Farroupilha, Cabanagem e outras revolucdes de- marcam divisdes e antagonismos sociais, raciais, cultu- rais, regionais, As guerras de Canudas e Contestado en- tram nessa corrente da histéria. O cangago, enquanto ban- ditismo social, 4s vezes estd af. As ligas camponesas che- gam mais perto do presente. Tiradentes, Frei Caneca, Bento Gongalves, Antonio Conselheira, o monge josé Ma- ria, Lampiao, Juliao e muitos outros séo nomes que emer- gem na corrente da histéria, com diferentes méscaras, sig- nificados, conforme as polarizacées da cultura dominante ou subalterna. Ai se encadeiam os grupos e as classes, além das diversidades regionais, raciais, culturais, sociais e outras. E claro que a histéria narrada pelas classes dominan- tes nao é a mesma, sempre. E reinterpretada em cada épo- ca, conforme a forca do bloco de poder que emerge do jogo politico, lutas sociais. Também os camponeses e ope- rarios, ou indios, negros € brancos contam e recontam a sua estéria, 0 seu causo. Em 1889 a Republica foi proclamada sob 0 lema “‘or- dem e progressa’’. Em 1964 0 golpe de Estado que inau- gurou a ditadura militar foi dado sob o lema “‘seguranca e desenvolvimento’’. Nos dois casos, os donos do po- der falaram em sociedade brasileira, povo, tradicdes na- cionais, nacao, Estado nacional. Formularam constitui- ¢6es, votaram leis, baixaram decretos, ditaram os fins e os meios de governo dos homens e coisas. Mas a maio- tia do povo nao se sentiu representada; sabia que nao estava representada. Amplos setores da populacao — na cidade e no cam- Po — nao entraram no exercicio de direitos politicos, fo- ram rechacados, postos a margem das decisdes e das pré- prias representacdes. Sem voz, nem voto, nem represen- tagao. Ocasionalmente, obtiveram alguns direitos de ci- dadania, regulada, administrada, corporativa. Apesar das 150 OCTAVIO [ANNE lutas sociais, manifestacdes, comicios, eleigses, greves, revoltas, os movimentos sociais, sindicatos e partidos pouco alcancaram. Em quase todos os casos, coloca-se e recoloca-se 0 problema: quem é 0 povo? qual é a nacdo? onde estd o Estado nacional? o que significa sociedade civil? ha democracia? ‘A metamorfose da populacao em povo é também um processo cultural, além das suas implicagGes sociais, po- Kticas, econdmicas. As diversidades raciais, religiosas, re- gionais, bem como a condicao de alfabetizado ou analfa- beto, trabalhador bracal ou especializado, rural ou urba- no, homem ou mulher, sao varias as determinacGes cons- titufdas pela cultura que obstam ou dificultam a forma- a0 do povo, encarado como uma coletividade de cida- daos — individuos com direitos e deveres iguais, inde- pendentemente de classe, raca, sexo, religido, idéia, con- digao urbana ou rural, civil ou militar. Em geral, a cultu- ra dominante, burguesa, concebe largos setores da so- ciedade como populagao, isto é, uma coletividade de trabalhadores. 5 Em ampla medida, esse é 0 resultado da revolucao burguesa que se realizou no Brasil. Uma revolucao que alcangou sucesso no que diz respeito a economia, ao de- senvolvimento do capital, da acumulacao. Formou-se um mercado nacional, do Orinoco ao Chui. A mercadoria e a mercantilizacdo espraiaram-se por muitos, quase todos os lugares. Inclusive desenvolveram-se as classes sociais, em escala nacional. Mas pouco avangou a revolucao bur- guesa em termos politicos e culturais, se pensamos a par- tir da perspectiva de operdrios, camponeses e outros se- tores populares. As conquistas democraticas, em forma politica e.cultural, sao limitadas. Com freqiiéncia ha re- trocessos. Sucedem-se os golpes de Estado, arranjos de cuipula, conciliacdes pelo alto, Classes dominantes, as- sociadas com as altas hierarquias militares e da Igreja, NAGAO E CULTURA 151 sempre com a colaboracao de setores do imperialismo, criam e recriam blocos autoritérios. Assim se interrom- pem processos democraticos, nos quais operdrios, cam- poneses, empregados, funcionérios e outras categorias sociais lutam para conquistar direitos, abrir espacos po- Ifticos e culturais. 3. CULTURA E HEGEMONIA E claro que hegemonia é uma categoria politica. Mas, na medida em que envolve interesses, ideais, principios, modos de viver e trabalhar, visses de mundo, compreen- de também a cultura, expressa-se inclusive culturalmen- te: lemas, palavras de ordem, temas, controvérsias\po- Ifticas culturais, tendéncias artfsticas, explicacdes sobre © presente e o pagsado, reinterpretacdes da histéria. Em varias épocas marcantes da histéria da socieda- de brasileira, colocaram-se, de modo mais ou menos aber- to, as articulagdes fundamentais entre hegemonia e cul- tura. Isto é, o poder politico, em determinadas modali- dades, implica largamente a cultura, em termos de arte, ciéncia e filosofia. 6 0 que ocorre sob a monarquia, oli- garquia, populismo e militarismo. Essas séo épocas da histéria da cultura brasileira, desde que compreendida em suas diversidades: dominante, subalterna, rural, ur- bana, camponesa, indigena, afro-brasileira, burguesa, in- dustria cultural e assim por diante. A cultura dominante na época monarquica adquiriu algumas das suas maiores expressGes na producao inte- lectual de Varnhagen e José de Alencar, entre muitos ou- tros. Af estavam presentes e misturados romantismo, ca- 154 OCTAVIO LANNI nantemente econémico, economicista, tecnocrata, admi- nistrativo. Isto é, a polftica, a cultura e a histéria dis- solvem-se ou esgotam-se no plano ou programa econé- mico. Sucedem-se os projetos e impactos, de modo a em- purrar os interesses do grande capital. Tudo 0 mais fica subordinado, adjetivo ou subentendido, quando nao in- conveniente, suspeito, proibido. As razdes do bloco de poder, apresentaclas como se fossem as da sociedade, sintetizam-se no lema seguranca e desenvolvimento. Os, intelectuais organicos da ditadura militar tém sido prin- cipalmente economistas, destacando-se Roberto de Oli- veira Campos, Mario Henrique Simonsen e Anténio Del- fim Netto. Mas contam com a colaboracdo de juristas, ad- ministradores, socidlogos e outros, nacionais e estrangei- ros. A legitimacao cientifica do Estado forte, quando ne-- cesséria, tem sido buscada na obra de Oliveira Viana. As vezes, em conjunturas criticas, os porta-vozes do bloco de ‘poder formado junto com a ditadura militar Feafirmam a vocacao pacifica do povo brasileiro, a harmonia entre 0 trabalho e o capital, 0 jeito ocidental e cristao da civili- zacao brasileira. Em um momento trégico, sob 0 gover- no do general Médici, mandaram vir de Portugal os os- sos de 1). Pedro I, buscando, assim, uma legitimacao his- térica e cultural caricata. Entretanto, a ditadura nao alcancou uma producao cultural que pudesse ser considerada expressao da sua hegemonia. A rigor, ela nunca foi convincente, influen- te, dirigente. Amplos setores da sociedade — operdrios, camponeses, empregados, funcionérios, intelectuais, es- tudantes, religiosos, negros, indios, brancos — nao se convenceram dos valores, ideais, princfpigs consubstan- ciados na doutrina de seguranca e desenvolvimento, in- dustria do anticomunismo, civilizagdo ocidental, cristae tropical. Todo bloco de poder, composi¢éo de forgas sociais ou classe dominante exerce alguma ou muita influéncia sobre as producGes culturais. HA sempre uma reinterpre- CULTURA E HEGEMONIA 155 taco da histéria em marcha, segundo os governantes, os que detém os meios de poder. A classe social, ou com- posicdo de forcas sociais, que conquista o aparelho esta- tal pode expnandir a sua influéncia cultural. O controle do sistema ecucacional, a influéncia nas igrejas, as rela-, gdes com a industria cultural, a disponibilidade de recur- sos materiais e organizatérios para mobilizar intelectuais -sezundo os seus interesses, tudo isso permite As forcas sociais,.ou classe social dominante, influenciar muito, ou decisivamente, as producdes culturais. As artes, ciéncias e filosofias podem ser levadas a novos temas, linguagens, experiéncias. Em sintese, a cultura é uma dimensao fundamental da hegemonia que pode ser construfda por uma classe, composi¢ao de forcas sociais, bloco de poder, Estado. To- da configuracao hegeménica é necessariamente cultural. Para exercer-se, a capacidade dirigente, ou hegeménica, compreende valores, ideais, princfpios, modos de fazer, pensar e dizer, visio do mundo. Se é verdade que a he- gemonia tem muito a ver com a consciéncia de classe, compreende também uma visio da sociedade, naco, Es- taco, histéria. Como capacidade de interpretar e expres- sar os interesses da classe, composicao, bloco ou Esta- do, a hegemonia conjuga também interesses, reivindica- des e produces culturais de outros grupos e classes que nao se acham necessariamente presentes nas esferas de .poder. A democracia somente se torna efetiva se compreende também as condicdes culturais. Os valores e padrées cul- turais, os modos de viver e pensar, as condicSes mate- tiais e intelectuais de vida e trabalho tém muito a ver com as condic¢ées de organizacao do poder politico e econé- mico, em todos os lugares. Na fabrica, fazenda, escrité- tio, escola, igreja, casa, em todos os lugares as condicdes sociais, polfticas e econémicas de viver e trabalhar com- preendem inclusive, necessariamente, a cultura. A liber- dade indispensdvel A democracia politica é também um 156 OCTAVIO IANNI valor cultural. Funda-se na cultura ou valores, ideais e princfpios inseridos nas relacdes, processos e estruturas que constituem a sociedade. As classes dominantes pouco ou nada se preocupam com a conquista da democracia. Em geral, os seus mem- bros dispdem de prerrogativas, recursos, técnicas, poder propriamente dito, direitos de fato que lhes garantem 0 que © povo poderia conquistar — parcialmente-— por meio do jogo democratico. Poucas vezes a democracia li- beral alcancou certo desenvolvimento na sociedade bra- sileira. Em geral isso ocorreu sob a pressao das reivindi- cagées e lutas operarias, camponesas e outras. As vezes, as controvérsias entre setores das classes dominantes le- vam alguns a buscar apoio em setores populares, a en- trar nas lutas democraticas. £ 0 povo que mais freqiientemente coloca a questao da democracia para os diferentes setores sociai$ e a so- ciedade como um todo. Povo, aqui, significa trabalhado- res, assalariados, isto é, operdrios, camponeses, empre- gados de empresas privadas, funciondrios de érgaos pt- blicos, estudantes, intelectuais, ou fndios, caboclos, ne- gros, mulatos e brancos de diferentes etnias. Os protes- tos, reivindicacGes, greves, motins e revoltas, bem como associagdes, movimentos sociais e partidos polfticos con- figuram a presenca e a permanéncia desse povo na luta pela democracia. VI O BRASIL NACAO a as 7 1. ARQUIPELAGO E CONTINENTE Visto em perspectiva histérica ampla, o Brasil pare- ce um arquipélago. As suas diversidades sociais, econé- micas, polfticas e culturais, com freqiiéncia expressas em termos locais, estaduais, raciais e outros, fazem com que o pafs dé a impressao de um arquipélago que se forma e transforma ao longo do tempo. Daj a impressao de que periodicamente busca novos arranjos, encontra outras dis- pers6es, Os movimentos no sentido da integracao pare- cem atravessados pelos movimentos no sentido da dis- persao. Tem-se a impressao de que as mesmas forcas ger- minam tendéncias contraditérias, niio s6 divergentes, mas freqtientemente opostas. Essa é uma.histéria antiga. O tema da integracao e dispersdo atravessa a realidade e o pensamento brasilei- ros, Em dadas ocasiGes, ele se pde de novo, umas vezes em termos bem diversos dos anteriores, outras com in- gredientes antigos. A sucessao de constituicdes brasilei- tas, ao longo do Império e da Republica, principalmente nesta, pode ser também um indicio desse periddico e rei- terado movimento de integracao e dispersao. Mas esse problema vem de antes. Nasce com a colonizacao e modifica-se no curso da histéria. Na Col6nia, no Impé- 160 OCTAVIO IANNI rio e na Republica, os movimentos contraditérios, diver- gentes ou opostos, mostram-se visiveis. A despeito de que as forcas que operam em cada época sao distintas, recriam-se com outros e novos ingredientes, nao ha du- vida de que sao as vezes decisivos; sao indispensdveis a compreensao das condicées de formagao da socieda- de, Estado e nagao. Por isso o Brasil da a impressao de um pais em busca de uma fisionomia. H4 momentos da histéria brasileira altamente deter- minados pelo jogo aberto das forgas que operam no am- bito das unidades administrativas e dos segmentos so- ciais, compreendendo estados, regides, grupos raciais e classes sociais. Certos movimentos, revoltas e revolucdes, ocorridos em distintos lugares e épocas, expressam al- gumas das disparidades sobre as quais se procurou e pro- cura construir a nacdo. As diversas constituic6es e algu- mas emendas constitucionais revelam isso muito clara- mente. Desde a Constituicao de 1824 a de 1988, 0 jogo pendular federalismo-centralism@est4 presente no pen- samento e na prdtica de muitos. Alids, alguns surtos de centralizacdo, particularmente organizados, abrangentes e fortes, denotam o intento de alguns setores dominan- tes de fazer face nao sé as tendéncias federalistas como a realidade da dispersao. Na Colénia, tudo estava polarizado entre 0 colonia- lismo organizado segundo os interesses do absolutismo portugués e o nativismo irrompendo aqui e ali. Mas o colonialismo nao era homogéneo. Houve o despotismo impregnado de contra-reforma e 0 esclarecido, com Pom- bal querendo governar segundo algumas sugestdes da revolucao burguesa em curso em outros paises europeus. Por muito tempo, esteve presente a politica jesuftica, as vezes acoplada com a Coroa portuguesa, e outras lidan- do com o indio, negro e branco, escravos e livres segun- do projetos catdlicos. ARQUIPELAGO E CONTINENTE ww “O catecismo do jesuita, as Ordenagdes do Reino garantiram, desde ox primérdios, a unidade religiosa e a do direito. O governador geral e 0 Conselho Ultramarino resguardaram a unidace administrativa abroquelada, além de tudo, pe- la realeza e pelo préprio génio do povo. E tanto era este © tipo adequado ao novo pafs que se ia povoar, 4 nova gente que se ia constituir, que as tentativas dispersivas nunca lograram vingar, por si mesmas definhavam e mortiam.’"1 No Império, tudo parecia polarizado pelo poder mo- derador, a politica de conciliacdo, a ‘‘democracia coroa- da’’. Mas as revoltas e revolucdes algumas vezes puse-, Tam em causa 0 que se imaginava a paz do manto impe- rial. A Confederacao do Equador, a Cabanagem e a Far- roupilha revelaram-se acontecimentos da maior impor- tancia. Assinalavam “‘ilhas” de um ‘‘continente”’ disperso no “‘arquipélago’’. A repressao a que foram submetidos nao s6 as revoltas e revolugdes, mas também os protes- tos e as reivindicagdes, denota uma nitida aflicao dos go- vernantes e setores dominantes, no sentido de recompor © continente, a qualquer custo, sem contemplagao. Alias, o problema jé estava presente no fechamento da Assembléia Nacional Constituinte em 1823, com base na forca militar, e na outorga da Constituicdo de 1824 por D. Pedro 1, na qual se cria a figura do poder moderador. A adocio do regime mondrquico pode ser um indicio mui- to claro da dialética integracao-desagregacao. A Coroa e a aristocracia, a concessao de tftulos nobilidrquicos e a pompa monarquica, amparados na cruz e na espada, ga- rantiam a “tradicao’’ da legitimidade, uma legitimidade herdada do colonialismo. “Somos 0 tinico caso histérico de uma nacionalidade fei- ta por uma teoria polftica. Vimos, de um salto, da homo- 1. Sflvio Romero, Provocagites ¢ Debates (Contribuicées Para o Estudo do Brazil Social), Livraria Chardron de Lello & Irmao Editores, Porto, 1910, Pp. 279-280. Citacio de “O Duque de Caxias e a Integridade do Brasil’’. ARQUIPELAGO E CONTINENTE 163 do povo, da nacao contra as tendéncias dispersivas da de- sagregacao tribal de indios e africanos que se acham in- corporados em nossa vida. £ o gérmen da coesao ariana, nomeadamente portuguesa, que devemos acima de tudo fortdlecer, E urgente, sob pena de morte, largar os ata- lhos do federalismo dissolvente e caminhar com seguranca e afoiteza para a unidade. Sejam quais forem os tropecos e embaracos, é preciso deitd-los por terra,’3 Na Reptiblica, as forcas de integracao e desarticula- ¢40 operam em outras formas, com outros arranjos. No- vos ingredientes combinam-se com os antigos, renova- dus, Sao varios os acontecimentos assinalando manifes- tacdes desses processos distintos, antagénicos e combi-* nados: Canudos, Contestado, Revolta da Vacina, Revo- lugao Federalista de 1893, cangaco, padre Cicero; algu- mas expressiies regionais do tenentismo; ingredientes re- gionais na organizacao e nos desenvolvimentos da Re- volugéo de 1930; a Revolugao Constitucionalista de 1932, organizada por setores dominantes paulistas, com falas separatistas; a queima das bandeiras estaduais pelo go- verno da ditadura do Estado Novo, para reduzir a auto- nomia dos estados e impor a integracéo; a Marcha para Oeste organizada pelo Estado Novo, com base em ope- tacdes como a Expedigao Roncador-Xingu; a mobilizaco popular organizada pelo governacor gaticho Leonel Bri- zola em 1961, para defender a vigéncia da Constituicado de 1946 e impedir o golpe de Estado, preparado com ba- se na rentincia do presidente Janio Quadros; a emergén- cia das liderangas de Brizola no Rio Grande do Sul e Mi- guel Arraes em Pernambuco, nas quais se presumiam pro- jetos polfticos nacionais alternativos, ou mesmo opostos aqueles dos setores empresariais e militares predominan- tes no Centro-Sul. A Revolucao de 1930 seria inexplicdvel sem 0 jogo das forcas estaduais e regionais em luta para reequacionarem 3. Silvio Ro.nero, op. cit., pp. 332-333. 164 OCTAVIO IANNI x a sua posicao e influéncia no ambito do Estado nacional. E verdade que essa revolucao foi conduzida pelo tenen- tismo, no qual civis e militares ligados a setores médios manifestavam suas reivindicacées. E é também verdade que ela expressava o esgotamento do Estado oligdrquico e da economia priméria exportadora. Tratava-se, inclu- sive, de criar condicées juridico-politicas, econémicas, so- ciais e culturais para novos desenvolvimentos da econo- mia capitalista, com énfase progressiva na presenga do Estado, no planejamento governamental e na industria- lizacdo substitutiva de importagdes. Mas nao ha diivida de que a Revolucao de 30 manifestou também a revolta dos estados ‘‘periféricos’’ contra ‘0 monopélio do poder nacional pelos interesses econdmicos e politicos basea- dos nos estados de Sao Paulo e Minas Gerais. Eram es- tados e regides em luta pela reestruturagao do Estado na- cional, de modo a se sentirem melhor representados nesse Estado. “Temos, no Brasil — escreve Barbosa Lima Sobrinho —, wm poder central acima dos estados, mas o desenvol- vimento desigual das unidades federadas e a forca exces- siva de alguns estados trouxeram o desequilfbrio, a amea- ga de absorcao da influéncia dos estados pequenos, a pre- ponderdncia clara dos maiores, em todos os dominios da vida politica, desde as casas legislativas, sujeitas 4 acdo das grandes bancadas, até ao poder presidencial, gravi- tando naturalmente em torno dos eleitorados maiores, E contra a ameaga, ou possibilidade de hegemonia, organi- zavam-se os planos de defesa dos estados menores. Os quarenta anos de federalismo brasileiro resumem-se a uma luta continua contra a supremacia de alguns estados. Temos os estados lideres e os estados satélites; os esta- dos de primeira, de segunda e de terceira classe, segun- do podiam candidatar-se & presidéncia, a vice-presidén- cia da Reptiblica ou a coisa nenhuma.'’4 4. Barbosa Lima Sobrinho, A Verdade sobre a Revoluciio de Outubro, Grafico- Editora Unitas Limitada, Sao Paulo, 1933, p. 261. Em 1928 Manoel Bomfim ARQUIPELAGO E CONTINENTE 185 O golpe de Estado de 1964 nao estava isento do jogo das forcas estaduais e regionais. A repercussao nacional das atividades de Miguel Arraes, com base em Pernam- buco, e Leonel Brizola, do Rio Grande do Sul, preocu- pava bastante nao sé a burocracia militar, mas também as classes e setores dominantes, que temiam perder uma parte da influéncia nas diretrizes do poder central. Nao foi por acaso que o golpe se organizou principalmente nas cidades de Sao Paulo e Rio de Janeiro, com a colabo- racao ativa dos governadores Adhemar de Barros e Car- los Lacerda, em associacao com o Ipes, o Ibad, alguns generais e 0 embaixador norte-americano Lincoln Gor-, don. Estavam em marcha as forgas da ‘‘coesdo’’. Em to- dos os setores importantes da sociedade, 0s. governos mi- litares adotaram medidas de‘‘‘integracao’’ n. cional) da luta pela terra a educacdo, da previdéncia social a cultu- ra, dos estados as regides. No pensamento militar, a na- cao 6 a patria. Em 1985, as vésperas de assumir o governo federal, um momento importante no processo de ‘‘abertura len- ta, gradual e segura’’, Tancredo Neves foi obrigado a re- colocar alguns aspectos essenciais da questo nacional. o Estado. Reconhecer que ‘a maioria da sociedade nao se representada no poder estatal; que estados e re- gides, grupos raciais e classes sociais, na cidade e no cam- po, se sentiam divorciados das orientacées do Estado. Mais uma vez, a dispersdo era evidente, a nacao procu- rava retomar 0 seu processo formativo, encontrar a sua fisionomia. dizia que a mudenca de nomes — capitanias, provincias, estados — resumia “a evolugao politica do Brasil’. E acrescentava: '"A antiga antipatia — das pro- vincias contra a vorte, substituiu-se outra, mais pronunciada e mais grave -— dos pequenos estados contra as. grandes unidades, que em si inclufram todo © prestigio e todo o poder da nado”. Manoel Bomfim, O Brasil Nagio, 2 to- mos, Livraria Frencisco Alves, Rio de Janeiro, 1931, tomo Il, p. 201. O prefi- cio do autor é datado de 1928. 166 OCTAVIO LANNI “Quero convidé-los a visualizar, num futuro nfo muito distante, uma nag&o em que haja sido abolida a insegu- tanca gerada pela miséria, pela ignorancia e pelo desem- prego. Uma nacao em que todos os cidadaos possam al- mejar melhores condicées de vida e alcancé-las através de seu préprio esforco. Uma nacao em que os menos afortu- nados e os menos aptos nao sejam condenados a perma- necer A margem do corpo social, mas dele recebam apoio solidério com vistas & sua integracao na coletividade. Uma nagao que, seja em pequenas e médias cidades, nos cam- pos ou nas grandes metrépoles, tenha orgulho de haver sabido organizar-se de forma a melhor usufruir das rique- zas geradas por sua iniciativa e por seu trabalho, Uma na- ao que, tendo podido atender as necessidades basicas de - seus cidadaos, bem como a suas aspiracées de consumo e lazer, disponha ainda de recursos excedentes para in- vestir na continuada melhoria de seu padrao de vida.’ O Brasil talvez no seja mais um arquipélago. Mas ainda esté atravessado por sérias desigualdades, As mes- mas forcas que trabalham no sentido da integra¢o pro- movem a disperséo. Tanto assim que o discurso do po- der, no presente, continua a fazer o apelo da redugao das diferencas regionais, da democracia racial, da paz social. 5. Tancredo Neves, “Vamos Trabalhar”, discurso preparado para a posse como presidente da Reptiblica, O Estado de , Paulo, Sio Paulo, 1° de marco de 1985, p. 7. 2. CICLOS E EPOCAS O Nao é demais lembrar que algumas das rafzes da questo nacional se localizam na histéria dos ‘‘ciclos’”’ e épocas da economia brasileira. A economia primaria ex- portadora, que predominou ao longo dos séculos XVI ao XX, assinala alguns dos tragos marcantes dessa proble- mitica. Estabelece as bases das diversidades e desigual- dades sociais, econémicas e outras que aparecem como locais, estaduais, regionais e raciais. A sucessao dos ciclos e épocas das atividades econd- micas predominantes, aqui ou 14, voltadas para o mer- cado externo, marca os lineamentos dos estados e regides, da geografia e histéria. Assinalam os movimentos do po- voamento, colonizac4o, escambo, escravidao, fazendas, engenhos, sertées, fronteiras, povoados, cidades, provin- cias, estados e regides. £ af que se enraiza o desenvolvi- mento desigual e contraditério, caracteristico da econo- mia e sociedade no Brasil. Grande parte da histéria, se- no toda ela, esta assinalada no presente, como um com- plexo de diversidades e disparidades, no qual se consti- tuem e dispersam estados e regiGes, racas e classes, for- mas de producao material e espiritual. £ como se fosse um caleidoscépio de tempos e lugares. 168 OCTAVIO LANNI A Amazénia ficou marcada pelo extrativismo e os ci- clos da borracha. O nordeste pelo aguicar. Minas Gerais e Goids pela mineracao. Rio de Janeiro e Sao Paulo pelo café. Parand e Santa Catarina pela erva-mate e coloniza- a0. O Rio Grande do Sul pela pecuaria e colonizacio. Em cada lugar, provincia, estado ou regiao, desenvolve- se a sociedade e a economia, a politica e a cultura. Sao distintas formacées sociais no Ambito de uma formacao social abrangente, integrativa e contraditéria. Tanto as- sim que a industrializaco se sobrepée as diversidades. Pode impregné-las e recrié-las. “A industrializacao acentuou desigualdades nas diversas escalas geogrdficas, seja entre macrorregides, seja a nivel micro, como entre componentes da mesma drea metro- politana, Naturalmente, nao estamos nos referindo sim- plesmente a diferenciacdes quanto a especializagao em de- terminadas atividades, mas as conseqiiéncias, que dizem respeito a desigualdades, que se acentuaram, quanto a n{- veis de desenvolvimento, e que se traduzem em grandes desvios de varidveis como renda, niveis de instrucao e outras.’”6 A industrializacao e a urbanizacao, cada vez mais ex- tensivas, influenciando amplos setores da sociedade, pro- vocam continuos movimentos de trabalhadores, capitais, tecnologias, empresas, organizacoes privadas, agéncias governamentais. Mesmo assim, no entanto, subsistem as diversidades e desigualdades sociais, econdmicas e ou- tras, de par em par com as regionais e raciais. Ou me- lhor, aquelas escondem-se nestas. O modo pelo qual se deu e continua a dar-se a for- macao da sociedade brasileira cria e recria as diversida- des e desigualdades raciais, nas quais se mesclam tam- bém as regionais. Tanto assim que o pensamento social brasileira revela grande interesse pelo tema, procuran- 6. Werner Baer, Pedro P. Geiger e Paulo R. Haddad (coords.), Dimen- sées do Desenvolvimento Brasileiro, Editora Campus, Rio de Janeiro, 1978, pp. 13-14. CICLOs E EPOCAS 169 do conhecé-lo, equacion4-lo. Em alguns casos, houve e hé a tentativa de conjugar as diversidades regionais as raciais, e vice-versa. Em geral, escondendo as reais desi- gualdades sociais, econdmicas, polfticas e outras. Essa é uma realidade observada por muitos. Mas ela nao se constitui apenas em um momento descritivo da realidade. £ explicativa. Sem o reconhecimento dessa multiplicidade dispersa no espaco da geografia e no tem- po da histéria, seria impossfvel compreender um aspec- to basico do dilema da questo nacional. Gilberto Freyre interessou-se bastante por essa pro- blemética. O tema dasidiyersidades regionais’é recorrente em seus escritos. Reconhece que a multiplicidade regio- nal (compreendendo condicées sociais, econdmicas, ra- ciais, culturais e outras) é um produto da histéria, sur- tos de povoamento, colonizagao etc. E procura explicar qual é a situacao no século XX, admitindo que o dilema continua de pé: integracao e/ou dispersao. “Continente e ilha: antagonismos que o Brasil ou concilia e equilibra, seguindo alids a geografia, ou se sujeitaa uma verdadeira guerra civil na sua psicologia social e dentro de sua cultura’’,” Mas insiste em que nao ha por que exagerar na integra- cao. Prefere a multiplicidade integrada. “Nunca que ao Brasil acontega a desgraca de uniformizar- se filipicamente num império ou de integrar-se num sis- tema de uniformidade continental ou de rigida, dura e ab- soluta singularidade nacional de cultura, com o sacrificio de suas diferengas regionais.’’8 7. Gilberto Freyre, Continente e Ihe, Bdigbes da C.E.B., Rio de Janeiro, 1943, p. 37. 8. Ibidem, p. 51. Consultar também: José Honério Rodrigues, O Conti- nente do Rio Grande, Edigdes Sao José, Rio de Janeiro, 1954; Golbery do Couto e Silva, Aspectos Geopoliticos do Brasil, Biblioteca do Exército Editora, 1957 (sem indicagdo da cidade). 170 OCTAVIO IANNI O que esté em causa é a relagao da sociedade consi- go mesma, da sociedade civil com o Estado. A ria. dos ciclos e épocas institui uma singular dispe: “tendimento do modo pelo qual o Estado controla, aco- moda ou dinamiza tanto os estados e as regides como os pos raciais ¢ as classes sociais depende do entendi- ‘mento das forcas sociais que criam e recriam a integra- Gao e a dispersao. A sucessao e combinacao das ativida- ‘des sociais e econdmicas, entre outzas, sintetizam-se nas seguintes expressdes: economia primdria exportadora, en- clave, industrializacao substitutiva de importacGes, asso- ciacio de capitais nacionais e estrangeiros, sistema eco- némico articulando principalmente trés setores produti- vos: estatal, privado nacional e estrangeiro, crescente mo- nopolizacéio do Estado pelo grande capital financeiro in- ternacional associado com o nacional, e assim por dian- te. Em todos os casos, ao longo da histéria e da geogra- fia, desde o litoral as terras do sem-fim na Amazé6nia, des- de o descobrimento ao século XX, hé sempre uma forte determinacao externa presente nos varios surtos de in- tegracao e dispersao. O emaranhado do presente contém o emaranhado da histéria. Por isso, também, o desenvolvimento desi- gual, contradit6rio e combinado é da maior importancia para a explicacéio da formacao social brasileira, das con- icdes de articulacao entre aGociedade e o Estad& O Brasil parece um todo no qual as partes se desencontram, ex- traviam-se. “Pox forca das contingéncias do mundo moderno e con- temporaneo em que se situa a histéria do Brasil, a nossa evolucdo se precipitou num ritmo irregular e espasmédi- co que o pais em conjunto nao péde acompanhar. Acumularam-se, por isso, lado a lado, e freqiientemente numa confusio inextricdvel, formas econémicas de con- traste chocante que pertenceriam, numa evolucao mais regular, a épocas largamente afastadas entre si. ... O tem- po se projetou aqui no espaco, facultando ao historiador CICLOS E BPOCAS mw um método original de pesquisa; como 9 espaco.se defi. ne pelo tempo, concedendo ao socidlogo e ao economis- ta, tanto como ao gedgrafo, um ponto de vista temporal ‘Particularmente fecundo.’’ A{ pode estar uma chave da recorréncia do autorita- rismo, no predominio do Estado sobre a sociedade. Os grupos e classes dominantes, influenciando as diretrizes do poder estatal, podem manipular as diversidades, po- dem até mesmo folclorizar as diferencas regionais, escon- dendo as desigualdades sociais e outras que fundam os interesses predominantes. Reciprocamente, a dispersao geogréfica e histérica pode dificultar as manifestagdes dos grupos e classes, estados e regides. Torna-se mais dificil 0 processo polftico por meio do qual se desvendam as desigualdades encobertas pelas diversidades. | ando ag diversidades nao escondem desigualdades, podem ser mais auténticas, tornam-se mais bonitas, transparentes. 9. Caio Prado Jiinior, Diretrizes para uma Politica Econdmica Brasileira, Grifica Urupés, Sao Paulo, 1954, pp. 6 € 30-31. 3. DIVERSIDADES E DESARTICULAGOES 0 Se aceitamos a idéia de que o Brasil parece uma de- sarticulacao, nao hé diivida de que os seus dois pédlos ex- tremos est&o no nordeste e no centro-sul. £ claro que es- sas regides, por sua vez, sao bastante diversificadas, distribuem-se em unidades administrativas e segmentos sociais também desiguais. Na realidade, hd vdrios nor- destes, da mesma maneira que no centro-sul 0 estado do Rio Grande do Sul tem uma histéria toda sua. Além dis- so, cabe lembrar que a Amaz6nia e 0 centro-oeste com- péem outras polarizagdes do maior interesse para que se possa explicar a questao nacional. Nestas décadas, essas tém sido “‘fronteiras’’ de expansao, negécios, atividades. agropecudrias, mineradoras, geopolfticas etc., que mui- to tém servido aos interesses que prevalecem no ambito do poder central, Mas é inegdvel que no século XX o nor- deste, simbolizado na cidade de Recife, e o centro-sul, na de Sao Paulo, constituem as duas extremidades da ca-. leidoscépio brasileiro, fundamentais para compreender- se a questao nacional. O nordeste compreende a regio em que se concen- travam as bases da vida da Colénia e do Império. Uma parte fundamental da histéria brasileira desenvolveu-se DIVERSIDADES E DESARTICULACOES: 73 a partir das forcas sociais que af se manifestavam. A cul- tura e as manifestacdes mais importantes do pensamen- to brasileiro floresciam e expandiam muitas vezes a par- tir do horizonte estabelecido pela histdria brasileira fun- dada nessa regido. A Escola do Recife, que se desenvol- veu desde meados do século XIX e desdobrou-se pelo XX, é uma express4o muito forte dessa histéria. Talvez seja mesmo possivel dizer que Gilberto Freyre é uma das tl- timas e mais notdveis expressdes do que se convencio- nou chamar a Escola do Recife. Trata-se de um intelec- tual que propée toda uma nova interpretacio do Brasil, a partir dos horizontes descortinados desde a histéria do nordeste. Afirma que o nordeste é 0 ‘‘refigio da alma do Brasil’, endossando a fala de Oliveira Lima. Af se for- talece mais “‘a brasilidade; o espfrito, o sal, o tempero mais vivo que ja se sente ir animando uma cultura distintamente brasi- leira, saida da regio mais endogamica do pafs para en- trar em combinac¢Ges novas com as energias de regides mais exog&micas’’.10 E acrescenta que ’o nordeste continua a parte, sob mais de um aspecto, mais brasileira do Brasil’’.11 No centro-sul passaram a concentrar-se os interes- ses econémicos e polfticos predominantes na Republica. Alids, a Abolicdo da Escravatura e a Proclamacao da Re- publica, em 1888-1889, assinalam a emergéncia dessa re- giao no 4mbito de um aparelho estatal cada vez mais ati- vo na economia e em outros setores da vida social. Um Pprocesso que jd se achava em curso em meados do sécu- 10, Gilberto Freyre, Regido e Tradigio, 2° ed., Grifica Record Bditora, Rio de Janeiro, 1968, p. 198. Citacdo do capitulo “Aspectos de um Século de Tran- sigdo no Nordeste do Brasil’. 11. Biidem, p. 198. Consultar também Hlide Rugai Bastos, “Gilberto Freyre e a Formacio da Sociedade Brasileira”, tese de doutorado, PUC, Sao Paulo, 1986, mimeo. Nesse estudo fundamental sobre o pensamento de Gilberto Frey- re, 08 capftulos “Etnias e Cultura” e “’Tropicologia”’ examinam aspectos bé- sicos da questéo nacional. 174 OCTAVIO IANNI “Jo XIX acelerou-se nas tiltimas décadas desse século e ad- quiriu um ritmo ainda mais intenso ao longo do XX. A vida econémica, polftica e cultural do pafs passou a ser progressivamente influenciada pelos interesses, os temas e as forcas sociais que passaram a predominar no centro- sul, na esfera do poder estatal brasileiro, e, a partir daf, nas outras regides do pats. Uma parte importante do pensamento social brasi- leiro passou a ser produzida e reproduzida em universi- dades, meios de comunicacao de massas e outros seto- res de atividades intelectuais localizados em diferentes lugares dessa regido. A Universidade de Sao Paulo sim- boliza um pouco desse pensamento, no que ele tem de original e emprestado, nacional e paulista. Nessa perspectiva, uma parte dos escritos de Caio Prado Jtinior e Roberto C. Simonsen expressa algo do ho- rizonte paulista, isto é, ainda mais capitalista, na viséo do Brasil. Roberto Simonsen preconizava medidas para diver- sificar a economia brasileira, retird-la da exclusiva depen- déncia de ‘‘produtos coloniais’’, sujeitos a crises oriun- das de fora e 4 concorréncia das produgGes de outros pai- ses coloniais, dependentes ou associados. Defende a in- dustrializagéo do pafs, com base na incipiente industria que se vinha desenvolvendo aos poucos e na colabora- ao do capital e da tecnologia estrangeiros. E propGe a planificacao da economia brasileira, tanto para defendé- la de crises como para modernizar a agricultura, além de favorecer a industrializacao. Seriam criadas ‘‘industrias- chave, metaltirgicas e quimicas, capazes de garantir uma telativa auto-suficiéncia ao nosso parque industrial’, sem- pre tendo em conta os movimentos da economia inter- nacional. “‘A planificagao do fortalecimento econémico nacional de- ve, assim, abranger, por igual, o trato dos problemas in- DIVERSIDADES E DESARTICULAGOES ~ 175 dustriais, agricolas e comerciais, como o dos sociais e eco- némicos, de ordem geral.’”!2 Caio Prado Jiinior constata as limitagSes inerentes ao “sistema produtivo tradicional’’, sempre sujeito a crises de origem externa e com potencial limitado de diversifi- cacao. Nota que a diferenciagao das atividades produti- vas agricolas e os desenvolvimentos da industria, entio ainda incipientes, abriam outras perspectivas. Fala em “novas formas econ6émicas’’, superando ou recriando as anteriores, que ‘‘conseguirao manter a vitalidade brasi- leira. Tais formas representam os primeiros passos de uma economia propriamente nacional, voltada para den- tro do pafs e as necessidades préprias da populacao que o habita’’. Uma economia nacional que se beneficiou da Abolicao da Escravatura, da imigracdo, da formacao e am- Pliag&o de ‘‘um mercado interno’’. Progressivamente, a producio agricola e industrial poderd atender as exigén- cias do mercado interno crescente. Esse era um amplo processo de transformacao que se polarizava no centro- sul. Tanto assim que alguns dos seus tracos j4 apareciam. nftidos af. ‘‘O exemplo de S. Paulo e em geral do setor sul do pais é bastante ilustrativo.’’ Desde fins do século XIX 0 eixo da sociedade brasi- leira deslocava-se do nordeste para o centro-sul. No ini- cio, esse eixo estava simbolizado na cana e no café, co- mo duas economias ‘‘tropicais’’ da maior importancia. Uma simbolizava a Colénia e o Império, A outra passa- va a influenciar e simbolizar a Republica. Depois, de for- ma cada vez mais acentuada ao longo da Republica, es- se eixo passou a estar simbolizado na industria. Uma in- duistria que povoa a cidade e invade o campo, provoca migragdes e generaliza a luta pela terra, desenvolve as 12, Roberto C. Simonsen, Evolupio Industrial do Brasil e Outros Estudos, Companhia Bditora Nacional, Sio Paulo, 1973, pp. 304-305. Citacdo do capf- tulo “A Planificagio da Economia Brasileira’, escrito em 1944. 13, Calo Prado tinior, Hist6ria Econdntica do Brasil, 3° ed., Editora Brasi- liense, S80 Paulo, 1953, pp. 292-293. 176 OCTAVIO IANNI classes sociais e recria as diferengas raciais, recobre po- voados, vilarejos e comunidades, dando passo ao mer- cado, 4 mercadoria, ao lucro, aos ritmos do capital, aos princfpios do contrato. Aos poucos, o Brasil fica paulis- ta, isto é, capitalista. E assim se recriam as diversidades e desigualdades regionais, nas quais sobressaem o nordeste eo centro-sul. Note-se que essas € outras diversidades se recriam se- gundo as forcas sociais, econémicas e outras que predo- minam no centro-sul e influenciam decisivamente o Es- tado. As principais linhas politicas dos governos repu- blicanos (olig4rquicos, populistas, militares e da Nova Re- priblica) tomam em conta 08 interesses das forcas que pre- dominam no centro-sul — naturalmente sempre levan- do em conta alguns interesses olig4rquicos regionais. Faz tempo que a dispersao brasileira é uma das bases dos ar- ranjos dos blocos de poder. Os setores dominantes sem- pre manejam as diversidades, inclusive tornando o Es- tado cada vez mais organizado, abrangente e forte — em detrimento da democracia. 4. UMA NACAO EM BUSCA DE CONCEITO O O Brasil ainda nao é propriamente uma nagao. Pode ser um Estado nacional, no sentido de um aparelho es- tatal organizado, abrangente e forte, que acomoda, con- trola ou dinamiza tanto estados e regides como grupos taciais e classes sociais. Mas as desigualdades entre as unidades administrativas e os segmentos sociais, que comp6em a sociedade, sao de tal monta que seria dificil dizer que o todo é uma express4o razo4vel das partes — se admitimos que o todo pode ser uma expressao na qual as partes também se realizam e desenvolvem. Os estados e as regides, por um lado, e os grupos e as classes, por outro, vistos em conjunto e em suas re- laces muituas reais, apresentam-se como um conglome- rado heterogéneo, contraditério, disparatado. O que tem sido um dilema brasileiro fundamental, ao longo do Im- pério e da Republica, continua a ser um dilema do pre- sente: o Brasil se revela uma vasta desarticulacao. O to- do parece uma expressio diversa, estranha, alheia as par- tes. E estas permanecem fragmentadas, dissociadas, reiterando-se aqui ou 14, ontem ou hoje, como que ex- traviadas, em busca de seu lugar. E verdade que o Brasil est4 simbolizado na lingua, hino, bandeira, moeda, mercado, Constitui¢ao, histéria, 178 OCTAVIO IANNI santos, herdis, monumentos, rufnas. H4 momentos em que 0 pafs parece uma nacao compreendida como um todoem movimento e transformacao. Mas sao freqiientes as con- junturas em que se revelam as disparidades inerentes as diversidades dos estados e regides, dos grupos raciais e classes sociais. Acontece que as forcas da dispersao fre- qiientemente se impGem aquelas que atuam no sentido da integracdo. As mesmas forcas que predominam no ambi- to do Estado, conferindo-lhe a capacidade de controlar, aco- modar e dinamizar, reiteram continuamente as desigual- dades e os desencontros que promovem a desarticulacao. Os estados e as regides nao estao articulados de mo- do a se beneficiarem reciprocamente, formando um to- do superior, no qual também se tornam superiores. Ao contrério, as relagGes entre eles, diretamente ou pela me- diagao do aparelho estatal, revelam desigualdades per- manentes, muitas vezes crescentes. E verdade que ha po- Ifticas adotadas pelo governo central com objetivos regio- nais, destinadas a estabilizar ou reduzir as desigualda- des sociais, econémicas, polfticas e culturais. A Inspeto- ria de Obras contra ds Secas, o DNOCS e a SUDENE, para o nordeste, assim como a SPVEA e a SUDAM, pa- ta a Amaz6nia, expressam muito bem o intuito de esta- bilizar ou reduzir algumas desigualdades. Mas o que ocor- te é outra coisa. Essas e outras organizacées criadas pelo poder central consolidam ou mesmo acentuam as desi- gualdades. A despeito de parecerem débeis ou inefica- Zes, 0 que se constata é que essas organizacdes sio em- polgadas por forcas mais poderosas, que as esvaziam ou instrumentalizam. Algo semelhante ocorre com o SPI, ini- cialmente, e a FUNAI, depois. Sao neutralizados pelas forcas interessadas nas terras ind{genas, como reserva de mercado ou bases de atividades extrativas, mineradoras, pecudrias ou agricolas. Forcas que também se interessam pela forca de trabalho indfgena, mesmo quando falam na “emancipacéo”’ do indio. Isto é, os processos econémi- cos, polfticos e culturais que expressam 0 jogo das for- gas sociais predominantes no ambito de sociedade, e in- UMA NACAO EM BUSCA DE CONCEITO 179 fluentes no aparelho estatal, levam na sua onda as orga- nizacdes e as suas intencdes. . . Os grupos raciais e as classes sociais nao esto arti- culados de modo a se beneficiarem reciprocamente, for- mando um todo superior, no qual também se tornam su- periores. Ao contrério, as suas relagSes recfprocas, dire- tas ou intermediadas pelo aparelho estatal, reiteram, re- criam ou mesmo aprofuridam as desigualdades. E ébvio que hd freqiientes rearranjos, no jogo dos grupos raciais, dentre os quais encontram-se negros, indios, brancos de diversas procedéncias nacionais. Sem esquecer que es- ses grupos se inserem, em distintas proporcdes, nao s6 em classes sociais, mas também se distribuem em dife- rentes estados e regides. Inclusive, é certo que hd freqiien- tes rearranjos no jogo das classes sociais, em suas rela- ges recfprocas e em suas distribuicées relativas nos es- pacos dos estados e regides. Criaram-se institutos jurfdico- politicos, tais como a Consolidac&o das Leis do Trabalho (CLT), o Estatuto do Trabalhador Rural (ETR) e todo o sistema previdenciério, de modo a atender reivindicagdes de boa parte dos grupos e classes que compdem a maio- tia da populacdo. Em outros termos, o SPI e a FUNAI fazem parte das polfticas destinadas a acomodar setores sociais, neste caso ‘‘{ndios”’ e ‘‘brancos’’. Também a Lei Afonso Arinos de 1951 e o pardgrafo 42 do artigo 5° da Constituig&io de 1988, proibindo e punindo o preconcei- to racial, entram nessa problemética. No ambito da cul- tura, desde o sistema de ensino aos meios de comunica- Gao de massas, desde o futebol ao carnaval, os governan- tes e os funcionérios da burocracia estatal parecem em- penhados em fazer algo no sentido de controlar, acomo- dar ou dinamizar as relacdes entre os grupos, as classes eo Estado, de modo a conformar a nacdo. Mas 0 que ocor- te é outra coisa. Tanto os institutos juridico-pliticos co- mo o sistema de ensino e os meios de comunicacaio de massas nfo reduzem as disparidades que caracterizam a situacao e as realaces dos grupos e classes. Ha forgas sociais mais poderosas, empolgando boa 180 OCTAVIO IANNI parte dos meios disponfveis e fazendo com que a imagem de uma vasta desarticulacao predomine sobre a hipétese da integraco. Isto é, os grupos e classes raramente se ex- pressam como povo, compreendido como uma coletivida- de de cidadaos. Ao contrério, o que subsiste é a imagem de uma coletividade de trabalhadores, Nao parece uma na- Gao o pafs em que a populac&o ainda nao se tornou povo. A cidadania continua a ser um elo crucial dessa iste: -tia. Coloca varios aspectos da questao. Diz respeito a co- mo 0 cidad&o aparece, ou nao aparece, na fisionomia da nagdo. Em 1823, os constituintes se perguntavam como de- finir “brasileiro” e “cidado brasileiro’, j4 que a populacao se compunha de negros escravos e livres, trazidos da Africa e nascidos no pats, indios arredios, administrados e assi- milados, brancos pobres e brancos ricos, analfabetos e al- fabetizados, crist&os e fetichistas. Em 1891, os constituin- tes decidem que todos os estrangeiros (imigrantes euro- peus de diferentes procedéncias nacionais, africanos de distintas nacGes etc.) que nao declarassem nada em con- trério, no prazo de seis meses, passariam a ser considera- dos brasileiros — nao propriamente cidadaos brasileiros. Em 1934, os constituintes se perguntam sobre os imigran- tes europeus, preocupados com as suas idéias politicas (sin- dicalistas, anarquistas, ‘socialistas, comunistas e outras), interessados em garantir a ordem social, o status quo. Em 1988, os constituintes sao obrigados a examinar aspectos importantes da cidadania do indio e do negro. Ao fim do século XX, portanto, a sociedade brasileira mostra que ain- da nao equacionou adequadamente o problema racial, se tomarmos em conta a situacao real do que poderfamos de- nominar nacionalidades ind{fgenas e afro-brasileiras. Sob o aspecto social, racial, regional e cultural, entre outros, continua em aberto a questao nacional. Em pers- pectiva ampla, a histéria do Brasil pode ser vista como a de uma nacido em processo, a procura da sua fisiono- mia. E como se estivesse espalhada no espaco, dispersa no tempo, buscando conformar-se ao nome, encontrar- se com a prdépria imagem, transformar-se em conceito.

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