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Ronaldo Brito Experiéncia critica Organizagao Sueli de Lima COSACNAIFY 2y 29 32 34 39 44 48 33 64 70 74 89 OF 99 104 116 122 128 131 135 139 1s 160 164 167 172 Uma porta para o moderno, pot Sueli de Lima PARTE L Picasso (1881-1973) O acontecimento artistico Ivan Serpa: um pintor contra o estilo A arte colocada a nu pelos artistas, mesmo A colonizagao pelas cores Com 0 espaco construido As ligdes avangadas do Mestre Pedrosa Anilise do circuito Agora, a arte Casa da titia O moderno e 0 contemporaneo: 0 novo e 0 outro novo Manet com Miré Malasartes: um depoimento pessoal Manuel Mousinho, um polemista secreto Contra 0 culto da ignorancia Pos, pré, quase ou anti? O samba cubista O surrealismo Melhor do que Matisse Brasil: boa-fé moderna jeitinho moderno brasileiro Fato estético e imaginagao histérica PARTE 2 $6 olhar [Alberto da Veiga Guignard] Sobre uma escultura de Amilcar de Castro A exposigao-armadilha [Antonio Dias] Simbolos e clichés [Antonio Dias] Os gestos de Manuel [Antonio Manuel] 176 180 183 190 195 199 202 210 275 279 284 286 289 292 300 306 Bu 344 Lirica fisica [Antonio Manuel] Totens abstratos [Carlos Zilio] Traco de caricaturista incorporou ao género a economia elegante [Cassio Loredano] Desvio para o vermelho [Cildo Meireles] Eduardo Sued: uma obra para a inteligéncia do olhar Um minimo valor: 0 mundo |Eduardo Sued| A pintura pensante [Fduardo Sued] Improvisos reflexivos [Elizabeth Jobim] Fabio Miguez: pinturas recentes Forma do vazio [Fernanda Junqueira} Monumentos provisérios [Franz Weissmann] Sopro de corpo [Gabriela Machado] Aventuras da ordem [Hércules Barsotti e Willys de Castro] O eterno inquieto [Iberé Camargo} Ciclistas metafisicos [Iberé Camargo] Tragico moderno [Tberé Camargo] Uma linguagem do corpo [lole de Freitas] Pranchas Desde 0 inicio, uma obra que recusa solugdes faceis [Jorge Guinle] Certeza estranha [José Resende] Exercicio de mundo [José Resende] Segall, 0 expressionismo do sobrio Esculturas transitivas [Lygia Clark} O fluido dos sdlidos [Mira Schendel] Singular no plural [Mira Schendel] Goeldi: 0 brilho da sombra Espago em ato [Richard Serra] Contraria geometria [Sean Scully] A ordem ea loucura da ordem [Sergio Camargo] Enigmas andnimos [Sergio Camargo] 316 319 323 325 330 333 337 347 347 348 373 381 Para uma urgente reflexao [Sergio Camargo] Légica e lirica [Sergio Camargo] Desenhos p6s-freudianos [Tunga] Chumbo e seda [Tunga] O desequilibrista [Umberto Costa Barros] Racional e absurdo [Waltercio Caldas] O espelho critico [Waltercio Caldas] Sobre a organizadora Sobre 0 autor Bibliografia Indice remissivo e bibliografico Créditos das imagens Arte esté em apagar uma a uma as palavras multiplicar assim 0 aspecto geral do nada tumultuosos cripticos fabulosos nadas matéria da vida exata vextualmente voldtil Ronaldo Brito, “Demiurgo”, in Quan do singular Para minha filha, Alice Uma porta para oO moderno A crhica é concebide de um ponto de vista exclusive, mas descortina um mésimo de hortzontes. Charles Baudelaire Sob 0 carater contradit6rio de analisar algo que continua a desenvolver-se, realize’ esta pesquisa a partir dos textos criticos de Ronaldo Brito escritos 1nos tiltimos trinta anos, interessada no testemunho que este material repre- senta para o debate da arte no Brasil! Nele se encontra um pensamento que sempre buscou compreender @ produgio contemporanea brasileira, con- frontando-a com a norte-americana € a européia, sem aceitar qualquer ves- tigio de domesticagao no confronto. © resultado € um discurso original capaz de dar consisténcia a reflexdo desenvolvida no Brasil, o que torna seu autor um importante colaborador da sdlida autonomia que viria a ser con- quistada pela nossa produgao artistica contemporanea, Em 1972, Ronaldo Brito, entio com pouco mais de vinte anos, come- cava a escrever para 0 jornal Opinido, assumindo uma posigao de observa- dor que lhe permitia desenvolver uma experiéncia livre — mas nao desinte- ressada — do pensamento intelectual brasileiro e internacional. Ha um saber jornalistico que submete © processo cultural a determinadas torgées que esto longe de serem neutras porque interfere nitidamente na leitura dos fatos culturais, modelam a ideologia da cultura e participam decisivamente 1. Este trabalho contou com o apoio do v Programa de Bolsas RioArte € com a contribui- gio de muitos artistas ¢ amigos do autor, que ab a pesquisa num verdadeiro mutirao. L importante ainda esclarecer que apesar da ajuda pre- ciosa de Ronaldo Brito, sua posigio neste trabalho foi marcadamente distanciada, a fim de “am suas casas ¢ arquivos, transformando garantir a liberdade nec fria para o desenvolvimento do projet. Todos os textos foram selecionados exclusivamente por mi n ¢ so apresentados na integra sem qualquer revisio ou comentario do autor. da montagem dos circuitos ideoldgicos. Sob esse Angulo, o jornalismo cul- tural se compara a um posto de observa¢do; ocupar essa posicdo significa, sobretudo, aceitar as regras e fungdes do observador. Significa também desenvolver um pensamento que toma impulso através da forga da expe- riéncia no contato direto com os fatos, os artistas € as obras. Ainda estudante de jornalismo, curso que nao coneluiria, Ronaldo Bri- to deu inicio a seu trabalho como critico de arte, num periodo caracterizado pelo “vario cultural” que sucedeu ao golpe militar de 1964, em meio a um arido terreno onde os melhores cérebros e muitos artistas tiveram que aban- donar o pais, mas que, apesar de todos os “contras”, nao foi uma época per- dida. Em meio ao siléncio imposto, existia uma certa vitalidade, & qual seu trabalho fez eco. O grupo a que 0 jovem critico estava ligado descobria que o canone ideoldégico vedava 0 acesso 4 modernidade. Seu movimento diri- gia-se no sentido oposto ao que o senso comum da esquerda desejava: ndo aceitavam Chico Buarque como seu representante, como também nao acre- ditavam na arte engajada e sim no experimentalismo artistico desenvolvido por José Resende, Waltercio Caldas, Cildo Meireles e Tunga (entre outros). Foi no debate cultural intensificado pela imprensa alternativa (Pas- quim, Opinido € Movimento eram, juntos, responsaveis pela circulacao de cerca de 70 mil exemplares) que a renovagio da vida cultural carioca ganhou impulso, © semandrio Opinido entrou fundo no mundo universita- rio, circulava com um encarte do jornal francés Le Monde e publicava regu- larmente artigos do The New York Review of Books. Ronaldo Brito lia se- manalmente o material que chegava da Franga e dos Estados Unidos para escrever seus textos. O quadro de articulistas no qual estava inserido bus- cava na esquerda mundial projetos de militancia desligados da velha pro- posigdo comunista. Na segao cultural? na qual colaborou, de forma irregu- lac, do primeiro ao tiltimo mimero, a postura ideoldgica foi marcada por uma posic&o critica ao dogma do nacional-popular, que de certa forma marcava a esquerda tradicional. Era um jornal que, mesmo tendo sobrevi- vido durante cinco anos (1972-77), esteve constantemente envolvido com a censura, tendo sido, inclusive, alvo de um atentado a bomba. 2. Naoca 10, a editoria cultural era de responsabilidade de julio Cezar Montenegro, com quem Ronaldo deseavolveu uma significativa parceria, 12. Nesse periodo, Ronaldo Brito escrevia sem ser muito importunado pela censura militar, provavelmente porque as questdes que abordava passavam longe do que os censores identificavam como perigoso. En- quanto alguns intelectuais transferiam para o al-5 (Ato Institucional n° 5), para a censura e para a cultura de massa a responsabilidade pelo empo- brecimento cstético e cultural, outros, mesmo que na contramio, destaca- vam-se tornando-se agentes ativos na produgao de idéias. E nesse ponto que se insere a produgao underground da contracultura. Com os canais tradicionais de distribuigio vedados, artistas, intelectuais, cineastas ¢ jo- vens poetas vio se utilizar de meios mais artesanais de produgio e comu- nicago — como os jornais de circulagdo restrita, as edigdes limitadas de livros e textos e 0 cinema em super-oito — para produzir seus trabalhos. A poesia que Ronaldo Brito realizava, nessa época, nunca esteve identifica da com o movimento underground, mas o jovem critico participava, mes- mo que indiretamente, da busca por outros espacos de expressao, ao transformar os catélogos das exposigdes, geralmente com superficiais apresentagdes dos artistas, num espaco importante para a reflexao, por meio da publicagao de textos mais densos, em que a propria idéia de co- municabilidade habitualmente utilizada era ofendida. Valorizando o tex- to critico, transformava os catalogos de exposicdes de arte num produto de mentalidade experimental, resultante das pesquisas desenvolvidas pelo grupo a que estava ligado. Anos antes, a partir do movimento neoconcreto no Rio de Janeiro, a critica reflexiva fora acrescida de uma nova dimensao, poética, e o pensa- mento de Ronaldo Brito iria se desenvolver sob essa influéncia, até porque seu interesse pela poesia era muito anterior, o que de certa forma viria a permear todo o seu trabalho. E claro que ele nao foi 0 tinico a explorar, € de certa forma até a se apoiar, na intimidade entre o texto poético € 0 cri co. Mario de Andrade e Augusto de Campos, para citar alguns brasileiros, também 0 fizeram. Assim, nao foi uma coincidéncia o importante ensaio do eritico sobre © movimento neoconcreto carioca, j& que ambos mesclavam a pesqui- sa teGrica sobre a arte com um discurso pottico. Foi ele o primeiro a escre- ver sobre 0 movimento neoconcreto, realizando uma leitura contundente 13 do tema. Aj estava a grande diferenga de sua critica: a capacidade de pen- sar 0 objeto artistico como um corpo, no qual a teoria aprende a deduzir pensamentos produzidos na poética das obras. Se seus ensaios sio exem- plos de intimidade entre 0 eritico ¢ a obra, sem divida é por um contato mais direto com as obras criticadas que poderemos reconhecer muitas das sutilezas de seu pensamento. Alimentando seu discurso no estatuto dos trabalhos que interroga, suas reflexdes nao sio elaboradas somente atra- vés de uma formagio teérica tradicional, j4 que apéia suas criticas na per- cepsio ¢ na valorizagao da autoridade dos objetos selecionados. A originalidade da elaboragio de Ronaldo Brito est na atitude expe- rimental assumida por ele, dono de um espirito ventilado e com uma visao livre de quase tudo o que jé foi dito sobre a arte brasileira. Evidentemente que as referéncias européias ¢ americanas esto presentes em seu pensa- mento, mas no como puro jogo de erudic&o ¢ inteligéncia—o que resulta- ria em repetigdes estéreis € num projeto vazio e sem sentido para nds —, € sim através de um instigante pensamento que, quando colocado em pers~ pectiva, apresenta-se estruturado em um projeto. Esse projeto pode ser identificado, no corpo de seu trabalho, pelas escolhas que realizou, em que as intengdes so determinadas pelo propésito teimoso de objetivar uma produgao moderna na arte produzida no Brasil, contra as ambigiiidades da linguagem provinciana. Desejava efetivar critérios capazes de levar a arte a livrar-se dos rangos que caricaturavam, no seu entender, a conquista da razaio moderna e que predominavam no cenario da produgao de arte quan- do ele comegou a pensar e a escrever sobre ela. Insatisfeito com o projeto nacional-popular, desejava encontrar sai- das para essas idéias difundidas nos anos 70. Seu trabalho é, portanto, mar- cado pelo questionamento sobre o que significa para nés integrar a cultura ocidental e que lugar devemos ocupar nessa cultura. Produzindo uma 3. Neaconcretismo: vértice ¢ ruptura do projeto construtivo brasileiro (Rio de Janeiro: swc/ Funarte, 1985. Colecao Temas e Debates, n. 4). O ensaio foi escrito em 1975 por encomenda de Marcos Marcondes ¢ Luiz Buarque de Hollanda a Ronaldo Brito, s6 tendo sido publi do dez anos depois, em 1985, por iniciativa de Paulo Sergio Duarte. (A Cosac Naify 0 ree- ¢ texto foi publicado origi rou em 2000, na série Espagos da Arte Brasileira.) Parte des nalmente na revista Malasartes, (976. Ver Bibliogratia (ref. 75) "4 reflexdo capaz de servir como base para a diversidade contemporanea, seu projeto adere a idéia da arte como um espago piblico democratico. Afinal, os desafios em torno da problematica da democratizagao dos bens culturais ocupam um terreno muito proximo dos projetos de constituigao dos dis- cursos criticos, porque ambos sio marcados pela defesa da formulagao de critérios de qualidade para o debate acerca da arte. Ambos sao responsé veis pela efetivagio de um ambiemte desmitificado, onde a polémica se de- senvolve em critérios universais de discussao. Seria a busca por uma dimensio reflexiva na producio artistica dita moderna, como queria Ronaldo Brito, um projeto antidemocratico, por estar identificado basicamente com as vanguardas da historia da arte? Seria essa nova arte acessivel apenas a uma minoria privilegiada? Ou a sinceridade das andlises nao contribui decisivamente para a formulagao da cultura contem- poranea? Nao seria o esforgo do critico uma tentativa de socializar a arte sem rebaixar 0 nivel, apesar das precarias condigdes culturais do pais? Nao seria o projezo de Ronaldo Brito um esforgo modelar de democratizagio da cultura? Sua trajetéria transforma essas indagagdes em algo ainda mais con- tundente. No minimo é curioso constatar que todo seu rigor interpretati- vo, aliado a sua capacidade de dialogar com o mais alto discurso erudito, foi construido longe de uma formagio académica convencional na area. Mais instigante é lembrar que Mario Pedrosa, igualmente, construiu sua obra critica em condigdes semelhantes. Ambos desenvolveram um olhar original para a produgao da arte num pais jovem onde a tradigao do deba- te nio se encontrava disponivel. Essa proximidade, essa coincidéncia entre ambos, abre para nés a possibilidade de que a critica de arte —como apon- ta Sénia Salzstein — possui uma dimensao fenomenolégica, uma dimensao experimental que est atenta as exigéncias da historia da arte, mas que também “é disposta a riscos, as urgéncias e comprometimentos reclama~ dos pelo presente”.4 © discurso critico de Ronaldo Brito é construido pela sua capacidade de desconfiar do instituido, talvez influenciado pelo pensamento filoséfico. 4. Sonia Salzstein, “Mario Pedrosa: critico de arte”, in José Castilho M. Neto (org.). Mario Pedrosa ¢ 0 Brasil (Sio Paulo: Bundagio Perseu Abramo, 2001). 15 Como alguém que se langa numa aventura, seus pensamentos sao a propria pratica da historia, porque sao elaborados por intermédio de uma praxis capaz de reunir os conceitos ¢ as experiéncias, num didlogo direto com os objetos € os artistas. Em primeiro lugar, Ronaldo Brito comega suspeitando de maneira sistematica da compreensao habjtuaimente aceita sobre a arte brasileira. Com isso, elabora um discurso capaz de renovar a interrogagiio desenvol- vida em torno dela, deixando-se levar na aventura de suas proprias intui- Ges. O critico mantém, diante do objeto de arte, uma perplexidade que se traduz numa leitura nao esquemitica, mas dialética, analitica, indisponivel para uma ordenagao estivel. Ao mesmo tempo, revela uma disponibilida- de processual para com a produgao, numa espécie de constituigdo simulta- nea com 0 trabalho analitico. © resultado é um texto inteligente, capaz de apontar as diversas operagées estéticas realizadas pelos artistas. Um texto capaz de dar espessura a hist6ria (uma historia como a brasileira, cujos con- tornos permanecem indefinidos), trabalhando no sentido da conquista de uma inteligibilidade cultural. O pensamento do critico se baseia e se expressa no envolvimento com a experiéncia da obra. Ele acredita que a natureza do conhecimento artistico reclama de seus leitores envolvimento, sendo impossivel fazer critica de arte se postando fora da prépria arte. Esse ponto de vista, declaradamente feno- menolégico, s6 admite 0 discurso sobre arte de dentro dela, nao valoriza o contetido a priori, mas sim aquilo que se constréi no contato com as obras. Ricardo Basbaum também reflete sobre a posigao critica diante da obra. Para ele, trata-se de um problema topoldgico, como explica: “[...] nao o “distanciamento critico’ como pretensa localizagao do texto em um ponto de fuga de onde o olho projeta coordenadas totalizadoras de um espago estriado, mas sim o olhar que é convidado a espacializar-se para se considerar participante de qualquer outra espacialidade”.> O discurso de Ronaldo Brito se estrutura na construgao do texto, nao no contetdo a ele acrescentado, O sentido se realiza na escrita, na atitude diante da obra e no 5. Ricardo Basbaum (org.), Arte brasileira contemporénea: texturas, fngoes, estratégias (Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2001). 16, envolvimento do critico. O valor da obra nao é referendado pelo texto, mas reside no “félego da obra” em sustentar 0 discurso em torno de si. Como num proceso de troca, a obra e 0 discurso se alimentam numa relagao inti- mae minuciosamente trabalhada. A obra provoca o discurso e este, a obra, dialeticamente. Para ele, escrever sobre arte é participar de um processo constitutivo de elaboragao de linguagem; é acompanhar a produgao, nao realizar uma eleigao de trabalhos, Hoje, diante do conjunto de seu trabalho, somos forgados a reconhe- cer que ele escreve somente sobre 0 que gosta, escolhendo a dedo os arti tas que se dispée a trabalhar, desenvolvendo uma relago de intimidade, acompanhando os trabalhos intensa e sistematicamente, E interessante reconhecer em seu trabalho uma dimensao ética: a capacidade de se manter em suspenso em meio a uma degradagao da arte e do mundo. Demonstra coeréncia ao insistir no valor da arte como uma pra- tica cultural historicamente situada, enfrentando, desde os anos 70, a sen- sagiio de que, embora a arte contemporanea parega ininteligivel, cabe a0 critico atuar no centro do embate. Consciente de que sua atividade é parte da engrenagem que formula o destino da produgio artistica, seu esforgo sempre foi o de colaborar para um destino mais universalizado para a arte que se faz no Brasil. A beleza dessa contribuigao reside no fato de que ele prop6e uma nova narrativa, uma redefinicao da produgao moderna e con- temporanea e um quadro critico apropriado tanto a narrativa que se apre- senta quanto ao trabalho de que trata. Como seus contemporaneos Paulo Sergio Duarte, Rodrigo Naves e Paulo Venancio Filho, esta ligado e, de certa forma, é dependente do dia- logo com grandes artistas. Todos eles tiveram a sorte de ser interlocutores de alguns bons artistas ¢ a coragem de mergulhar no terreno incerto onde se processam as pesquisas artisticas, sem recear as angtistias e ambivalén- cias caracteristicas de uma area por vezes excessivamente conturbada e contaminada como a da produgao de arte. Na busca por estruturar 0s paradigmas para a produgao contempora- nea da arte no Brasil, é importante lembrar que 0 trabalho de Ronaldo Bri- to nao se constituiu somente no didlogo com os artistas que iniciaram suas obras nos anos 70; ele vai se interessar também por obras de artistas mais 7 maduros como Sergio Camargo, Eduardo Sued, Iberé Camargo, Amilcar de Castro e Mira Schendel. Nessa diregdo encontra-se também sua leitura de Goeldi, Segall e Guignard, como se o critico reconhecesse a importan- cia de rever alguns compromissos assumidos pelo discurso da arte entre nds. Seu pensamento se beneficiou do confronto entre 0 espirito experi- mental desenvolvido pelos artistas de sua geragao ¢ a maturidade daqueles que haviam iniciado seus trabalhos nos anos 50 ¢ Go, € que, portanto, per- mitiam 0 desenvolvimento de um olhar em perspectiva, mas nem por isso distanciado. Seu interesse diante de obras como a de Sergio Camargo, com quem iria desenvolver uma importante parceria para ambos, é identifica- da por Rodrigo Naves‘ como muito justa, j4 que o artista estava ligado a uma das mais importantes vertentes da arte moderna — 0 construtivismo — € ocritico escrevera um dos mais importantes ensaios sobre o tema, 0 livro Neoconcretismo: vértice e ruptura do projeto construtivo brasileiro. A relagio entre os dois seria interrompida pela morte do artista, em 1990. Nao quero deixar de mencionar que Ronaldo Brito possui ainda um importante papel como professor, atuando de forma contundente para varias geracdes, entre as quais me incluo. Neste aspecto, suas idéias atin- gem muitos jovens artistas, criticos e historiadores da arte que vao buscar na universidade alimento para suas reflexes. No espaco universitario atua como um desembaragador das severas regras que manipulam os dados cul- turais e que submetem esse processo a distorgdes que interferem implicita- mente na leitura dos fatos. Se a arte hoje se desenvolve num cenario miilriplo, se ndo ha apenas um tinico problema que sustente o debate, se vivemos num “jogo cruzado” de questdes, a arte contempordnea aciona a necessidade de uma “racionali- dade essencialmente critica” para se impor como saber no mundo contem- poraneo. E af esté a importancia do trabalho de Ronaldo Brito: num mundo. carente de sentido, a especulagio e a reflexdo se tornam obrigatérias. ae 6, Rodrigo Naves, “Ateis da tradicio”, in Sergio Camargo (Sio Paulo: Cosac Naify, 2001). 18 Como educadora da arte ¢ historiadora, busco nos escritos de Ronaldo Bri- to as bases para um debate contemporaneo sobre a arte no Brasil. Vejo uma proximidade muito grande entre o meu esforgo de difundir o pensamento do critico e a pratica que desenvolvo como uma profissional interessada no papel da arte dentro da sociedade, procurando desenvolver projetos que levem para um ptiblico amplo as mais diversas experiéncias artisticas. A partir desses interesses, dividi o livro em dois blocos organizados por cri- térios distintos. Na primeira parte, esto reunidos, em ordem cronoldgica, as textos que abordam o ambiente cultural brasileiro num sentido amplo. O critério utilizado foi essencialmente hist6rico, apresentando artigos que so testemu- nhos de um projeto de modernizagao da cultura brasileira, af incluidos os primeiros escritos do autor, ainda no perfodo em que trabalhava pata 0 Opi- nido. Sao crénicas sobre o cendrio cultural carioca que questionam os salées de arte, comentam exposicdes ou livros langados € ironizam a politica publi- ca voltada para a cultura, Ha também os textos escritos para O Globo e para 0 Folketim, Em todos eles podemos verificar a intuigao do critico na escolha de temas e de artistas que iriam se tornar referéncia na produgio artistica deseavolvida hoje. Com esses escritos, acompanhamos 0 desenvolvimento de um estilo marcado por uma indiscutivel intuigao aliada a uma inteligéncia introspectiva, temperado por um humor as vezes intempestivo. Na segunda parte, agrupados por artistas, em ordem alfabética, apare~ cem os trabalhos com 0s quais o piiblico interessado em arte posstii mais in- timidade. Aqui meu critério de selegio buscou conciliar a importancia do texto e do artista no pensamento do critico, sem deixar de apresentar ao lei- tor um panorama do cenarie artistico do qual o autor é parte constitutiva. Sao textos escritos sobre os poucos artistas que Ronaldo Brito escolheu acompanhar, cujas trajet6rias tiveram seu ponto de partida nos anos 50 € 60 —€0 caso de Amilear de Castro, Eduardo Sued, Iberé Camargo e Sergio Camargo, para citar alguns dos mais importantes na obra do critico. Hé rambém os que iniciaram suas trajetorias a partir dos anos 6o, na passagem para os 70, quando produzir arte significava operar na expansio do obje- to artistico. I! o caso, por exemplo, de Tunga, Lole de Freitas, Waltercio Caldas, José Resende, Antonio Dias e Cildo Meireles. Finalizando, 0 olhar 19 do eritico se volta para a geracdo posterior de Elizabeth Jobim, Fabio Mi- guez, Fernanda Junqueica e Gabriela Machado. Os textos sdo apresentados em ordem cronolégica/alfabética, para que 0 leitor participe efetivamente dessa experiéncia de historia que a leitura dos documentos propicia. Entretanto, respeitando a circularidade do pen- samento de Ronaldo, procurei mostrar a profunda continuidade que o atra- vessa. Pode-se entrar no livro de varias rnaneiras, muitas vezes um texto re- mete a outros, tudo pode se relacionar, nao é necessario seguir a ordem sugerida; os textos esto, sob varias maneiras, ligados entre si. Sueli de Lima Agradecimentos Desenvolvi esta pesquisa como uma aranha tece sua teia: muitos pontos ligando-se a um nucleo. O trabalho é resultado de esforgos distintos de pessoas e instituigdes. Espero ndo ser traida pela minha memoria. As bibliotecas do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro e da Academia Brasileira de Imprensa me receberam muito atenciosamente. Na biblioteca da Funarte também encontrei muito apoio, nao poderia deixar de citar a ajuda de Helena Ferrez e Vera Labatut. Entre aqueles que dividiram comigo minhas diividas destaco Paulo Sergio Duarte e Rodrigo Naves. Duas pessoas foram muito especiais: Anna Maria Innecco e Matilia Motta Ludgero muito me ajudaram na organizagao da bibliografia. Laura Zufiga, Marcio Shimabukuro e Michélle Santoro foram assessores indispensaveis. Houve ainda o estimulo de meu compa- nheiro Pedro Nin, a quem gostaria de expressar um agradecimento especial. Agradego também a Alberto Dumara, Antonio Dias, Carlos Zilio, Céssio Loredano, Daniela Pedras, Daniel Feingold, Edgar Calmon Jinior, Helena Severo, Gabinete de Arte Raquel Arnauld e tac, Galeria Luisa Stri- na, Galeria Paulo Fernandes, Gabriela Machado, José Resende, Paulo Ve- nancio Filho, Leila Danziger, Luiz Camillo Osorio, Luiz Guilherme Ver- gara, Marcelo Jasmim, Maria Coleta F. A. Oliveira, Museu Lasar Segall (Mauricio Segall), Noémia Buarque de Hollanda, Rara Dias, Roberto Con- duru, Rosalina Gouveia, Sula Danowski, Waltercio Caldas e Tunga. 21 Picasso (1881-1973) Opiniao, abril de 1973 Suas cores eram menos originais e menos poderosas que as de Matisse; sua simples qualidade de pintor era menos profunda que a de Braque. Era talvez na pura inventividade de sua imagem plastica que estava sua grandeza. Havia Picasso, 0 neoclassico. Picasso, 0 cubista. Picasso, o surrealista. O ceramista Picasso, 0 gravador Picasso. Picasso, o escul- tor, Picasso, 0 soberbo desenhista. Picasso, o efervescente e exuberante. Picasso, 0 triste e carrancudo. Picasso, o financista astucioso. Picasso, 0 sedento de publicidade. Picasso, o espanhol em combustao permanente. Picasso, o brincalhio e inventor de charadas. Picasso, 0 generoso. Mes- mo Picasso, 0 autor teatral. Um génio dos tempos, um homem que ope- rou maravilhosas ¢ algumas vezes insultuosas mudangas na arte, Pablo Picasso foi sem ditvida a mais original, a mais multiforme, a mais pode- rosa personalidade das artes visuais dos primeiros trés quartos do sécu- lo. Um homem que teve um dom natural prodigioso e que 0 usou para mudar 0 universo da arte. “Henri Matisse e Georges Braque, dois pintores de estatura assegu- rada na arte moderna, também foram originais, mas ambos desenvolve- ram um estilo definido e prenderam-se a ele. Enquanto isso Picasso, com sua criatividade febril e o talento profuso que o acompanhou até a velhice, foi um homem de muitos estilos, cuja vida artistica revela um processo de continua descoberta. Ele criou seu proprio universo povoando-o com os seres humanos que ele produziu, ¢ suas proprias formas de bestas e mitos”, diz Alden Whitman, critico do New Fork Times. Sua propria imagem ay fisica da idéia da energia vital que se concentrava —e¢ emanava— em seus trabalhos, Picasso era um homem baixo, ombros e bragos largos, muscu- losos. Ele orgulhava-se de suas maos e pés pequenos ¢ de seu trax peludo. Na velhice seu corpo era firme e compacto; e sua cabeca de bala de ca- nhdo, quase careca, luzia como bronze. Encravados nessa cabeca, profun- dos olhos negros de tal forma penetrantes e alertas que se tornaram sua marca repistrada, Um homem de extraordinario vigor, uma espécie de Minotauro de seus prOprios desenhos. Robert Hughes, da revista Times, numa matéria de capa que celebrou os noventa anos do mestre, que morreu na semana pas- sada com 91, imaginou o que dava a impressao de ser um dia de rotina na vida desse homem imprevisivel: Supde-se que tudo deva comegar com um luminoso breakfast de iesticulos de bode. A seguir, cereado por um rebanho de admirados e domésticos pombos, ele desce a0 estidio e produz trinta gravuras, dois murais e uma natureza-morta. No almogo, depois de um sapateado diante dos avidos re- porteres de uma equipe da Paris Match, ele ensina ao toureiro Dominguin alguns segredos da arte de demolir um touro. Agora é a vez da olaria, de onde, 83 vasos de cermica depois, Picasso convoca seu chofer e sai para capturar trés virgens na praia. Elas sio defloradas durante a siesta e reti- ram-se gorjeando graciosamente para escrever suas memérias. Restaurado, o mestre enche 0 tempo monétono de espera do jantar com uma diizia de retratos. A omelete palpita sob seu garfo incapaz de deduzir sua propria sorte. Ela também sera convertida num “Picasso”. Um siléncio verde e noturno reina no jardim, quebrado apenas pelo cla~ mor surdo de miliondrios gregos entupindo a caixa de cartas de Picasso com notas de mil délares na esperanga de que ele assine uma delas. Mas o dia terminou... Embora isso seja agora apenas parte de sua extraordindria legenda, na ver- dade ele foi um homem de muitas mulheres e de uma fertilidade artistica fantistica. Também é inegavel que Picasso foi um Midas do século xx. Seu trago valia ouro, assim como sua assinatura. 26 HA 25 anos ele pintava todos os dias, & excecdo de 1966 ~ ano em que foi operado e nao pintou uma tinica tela, Sua obra pictérica estd incluida nos 26 volumes do catlogo feito por Christian Zervos: cerca de 10 mil itens. Ainda assim existem por volta de 3 mil desenhos, nio inclufdos, doados a Barcelona, ¢ ha ainda a reserva pessoal do pintor, avaliada em 3 mil telas. O calculo de sua produgaio média anual era de duzentas telas, produgdo que fc respeitada até seus tiltimos doze meses de vida, Picasso, porém, sabia 0 que fazer da venda de seus quadros. Atribuem-se a ele enormes fazendas na Franga e alguns investimentos excelentes. Entre eles, na certa, nao estao in- cluidos seus gestos largos de generosidade. “Por muitos anos”, conta Henry Kahnweiler, seu principal marchand, “ele amparou mais de uma dtizia de pintores indigentes.” E sempre que foi preciso fazer alguma caridade, ele contribuiu espontaneamente. Deu, além disso, grandes somas para o lado republicano da Guerra Civil espanhola e aos grupos de refugiados, depois da derrota dos republicanos, que se estabeleceram na Franga. Um ponto de referéncia na historia do século xx, Picasso era, contudo, segundo uma espécie de biografia escrita por uma de suas mulheres, Frangoi- se Gilot, um homem imerso em ditvidas, como qualquer mortal. “Ele sempre acordava imerso numa onda de pessimismo € havia uma espécie de ritual a ser seguido, uma litania didria”, conta Gilot em Minka vida com Picasso. “- Estou perto do desespero”, lamentava-se Picasso, “Gostaria de saber por que realmente eu devo me levantar. Por que devo pintac? Por que continuar a existir desta maneira? Uma vida igual & minha é insuportavel.” Parte de seu mau humor podia ser deduzido a partir do estado deplo- ravel em que mantinha seu quarto de dormir. No fundo havia uma alta secretaria, estilo Luis x1, conta Gilot. E cola- da a parede esquerda, uma arca da mesma época totalmente coberta de papéi empilhados e pacotes de cigarros. Em cima da cama estava uma limpada . livros, revistas ¢ cartas que Pablo nunca respondia, desenhos elétrica nua. Atras da cama, desenhos de que Picasso particularmente gos- tava, presos por pregadores de roupa. As cartas que achava importantes, que cle nao responderia, mas mantinha consigo como uma lembranca e peniténcia permanente, também 27 ficavam presas por pregadores em cordas esticadas do fio da luz a chaminé. Nao havia mais mobilia, exceto uma cadeira sueca, de ma- deira laminada. Ele morreu, se é que morreu, trabalhando. “Pintar é meu hobby”, ele disse um dia. “Quando acabo de pintar, pinto de novo para descansar.” 28 O acontecimento artistico’ Opinido, maio de 1974 O nome do critico norte-americano Harold Rosenberg esta identificado sobretudo com as artes plasticas. Ele tem sido talvez o principal observa- dor da arte norte-americana desde que ela conseguiu conquistar sua inde- pendéncia em relag4o x Europa, depois da Segunda Guerra Mundial. O surgimento entao do expressionismo abstrato — a primeira escola moder- na especificamente norte-americana — foi o momento decisivo para que a arte deixasse de girar em torno de Paris e passasse a fazé-lo em torno de Nova York. E Rosenberg foi sem divida o principal intérprete do expressionismo abstrato, tendo inclusive criado um termo para designar o movimento que passou a rivalizar com o primeiro: action painting (pin- tura de acao). A tradigéo do nove (The Tradition of the New), no entanto, comeca por advertir que em nossa conturbada época nao ha mais lugar para uma critica especifica e independente. O critico de arte, 0 critico literario e 0 critico social, como entidades separadas, seriam pecas de muscu. Nenhu- ma obra, nenhum movimento poderia ser compreendido corretamente sem que fosse necessariamente correlacionado com 0 contexto social em que é produzido. Mas, por sua vez, as obras artisticas demandariam ser Este texto foi um dos mais censurados entre os escritos por Ronaldo Brito. Depois de muitas tentativas por parte do autor, no periodo em que trabalhou no Opinido, de compreender 0 motivo da proibigio, 0 censar pede a eliminagao de um trecho que faz referencia ao uso da palavea vermelho, © texto é entio fiberado com alguns cor tes. [x.0.] 29 tomadas por verdadeiros acontecimentos, e no apenas objetos de contem- plagao estética. Em outro livro, The Anxious Objece,* Rosenberg ja afirma- ra que atualmente 0 que determina o valor de um quadro, por exemplo, € 0 seu papel dentro da historia da arte e que este era 0 tinico critério valido para se julgar uma obra. Quanto a admiragao subjetiva — 0 “deleite” das estéticas classicas -, 0 maximo que ela poderia fazer seria conceder valo~ res sentimentais as obras de arte, assim como a sensibilidade cotidiana se encanta por certos objetos domésticos, ou assim como um colecionador de bugigangas sabe admiré-las. Coerente com a idéia de que 0 critico hoje em dia deve preparar-se para exercer sua observagio sobre os mais variados campos, sob pena de realmente ndo conseguir entender o que esta acontecendo, Harold Rosen- berg em 4 tradigéo do novo ataca diversas frentes. Ele tenta passar com a mesma mobilidade pelos action-painters, pela poesia norte-americana e pelo marxismo com um raciocinio pouco esquematico ~ e pouco rigoroso, tipi- co daqueles que costumam chamar a si mesmos de livres-pensadores. Ro- senberg esta visivelmente menos interessado em um conhecimento rigoro- so das leis de produgao artistica, ou em pensar os meandros das questdes tedricas do marxismo, do que em estabelecer estimulantes paralelos intelec- tuais entre os fenémenos. Um exemplo da habilidade de Rosenberg em estabelecer uma relagio inteligente entre fendmenos aparentemente desligados entre si é 0 artigo em que compara a histéria da arte norte-americana 4 derrota dos casacos vermelhos ingleses durante a guerra de independéncia dos Estados Uni- dos. A esmagadora vitéria dos colonos norte-americanos sobre aqueles soldados profissionais, conhecidos por sua eficiéncia, é casualmente expli- cada nos livros de historia como o resultado da extrema burrice desses Ultimos. Rosenberg, no entanto, defende a tese paradoxal de que os casacos vermelhos teriam sido vencidos exatamente por causa de sua habilidade e do perfeito conhecimento que tinham da arte militar do século xvitt. Acos- tumados aos tradicionais campos de batalha europeus, conhecedores de todas as técnicas de combate frente a frente, esses soldados simplesmente * Objeto ansivso (S20 Paulo: Cosac Naify, 2004). {n.€.] 30 nao podiam conceber a guerra de emboscadas, numa paisagem acidentada, e contra inimigos que nao se deixavam ver. Como 0s casacos vermelhos, a arte americana insistia em se comportar como se vivesse em outro lugar, levando mesmo alguns de seus maiores representantes a emigrar em busca de melhores condigées de trabalho. O artigo “A revolugao e 0 conceito de beleza”, por sua vez, aborda uma questdo decisiva: as relagdes entre a arte e a politica revolucionaria. Compreensivelmente, em vista da época em que foi escrito 0 livro (década de 50), Rosenberg, defende uma posicao conrrdcia A politizacao da arte — afinal ainda estavam frescas na memoria de muita gente as irrisdrias tenta- tivas do realismo socialista. As consideragdes do autor sobre o que signifi- caria ser revoluciondrio em politica e 0 que significaria ser revolucionario em arte esto longe de ser sem interesse. Mas, preso talvez intelectualmen- tea uma determinada conjuntura histérica, ele corifunde a politizagao da arte — isto é, a tomada de consciéncia por parte do artista do mado como 0 produto artistico é consumido em nossa sociedade, bem como a tomada de consciéncia de seu papel de agente cultural nessa mesma sociedade — com a ja fracassada tentativa de uma arte partidaria, no sentido mais estreito do termo. A crescente politizacio dos artistas ocidentais, porém, se manifesta sobretudo como a recusa das margens tradicionalmente reservadas & arte — para que nao atingisse, perigosamente, a vida pratica das pessoas. Como um esforco de conhecer as possibilidades da arte de servir como um modo de transformar as relagdes das pessoas consigo mesmas e com a sociedade Respondendo Aescritora Mary McCarthy, que criticara 0 seu argumento de que um quadro devia ser considerado um “acontecimento”, retrucando que nao se podia pendurar um acontecimento na parede, “mas apenas um quadro”, Rosenberg afirmou que “nao restava mais lugar para o especta- dor que apenas olha, como no tempo em que a terra tinha lugares vazios ¢ 08 céus estavam cheios”. A politizagio dos novos artistas talvez seja algo semelhante: 0 reconhecimento de que o mito do artista como alguém que vivia nas nuvens caiu irremediavelmente por terra € que, assim sendo, é hora de saber qual o seu lugar no mundo dos vivos 3t Ivan Serpa: um pintor contra 0 estilo Opinido, maio de 1974 Um espectador ideal que, por acaso, percorresse os saldes do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, sem conhecimento prévio do que estava ali ocorrendo, poderia muito bem pensar que aquela era uma excelente coletiva, composta exclusivamente de bons artistas. Nao seria facil, talvez, convencé-lo que os numerosos trabalhos das mais diversas tendéncias que estavam a sua frente eram obra de um tinico artista. A retrospectiva “Ivan Serpa (1923-1973)”, aberta até 25 de maio, é uma espécie de desmentido a classica formula: “O estilo é 0 homem”. Alguns criticos jé lamentaram 0 exemplo de Pablo Picasso, cuja diver- sidade de produgao tornou-se lendaria, argumentando que muitos artistas se perderam ao seguir essas tortuosas pegadas. Esses criticos ponderavam que nem tudo 0 que um Picasso poderia concretizar sem perder a sua uni- dade —o seu estilo, afinal das contas — seria realizdvel por pintores de menos recursos, a nao ser com o sacrificio de suas proprias individualidades. Des- se ponto de vista, artistas como Serpa seriam vitimas de um fascinio pela multiplicidade que viria a limitar consideravelmente o seu testemunho. E possivel, no entanto, que Pablo Picasso nao tenha feito outra coisa sendo obedecer as exigéncias de seu tempo ao construir uma obra quase labi- rintica. E é possivel mesmo que estivesse lutanclo justamente contra as limi- tages do que se convencionou chamar estilo. (Nao foi 0 préprio Picasso quem declarou que o pior tipo de imitagao era a que alguém fazia de si mes- mo?) Seguindo esse raciocinio, [van Serpa, por exemplo, seria um artista que teria compreendido, aré de uma forma precursora no Brasil, a tarefa do artista 32 moderno como um exercicio incessante em busca do novo e do desconheci- do. Ele teria compreendido, como fizeram alguns artistas pop os adeptos da arte conceitual, que a chamada individualidade criadora poderia muito bem ser um mito destinado a inibir a capacidade de investigagao, assim como 0 mito do artista como um ser especial j4 fora desmascarado como uma tatica da sociedade para manté-lo afastado das decisdes politicas Analisada a partir desse ponto de vista, a vasta e multifacética obra de Ivan Serpa torna-se muito mais compreensivel. Em primeiro lugar, como nota o critico que apresenta a exposigao, Roberto Pontual, esse artista preo- cupava-se sobretudo em manter sua obra em estreita relago com o que se produzia de novo nos Estados Unidos e na Europa. E de fato Serpa repre- sentou até a sua inesperada morte, no ano passado, um importante papel de divulgador, orientador e pensador das questdes da arte conremporanea internacional no Brasil. Os 274 trabalhos expostos no Mam revelam além disso uma extrema liberdade de movimentos. Serpa passava de uma experiéncia a outra inteira- mente oposta com uma seguranga que por si $6 praticamente proibia quais- quer acusagdes de oportunismo. As gravuras geométricas do inicio da déca- da de 50 e as grandes telas expressionistas da “fase negra”, caracteristicas da década de Go, apresentam, cada qual a seu modo, a mesma concentracgao € honestidade de propésitos. Ao lado das telas concretistas, dos trabalhos op- erdticos — que reuniam elementos aparentemente tao incompativeis entre si como os fantasmas eréticos ¢ os jogos dpticos — e da mistica série final, “Geomantica”, esses trabalhos tomavam lugar num projeto geral do artista. Mas se a critica a falta de estilo com relagao a Ivan Serpa pode ser considerada um equivoco — na medida em que o seu objetivo era exata- mente a diversidade —, 0 mesmo talvez nao possa ser dito com respeito a uma outra acusagao da qual costuma ser vitima: 0 excessivo didatismo. Este parece ser o principal responsavel pelo carater pouco radical de seus traba- lhos e por sua inventividade até certo ponto académica. A obra de Ivan Serpa éa de um homem minucioso, metédico, mais preocupado em expli- car do que em inovar. E foi exatamente esse didatismo que 0 levou a pro- duzir muita coisa que parece mais um estudo sobre “arte moderna do que propriamente uma obra de arte moderna. 33 A arte colocada a nu pelos artistas, mesmo Opiniéo, 1974 Anoiva colocada a nu pelos seus celibatdrios, mesmo € 0 titulo paradoxal de uma obra em vidro de Marcel Duchamp que esté certamente entre as mais contro- vertidas do século, resistindo as mais diferentes interpretagdes. O mesmo, alids, se poderia dizer da atuagio (muito mais do que uma obra, ele parece ser © autor de uma espécie de programa artistico) de Duchamp de um modo geral. Em vez de realizar obras-primas, ele parece ter ocupado 0 seu tempo abrindo um novo espago de investigacaio para a arte e, sem fazer declaragoes nesse sentido, colocando a nu 0 funcionamento da arte na sociedade. E este trabalho de “colocar a nu” a funcao da arte que os chamados ar- tistas conceituais continuam de certo modo a realizar. Um trabalho critico que comeca por desprezar a propria razao de ser da arte como era entendi- da até ha pouco tempo: o objeto de arte. Na exposi¢ao “Arte em Posicao Critica: Pratica e Teoria” (Galeria Maison de France), por exemplo, nao ha objetos de arte, mas apenas registros dos processos de produgao dos traba- Thos e textos dos préprios artistas. Nao ha praticamente nada para se olhar e muito menos para comprar. A tarefa do espectador é entender a proposta dos artistas e viver uma espécie de estética do conceito, ndo mais uma esté- tica do objeto. Na seqiiéncia de movimentos artisticos do Ocidente, a arte conceitual —uma tendéncia ampla e internacional que comesou mais ou menos com a década de 7o — representa sem divida um momento importante: pela pri- meira vez um movimento se propés discutir manifestamente nao apenas 0 objeto de arte em si mas a propria fungiio da arte e do artista na sociedade. 34 © que em outras escolas era no maximo uma visdo implicita—de certa for- ma todo movimento significativo trazia uma idéia acerca da realidade e da posigio da arte dentro dela —, na arte conceitual transformava-se numa questo central: em lugar de uma estética ou algo no género ela propunha sobretudo uma critica da posicao do artista ¢ do papel da arte no mundo contemporaneo. A pulverizagao da obra tinica proposta ainda na década de 3o pelo fildsofo alemao Walter Benjamin, e que deveria acabar com a “aura” da obra de arte, foi de certo modo até ultrapassada pelas propostas dos concei- tuais, Eles ficaram conhecidos sobretudo pela recusa em produzir obras prontas e vendaveis @ ponto de substituirem uma estética da obra por uma, digamos, estética das idéias. A enxurrada de xerox, simples manuscritos, fotografias e todo género de documentos que invadiu ha alguns anos o mer- cado de arte europeu tinha um duplo sentido: 0 de se opor a fetichizagio do objeto de arte como mercadoria e como signo de status cultural (leia-se social) € ao mesmo tempo o de valorizar o trabalho do artista enquanto processo intelectual ¢ no enquanto produtor de objetos para a contempla- gio e deleite de alguns. © argumento classico que se costuma usar para negar a eficdcia des- sa atitude é 0 de que mais uma vez o mercado absorveu esses produtos, comprando xerox e manuscritos € valorizando-os mais ou menos da mes- ma forma como valorizava telas e esculturas. Seria entretanto ingénuo su- por que isso nao ocorresse e de certo modo os prprios artistas conceituais participaram ativamente desse processo. A exposigao “Arte em Posigdo Critica: Pratica e Teoria”, organizada pelo critico Pierre Restany com dezesseis artistas franceses que estao liga- dos ii arte conceitual, talvez seja a primeira do género no Rio de Janeiro. Sem contar quase com obras, mas apenas documentos, registros, manuseri- tos ¢ slides, ela se apresenta mais ou menos como uma tipica exposi¢o con- ceitual, apesar do seu cardter oficial (é patrocinada pelo cénsul-geral da Franga) e do aspecio inevitavelmente sumario de toda coletiva. O que atorna tipica é, por exemplo, o fato de exigir muito mais um trabalho de leitura e raciocinio discursivo do que propriamente de contem- plagdo. A leitura de muitas propostas presentes s6 pode ser feita com o 35 minimo de conhecimento de modeivs légicos ¢ sociolégicos, 0 que torna a tarefa do espectador muito mais complexa. Além disso, 0 tipo de impacto dos trabalhos é bastante diferente do tradicional: quase sempre servem sobretudo como propostas (criticas e alucinadas, as vezes) de reflex. O chamado fato estético seria aqui uma espécie de utilizagio livre e criativa de modelos do pensamento discursivo. Apesar disso, pelos recursos dpticos que utilizam e pelo modo como se apresentam, seria dificil confundir essas manifestagdes com literatura, filosofia ou ciéncia social © que de inicio pode parecer estranho é 0 entrelagamento entre pré- tica e teoria em quase todos os traballios. Eles se justificam a partir de uma base tedrica muitas vezes complexa e s podem ser analisados a partir des- sa perspectiva. Os modelos tedricos so para muitos deles um ponto de partida. Hervé Fischer, por exemplo, trabalha com critérios diretamente sociolégicos e politicos: trata-se de saida de “colocar a nu 0 poder discri- minat6rio da arte como produgao ideolégica”. Defendendo uma “arte sociolégica”, ele compara a fungaio da arte na socieclade contempordinea a antiga funcao da religiao. Em um dos seus textos, Fischer ataca 0 conceito de Belo, atribuindo-the um papel essencialmente negativo: o de substituto do sagrado como uma arma ideolégica do poder dentro da vida social. Em sua proposta por uma Higiene da arte, que seria uma espécie de palavra de ordem no sentido de os artistas lutarem para des- vincular scus trabalhos da atual “ideologia” da arte, Hervé l'ischer chega a recomendar medidas radicais como, por exemplo, a de 0 espectador destruir 0 primeiro quadro de Vasarely ou Mathieu que the surgir pela frente. Alain Roussel, com sua andlise sobre « Sociologia e seméntica da arte, parece trabalhar numa questo andloga. Para ele trata-se de demonstrar os, mecanismos pelos quais alguma coisa se torna arte. Roussel é um continua- dor de Marcel Duchamp, que desde a primeira década do século, ao colo- car um mictério em exposiga0 em Nova York, mostrara que para que algo ganhasse o status de arte bastava uma coisa: que o artista assim 0 quisesse. A arte a partir daf deixa de ser tomada como uma atividade superior para definir-se mais precisamente como uma espécie de industria — tudo o que entrar no circuito de arte ndo sé adquire uma fungao artistica como deve ser consumido como tal. Os “traballhtos” de Roussel presentes em “Arte em 36 Posigdo Critica: Pratica e Teoria” so na maioria meros cartes coloridos com inscrigdes acerca do papel da arte. JA a proposta de Andlise visual das estruturas de percepgao de Tania Mouraud parece concentrar-se no problema légico da relagao entre o nome ea coisa. Com fins nao propriamente ldgicos, mas possivelmente de ques- tionar a identidade pessoal — uma série de slides da mesma artista mostra sintomaticamente um monge meditando numa sala toda branca iluminada a neon -, ela apresenta pequenas questdes que so uma espécie de cartilha logica elementar virada pelo avesso. Uma de suas proposigdes é a seguinte: se usamos um nome para designar cada coisa, como € que um mesmo obje- to —uma cadeira por exemplo — pode ser chamado tanto de chaise como de chair? Ou ainda: apés ilustrar as faculdades perceptivas do homem, que diz zer olfato, por exemplo, ela se pergunta: “Can Ibe anything which Isay Ipos- sess?" (Posso eu ser algo que eu digo possuir?). Pela amostra, talvez seja possivel analisar o trabalho de Tania Mouraud como uma tipica utilizagao pueril de disciplinas i6ricas importantes. A expusigo traz ainda excelentes exemplos da chamada body art (arte do corpo), que tém dbvias ligagdes com a arte conceitual, Entre 0 trabalho de Michel Journiac — Andlise das eseruturas de comportamento ~ ¢ 0 de Gina Pane entretanto ha uma importante diferenga de perspectiva. O primeiro, cujo trabalho Enguéte sur un corps (Pesquisa sobre um corpo) é um dos mais, interessantes da mostra, € uma andlise critica do corpo tomado como um dado sobretudo sociolagico. © artista defende uma arte que seja sempre uma intervencio critica e entre outras coisas nos instiga a ser “véande cons- ciente” (carne consciente) dentro do “real socioldgico”. O corpo aqui é vis- to como um lugar por exceléncia da socializagio, assumindo estruturas de comportamento que j4 nos sao dadas prontas € que so evidentemente as que convém ao sistema de um modo geral. Gina Pane, por sua vez, realiza performances publicas € no seu caso © que esté em questdo é a relacdo entre 0 ew € 0 outro. O corpo é entendido entio como o suporte do sujeito, o lugar através do qual o sujeito ganha uma identidade. Ao infringir-se ferimentos corporais, que so de um modo geral temidos pelas pessoas como ameagas ndo apenas a seus corpos mas a sobrevivéncia do sujeito propriamente dito, a artista estabelece um modo particular de relacionar-se com o espectador. Um relacionamento baseado no painico ¢ na identificacdo quase forcada entre artista ¢ espectador, uma vez que este tiltimo é quase instintivamente sensivel aos danos corporais, ainda mais quando provocados deliberadamente. Mesmo através de fotografias, trabalhos desse tipo — um deles, por exemplo, mostra Gina cortando sua palpebra e posteriormente “chorando lagrimas de sangue” — agem de modo truculento sobre o espectador. Mas no se deve pensar que a intengio da artista seja apenas a de estabelecer 0 panico. As fotos que registram um outro trabalho seu talvez sejam signifi- cativas, Nelas Gina Pane aparece em pé numa janela enquanto participan- tes da experiéneia fotografam uma familia que olhava a cena, temerosa evi- dentemente de uma tentativa de suicidio. A artista explica o trabalho como um ensaio de relacionamento entre 0 eu — no caso situaclo na fronteira entre um lugar privado (um quarto) e um lugar pablico (a praga onde se deu a experiéncia) -e 0 outro, representado pela familia. Para Gina Pane © trabalho sé se completa com a participagao do outro, transformado assim em algo mais do que simples espectador. “Arte em Posigiio Critica: Pratica e Teoria” tem ainda um inteligente trabalho de Christian Boltanski — Reconstrugdo da meméria -, de leitura complexa ¢ nao-linear. Conhecido por uma utilizagdo extremamente pes~ soal de objetos e fotografias de sua infancia e de sua familia, Boltanski é considerado um dos mais importantes artistas contempordneos. O trabalho em exposigio, no entanto, é insuficiente para uma andlise do complicado sistema do artista, A importincia dessa exposigiio fragmentéria, porém, esta fora de questo. Mais do que um simples contato com tendéncias contemporaneas, ela permite 0 inicio de uma atualizago que muitos, como o artista brasilei- ro radicado em Milao Antonio Dias, consideram imprescindivel para o cir- cuito de arte brasileiro. Pelo seu proprio modo de se apresentar, “Arte em Posigdo Critica: Prdtica e Teoria” obriga o espectadora uma atitude menos confortavel ¢ mais inteligente diante do trabalho de arte: a de toma-lo como um processo intelectual cuja trajetéria complexa e paradoxal muitas vezes talvez seja exatamente o que torna atraente acompanha-lo. A colonizagao pelas cores Opiniao, junho de 1975 A expectativa em torno da exposigio “A Cor como Linguagem”, organizada pelo Museu de Arte Moderna de Nova York, se devia sobretudo ao rigor de conceituagao que o seu titulo sugeria. A final, terfamos a frente algo além da vitrina de obras que costumam ser as mostras, especialmente as chamadas coletivas. Estas, sob a sua aparente naturalidade, seguem sempre uma escri- resultado de ta convencional de apresentagao que, em dltima instancia, uma leitura anedética e superficial do trabalho de arte: quando nao isolam 0s trabalhos dos artistas participantes em grupos especificos ~ transforman- do assim a pretensa coletiva em pequenas ¢ inexpressivas individuais —, essas exposigdes agrupam as obras de um modo puramente circunstancial. A essa escrita corresponde, é claro, uma conceituagdo pouco rigorosa, mas extremamente rigida, que sustenta de modo implicito a ideologia de arte vigente: a arte como objeto de contemplagio e deleite e cuja fruigae esta reservada a alguns poucos eleitos possuidores de um dom.! Nesse campo de agdo, 0s trabalhos, sejam eles quais forem, estao por assim dizer manietados “A Cor como Linguagem” parecia propor-se nao apenas como mos- tra tradicional mas como estudo de uma questo especifica e conceitual- mente relevante na historia recente da arte. Pensava-se poder esperar dela no apenas a apresentagio de obras plenas, acabadas, mas a historia de seu processo de produgio. Nao apenas a cor aplicada as superficies das telas, 1. A esse respeito, ver livro do socidlogo Pierre Bourdien, L'dmour de art (Paris: Minuit, 1969). 39 mas a cor como objeto de um trabalho intelectual que pudesse ser acompa- nhado, em suas instancias, por um espectador que ja no seria somente “alguém que anda e olha” e sim um homem as voltas com um produto cul- tural a ser analisado. Muito otimismo, 0 nosso. Como estudo lingiifstico ou fenomenolégi- co da cor, a exposigaio comega e acaba em seu sugestivo tirulo. A tematiza- ga0 de um aspecto especifico da arte contempordnea nao serviu, no caso, para verticalizar um conhecimento, nem para evitar a pratica dominante de olhar arte como quem olha um panorama natural. Ao contrario, 0 tema foi usado apenas como uma espécie de ponto de partida e vai dispersando-se ao longo da mostra, sem conseguir estabelecer os nexos entre uma manifes- tagdo e outra. Resulta dai a repetigao de velhos esquemas criticos de leitu- ra de arte: a aproximacao dos artistas ora pela semelhanga fisica de seus tra~ balhos ~ de uma maneira grosseiramente empirista —, ora pelo simples critério geracional, isto é, pela ordem de entrada em cena na historia da arte. Seguir a ordem alfabética nao seria muito mais arbitrdrio. Mostra variada Realizada no meio da década de 70 por um érgio importante como o Museu de Arte Moderna de Nova York, alguns anos apés 0 surgimento da arte conceitual, com sua exigéncia de uma abordagem mais rigorosa do tra balho de arte, “A Cor como Linguagem” nao cumpre 0 quesito basico de uma exposigao que se pretenda de fato contempordnea: tratar a produgdo visual ou plastica com um pouco mais de inteligéncia e responsabilidade cultural do que a que em geral se lhe atribui no conjunto das artes. Com seus exemplares (alguns excelentes) de Mark Rothko, Ellsworth Kelly, Daniel Buren, Frank Stella, Jackson Pollock, Sol LeWitr etc., ela consegue o que a grande maioria das coletivas que agrupam artistas de linguagens diferentes entre si invariavelmente consegue: diluir propostas importantes e de certo modo desperdigar os seus possiveis efeitos junto ao publico. Com a exposicdo nao se pode estudar 0 problema da cor na arte dos Ultimos 25 anos, mas simplesmente observar a sua presenga € constatar as 4o variagdes que sofre de artista para artista. N3o hd um apoio tedrico, nem sequer declaragdes dos artistas nesse sentido. A menos que tenha informa- ges prévias, nao serd possivel ao espectador sequer adivinhar as razées des- sas variagdes, que, mais uma vez, passardo por escolhas meramente visuais. Accor universal Mas se a exposi¢do é indcua como proposta de estudo do problema da cor, revela-se bastante interessante quando analisada de um ponto de vista, digamos, ideolégico. Com uma grande maioria de artistas norte-america- nos ou ali radicados e um ou outro europeu, ela se apresenta, de modo silencioso e quase casual, como uma visio universal da questio da cor na arte contempordnea. A propria colocagao ampla do tema ~ “A Cor como Linguagem” — implica essa universalidade. Parece que, em sua conceitua~ co original, “Colour as Language” estava menos destinada a tratar da cor de um modo geral do que de certas cores especificas, pertencentes por coincidéncia & bandeira norte-americana. Trata-se evidentemente de uma exposigao nacionalista. A fungao dos “estrangeiros”, no caso, é clara: caucionar a maioria norte-americana e legitima-la universalmente. A presenga quase exclusiva de expositores nor- te-americanos passaria a ser explicada assim pela natural superioridade qua- litativa de seus trabalhos. Sem alardes, de modo implicito, “A Cor como Linguagem” pretende estabelecer um “fato”: a preponderancia da arte americana no panorama mundial nos tiltimos 25 anos. A questio, é claro, nao negar o valor historico ou mesmo o interesse contemporaneo de muitos artistas presentes & mostra. Nomes como Pol- lock, Jasper Johns e Andy Warhol estio, sem divida, associados a alguns dos poucos momentos realmente transformadores da arte na segunda meta- de do século (e com excegao de Pollock, 0s outros esto bem representa- dos). Apenas é necessdrio compreender a exposic’o em seus devidos termos e nao acreditar em sua aparente naturalidade. 4 Descoloragao Isso ajudard a entender, por exemplo, a inclusdo de certos artistas — e a exclusio de outros, naturalmente — que a rigor pouco tém a acrescentar do ponto de vista da cor. Os “estrangeiros” Lucio Fontana (argentino radica- do na Italia, j4 morto) e o espanhol Antoni Tapies so dois deles. O primei- ro ficou conkecido pelos cortes sistematicos que produzia na superficie de suas telas e é pelo menos duvidoso que tenha alguma contribuigao no domi- nio da cor. Além disso, 0 relevo cor-de-rosa que 0 representa é provavel- mente desprezivel no conjunto de seu trabalho. TApies, por sua vez, est ligado, sobretudo, a investigagao da textura como elemento pictorico e, com freqiiéncia, introduz materiais riisticos em suas telas, O que estaria fazendo Tapies numa exposigado que tem a cor como tema central? A escolha apa- rentemente casual ou equivocada cesses nomes talvez seja um bom indicio do cuidado que os organizadores dispensaram a produgao nao-americana. Nao ha interesse em fazer 0 inventario dos nomes ausentes. Mais efi- caz.¢ na verdade obrigatério é discutir as propostas da exposic’o em seus dois aspectos basicos: 0 que diz respeito a arte norte-americana desde os anos 50 — ela, sim, esta bem representada —, consideravelmente influente através do expressionismo abstrato, da arte pop e da minimal; e o carter, digamos, de propaganda cultural de que se reveste esta investida do Museu de Arte Moderna de Nova York. E claro que essa “propaganda” nao tem: um sentido direto, até pelo contrario. A violéncia de um Pollock — transformando a superficie da tela em palco de uma batalha de pulsdes psiquicas muito pouco enquadravel na racionalidade programatica do american way of life da década de so —e 0 cinismo corrosivo de um Johns — trabalhando a bandeira dos eva de modo a tirar sua carga mitica ¢ transformé-la num objeto pintdvel, como outro do indiscutiveis criticas & sociedade norte-americana. E a ex- qualquer ~ posigdio em seu conjunto que age de modo colonizador, na medida em que consegue pulverizar a ago isolada dos trabalhos. Desse ponto de vista, ela do cul- é, até certo ponto, exemplar como estratégia de penetragao e persua tural que procura passar despercebida. 4 Planos criticos A leitura de “A Cor como Linguagem” deve ser feita, portanto, em dois planos distintos. A andlise cuidadosa dos trabalhos isolados — obras como a de Johns, Warhol, Buren e Sol LeWitt, por exemplo, precisam com urgén- cia ser compreendidas em nosso ambiente cultural —e a critica da proposta da exposigo em conjunto, com suas significagdes politicas, econdmicas e culturais. O interesse da sua presenga no Brasil no entanto me parece indis- cutivel: nao estamos em condigao de prescindir da observagao direta de tra- balhos como os que nos traz “A Cor como Linguagem”, venham em que contexto vierem. A questo acerca da mostra é a de aborda-la de modo cri- tico € nao simplesmente aceité-la com ingénua reveréncia. 43 Com 0 espago construido Opinido, agosto de 1975 Ha um duplo interesse na exposigao de gravuras neoconcretas de Lygia Pape. A leitura especifica dos trabalhos, que por si mesmos dao margem a uma conceituagio precisa, ¢ a possibilidade que abre para a investigacao critica de um movimento que, no final da década de 50 ¢ inicio da de 6o, teria inau- gurado no Brasil uma liberdade experimental inédita, numa perspectiva afi- nal nao-colonizada. © problema é justamente como equacionar esses dois momentos de leitura de um modo positivo: as xilogravuras de Pape nfo devem servir, apressadamente, como pretexto para se falar do neoconeretismo ~ eludindo assim as questdes especificas por elas colocadas ~, nem podem ser erguidas, sem de fato aspirarem a essa posigio, a paradigmas do movimento. igoroso controle A primeira observacio pertinente acerca das gravuras de Pape me parece ser 0 seu alto indice conceitual, num meio (a gravura) muitas vezes ligado a exploragdes apenas artesanais. No seu caso, em vez de “dominio técnico”, 0 atributo que em geral mais se aplica aos gravadores, hé algo mais importan- te: 0 rigoroso controle que exercia sobre o meio — comecando com a pr6- pria escolha da madeira com os veios adequados —, de maneira a banir qual- quer intervengao do acaso durante o processo de produgio. Conseqiientes com seus pressupostos tedricos construtivos, essas gravuras sao de fato construidas, muito mais do que gravadas. 44 Mas 0 que ha nessas gravuras de planos geométricos, onde o preto 0 branco se inter-relacionam dialeticamente num jogo que, muito mais do que optico, é intelectual? Um tema central do neoconcretismo: a busca de um novo espago expressivo, que estabelecesse com o espectador um rela- cionamento fenomenologicamente participante. Essa busca, de certa forma uma reacao as rigidas configuragdes gestalticas caracteristicas de grande parte da arte concreta, era uma constante nos trabalhos escultéricos de Lygia Clark e Amilcar de Castro e encontrou nas gravuras de Pape uma curiosa demonstragao. Elas so espécies de exercicios de imaginagao topo- légica e propdem ao espectador uma tarefa incessante: a de construir e imaginar espacos virtuais a partir do programa de desdobramentos de pla- nos de cada trabalho. Leitura critica Ao contrario do que ocorre com as configuragées gestalticas, cujas possi- bilidades de leitura so reduzidas, essas fantasias topolégicas apresentam- se sempre em aberto para as formulagdes de cada espectador. Mais do que sso, elas permanecem abertas no tempo e solicitam dele, a cada nova ob- servacdo, praticamente a tarefa de completa-las. Nao sao por assim dizer estruturas fechadas, mas estruturas ambiguas que procuram um relacio- namento complexo, sob uma forma racional mas também emocional, com quem se aproxime para vé-las. Realizagdes posteriores da artista, como os seus “ovos” — estruturas de papel ou de plastico a serem rompidas pela pessoa, e que levariam, segundo 0 texto de apresentagio de Hélio Oiticica, a algo além da chamada “participagdo”, a vivéncias ~, atestam a seqiiéncia de uma pesquisa nessa diregao. A idéia de participagiio, com 0 sentido de romper o predominio do puramente 6ptico na fruigao do trabalho de arte, teve uma importancia basica no neoconcretismo. Sua origem tedrica eram os escritos fenomeno- légicos de Merleau-Ponty,! que serviram de apoio ao grupo neoconereto 1. Phénoménologic de la perception ¢ La Structure du comportement 45 do Rio de Janeiro” em sua ruptura com 0 grupo concreto de Sio Paulo. No manifesto neoconereto, publicado em margo de 1959 no Suplemento Domi- nical do Jornal do Brasil, Ferreira Gullar se insurgia contra 0 que considera- va o racionalismo mecanicista da arte concreta ¢ afirmava que a arte é “um ser que, decomponivel em partes pela anilise, s6 se da plenamente & abor- dagem direta, fenomenol6gica”. Questées antecipadas As gravuras de Lygia Pape so exemplos até certo ponto didaticos da pro- dugdo neoconcreta, com sua descendéncia direta das antigas ideologias construtivas ocidentuis (neoplasticismo, coneretismo) e seu cavdter até cer- to ponto antecipatério de questdes que 86 vieram a set colocadas no mundo “oficial” (isto é, dominante) da arte no meio da década de 6, pela minimal art, por exemplo. Apenas sio ainda timidas, num certo sentido, comparadas com as construgdes no espago de muitos artistas do movimento ou com manifestagdes como 0 balé neoconcreto, da propria Lygia Pape em colabo- ragdo com Reynaldo Jardim. © questionamento critico do neoconcretismo a partir da exposigdo de Lygia Pape, por sua vez, exige uma cuidadosa estratégia com o sentido sobre- tudo de evitar 0 oportunismo tedrico. Este se manifestaria por um eufdrico discurso em favor da “atualidade” do movimento, resultando no seguinte golpe: recusa de uma andllise historica do neoconcretismo que tentasse esgo- tar a inteligéncia de suas propostas ¢ delimitar 0 dominio conceitual onde operava, e a0 mesmo tempo “fantasmatico” retorno ao movimento, evitando assim o sempre adiado confronto critico com a produgio contemporinea (inclusive a dos préprios artistas participantes do neoconcretismo). Sera sempre mais facil falar de algo ocorrido ha quinze anos, ainda quando seja 0 tae rico, controvertido e importante neoconcretismo. Dai a 2. O grupo neoconereto era formady por Ferreira Gullar, Lygia Clark, Hélio Oiticica, Lygia Pape, Aluisio Carvao, Franz Weissmann, Amilcar de Castro, Reynaldo Jardim e ‘Theon Spanuidis, 20s quais se juntaram os paulistas Willys de Castro e Hércules Barsotti e, mais tarde, Roberto Pontual e Osmar Dillon. 46 necessidade de rigor e de cuidado. Para que a movimentagio intelectual que parece estar se iniciando em rorno do neoconcretismo (esta anunciado in- clusive um debate sobre o tema) seja uma retomada de perspectiva critica da arte brasileira, e ndo uma habil forma de mascarar as suas atuais contradigoes. No devido lugar Se, como é possivel, o neoconcretismo representa um momento de cuptura na historia da produgio de arte (e de poesia) no Brasil, torna-se indispensi- vel situd-lo no seu devide dominio e cercé-lo teoricamente. Assinalar, por exemplo, a sua relacdo com as tendéncias construtivas ¢ a sua progressiva aproximagiio com novas tendéncias que, a partir da década de 6a, se coloca- ram numa posigiio mais diretamente critica ante 0 circuito de arte ea propria sociedade. E se, como também é possivel, ele significou de alguma maneira um passo libertario da arte brasileira com relagio as matrizes culturais da Europa e dos gua, é mais do que urgente estudd-lo nesse aspecto especifico. E nesse caso seria produtivo relacion-lo com o conjunto de nosso ambien- te cultural e politico e compreender as suas significagdes nesse sentido. 47 As licdes avangadas do Mestre Pedrosa Opinido, agosto de 1975 Para qualquer pessoa ligada ao meio de arte brasileiro, especialmente para alguém que esteja investido de uma fungao critica nessa drea, parece impos- sivel falar sobre Mario Pedrosa sem alguma dose de passionalismo. Mesmo que, como € 0 meu caso, no 0 tenha conhecido pessoalmente. Pedrosa sig- nifica, sem divida, para a arte brasileira, muito mais do que 0 conjunto de seus escritos ou a soma de suas posigdes. Dai a impossibilidade de se anali- sar sua produgao intelectual sem levar em conta a sua propria participagio pessoal no meio dos eventos. Nao é exagero dizer que Mario Pedrosa fez. mais do que influenciar os agentes da arte brasileira — ele impregnou o cir- cuito com suas idéias e suas posigdes diante do trabalho de arte. Essa im- pregnacdo pode ser sentida ainda hoje, junto principalmente aos que estive- ram ligados a ele em sua atuagao objetiva no nosso ambiente cultural. No ve e do processo Ao longo de mais de duas décadas, isto é certo, Pedrosa foi o principal te6- rico dos setores mais avangados da arte brasileira. Desde a sua historica defesa da arte abstrata no final da década de 4o até a participagao critica em movimentos como 0 neoconcretismo € 0 novo realismo, j4 nos anos 60, ele esteve quase sempre no vértice do processo de compreensao e assimilagao que a arte brasileira empreendeu com relagao aos conceitos € tendéncias produzidos pelos chamados centros culturais. E, estruturalmente, coube a 48 ele ser um dos pontas-de-langa da modernizacao do pensamento artistico brasileiro, recusando-se a trancé-lo no regionalismo estreito e a identificar seus tragos nacionais com um figurativismo anedético, do tipo “as coisas de nossa gente”. Ao contrario dos muitos que entio (inicio dos anos 50) se interessavam por uma manipulagdo grosseiramente ideolégica da arte, tomando-a apenas como um dado ilustrativo na seqiiéncia de uma luta politica, Pedrosa conhecia por dentro a dinamica do processo cultural dessa posigao projetava seus lances. Sabia que os vinculos mecanicos entre politica ¢ cultura sempre resultam em prejuizo para a segunda. Na polémica realismo regionalista x arte abstrata que caracterizou 0 comeco da década de 50, ele optou pelo lado, digamos, mais progressista. £ mais do que isso ainda, ele o fez escolhendo conscientemente uma arte abs- trata de caréter construtivo, racional, seguindo uma estratégia cultural que tinha raizes na propria realidade nacional, aquela mesma que os adeptos do regionalismo o acusavam de ignorar. Tratava-se, para Pedrosa, de criar uma arte adequada a um pais novo, “com carteira de identidade”, baseada numa vontade clara e racional de construcdo € que desse as costas a toda a tradi- go irracionalista, metafisica, a qual a velha Europa permanecia atrelada. A arte dos anos 60 Como se pode perceber, Mario Pedrosa sempre compreendeu a arte como parte de um projeto cultural mais amplo, ¢ nesse sentido foi um dos poucos criticos ndo-esteticistas de sua geraco. Procurando pensar a arte num qua~ dro social aberto, tentando sobretudo relaciond-la com a ciéncia e com a filosofia, conseguiu com isso escapar aos limites estreitos que inibiam a atuagio de muitos criticos e os tornavam adeptos de um estilo, seres que “passavam” com esses estilos ou que permaneciam para sempre identifica dos com momentos muito especificos do proceso da arte local. Dai que, nascido em 1900, Pedrosa abordou os anos 6o, a arte dos anos 60, bastante vontade, livre de preferéncias estilisticas e equipado para compreendé-la € para intervir em seu proceso de produgio. £ 0 que se pode verificar lendo a coletdnea de seus artigos, de 1959 a 1970, organizada por Aracy Amaral. 49 Esses artigos revelam, em primeiro lugar, a seqiiéncia de um esforgo te6rico (limitado, € claro, pelo espago jornalistico onde se exercia) para compreender os meios colocados em ago e os significados da produgio de arte moderna. Os textos que tratam da Problemdtica da sensibilidade (1959), por exemplo, tentam determinar, com base em Cassirer, Suzanne Langer e na fenomenologia de um modo geral, uma fungao positiva para a arte na sociedade contemporanea, ao mesmo tempo em que buscam explicar as ra- z0es da necessidade da intensa pesquisa formal em ago na arte moderna A conclusao pode parecer, hoje, em 1975, um pouco idealista, na medida em que nao enfatiza as injungdes ideologicas em que se sabe estar implica~ da a pratica artistica na sociedade, mas, sem divida, define muito bem uma concepeaio tipica dos anos 50 e tem sobretudo 0 mérito de encaminhar o de- bate sobre arte no nivel em que interessa encaminha-lo. Ougamos Pedrosa, a respeito dos artistas abstratos e concretos: Ha uma coeréncia interior, uma légica interna crescente nessas unidades formais inéditas, que pouco a pouco nos preparam para uma visio nova do mundo. Gragas a essa coeréncia, a essas estruturas, podemos talv. alimentar a esperanga de chegar a compreender, a penetrar, enfim a sen- tir e visualizar as novas dimensdes da realidade que a ciéncia nos vai criando e propondo a cada nova investigagio. Fator de progresso A arte seria, portanto, um modo de conhecimento e teria uma funcao posi- tiva: ela de certo modo atualizaria nossa vivéncia € nos colocaria em conta- to. com questdes e modos de percepgao inéditos, as vezes recém-revelados pelo desenvolvimento da ciéncia. Essa, de um modo geral, era a esperanga dos artistas € tedricos construtivos, a constante das ideologias artisticas construtivas: a idéia da arte como fator de progresso, algo que informasse todos os setores da vida e que contribuisse para uma espécie de transfor- macio intelectual da sociedade. A faléncia das ideologias construtivas, 0 relativo fracasso de seu 5° programa — que pode ser medido pelas fungdes cada vez menos defensa- veis assumidas pelo desenho industrial — e 0 esquecimento quase total dos seus pressupostos tedricos por parte das vendéncias contemporaneas nao desarmaram, entretanto, 0 critico Pedrosa. Criador de um conceito que auxiliou decisivamente as manobras experimentais na arte brasileira — 0 conceito de arte pés-moderna —, ele seguiu compreendendo a situagiio e teorizando adequadamente. Sobre os novos artistas, 05 novos realistas e os artistas pop, ele dizia em 1966: Num desespero de suprema objetividade a que se entregam, negam a arte, comegam a nos propor, consciente e inconscientemente, outra coi- sa, sobretudo uma atitude nova, de cuja significagio mais profunda ain- da nao tém perfeita consciéncia, £ um fendmeno cultural e mesmo socio- logicamente inteiramente novo. Jé nao estamos dentro dos parimetros do que se chamou arte moderna. Chamai a isso de arte pés-moderna, para significar a diferenga. Ao definir o trabalho do artista contemporaneo como 0 “exercicio experi- mental da liberdade”, a0 compreender o primado da “idéia” sobre as pro- priedades estéticas do objeto na arte contemporanea, Mario Pedrosa mante- ve para o momento artistico da década de 6o no Brasil a mesma importéncia que tivera nos anos 50. Isto ¢, a de um pélo objetivador do trabalho dos artistas ¢ seu intérprete discursivo, alge’ que extrafa desses trabalhos suas significagées sociais mais amplas ¢ sabia colocd-las em discussio. Conceitos universais Como explicar essa atuagao particularmente produtiva de Mario Pedrosa dentro do circuito de arte brasileiro? Nao certamente por uma erudigao maior ou por uma sensibilidade “mais agugada” do que a dos outros criti- cos. Acho que a resposta est na propria posigao de Pedrosa diante da arte, como modo de conhecimento especifico, ¢ diante do processo de produgao de arte no Brasil. Perante esses dois aspectos da questao que, como critico, 51 era sua obrigagao teorizar a respeito, manteve a atitude intelectual mais conseqtiente ¢ mais esclarecedora: atento as novas formulagdes € conceitos produzidos internacionalmente, trabalhou sempre no sentido da fixagao de uma dindmica especifica da arte brasileira, adequada as necessidades locais, e que permitisse, de nossa parte também, a produgio de conceitos, diga- mos, universais. Anilise do circuito Malasartes, 1975 Qual a fungao da arte atualmente em nosso ambiente cultural? Dominada pelas leis do mercado que valoriza 0 objeto-fetiche em vez do produto cul- tural, ela cumpre um papel quase exclusivamente mundano junto as elites, econdmicas. © seu verdadeiro puiblico em potencial, os estudantes, esta distante dela. Endo por escolha, mas por causa de uma situagio que é ne- cessatio, mais que nunca, compreender. |. Circuito e mercado de arte Nos tiltimos anos, circuito € mercado de arte pareciam uma coisa s6. Ain- da parecem, talvez. Mas a frase acima nao tem mais valor critico: a esta altura é uma simples constatacao que, permanecendo nesses estreitos ter- mos, pode mesmo servir como obstaculo para uma investigacao mais rigo- rosa acerca da situacao da arte no Brasil. (Por situagao da arte entenda-se nao apenas 0 momento produtivo dos artistas mas 0 modo vigente de con- sumo de seus trabalhos e suas significagdes sociais.) Vamos colocar as questdes pertinentes. A questio agora nao é sim- plesmente analisar o comportamento do mercado nos tiltimos anos e sim compreender suas leis, sua decisiva participacao no conjunto do circuito e seus modos de pressio sobre a producao € 0 consumo do trabalho de arte. A questo nao é diagnosticar um sintoma, mas conhecer uma realidade para poder intervir nela, Esta nao é somente uma distingao epistemolégica. 53 ‘Talvez por ai passe a linha que separa duas posigdes sem diivida antagénicas em relagio ao circuito: a dos que pretendem transformé-lo e a dos que pre- tendem acompanha-lo em suas mudangas. Nao é suficiente, por exemplo, afirmar que a implantagao e conso- lidagdo do mercado foi o fator dominante na arte brasileira dos anos 70, ampliando 0 piiblico comprador dentro de um certo setor (afastando outros setores, certamente) e produzindo graves distorg6es tanto na drea de produgio — é 0 caso do famoso “estilo” acrilico quanto na area criti- ca—sacralizando obras desimportantes, recaleando outras importantes etc. E preciso analisar os varios aspectos dessa ideologia do mercado que foi e ainda é dominante no circuito. F. ingénuo supor que ela se reduza a uma questao financeira e que todo o seu jogo seja descobrir o que é vendavel e co que nao é. Para impor seu dominio, o mercado usou estrategicamente todos os elementos do circuito ~ artistas, criticos, colecionadores, marchands e pibli- co — e colocou-os a servigo de sua ideologia. Por razGes sobretudo locais, essa ideologia era e continua sendo extremamente conservadora. Nao por acaso, mas por absoluta necessidade. O problema do mercado é, em tiltima anilise, conquistar um piiblico de formagao estranha & historia da arte e que procura nela um investimento seguro e/ou signos de distingao de classe. (Num certo nivel, o discurso da arte funciona como um nitido processo de disctiminagao social.)! O objetivo do mercado brasileiro é manter intacto 0 secular estatuto da arte no mundo ocidental: (1) A arte como manifestagdo suprema e eter- na (leia-se apolitica) da civilizagao crista ocidental. (2) A arte como mani- festagdo reservada a alguns poucos eleitos, inteligentes e sensiveis, e que o sio por dom, nao por educagao e aprendizado social. (3) A arte como es- paco mitico, fechado sobre si mesmo, uma espécie de moderno substituto da celigiao. A manutengio dessas “verdades” 6, paradoxalmente, necessdtia a ideologia de um mercado que, num outro plano, sabe muito bem o que 1. Ver artigo de Simon Marchan Fiz, “El objeto artistico en la sociedad industrial capitalis- ta", no livro El arte en la sociedad contempordnea (Valencia: Fernando Torres, 1974). 34 representa a arte para a maioria de seus compradores: uma sofisticagio de consumo, uma pega de decoragio, no maximo mais um objeto-fetiche, co- mo os automéveis. Mas é sem daivida o substrato inconsciente desse esta- tuto que sustenta o consumo da arte nesse nivel. E ele que o mercado luta para conservar, modernizando-o, recriando-o a cada nova investida. A tarefa de vender arte nesse sentido prende-se obrigatoriamente a tarefa de defender o estatuto vigente da arte na sociedade — afinal é esse estatuto que assegura em iiltima instancia a possibilidade do comércio de arte, Dai a necessidade do mercado de elaborar uma estratégia que, sobre cada aspecto especifico do circuito, atue de modo pertinente, Trata-se de con- servar os valores da arte, 0 seu mitico e decisivo apelo de consumo. A coi- sa artistica, por cxceléncia Uma anilise da performance de nosso mercado, sem as consideracdes acima, conduz a conclusdes equivocadas. A primeira delas, em curso, éade atribuir ao mercado uma rigidez que lhe € por definicdo estranha. A recu- sa da produgdo contemporanea, o privilégio dos suportes tradicionais, a volta nostlgica ao passado, suas notérias caracteristicas devem ser toma- das exatamente pelo que so: manobras titicas, nada mais. Nos tiltimos anos, 0 mercado oficial de arte no Brasil utilizou quase exclusivamente um dispositivo de reagio cultural — 0 bloqueio — que nao é sequer o mais efi- ciente. Na defesa do estatuto tradicional da arte, o bloqueio da producao critica € uma forma até certo ponto arcaica, embora sempre presente numa ou noutra medida. O processo de recuperagiio é sem dliivica mais Agile efi- caz, até do esttito ponto de vista comercial. Isso porque inclui a apropria- ga0 do produto, distante j4 de seus pressupostos de produgao e devidamen- te inscrito com as mareagdes da ideologia oficial. Bloqueio e recuperagao sio os elementos a serem conceituados, nao basta analisar os chamados fendmenos de mercado como 05 leildes etc. Através do bloqueio e da recuperagao é que o mercado tenta assegu- rar 0 controle da produgio e da fruigio do trabalho de arte. Controlar a produgio significa nao apenas privilegiar e recalcar linguagens mas divul- ga-las de certa maneira, num espago que porta significagdes prévias, con- vencionais, neutralizadoras do efeito critico das propostas, Controlar a frui- cdo também é possivel, uma vez, que ao vender trabalhos o mercado vende 55 nao apenas o objeto mas uma determinada leitura dele. (Pratica extensiva a toda a chamada sociedade de consumo, segundo Baudrillard.)* A agao do mercado portanto esta longe de se restringir as transagdes financeiras. Ele age de modo a criar um sistema fechado dentro do qual o trabalho vai obrigatoriamente circular, desde a sua prépria concepgao até a venda. A ideologia do mercado, por sua vez, opera para enquadrar em li- mites previamente fixados esse produto até certo ponto explosivo, o traba- lho de arte. Operagao meticulosa, incessante, que permite a apropriagao de um objeto ao mesmo tempo em que se lhe esvaziam os significados. Para tanto é necessario atuar em todo o espago ao redor do trabalho. Examine- mos 0 percurso: a) O lugar da exposigao Deve ser obviamente institucionalizado como tal (Duchamp ja demons- trou como mictério exposto em galeria vira obra de arte). Mais ainda, a prépria escritura da exposigdo deve obedecer a critérios tradicionais, es- treitamente solidarios de uma certa maneira de “contemplar” arte. E facil perceber que um trabalho contemporaneo, lido de maneira tradicional, tem efeitos tradicionais. Para o mercado brasileiro, esses aspectos aparentemente acessérios sio taticamente importantes: reforcam, para consumidores avidos de segu~ ranga social, o carater de solidez e imutabilidade da arte. b) Os textos criticos Funcionam como esotéricos apoios publicitdrios as obras. No caso 0 esote- rismo é imprescindivel: trata-se de manter a arte no terreno do ininteligi- vel, do sublime, do ndo-discursivo, © “mundo & parte”, enfim. Quando nao so vagas divagacdes metafisicas, esses textos se posicionam de um modo mitico em relagao arte, afastando assim os profanos. O fetiche do trabalho 2. Ver La Société de consommation, de Jean Baudrillard (Paris: Gallimard, 1974) [ed. bras.: A sociedade de consumo. Rio de Janeiro: Elfos, 1995). 56 de arte —o que o torna trago distintivo de superioridade no grupo social, 0 que o torna feixe de mediocres projegdes psicolégicas — deve ser preserva- do a todo custo. A fungao objetiva desses textos nao é produzir conheci- mento, nem sequer situar os trabalhos no ambiente cultural. Estao ali para superpor mais um nivel ao discurso que vai envolver 0 produto e torné-lo, num primeiro momento, objeto cultural e em seguida objeto de prazer e consumo. © objeto de arte (o nome de seu autor), a galeria (o nome da galeria), 0 texto (0 nome do critico) sao os elementos dessa equagao co- mercial destinada a vender algo que no é apenas objeto mas também e prioritariamente signo social, distribuidor de status. (A rigor sio 0s inves timentos sociais que recortam 0 objeto do mundo das coisas em geral e 0 transformam em obra de arte.) Do ponto de vista tedrico, esses textos sio insignificantes. Defenden- do, conscientemente ou nao, o isolamento do circuito em relagdo ao mun- do exterior (isto é, a vida social), nem por isso intentam analisar a especifi- cidade do trabalho de arte, auxiliando assim 0 confusionismo necessario a um mercado que tem como procedimento basico a homogeneizacao dos discursos, colocando lado a lado propostas diversas entre si. Através da conivéncia com esse confusionismo e do jogo de aplicagao de rétulos — uma forma de eludir questdes e recalcd-las —, a maioria da produgao textual representa um papel até certo ponto importante no dispositivo de recupe- ragio do trabalho de arte. Servem ao mesmo tempo como prote¢ao ao cir- cuito — sempre em fung&o da posigéo distinta das chamadas belas-artes na sociedade —e como agentes de disperso do significado dos trabalhos, uma vez que escamoteiam sua especificidade. c) A mundanidade E praticamente a tinica base externa do nosso circuito de arte. Uma espécie de prolongamento das galerias em dias de inauguracao. Para ela sobretudo fluem no momento os efeitos dos traballios e nela sobretudo so consumi- das as suas significagdes. A mundanidade esta tradicionalmente ligada as artes — e as chamadas artes plasticas em particular —, mas num circuito sob o dominio da ideologia do mercado ela se torna assustadora e ridiculamente 37 presente. A sua maneira vaga e desinteligente, exerce uma pressao consi- derdvel sobre a produgao e a fruigao, determinando indiretamente lingua- gens, privilegiando escolhas e impondo nomes especificos. Como toda audiéncia, alids. Talvez no seja exagerado incluir a mundanidade como setor especifico do circuito de arte como se apresenta hoje no Brasil. Il. Circuito e produgao A década de 70 inaugurou um novo periodo na arte brasileira ao estabele- cer vinculos concretos entre producao e mercado. Até entao 0 circuito de um modo geral comportava-se de forma mais ou menos amadora, ou melhor, artesanal. Como é notério, a consolidagdo do mercado de arte bra- sileiro - 0 chamado boom — se fez. por intermédio de artistas cujas lingua- gens eram, digamos, redundantes e que por isso mesmo tinham penetragaio mais facil junto ao publico. A produgdo contempordnea, submetida também a pressdes mais amplas, foi violentamente recalcada. E claro entretanto que nio ha contradigo insuperdvel entre arte con- tempordnea e mercado, desde que respeitadas determinadas condigdes. Pode-se vender tudo, inclusive os xerox dos conceituais. Como espero ter demonstrado acima, a énfase na “descoberta” de artistas do passado foi so- bretudo uma questao de timing comercial. Era necessario criar, na cabeca do consumidor ignaro, uma “histéria” da arte brasileira, eleger os herdis, os mitos de nossa tradig&o cultural. Talvez estejamos ainda vivendo parcial- mente essa fase. Mas aproxima-se 0 momento (se jd nao estd em curso) em que a produgao contempordnea sera macigamente confrontada com o mercado: algumas poucas obras serio bloqueadas, a maioria, recuperada e dentre essas uma ou outra, sacralizada. O jogo recomega, com as mesmas regras. A apropriag3o pelo mercado da produgdo contemporanea nao transfor- ma significativamente o circuito. No maximo, introduz modernizagbes urgen- tes: 0 incentivo a suportes menos gastos, a reforma da escritura tradicional das exposigdes, um maior apoio teérico etc. Uma atitude criticamente inteligente dos artistas (nao s6 deles, mas de todos 0s que se interessam por arte contem- pordinea), em defesa de um campo de agiio mais livre para os seus trabalhos, 58 envolve a formulagao de uma estratégia de agio dentro do mercado e do cit- cuito que reconhega esse fato, Convém nao esquecer que, para certa faixa de consumidor, 0 termo mitico vanguarda oferece um apelo inexcedivel. © primeiro movimento dessa estratégia seria a meu ver uma uta no sentido de uma maior independéncia do circuito em relag’o ao mercado € mais especificamente em relago a ideologia do mercado, Nao se trata de aboli-la (algo impossivel no regime capitalista), mas de restringir a sua penetragio, multiplicando discursos eriticos paralelos ao seu. Permitir uma frui¢&o menos classista e mais inteligente de seus trabathos é um interesse undnime dos artistas contemporaneos. Todos desejam que seus produtos sejam consumidos no devido nivel: como fatos culturais, polarizadores de debates ¢ leituras criticas. & Sbvio que o simples ingresso de seus trabalhos no mercado ~ fato afinal desejavel — ndo implica a obtencio desse nivel de fruicao. Pelo con- trario. © mercado significa apenas e precisamence, em termos de produgao, a garantia econdmica da continuidade do trabalho. © que nao anula a se- guinte verdade: producao e mercado encontram-se em posigdes antagdni cas. Os representantes do mercado quase sempre tém consciéncia disso; os artistas, no. Mas pelo menos desde a arte conceitual a produgao contem- pordinea é cada vez mais uma critica explicita e cerrada ao sistema da arte como esta constituido, E essa critica atinge desde o mascaramento da base conceitual sobre a qual progride o trabalho de arte — mascaramento que é uma das constantes da ideologia do mercado — até a organizagao das mos- tras € 0 proprio estatuto do artista na sociedade. Incependentemente de suas linguagens, passou a ser necessaria aos, artistas contemporaneos a manipulagao de uma inteligéncia estratégica que permita combater o incessante proceso de recuperagdo e bloqueio de seus trabalhos, Talvez mais do que isso, passou a ser necessdrio agir criticamen- te acerca da prdpria posigao da arte na sociedade. A dupla questéo é a guinte: como impedir a neutralizagéio de suas propostas e como tornar a arte um instrumento que tenha um minimo de eficdcia social? Ha provavel- mente urgéncia de uma maior mobilidade na pratica dos artistas, no nivel da produgdo e veiculacdo de seus trabalhos. Uma mobilidade essencialmen- te tética, voltada para fora — sem prejuizo, é claro, do rigor de articulacao 59 interna do trabalho, quesito que me parece indispensavel ~, e que permita, por exemplo, encontrar o supone circunstancialmente mais eficaz. Ou mul- tiplicar suas intervengdes, buscando canais fora do circuito. Ou mesmo criar formas alternativas de venda e divulgacdo, sem a ingenuidade de considerd- las a solucdo para o problema da apropriagao da arte pelas classes ricas. Politizar (no sentido amplo do termo, claro) 0 relacionamento traba- Iho-mercado, politizar o relacionamento trabalho-circuito, politizar o rela- cionamento circuito-ambiente cultural significa apenas reconhecer a ver- dade do jogo e escapar a0 mascaramento proposto pela ideologia de arte vigente. E é sobretudo em relag&o a essa ideologia que a meu ver se define um trabalho contempordneo: uma proposta é tanto mais interessante quan- to apresente maior grau de liberdade dentro do sistema estabelecido de arte. Forgar os limites de permissividade do circuito é uma das principais tarefas da produc&o contemporanea. Entenda-se bem que nao estou propondo uma norma de atuagdo para 08 artistas. Faco apenas a defesa de uma inteligéncia programatica diante do circuito de arte e do mercado em particular. A partir do raciocinio que entende o circuito como um sistema com suas regras proptias — e que se pretende isolado, quase mitico —, considero que s6 uma ago continua tem alguma chance de transforma-lo. Nao ha diivida porém de que esse tipo de acdo exige entre outras coisas que © artista, digamos, deixe de ser artista: livre-se do mito de “ser criador” — posigao que the assegura uma situag’io confortavel, mas inttil — e pense em si mesmo como alguém que esta amplamente comprometido com 08 sistemas e processos de significagio em curso na sociedade Ill. Circuito e ambiente cultural Transformar o citcuito de arte, como imagino, significa em primeiro lugar romper com o seu estatuto especifico dentro de nosso ambiente cultural. A sua pouca eficacia como manifestagao decorre evidentemente da posi¢ao vagamente elitista que sempre se lhe atribui no conjunto das chamadas artes. Em parte, é claro, por causa de seu aspecto imediata e diretamente 60 comercidvel. Mas, a0 contrario do que se costuma pensar, mais do que pal- co de compra e venda de objetos, 0 circuito de arte é lugar de um incessan- te trafico de signos de ascensao ¢ estabilidade social e reciprocas trocas de sinais de cumplicidade ideolégica por parte de um pequeno circulo de pes- soas. Esse circulo, prevente em cada localidade, desempenha um papel mui- to secundario mas talvez indispensavel para o sistema de um modo geral. O circuito de arte hoje no Brasil, por exemplo, se reduz praticamente a uma vaga e indivil movimentacdozinha sem maiores conseqiiéncias. A simples presenga da produgao contempordnea no interior do circui- to, repito, nao basta para transforma-lo, Aqui, outra vez, € preciso desfazer certos equivocos persistentes. Nao é verdade que o circuito reaja sectaria- mente quando defrontado com novas linguagens, nem é verdade que tenha algo assim como preferéncias estilisticas irreversiveis. Os seus representan- tes esti sempre e por definig&o muito menos presos a opgdes ¢ linguagens pessoais do que a uma determinada maneira de olhar e tratara arte. A dita vanguarda € incémoda apenas na medida em que circunstancialmente coloca em xeque 0 modo vigente desse olhar e desse tratamento. Isto é, quando se percebe que ela esta colocando em xeque esse sistema. E facil compreender que, « priori, o circuito no tem nada contra ne- nhum trabalho — na medida em que pode inclusive recuperd-lo. Recuperar um trabalho é precisamente vender e estabilizar uma leitura “recuperada” dele. Em principio, 0 circuito esta pronto a abrigar toda e qualquer obra gue julgue nao afetar a sua condig&u de sistema auténomo e inatacdvel. Nos chamados centros adiantados, ele vive em busca de novas experién- cias — 0 nosso, como vimos, est preso ainda ao velho esquema — que ser- vem para manté-lo como espetdculo atraente, mas basicamente luta pela mesma coisa: a indevassabilidade, o carater quase inicidtico de que se revestem o aprendizado da leitura de arte, a distingao € seguranga social advindas de sua freqiiéncia. Mas se é impossivel modificar a ideologia do mercado é sempre pos- sivel intervir criticamente na ideologia do circuito em seu conjunto. E pos- sivel pelo menos criar situagdes alternativas dentro dele. A tentativa de atvair para a audiéncia da arte contemporinea um piiblico de estudantes que é deliberadamente (sera preciso explicar como?) mantido @ margem 61 pode ser no momento um lance interessante. ‘Talvez seja o inicio de um vinculo mais forte entre arte e ambiente cultural que é urgente estabelecer: a partir desse vinculo é que se poder combater com maior eficdcia 0 con sumismo da ideologia do mercado. A criagao de formas paralelas de divul- gaciio e aproximacdo (em universidades e espagos publicos) com pessoas de fora do circuito me parece importante atualmente. Como importante talvez seja ter uma tatica de contato com as instituigdes — menos compro- metidas com a ideologia do mercado — que permita uma intervengao em seus espacos ¢ permita obter delas uma projectio mais ampla para discursos exiticos paralelos ao do mercado. Para a elaboragao de uma ampla estratégia de intervengio no circuito brasileiro de modo a torné-lo atuante culturalmente vejo dois pontos prio- Fitarios, um no campo da pratica e outro no campo da teoria: 1. A reorganizagao dos artistas contemporaneos em torno de um programa comum de agao dentra do circuito Contra essa reorganizagao, 0 circuito reage de varias formas — seja tentan- do configurar como grupismo sectirio toda e qualquer movimentag3o nes- se sentido, seja recuperando trabalhos individuais contempordneos, recor tando-os de seu contexto critico. © fator mais importante que age contra essa reorganizacdo, entretanto, é a propria introjecdo por parte dos artistas da ideologia do mercado e do estatuto da arte em nossa sociedade de um modo geral. Levados a acreditar na mitica personalizagao da figura do artista — passando a viver 0 seu papel social sob forma de privilégio —, 0s artistas costumam encarar-se uns aos outros como rivais. Dessa maneira, superlegitimam o modo de acao do mercado. E além disso evidente que o estatuto do artista na sociedade nao cobre apenas 0 aspecto econdmico — ¢ artista sendo leyado a pensar em si mesmo como uma pequena industria. Ha mitos amplamente difundidos que de uma maneira ou de outra sustentam esse estatuto ¢ compelem a comporta- mentos especificos, A reago ao pensamento discursivo e a propria inteli- géncia é um desses comportamentos tipicos que inibem ou limitam a sua pratica. Assim como 0 “olho” — metonimia de uma qualidade intangivel 62 que alguns apenas teriam —substitui a inteligéncia’ na fruigao oficial de arte, talvez se possa dizer que 0 “talento” (0 génio etc.) substitui na ideologia de muitos artistas 0 trabalho intelectual. De posse de uma cultura apenas lite- raria, quando nao de uma orgulhosa ignorancia, torna-se impossivel para eles compreenderem com rigor a situago de seus trabalhos no ambiente cultural. Muitos ainda estado enlevados com a velha nogao de artistas e sen- tem uma certa nostalgia dela. Mas a reconquista de um espago cultural para a arte contemporanea exige uma aco coletiva dentro da qual a superagao. desse estatuto é absolutamente necessaria. 2. A formulagao de uma hist6ria critica da arte brasileira Feita de modo anedstico, quando nao desonesto, através sobretudo de co- lunas jornalisticas e catalogos (obrigados a uma conceituacao circunstan- cial ¢ pouco rigorosa), a historia da arte brasileira funciona de um modo geral como caucionamento, no plano discursivo, da realidade mercantilista do circuito. Mais do que isso, funciona como caucionamento para a leitura oficial de arte, resultante em ultima analise de uma idéia acerca da fungao da arte na sociedade. A razao disso € simples: quase sempre é o proprio mercado o responsa- vel pelas poucas iniciativas tedricas que ocorrem na arte brasileira. Pratica- mente desligada das outras 4reas culturais, a arte gira em torno do mercado € a sua produgao textual estd em geral comprometida com fungdes mercado- logicas imediatas. A questo que se coloca, no plano teérico, é a tentativa de transformar a leitura vigente de arte em nosso ambiente cultural. Para isso, é claro, torna-se urgente a abertura de espagos que possam abrigar uma pro- dugao tedrica destinada a recolocar a arte contemporanea brasileira e inter- nacional como objeto de discussdo em nosso ambiente cultural 3. Ver L'Amour de Vart, de Pierre Bourdieu (Paris: Minuit, 1969). 63 Agora, a arte Opinido, margo de 1976 © desejo de contemporaneidade que, por principio, deveria animar uma exposigio chamada “Arte Agora” est paradoxalmente ausente das salas do ma do Rio. Podem-se encontrar vestigios desse desejo em um ou outro trabalho, mas nao houve seguramente uma estratégia nesse sentido. O ter- mo “agora”, para a inteligéncia que presidiu a organizagaio do evento, tem um cardter fotografico ¢ anedético: diz respeito apenas ao aspecto crono- légico (os anos 70) da producio de arte no pais, esta desinvestido de quais- quer conceituagdes mais amplas. Os mecanismos acionados por essa inte- ligéncia foram exaramente os mesmos que 0 circuito de arte em geral costuma acionar para desenvolver esse jogo de troca de mercadorias e sig- nos de status que resume a sua atividade. Os critérios foram os mesmos, obedeceram ao mesmo empirismo, a0 mesmo primado do gosto e aS mes- mas pressdes do mercado. “Arte Agora” nada mais fez do que reproduzir os esquemas de manipulagao do trabalho de arte que caracterizam 0 circuito de arte bra- sileiro, isto é evidente. Ele nao foge as regras dos saldes ¢ esta perfeita- mente conforme ao senso comum. G problema é que a sua esfera de ago passou por uma area de produgao, que se define por um relacionamento critico e dificil com 0 circuito, e se dispds a recuperd-la; isto é, trazé-la para o interior da instituigdo-arte como se inscreve dominantemente em nosso ambiente cultural. © salZio configura-se assim, muito claramente, como um dispositivo de recuperagiio. E é nessa medida que dé margem a uma andlise mais detida. 64 Tormentosas relagdes Seria um raciocinio obtusamente mecanico opor de modo rigido a produ- 40 contemporanea (aceitemos, para facilitar, 0 rotulo) e a instancia funda- mental do circuito de arte, o mercado. O produtor esta sempre e necessa- riamente envolvido com o mercado, é dbvio. O modo desse envolvimento € que estd em questo e pode definir posigdes culturais até radicalmente diversas entre si. A partir dessa premissa € possfvel investigar as tormento- sas relagdes entre os produtores de arte interessados numa posigao de con- temporaneidade e 0 mercado de arte brasileiro. As defasagens entre eles so, constata-se empiricamente, numerosas. Mas as razdes dessas defasa- gens talvez possam ser resumidas em torno de dois eixos: as diferengas nas posigdes de leitura preconizadas por cada uma das partes e as diferengas relativas ao processo de transformacao das linguagens. O interesse do mercado é promover leituras faceis e lineares do traba- Iho de arte, é salvaguardar a ideologia de patriménio cultural e sobretudo preservar a eficacia da arte como trago distintivo de classe. As posigdes de leitura que assimila e incentiva esto comprometidas com 0 imaginario das classes altas: o seu terreno é a sensibilidade, o gosto, o dom, 0 talento ete. Os artistas contemporaneos, por sua vez, estéo fartos da ideologia da arte ¢ tém, via de regra, uma posigao critica ante os efeitos sociais de sua pro- pria pratica. A eles interessam, portanto, novas posigdes de leitura que pos sam questionar esses efeitos, direciona-los num outro sentido, transforma- los em matéria de combustao cultural. Raciocinio andlogo pode ser aplicado 8 questio das linguagens. O mercado brasileiro até aqui tem se recusado a lidar com suportes menos respeitaveis do que a tela, o papel, o bronze, o marmore, ¢ com linguagens menos tradicionais do que o figurativismo, 0 abstracionismo lirico, o pri- mitivismo e assim por diante. Como se sabe, 0 mercado nao possui estilos prediletos, nem procede a andlises para aferir os tragos distintivos de cada um deles. © que 0 obriga a agir tdo estreitamente é um calculo comercial segundo o qual o artista deve ser presa de um “estilo” ¢ o seu trabalho pre- cisa ser reconhecido mais ou menos a dois quarteirdes de distancia. 65 Truncado didlogo Essa exigéncia vai de encontro ao desejo de muitos artistas contempora- neos, que manipulam uma estratégia de impessoalidade e diversidade vi- sando precisamente escapar ao cerco do mercado, ¢ se choca mesmo com a propria dinamica do trabalho de arte: age como freio e obstaculo a constru- cao pertinente de nexos que caracteriza todo e qualquer modo de conheci- mento. Ai engasga o dialogo entre 0 mercado e a produgdo contempora- nea: o primeiro quer a familiaridade, a repetig’o mecanica de esquemas, 0 segundo esta sempre pronto a atender as solicitagdes que determinam trans- formagées de linguagem. No se trata de armar uma oposi¢ao maniqueista entre produgao con- temporanea e mercado, mas 0 fato é que nesse truncado didlogo quem tem sempre a palavra é 0 tiltimo. Como instancia dominante, possui o poder de reduzir ao siléncio ou a confusos ruidos as reivindicagées dos artistas. Fica claro, portanto, que qualquer proposta de aproximagio do circuito a esse tipo de produgio deve levar em conta seu precario relacionamento com o mercado, as dificeis condiges econdmicas em que existe e se efetiva. Mas, atengio: criar possibilidades econdmicas para a seqiiéncia dessa produgao implica construir um contexto pertinente onde possa atuar sem o desgaste a que é submetida habitualmente. Sem a montagem desse contexto, as aproximagdes se tornam obrigatoriamente manobras de recuperagao: ex- propriagic do significado desses trabalhos a servico de ideologias ¢ esque- mas de leitura radicalmente diversos de seus pressupostos. Voltemos entéo a “Arte Agora”, Em muitos aspectos, € um modelo de manobra de recupera¢io. Nao importa saber se os seus organizadores (Ro- berto Pontual, Olivio Tavares de Aratijo, Marcio Sampaio, Aline Figueire- do € Joao Camara) tém ou nao consciéncia disso, nem importa especular sobre as razdes praticas e tedricas que levaram a montar este € nenhum outro salao. A questo decisiva, a meu ver, é que a exposigao se revelou incapaz ou desinteressada de situar corretamente a produgao contempora- nea do pais, néo obseante 0 fato de apoiar-se explicitamente sobre uma reivin- dicagéo dessa ordem. Nao ha divida de que foi essa reivindicagio, que a rea- lidade demonstrou ser esptiria, a razdo do boicote ¢ das polémicas que 66 cercaram o evento. Sem ela, “Arte Agora” nao ofereceria maiores perigos, seria um salao como todos os outros, indcuo como todos os outros. Penso que foi o sentido estratégico de recuperagio que se podia perceber por tras tas ¢ desen- do evento 0 que determinou o protesto piblico de alguns art cadeou uma polémica entre eles ¢ 0 critico Roberto Pontual, {nteligéncia comprometida © problema foi que, fazendo alarde de suas preocupagdes contemporaneas, “Arte Agora” nem por isso deixou de adotar os procedimentos convencio- nais que caracterizam os nossos caducos sales. Organizar uma lista de cem artistas, por exemplo, foi um procedimento enganosamente democratico que 6 podia resultar no esvaziamento do sentido experimental alardeado. No momento, no esperado momento em que uma produgio recalcada pelo mercado poderia afinal encontrar-se, formar um contexto e efetivar sua presenca, descobre-se que a cena armada era a mesma ea espécie de repre- sentagao também. O papel da produgao experimental, como de habito, seria 0 de indicar as margens de permissividade do sistema de arte vigente. A opgao de excluir trabalhos que a propria comissio organizadora julgava de interesse contemporaneo, mas que haviam surgido antes dos anos 70, compromete a intelipéncia do saldo. Tornou impossivel, por exemplo, seguir 0 curso de alguma ideologia de produgao contempordnea desde o seu ponto de origem em nosso circuito de arte. Mas essa idéia ainda pode- ria ser defensdvel como uma titica que permitisse dar e ampliar espaco a emergéncias mais recentes e menos absorvidas pelo mercado. O que elimi- na de vez essa possibilidade é que “Arte Agora” abriga em sua maioria tra- balhos com linguagens desvinculadas de qualquer sentido mais rigoroso de contemporaneidade e perfeitamente integrados ao mercado. A que espécie risivel de contemporaneidade correspondem trabalhos como 0 de Pietrina Checacci e Edival Ramos: , para citar dois artistas conhecidos e bem am- bientados em nosso circuito? Uma leitura corrente de “Arte Agora” parece indicar que tudo 0 que se pretendia era mesmo realizar um salao como todos os outros, mas 67 acrescido do prestigio da contemporaneidade. A escolha de certos nomes sal- vaguardaria esse prestigio, a escolha dos outros e o proprio suporte concei- tual da exposigdo assegurariam a sua respeitabilidade institucional. © seu plano talvez fosse o de promover o ingresso, sereno e firme, da produgao contemporanea na cena artistica oficial brasileira. Ela teria seus direitos reconhecidos, desde que respeitasse 0 espago marcado para sua interven- Gio. A recusa de uma significativa parcela dessa area de producdo em par ticipar da mostra ~ ¢ 0 debate que se seguiu — interrompeu um tanto brus- camente esse projeto. Nao me cabe fazer uma anlise dos termos da polémica entre um setor da produgao de arte brasileira e um representante do circuito oficial, mas procurar 0 seu significado em termos de politica cultural. E ha algo nela que tem uma inegavel importancia: o fato de os artistas se articularem € tomarem efetivamente a palavra. Para além, muito para além da recusa, © que importa é 0 desejo e a capacidade dos artistas de produzirem uma andlise da insergdo de seus trabalhos no ambiente cultural. Esse gesto pode significar 0 inicio da construgao de uma dindmica de discussao critica que s6 pode interessar de perto a todos os que estejam de alguma forma empe- nhados em transformar o futil e desinteligente circuito de arte brasileiro. Essa movimentagao pode vir a significar, inclusive, a formagao de uma mentalidade de resisténcia ao dominio obtuso que o mercado exerce sobre a produgio de arte neste pais. A quesiao dos prémios Quanto ao salo, como se apresenta ao piblico, digamos que seja mais um lugar-comum do género, muito préximo inclusive do seu antecessor, 0 Salio de Verao. E légico que sofreu consideravelmente com a auséncia de alguns artistas convidados que recusaram participagao, mas a presenga des- ses artistas no o transformaria ess ncialmente: 0 que o torna mais um lugar-comum so 0s proprios esquemas conceituais que o apéiam, a sua propria escritura como exposigao, 0 relacionamento opaco que estabelece com os trabalhos, sem buscar conceitua-los e sem procurar extrair os seus 68 sentidos e, quem sabe, explicita-los numa forma de organizagao coletiva. Em lugar de dar-se conta de que estava diante de processos e sistemas de significagao, a inteligéncia do saldo pareceu ocupar-se apenas com a dispo- sigdo de obras e pequenos ambientes Ha, por fim, a indefectivel questio dos prémios. Nao creio ter sido dificil a tarefa do jiri ao escolher os objetos de Wilson Alves como 0 tra- balho ao qual seria destinado 0 prémio maior, Ele esta, fora de diivida, entre as poucas coisas significativas do saldo e tem a vantagem suplemen- tar, para o prestigio contemporaneo que “Arte Agora” pretende auferir, de ser um inédito, Para esse trabalho, entretanto, o prémio tem uma significa go extremamente ambigua devido as circunstancias em que foi concedido. Ele teré que suportar daqui por diante uma desagradavel inscrigdo: a de ter sido eleito como o representante maximo de um saldo como “Arte Agora”. Casa da titia Opiniao, janeiro de 1977 Pode-se defender a tese de que nada mais deve ser dito ou escrito sobre sales, bienais e outras iniciativas anacrénicas da mesma espécie. Como se sabe, estio mortas, s6 falta morrerem. Dados entretanto 0 peso de sua pre- senga no meio de arte brasileiro, a facilidade com que se praticam suas manobras repressivas ou recuperatérias com relacao & produgdo contem- pordinea, a desenvoltura com que traficam ideologias culturais as mais rea- cionarias, 0 siléncio cético ou irénico nem sempre é a arma mais eficaz. Jamos falar. Provas empiricas atestam a existéncia de um vit Salao Paulista de Arte Contemporanea aberto de 14 de dezembro até 30 de janeiro em Sa0 Paulo. Um prédio, muitas obras dispostas pelas paredes, premiages, criti- cas em jornais, tudo isso conferiu realidade ao evento. Logo a entrada porém percebe-se estar diante de um fendmeno improvavel, que padece de irrealidade, é dificil nao ficar perplexo. Ha por assim dizer uma inadequa- gio evidente entre o salao e © seu objeto, ou seja, 0 proceso contempora- neo da arte no Brasil. Torna-se claro que nao houve nenhum tipo de sinto- nia, nenhuma tentativa de estabelecer contato. Trata-se de um mondlogo do poder: do alto de suas prerrogativas a instituigao-arte decide mais uma vez organizar um evento para os fins buroctaticos e ideoldgicos correntes. © espago do salao esta marcado, impregnado, pelo paradoxo da realidade de uma autoridade irreal. © que quero dizer € que o saldo nao permite uma leitura cultural a no ser no nivel desse mondlogo do poder. Nesse sentido apenas a leitura Jo pode ser instrutiva, é mais uma oportunidade para se tentar conceituar a configuraco institucional da arte no pais, embora tenhamos ali tao-so- mente a repeti¢ao de procedimentos utilizados ha décadas. Basta pensar que nao apenas esto mantidas coisas como juris e premiagdes, mas tam- bém se respeitam as tradicionais categorias de pintura, gravura, esculturae desenhos. De qualquer modo, é uma atualizagio desses procedimentos e demonstra pelo menos a extraordindria resistencia do meio oficial de arte a efetuar transformagdes. Mais ainda, a sua extraordinaria determinagao de situar-se fora do real num grotesco esforgo para manter o estatuto platoni- co das belas-artes. © aspecto familiar (g&nero “casa da titia”) do vit Salao Paulista de Arte Contempordnea é nesse sentido bastante sintomatico. Revela sobretu- do a opgio de estabelecer um paternalismo fascista com as linguagens oposto ao tratamento homogeneizante, dispersivo e despersonalizante que © mercado concede a produgio. Aparecem ai claramente 0 desejo de reter a arte em seu dominio tradicional, a recusa de fazé-la ingressar no circuito da industria cultural. Mas € um fato incontestavel que 0 processo de arte brasileiro existe hoje numa tensdo continua entre a sua rarefeita histéria elitista e as pressées cada vez mais fortes da industria cultural, Fazer de conta que essas presses nao existem, simular a plena vigéncia das acade- mias é mais do que indcuo, é ridiculo. O processo burocratico que cerca a arte no Brasil consegue, como se vé, ficar defasado em relag’o ao nosso precario mercado, ja tao defasado em relagao as linguagens. Ora, se o mercado local recusa o embate coma produgao contempordnea, limitando-se a exproprid-la esporadicamente, no vo ser os saldes e bienais cheirando a formol que irdo estabelecer esse embate. O caso do vii Salao Paulista de Arte Contempordanea é apenas um pouco mais assombroso do que o normal em matéria de defasagem cultu- ral: teve o cinismo de armar uma exposicio rigidamente convencional, da qual esto ausentes vestigios de trabalhos experimentais, e premiar um pin- tor pré-cézanniano (Babinski) como representante maximo da contempo- raneidade. O resto é a mesma rotina inclusive com alguns poucos trabalhos significativos sofrendo a tradicional neutralizacio num contexto montado precisamente com esse objetivo. O problema como sempre é que com toda sua irrealidade o salao age sobre o real. Numa certa instancia é um dispositivo de relacionamento do Estado com a produgao de arte, em outra insere-se como evento cultural que pretende realizar uma leitura critica do processo local das linguagens, dai a existéncia de juris e premiagdes. Esses sdo os dois eixos de andlise pos- siveis. Quanto ao primeiro digamos apenas que 0 salao serve para indicar 0 desinteresse do Estado por uma atividade tao vaga ¢ remota, 0 que ja seria possivel notar pela auséncia de censura da area. De modo que tudo fica a cargo da burocracia ¢ sua conhecida capacidade de mumificar 0 pre- sente. E claro que o salao nesse sentido enrijece ainda mais o preconceito vigente no meio cultural brasileiro contra a arte: sabe-se que amplos seto- res de esquerda concordam em reputa-la mundana, elitista, desligada do real e dedicam a ela o melhor do seu desprezo moral, sem procurar contato com a produgao contemporanea e as questdes que trabalha. Como leitura critica do proceso de produgio contemporanea brasilei- ro o salao seria hilariante, se ndo fosse extremamente repressivo e reacionario. Sei que posso ser acusado de desrespeito aos mortos por usar uma linguagem to contundente, mas explico. Esse género de iniciativa é por definigao lega- tario de uma ideologia da representatividade e acaba por ter um peso consi- deravel na hierarquia de valores do circuito de arte. Quase sempre os orga- nizadores de semelhantes eventos utilizam-se dessa ideologia para justificar o seu desinteresse cultural: afinal tudo 0 que fariam, dizem eles, seria repre- sentar 0 real existente ¢ com esse lance atribuem a propria produgao a culpa pelo fracasso. E preciso denunciar esse sofisma do poder. Gostaria de dizer primeiro que nenhuma aco cultural pode se justi- ficar a partir dessa ideologia da representatividade e que deve se impor, isto sim, pelo seu modelo de leitura e por sua propria organizagao concei- tual. E uma manobra fascista a de reivindicar uma neutralidade diante do real sobre e dentro do qual se opera; 0 que se pretende assim é absolutizar a verdade de uma leitura e institui-la em fato incontestavel. © que diz, afir- ma ¢ procura erigir em verdade, por exemplo, o vit Saldo Paulista de Arte Contemporanea? Se 0 tomamos a partir de sua demanda ideolégica, a de representar o real, ele é uma inequivoca declaragio da defasagem histérica e da pobreza de formalizagao da arte contemporanea brasileira. Naturalmente, esses atributos pertencem por merecimento ao proprio salao, ao seu regulamento, ao seu jiri, & inteligéncia cultural que o preside, em suma. A producdo contempordnea deste pais est ausente dali, nao esta nem sequer ligeiramente em questao naqueles tumulares recintos. Eu po- deria citar uns vinte ou trinta artistas cujos trabalhos levam 4 frente o pro- cesso local de transformagao das linguagens. Nao esto no saldo, nem de- veriam estar, ficariam descaracterizados num contexto tao sombriamente burocratico. 73 O moderno eo contemporaneo: oO novo e O Outro Novo Extraido de Arte brasileira contemporanea, 1980 Com a explosio das vanguardas nas primeiras décadas do século, a obra de arte passou a ser tudo e qualquer coisa. Nenhum ideal tedrico, nenhum principio formal poderia mais defini-la ou qualificé-la « priori. Seguindo um movimento paralelo ao da ciéneia ~e até da propria realidade, com o allu- xo das massas ~, a arte tornou-se estranha, A sua aparéncia mesma mostra- va-se oposta ao mundo das aparéncias, com 0 qual sempre esteve (proble- maticamente) ligada. A modernidade apresentava de inicio um sentido manifestamente liberatério, caracterizava-se pela disponibilidade absoluta: parecia possivel fazer tudo, com tudo, em qualquer directio. Bigode ¢ cava- nhaque na Monalisa, pegas de mictdrio em museu, assim por diante. Mas 0 gesto de liberar implica uma situagao de opressdo, uma situagdo insustenta- vel. A liberdade moderna nao era simplesmente a afirmagao de novas pos sibilidades: era sobretudo uma revolta, um desejo critico diante das coisas e valores instituidos, No limite, expressava o paradoxo de um sujeito que nao reconhecia mais 0 mundo enquanto tal. E de um objeto — 0 mundo — que parecia nao se comunicar com a principal figura construida pela eivilizagao ocidental: 0 sujeito. A correlagéo organizada — amarrada mesmo por lagos de autoridade indiscutiveis — entre sujeito e objeto, a famosa razao do sécu- lo xix, dissipava-se ao sabor dos ventos no cotidiano massificado. Era des- construida minuciosamente nos laboratérios de pesquisa ¢ salas de aula. Por que os ateliés ficariam alheios a essa, digamos, confusio esclarecedora? A radical negatividade dadd, o escandalo surrealista e a vontade de ordem construtiva, com suas diferengas irredutiveis, tinham porém um ponto em comum: desnaturalizavam 0 olho, descentravam o olhar, abriam um abismo no interior da contemplacao, o lugar por exceléncia das belas-ar- tes. Sema seguranca desse lugar — sem o sublime dessa atividade imaterial e desinteressada da contemplacao pura —, onde situar a arte? Uma respos- ta inicial era evidente e inquietante: em nenhum ponto fixo que organizas- se, em perspectiva, o mundo ao redor. As chamadas artes visuais nao dis- tribufam mais um suposto duplo da realidade aparente (de fato, nunca fizeram), uma reconfortante ¢ gratificante doagio de prazer que ratificas- sea plenitude da nossa visio, Ao contrario, empenhavam-se em dissolvé- la, questionar o proprio visivel, denunciar a sua fragilidade. Assim, ndo localizavam nada — inversamente, tiravam as coisas do lugar. Ora, com isso perdiam sua posigiio marcada, os pontos de apoio, ficavam enfim desloca- das. Isto é, sem localizagao fixa. Historica e filosoficamente destinada pelo Ocidente a duplicar a realidade — dai sua condenagao ou valorizagao arte perdia o seu estatuto ao voltar-se contra si mesma e contra o real en- quanto unidade. Realizava desse modo tarefa simetricamente oposta a que the fora atribuida. Desde entao, se em crise da arte, Em sentidos varios, de manei- ras diversas, a arte ndo reencontraria mais a plena razio de ser. Claro, a cri- se era extensiva a todo o espago cultural, a todo o simbélico de um mundo em meio a processos de transformagio que o desfiguravam ininterrupta- mente. No caso da arte, porém, a contradi¢do atingia em cheio a propria obra, suspensa e indefinida agora entre seu cardter tinico — guardado pelas belas-artes — ea multiplicidade exigida pela técnica. Essa inadequacao bas ca, imediata, provocava no trabalho uma preméncia, uma tensao, que em diferentes niveis seguem presentes ainda hoje. Obrigada a ser tinica, con- vocada a ser muiltipla, a obra de arte virava um campo de batalha onde lutavam forgas opostas € desiguais. Cindia-se assim a bela aparéncia e dela emergiam espacos ¢ figuras sem nome. Ai comeca a inevitavel pergunta: isto é arte? Nao, senhoras e senhores, a arte que é isto. Qualquer isto. Um isto problematico, reflexivo, que é necessario interrogar e decifrar. O saber da arte, 0 poder da arte, desenvolvidos mais ou menos & sombra na civi- lizagao do logos, puseram-se em movimento para “compreendet” a nova situagao. © projeto moderno, convém lembrar, representou um esforco 75 duplo e contraditério: matar a arte para salva-la. Questiio de sobrevivéncia — ou pensar a inteligéncia negativa de si mesma ou correr o risco de mor- rer desapercebida do tumulto de um mundo andnimo e feroz. Pensar a morte da arte, pratic-la por assim dizer, era a rotina das van- guardas no inicio do século. Que o fizessem pondo em circulago uma infi- nidade de novos esquemas formais, novos procedimentos, assimilando ain- da uma complexidade de raciocinio aparentemente estranha a sua démarche, prova somente a qualidade do problema. Nenhum gesto isolado, nenhum decreto, conseguiria interromper esse processo intelectivo coerente sobre 0 qual 0 saber dominante ocidental (a filosofia e, a seguir, a ciéncia) sempre manifestou desconfianga ou desprezo. De fato, ao colocar-se em xeque, a ia correntemente dela. arte visava também ao que se pensava e ao que se di Eis um ponto onde, surpreendentemente, filosofia e senso comum andaram muitas vezes juntos. Hoje aparece cada dia com mais clareza a distin¢do — sen4o a contradigao — entre o saber da arte ¢ o saber soére a arte. Entre a ver- dade produtiva dos trabalhos de arte, ao longo da histéria, e o discurso da hist6ria da arte. E se constata 0 quao pouco se conhece desse primeiro e de- cisivo saber, apesar dos esforgos em direcdo a uma pretensa ciéncia da arte. Dessa diferenga, pasiada as vezes sob siléncio, a arte moderna tirou sua forga de emergéncia. Da insuspeitada distincdo entre a obra e 0 valor da arte. Ou, em linguagem contemporanea, entre o trabalho ¢ o sistema da arte. Obviamente um faz parte do outro, mas nao sao coincidentes. O que causou escindalo, impés-se como poder negativo, foi afinal a revolta do srabalho contra 0 seu proceso de institucionalizagdo. A discussdo do seu valor social, no sentido amplo do termo. As linguagens da arte, subitamen- te evidenciou-se, nao criavam o proprio valor. Este era construido, fabri- cado, pela estrutura burocratico-ideolégica que as cercava. Como tudo o mais, essa atividade que se supunha existir numa regitio qualquer da empi- tia mas abaixo do real, com letra maitiscula ~ protegida e dominada por ideologias como a da genialidade —, possuia uma materialidade social. Era instrumentalizada como forga simbélica, cumpria papéis, enfim. Ao inves- tir contra esses papéis a arte investia de cetto modo contra si mesma — ela também era isto, quisessem ou nao as estéticas decadentes da arte pela arte. Mas ao sobreviver a esse choque, adquiria espago préprio, precario e ambi- 76 guo, mas préprio, para atuagio critica. Interpunha uma distancia polémica entre a sua inteligéncia e as figuras do museu, as determinagdes do merca- do, a autoridade da chamada historia da arte. Esse espaco critico precdrio, essa distancia polémica, as vanguardas criaram a golpes de licida loucura. Pode-se toma-los como o seu verdadei- ro trabalho, para além das obras e ideologias especificas. Aj residiu, rigoro- samente falando, 0 tertitério da vanguarda, seu valor e delimitacao histori- cos. Depois desse momento, fala-se em vanguarda num sentido figurado, ou de fato equivocado. Como o termo vanguarda implica e explica, ela sig- nificou um momento em que a produgio estava radicalmente & frente do local em que operava — a instituigao-arte. Ora, um descompasso radical s6 pode sé-lo uma tinica vez — no momento mesmo em que é denunciado. A defasagem entre a produgio ea instituigdo segue em curso no nosso contur- bado universo cultural, mas agora sob 0 paradoxal signo da continuidade do descompasso. Nomed-la vanguarda, a rigor, é desconhecer a realidade atual ou abusar do termo: nao pode haver a tradigao da vanguarda, a ndo ser como contrafacao. A tradigao da inquietude A institucionalizagado da modernidade, a complexa manobra de transforma- gdes e recalques que exigiu do universo simbélico dominante, produziu uma esquisita situacaio. Harold Rosenberg chamou-a A tradigao do novo.! O ingresso dos objetos modernos na histéria da arte ndo se fez sem profundas acomodagées do terreno. Mas ocorreu, é um fato consumado. Aquele mate- rial a principio “inaceitavel” foi enfim submetido ao mesmo processo subli- mante e, tanto quanto as obras do passado, transformou-se em figuras ideais. Modelos, coisas transcendentes a condigdo de coisas. A modernidade ven- cera, a modernidade perdera. Nao hd meio simples ¢ direto para sintetizar a questao. Necessariamente toma forma antitética, obriga a pensd-la em suas diversas dimensdes. Aceita, incorporada a tradigao, a modernidade foi |. Harold Rosenberg, A tradigiv do novo (Sio Paulo: Perspectiva, 1974) 77 automaticamente negada enquanto vanguarda. A tradigéio moderna apre- senta-se entretanto de maneira problematica pois a instituigao no detém ainda sua completa inteligibilidade. Dai o “eterno retorno” da questao da vanguarda —a presenga surda de contetidos como a morte da arte, a antiar- te e outras metaforas dessa ordem, ou melhor, dessa desordem. Dai o senti mento de faléncia, o fantasma de culpa, que parecem onipresentes em todos os espagos do mundo da arte. De algum modo, os trabalhos radicalmente modernos ainda pressionam e irradiam uma inteligéncia avessa a ideologia das belas-artes. Esta percebe e recupera s6 0s tragos superficiais, os signos externos. As operagées transpressoras nao sdio devidamente assimiladas. O que pode significar, por exemplo, pensar um Picasso? Certamente algo di- ferente das verdades correntes atribufdas a Picasso. O saber produzido por esse artista, quem 0 acompanha no registro correto, no seu embate minucio- so (e silencioso) com a histéria da pintura? Nao é um problema de métier. Mas exatamente a questio da pintura enquanto sistema organizador da vi- sualidade, cotidiana, inclusive. Desnecessdrio praticar pintura para com- preender a questio. F indispensavel, contudo, conhecer por dentro as arti- culagdes do processo para nao ficar preso a sensibilidade do olho empirico. Esta sensibilidade, contra a suposigaio comum, é a que existe de menos es- ponténea: esta totalmente determinada pela estrutura dos cédigos vigentes de inteligibilidade. Gostar ou nao gostar, nesse sentido amplo, é a mesma coisa — em qualquer dos casos jé se perdeu a chance de ver o real do traba- tho ao traduzi-lo na rede instituida do visivel possivel. E este, vale insistir, nao representa o limite do olho humano ¢ sim 0 de uma dada construgao da visualidade, coerente com a implantaio e manutengao da ordem bur- guesa. Ai dentro a modernidade artistica situa-se ambigua ¢ dificilmente. Onde se queira mostrar sua estrita aderéncia a essa ordem, até mesmo algu- ma fungao protetora, é facil localizar as partes antagénicas (0 raciocinio acima pretendeu demonstré-las). Onde, inversamente, se tente provar uma oposigao absoluta entre o modo de produgio capiralista, vamos dizer, e os, procedimentos da arte moderna, 0 raciocinio corre 0 sério risco de cair no vazio. Impossivel ser simples em se tratando de relagGes ou refragdes com- plexas, superpostas, invisiveis a olho nu. Impossivel decidir a questao num julgamento formal de valor. 8 Essa resistente inadequagio, essa inquietude dos esquemas formais modernos (Theodor W. Adorno:? as formas sao contetidos historicamente condensados) no quadro da historia da arte, vai possibilitar uma arte con- temporanea e, adiante, um espaco da contemporaneidade. Este nao seria uma figura clara, com ambitos plenamente definidos. Seria um feixe des continuo, mével, a se exercer na tensio com os limites da modernidade, in teressado na compreensio € superagio desses limites. Nao ha uma di- ferenga evidente entre 0 trabalho moderno e 0 trabalho contemporaneo, valida por si, ha, isto sim, démarches distintas agindo “dentro” e “fora” deles. “Dentro” porque e trabalho de arte contemporaneo nao encara mais a agao modernista como esta se idealizava e sim como resultou assimilada ¢ recu- perada. A erosdo dos novos valores, a modernidade evidentemente desco- nhecia: a luta era contra 0s arraigados valores do século xix. A partir da pop, no entanto, a arte vive no cinismo inteligente de si mesma. Vive com a consciéncia aguda das castragdes que o principio da realidade imps & libido das vanguardas. Mais grave, com a certeza sobre a incerteza da iden- tidade de suas linguagens — estas, por mais radicais, sofrerio inevitavel- mente 0 choque com 0 circuito, ¢ af, s6 af, ditdo quem sao. “Fora” os procedimentos sao outros também. A mudanga da hege- monia do mercado de Paris para Nova York nao foi somente uma questo geogréfica, Foi uma mudanga estratégica. Nova York nao é um centro como Paris 0 era, representa um novo tipo de hegemonia que age pelo descentra- mento, pela expansio volétil, sem fronteiras nacionais ou outras delimita- ges fixas. Os novos procedimentos condensam as articulagdes do circuito: 08 ismos se atropelam a ponto de perderem sentido, a “historia da arte” apa- rece cada vez mais macica e, até, rotalitariamente. Os trabalhos acumula- dos nao vao possuir uma cronologia explicativa de movimentos. Nao existe mais uma ordem de sucesso temporal que permita 0 encadear de seme- thangas, oposicées, filiagGes e conflitos. Quem desaparece diante da produ- cao contemporanea é a nitida instancia genealégica da historia da arte e mul- tiplica-se a densidade e complexidade da instncia tedrica. Nao pode existir uma teoria da contemporaneidade. O préprio desta contemporaneidade é Theodor W. Adorno, Théorie esvhévigue (Paris: Klincksieck, 1974) (ed. bras.: Teoria estética. Sao Paulo: Martins Fontes, 1982] 79 ser um “amontoado” de teorias coexistindo em tensio, ora convergente, ora divergente. Esta é a historia deste outro novo. Ao mesmo tempo, em contrapartida, a produgao se especifica, analisa com deraihes cada um de seus momentos, é atravessada por uma série de exigéncias técnicas que poem em suspenso 0 proprio conceito de arte como era e ainda é entendi- do. E aqui a técnica deixa de ser meio expressivo do sujeito, Ao contrario, passa a ser necessidade objetiva de os artistas dominarem uma racionalida- de profunda e generalizada para acompanhar as determinagGes do sistema cultural. Necessidade de investigar 0 seu campo de atuac&o no nivel da consciéncia critica. Numa certa medida, nao é mais a arte que permite a historia da arte e sim 0 inverso — a historia da arte, esta construgio a poste- riori, infiltra-se na produgao ¢ parece mesmo determind-la. Curioso, sintomatico mesmo, pouco se fala na passagem da moderni- dade para a contemporaneidade. Talvez inconscientemente a ultima passe, para a maioria, como mera decadéncia da primeira. As grandes obras teriam sido feitas e restaria apenas a tarefa de esgotar as linhas de pesquisa modernistas. Ou entao o contemporaneo vira sindnimo de toda realizagao do momento, resumida assim a uma cronologia empirica. Esse critério risi- vel esquece, prefere esquecer, a luta que se trava no campo simbélico para trata-lo como espago neutro, continuo e indiferenciado. Num outro nivel, menos inconseqiiente, a insisténcia sobre a idéia de vanguarda indica a resisténcia em reconhecer a questo contempordnea ¢ sua especificidade. Esta mostra-se muito menos maleavel a simplificagdes pois rejeita esque- mas formais ou contetidos privilegiados. Nem sustenta a sedutora ingenui- dade de matar a arte — ela nao é apenas a produgao dos artistas mas também, uma empresa do sistema, um canal ideoldgico, uma instituigao histérica, enfim. A arte nao pode, no tem poder para matar a Arte. As manobras contemporaneas Como abordar a questo contemporanea? De que maneira encaminhé-la? Em torno dessas indagagées este texto vai tentar localizar alguns pontos. A dificuldade inicial reside na impossibilidade de aceitar certas colocagdes 80 correntes, com conceito € reputagio criticos formados. Por exemplo: toda espécie de interrogagao direta sobre arte e politica, arte e sociedade, arte tecnologia, arte e ciéncia etc. Esse modo de questionar revelou-se improdu- tivo ao querer definir os nexos entre as transtormagoes da arte moderna e aquelas ocorridas nesses outros espagos. Quase sempre o reducionismo mutilou a propria realidade da arte. A experiéncia contemporanea conduz a manobras simultaneamente mais abertas e precisas. Paradoxalmente, para decifrar os pontos de contato entre a arte € os demais processos sociais mos trou-se imprescindivel aprofundar a investigacao no interior da propria arte e ai, s6 af, violar sua intimidade e esclarecé-la. Nao se pode tomar suas re- presentagdes empiricas ¢ procurar liga-las, 4 forga, com outros interesses. Querer que a arte diga o que nao quer dizer, € sim 0 que se quer que ela diga.> Na verdade, essas operages imediatistas acabavam por deixa-la intacta, nao empreendiam a tarefa de desmontar sua construgdo e apontar suas conexdes, e cumplicidades dentro do que se esta no direito de chamar guerra ideolé- gica em curso. Falhavam em criticar sua inscrigao no processo de transfor- magao social, falhavam ao pretender usé-la como “instrument” revolucio- nario. Sem pensa-la como objeto especifico — atravessado por interesses de todas as ordens sim, mas mediados sempre por uma instituigao e uma hist6. ria particulares — é impossivel conhecer o real da arte como discurso ¢ saber promovidos e hierarquizados pela civilizagio crista ocidental Do mesmo modo, a questdo contemporanea resiste as inevitaveis investidas académicas formalistas. As diversas empresas tedricas que dese- jam adequar 0s novos procedimentos ao rélos da historia da arte esbarram de saida com a “falta” de novidade, a impossibilidade de localizar, precisa e inequivocamente, um lance, um sintagma, com granu positivo de transfor- magio. Para uma certa contabilidade positivista, a contemporaneidade ar- tistica lembra um simples espago da repetigao. A falta de rupturas formais (bem entendido, o que supde ser rupturas formais), 0 moderno olhar aca~ démico pensa reencontrar a antiga estruturacao dos codigos visuais classi- cos, no maximo procura detectar mudangas sintagmaticas dentro da conti- nuidade modernista. Em ambos 0s casos, erra o alvo. Ver na pop, insistindo 3. Segundo Adorno o elemento engajado é sempre o elemento no-artistico do trabalho. 81 no exemplo, um retorno ao figurativismo é acreditar demais no estilo e em tudo 0 que essa suspeita categoria esconde ~ a propria verdade produtiva. De fato, a inteligéncia pop é de ordem mais abstrata do que a maioria da arte dita abstrata, presa jé as figuras da abstragdo.’ Uma aguda consciéncia reflexiva da materialidade arte, uma concepgao altamente abstraida do seu sentido hist6rico, esto na raiz da operacao pop — suas figuras sio assim 9 seu valor abstratas por exceléncia, pdem em xeque a propria substncia mesmo enquanto linguagem instituida. $6 a extrema e surpreendente ade- réncia de preconceitos substancialistas no interior das visdes formalistas explica leitura tao grosseira — a organizagao horizontal-vertical de Mon- drian viraria, nessa linha de raciocinio, uma substancia, um contetido, car regados de verdades em si, e em seu nome seriam isoladas todas as outras sintaxes. Isso significa no apenas a incompreensao da pop mas do proprio Mondrian e demais postulados construtivos anti-substancialistas. Inferir relagdo coerente entre as imagens pop e os conceitos que “representam” é desconhecer as manobras de estranhamento, o cinismo corrosivo, a des- substancializagao e a desconstrugdo dos codigos vigentes ali expostos. Identificar todo e qualquer procedimento “figurativo” a estruturagio da linguagem tradicional implica fetichizar os chamados procedimentos abs- tratos, promové-los, no nivel imediato e até certo ponto falso do estilo, & categoria de norma. Quer dizer, academizé-los, buscar a estruturagao defi- nitiva. Nao perceber a desestruturagdo da linguagem pop passa a ser ape- nas sintoma de um desejo renovado de ordem. Sintoma de um desejo de sentido pleno. Mas o simples ato de enquadrar a pop na seqiiéncia da arte moderna, como novo lance transformador, nao vai também muito longe. Trata-se de um gesto assimilatério, j4 devidamente produzido pelo mercado e por museus em ambito internacional. As custas, diga-se, do poder de fogo pop por exceléncia — a informalizagéio generalizada dos contetidos e hierarquias 4. Na verdade, a Ansia por uma representatividade genérica abstrata para a arte segue a visio tradicional que justamente w reduz.a fendmeno ilusionista e, por isso mesmo, perizo- so para o destino do Estado. Dai a necessidade du submeté-la as consideragies do logos € conduzir sua fala delirante. Tanto quanto na Repidlica de Platao, a arte vai servir aqui ape- nas pura acompanhar uma gindstica, no caso uma gindstica ideologica. 82 do mundo da arte, sua redugao ao modelo chapado da sociedad de consu- mo, a dispersio inteligente ¢ calculada dos varios momentos e instancias desse sutil canal ideolégico, Embora contabilizadas pelo “deseneanto” pop, a recuperagdo de seus esquemas ¢ sua entronizagio na histéria da arte vio- lam a inteligéncia do movimento ao realizar démarche inversa: reconstruit a positividade dos momentos da atte passd-los, incompreensivel e magi- camente, sob a forma mitica de um valor sem valor, “objeto de cultura”. Nessa assimilagio entretanto foram e vao um pouco as cinzas — ou a areia ~da prévia consciéncia da obra pop sobre 0 seu destino “assimilavel”. Pela primeira vez, visivelmente, os trabalhos traziam consigo as marcas da pré- pria alicnacao —existiam na tensao de ser o que ndo eram e nao ser o que eram. Essa cicatriz risonha do trabalho pop continua a incomodar a insti- tuigdo que 0 absorve e trafica, a ironizar sua 2elosa violéncia. Ha, sim, um conformismo ai. Ao conformar-se ao ambiente em redor, moldar um estilo homélogo, o trabalho pop rompe, numa primeira instin- cia, com a tradigo romantica maldita. Tradigdo de culto ao embate ime- diato. Nesse aspecto, comparativamente, a contemporaneidade em geral tende a sobriedade e A economia de meios. O peso da “morte da arte” foi consideravel, suficiente para levar a reavaliagdo de seu verdadeiro poder. Um raciocinio politico mais fino e minucioso, estratégico, vai aparecer en- tretanto como nova modalidade de combate eritico. Um raciocinio anali co, mediatizado, que logre detectar as articulagées da materialidade arte e nela possa intervir com um caleulo de eficiéneia. A presenga problematica dess calculo caracteriza ¢ distingue a produgde contemporanea, muito mais do que quaisquer procedimentos formais ou niicleos tematicos. Razoes de arte Operagio mimética — e nao puramente eidética —, a arte sempre estabele- ceu relagdes sinuosas, escabrosas até, com a racionalidade. No limite, sem- Verdades menores, errantes, que nao chegavam a enfrentar 0 tribunal da razao. Rei- pre produziu verdades mais ou menos clandestinas enquanto tai no do talento e do génio, atributos da naruralidade, participava da cultura 83 com esse estatuto ambiguo — para sua gloria e transitoriedade. Dizendo 0 minimo: a arte passava por uma estranha espécie de conhecimento que nao se autoconhecia. Assim foi aceita e nomeada. E, por essa limitag3o consti- tutiva, estava em tese desde Plato condenada a desaparecer. A sedimen- tagdo generalizada — e generalizante — da razao técnica a partir do século xix transforma porém a morte da arte em matéria cotidiana: 0 novo ambiente, a psicanilise, a politica, a ideologizacdo progressiva das esferas de comportamento ameagam diretamente invadir seu dominio, dissipar seu interesse, desmitificar sua sedugdo. Em meio ao rigor especificante da cién- cia eA expansio volatizante dos processos ideolégicos, onde ficaria a arte? Onde poderia desempenhar tarefa propria, sem dissolver-se na organiza- ga0 do conceito ou perder a identidade nos meandros de um ultra-ativo senso comum eletrénico? A racionalidade artistica é levada assim cada vez mais a acirrar-se - sobretudo para sustentar sua diferenga ante as demais racionalidades insti- tuidas. Afastar-se delas e lograr legitimagao como saber especifico. Na era da modernidade, isto foi feito ainda em grande parte no contato critico imediato com 0 material artistico tradicional, vamos dizer, in loco ~ ali onde se articulava a tradig&o —, no nivel da organizagao do espaco, da pin- celada mesma, ou no nivel dos fetiches de pensamento. Por perceber e ata- car 0s limites mais amplos desses fetiches, Duchamp tornou-se Duchamp —o precursor da contemporaneidade. Foi um privilégio da modernidade surgir como um saber a mais diante da razao do século x1x — em plena vigéncia cotidiana até pelo menos os anos 40 ~ e seu desprezo quanto A capacidade racionalizante da arte. Subitamente, esta chocou pelo excesso de inteligéncia e com isso capitalizou uma estranha positividade. Agora a questiio surge muito mais rarefeita, mas sutil e dificil —a tarefa é trabalhar sobre as rupturas modernistas, elucidé-las, “desidealizd-las”, rompé-las se possivel. Romper rupturas, eis a embaragosa situagao. Para a arte contem- pordnea o problema assume, de saida, forma de aporia: 0 que fazer quando tudo ja foi feito? Vencer esse bloqueio inicial, esse apriorismo repressivo, que carrega o estigma da academia, exige desdobramentos reflexivos e violéncias estra- tégicas — seu material shediatizado, integralmente culturalizado, ndo permi- 84 te a produgao contemporanea agressao direta. Esse material ja resulta de sucessivas agressdes que formam a sua historia. Nesse terreno minado, saturadamente histérico, nao ha lugar para a consciéncia ingénua. O Faro de a maior parte da produgio atual se resumir a um anacrénico esforgo para renaturalizar a arte demonstra apenas a persisténcia suicida do mun- do da arte em recalear a historia e a politica para apegar-se a um estatuto oriundo do século xvi. E representa, sem divida, uma reagao a propria modernidade enquanto projeto de transformagio desse estatuto. A farsa da renaturalizagio da arte seria assim um meio sub-repticio para afirmar sua validade sem entrar em choque com o real, como se fosse possivel escapar ao processo de racionalizacio que toma progressiva, cancerosamente, todas as dimensées do real e nelas imprime a pressio da produtividade. Mais do que nunca, aparece agora o carater regressivo e reacionario da arte pretensamente anist6rica: um trabalho atual que tenta passar por cima de sua hist6ria enquanto objeto de arte perpetra uma delicada violén- cia fascista — se oferece candidamente ao consumo do imaginario domi- nante € para tanto procura apagar as marcas que exp6e, contra a propria vontade, como produto de uma acirrada luta historica. Trabalhos dessa ordem, trabalhos-maquiagem, formam varios segmentos do meio de arte e compéem, em conjunto, uma maquiagem para esse meio — um recanto nos- talgico-decadente que finge ignorar os acontecimentos a seu redor. Capitalizando o zero Um calculo de razo, uma incessante cerebragiio passam constitutivamen- te pelas varias instancias da arte contemporanea na exata medida em que seu lugar é apenas e radicalmente reflexivo. Até certo ponto, existe somen- te na trama da propria produgao, nao possui materialidade definida. Ope- rando em cima do choque da modernidade com o real, no detém a cién- cia do seu proprio choque ~ este ainda esta inferiorizado no trabalho de forma especulativa. © seu material 6 portanto a reflexao produtiva sobre a historia ainda viva, pulsante, da obra moderna. Uma reflexao sobre a negatividade desse material — as torgdes a que foi e est sendo submetido, 85 as leituras contradit6rias que nele se cruzam, suas idas e vindas por assim dizer como matéria simbélica. A. arte contemporanea esté obrigada a achar af sua sobrevivéncia — no meio dessa confusio deve produzit trabalhos que tenham a clara inteliggncia da cisdio que ao mesmo tempo os constitui e separa de si mesmos. Nesse sentido sobretudo a nova arte esté condena- da & reflexdo: traz.consigo, no nivel da “imediata” formalizagao, seu prd- prio absurdo, a diivida sobre si mesma. S6 talvez como tara de razdo, paroxismo, pode a arte reencontrar algum poder expressivo (sua ambigua universalidade, enfim) na sociedade da razdo técnica — recusar a racional! go é negar a prépria inteligéncia, aceitar a condigao de objeto decorativo. Como tal nao seria mais arte; tra- gada inteiramente pela empiria, perde a transcendéncia. Mas, sem levar ao extremo essa racionalidade, sem tensiona-la nos seus limites e ai confron- té-la com 0 seu contrario —a irrazdo, a loucura —, nao cumpre sua nao-fun- go, a heterogeneidade que a distingue no universo do logos. A arte acaba assim simples paisagem de conccito. © cAlculo contemporaneo, como defini-lo? Talvez como uma espécie de racionalizagao do heterogéneo. Um esforgo paradoxal para capitalizar poder negativo. Este poder era 0 apanagio das vanguardas, seu ponto de partida. Agora porém nao € mais passivel de utilizagao imediata. No nivel empirico, é um fato, coisa alguma impée-se hoje pela estranheza. Tudo parece ja visto, nada tem a forca direta do heterogéneo, o impensado sub- versivo. Nenhum happening vale pelo happening mesmo ~ forma tao insti- twida quanto qualquer outa. As coisas da arte ndo apontam uma diregdo clara de positividade ou negatividade — sua processualidade decide tudo nesse sentido. Vai dai, a coisa, 0 objeto em si, nio & 0 ponto final de um continuo, nem a soma dos momentos de sua realizagao. Quando nao é exa- tamente 0 seu contrario ironico — o que ha aparentemente menos pensado do que a série “Stars” de Andy Warhol e no entanto 0 que ha de mais ela- borado e informado na acepgao plena do termo? ~, mantém uma diferenga conflitante entre 0 que é ¢ como chega a ser. Nessa distancia est a sua pos- sivel heterogeneidade — 0 fato insélito, inexplicavel, de ser diverso do seu “resultado” desafia a logica da producdo tecnoldgica. Desafia a propria logica cientifica. 86 Por meio dessa perversio ldgica, a arte readquire quase clandestina- mente uma forga de expressividade — faz falar o sujeito, o intimo informa- lizavel do sujeito, preso em uma objetividade totalmente organizada. Mas atengio: faz falar 9 sujeito preso nessa instancia, agente de uma situagio real. Nao um sujeito livre de determinagSes que, como é comum acreditar, encontraria na arte o tiltimo canal para expressar sua esséncia no mundo capitalista reificado. Sutil, hermética e impopular na superficie, a arte con- tempordnea esta profundamente “massificada” em suas verdadeiras di- mensdes — carrega os tragos das lutas populares, anda literalmente as voltas com 0 afluxo das massas e sua contradi¢do com o sistema da cultuea. A transformagio das linguagens nao é reflexo das lutas sociais — é ela propria uma luta dentro da ordem simbdlica. Daf 0 equivoco em analisar essas lin- guagens por comparagdo com outros processos sociais — na sua propria materialidade praticam a sua politica, definem um posicionamento no real. A questio é interroga-las no registro correto, na sua historicidade imanen- re, em vez de generaliza-las ao léu e, afinal, perdé-las de vista ao buscar sua ampla, geral e irrestrita representatividade. Presa 4 metatora da janela, muita gente procura para onde apontao trabalho de arte e nio yé o que ele est mostrando, ali mesmo, na trama problematica da sua constituigao. (No caso especifico da janela, recomenda-se como antidoto eficaz Magritte.) © trabalho atual softe pressio, de todos os fados e modos, para expor e exibir sua trama problematica. Nao (he sobram muitos artificios de subli- magio. Deve atender, de pronto, a propria voracidade, sob pena de para- lisar-se num discurso sobre si mesmo — esta “irracionalidade” é a inevita- vel contrapartida de sua neurose reflexiva. Mas o carater transitério, precio, longe de configurar simples espontaneidade, deriva de uma ten- sio interna basica: ou arriscar uma incerta concretizagao ou demorar inde- finidamente na discussio de scu sistema, Daf seu aspecto esquisito, obri- gatoriamente ocasional — ele é real e inelutavel uma vez que nao hé um “tempo” certo para a materializagio do trabalho: o objeto esta sempre em conflito com o sistema que o engendra. Através desses momentos antitéti- cos, embaralhados, de seu processo produtivo, revela um antagonismo profundo com a produgao racional serializada e seu controle técnico do tempo linear. Ou seja, um antagonismo ante a sua circulagao social na 87 qualidade de mercadoria. Evidentemente essa dispersividade temporal, o jogo complexo de momentos diferentes, também é incomparivel com a produgao artesanal. Seus procedimentos seriam “industriais”, sofisticados raciocinios produtivos, ainda irrealizados. E que, astuciosamente, apare- cem no real como se fossem irrealizveis. A afirmagio de uma inteligéncia atopica, sem recuperagao possivel pelo espago da dominacao onde se exer- ce, confere a arte um poder negativo especifico — pensar o impensavel, fabricar o infabricdvel —, ainda que o faga nos limites regulados pela pr6- pria realidade, no terreno espiritualizado da “criagdo”. Assim a arte con- tempordnea perfaz-se enquanto arte, constréi [lusdes de verdade e destrdi as ilus6es da Verdade. 88. Manet com Mird Folha de S,Paulo, 24 de abril de 1983 O centendrio da morte de Manet ¢ 0s noventa anos de Miré, em um certo sentido, esto fora do tempo, abrigados por esta grande ¢ respeitavel idéia - ahistoria da arte. Ai dentro, pacificadas, stuas obras enfrentam de forma olimpica os olhares avidos ou indiferentes, esclarecidos ou estiipidos, admirados ou mesmo furiosos. Nada mais pode afeta-los, a Manet morto e a Miré vivo. Durante 0 ano ja as homenagens se sucedem para provar mais uma vez a transcendéncia da arte, seu poder de atravessar a vida ¢ os fatos. Por isso, milhdes de olhares turistas, querendo ou nao, na verdade nao olham nada — ao contrario, so olhados, literalmente consumidos por essas telas que os transportam para o mundo magico da cultura. Sabe Deus 0 que passa, ou nao passa, por essas mentes turistas diante de Manet e Miré. O mundo magico da cultura, porém, domina perfeitamente a sua magia — ai esto milhées de pessoas com seus milhdes de bolsos. Tempos dificeis, datas irénicas O paragrafo é cético, desculpem, mas imprescindivel. Como ignorar, no caso, a flagrante contradigao entre os ritos institucionais ¢ a verdade desses trabalhos tao modernos, revolucionarios até? Como esquecer 0 embate do Déjeuner sur Vherbe com a academia, marco inicial da modernidade artisti- ca; ou 0 escérnio do publico diante da Olympia? E como nao lembrar que 0 velhinho cataléo, agora completando noventa anos, é 0 pintor que queria 89 pintar perto do caos, se possivel pintar 0 proprio? Mas, sobretudo, como nao pensar e repensar 0 mundo moderno vendo essas telas que, ao mesmo tempo, 0 caracterizam ¢ 0 estranham, o definem e desnaturam, e que ele, impassivel, imortaliza ¢ toma como simbolo? Mais uma pequena demonstracio sobre os paradoxos da modernidade pode ser dada quando se acha, atras do vazio institucional, uma raz4o que junta de fato Manet e Miré e torna as datas em questao particularmente sig- nificativas. Tempos dificeis, datas irdnicas. Nao creio que a Franga v4 come- morar 0 evento, mas me parece que a morte de Manet, no caso, assinala um nascimento, e a vida de Miré, uma morte. O nascimento e a morte da Escola de Paris, evidentemente. Manet é 0 primeiro, o simbolo de Paris emergindo como a metrépole cultural do século x1Xx e das primeiras décadas do século Xx; Miré é, com toda a certeza, o tiltimo grande pintor a sair da Escola de Paris, a sua ultima operagao revolucionaria dentro da arte moderna. Quer dizer: com um a Escola de Patis se assume, com 0 outro ela se resume. E ai comecam as sintomaticas coincidéncias, as inevitéveis coincidén- cias, Manet, como se sabe, deslancha a modernidade pictorica olhando para a Espanha — Velazquez e Goya —, e chega a pintar touradas antes de assistir a uma. Um texto notavel de George Bataille compara o célebre fuzilamento pintado por Goya e 0 Fuzilamento do imperador Maximiliano de Manet. O pri- meiro seria o tiltimo grito da tradigiio, o segundo, 0 tipico exemplo da moder- nidade ¢ sua morte do tema, 0 comego da pintura como pintura. O mais dra- indiferente deles. matico dos pintores faria, assim, a mediagio para 0 mais E no entanto, é légico. O lugar desse drama e dessa indiferenga é 0 mesmo —a superficie da tela. Goya nos joga a cena na cara, Manet pinta a cena ime- diata, chapada, direta. © espanhol aproxima intensamente a angiistia e 0 terror, quer forgar-nos a encard-los; 0 parisiense distancia e ironiza, deixa em suspense, o que esta proximo e patente. Ambos, contudo, atacarn o ilusionis- mo da terceira dimensio e poem em evidéncia a propria realizagio da tela. Mird, por sua vez, é 0 resultado, a inesperada fusao, das conquistas plis- ticas parisienses, de Matisse ao cubismo (com um pouco de Kandinski, é ver- dade), mas tarabém a sua drastica redugao ao préprio ato da pintura. Por isso j se falou nele como o grau zero da pintura e, ainda hoje, depois da extraor- dindria aventura da arte norte-americana, os seus bons quadros espantam pela 90 apatente falta de compromissos com quaisquer convengdes. Talvez o primeiro a fundir core forma, a interpenetra-las totalmente, Miré levou a termo alguns dos esquemas de Matisse e Picasso. Mais ainda, alcangou o milagre de iguala- los enquanto pintor ~ algumas répidas pinceladas e ld vamos nés arrebatados por essas longas linhas sem destino, por essas cores sibias e inocentes, perver- sas e perfeitas, por essas formas primarias mas impensaveis. Uma forca magné- tica nos prende a essa outra terra, Mird, ea seu inesgotavel poder de emergén- cia — nela tudo estd vivo, acontecendo, ameagando acontecer. Se Picasso desconcerta por sua complexa incongruéncia e Matisse nos reensina sempre © que significa olhar, Mir6 parece redescobrir o mundo, repotencializar as ope- rages fenomenolégicas com as quais o homem constitui, para si, o mundo. O dandi que percebeu © novo Belo em nossos trajes ridiculos, “nossas gravatas e botas de verniz” (como queria o seu amigo Baudelaire), foi achar nessa Africa européia, a Espanha, o impulse inicial para pintar a moderna Paris com uma elegancia mordaz.inigualdvel. O obstinado cataldo, sempre meio deslocado na mundanidade parisiense, encontrou nos circulos van- guardistas do surrealismo o seu destino de artista radical. Digamos, a a Bachelard: Manet, o espitito, busca a alma na Espanha; Miré, a alma, busca 0 espirito na Franga. Virtuoses, por natureza ineapazes de passar o pincel sobre a tela sem provocar um arrepio, lutam ambos contra o proprio talen- to, pressentem logo os perigos da facilidade. Manet coloca todo 0 seu virtuosismo a servigo da banal, precaria e superficial vida moderna — ¢ dela retira uma excéntrica e insuspeitada in- tensidade. E, como Baudelaire, produz uma nova espécie de negative — uma pungéncia neutra, por assim dizer. Um vago e distante cortejo fiinebre, um suicidio cotidiano, a solidao pessoal em meio a festa ruidosa sio alguns de seus temas ou antitemas e ele os executa rdpida e certeiramente, com um método sutil e preciso de captar a dispersio. JA Miro desconfia acintosa- mente de sua habilidade: quando 0 trabalho fica fécil demais com a mao direita, passa para a esquerda. E sobretudo se atira a pintura como se o fizesse pela primeira vez, antes de quaisquer dererminagbes, seguindo o flu- xo do desejo. Por isso André Breton, as vezes tao retrogrado em matéria de artes plasticas, preso a sua ortodoxia, vai ser quase obrigado a consideré-lo “o mais surrealista de nds todos”. 91 Tramites de virtuosismo Até certo ponto, Mird termina Manet, Por incrivel que parega, suas telas dos anos 20 esto entre as mais abstratas até ento produzidas pelo mains- tream da Escola de Paris. Haviam ocorrido ja 0 construtivismo e 0 supre- matismo soviéticos, 0 dadaismo, 0 neoplasticismo e, desde algum tempo, Kandinski. Nada disso, porém, era Escola de Paris na acepeao estrita e sim 08 seus efeitos mais ou menos laterais — na verdade, os mais pertinentes ¢ revolucionarios possiveis, sem o reconhecimento oficial da metrépole, en- tretanto. Na hist6ria da pintura francesa Miré vai além dos mestres Matis- se, Picasso ¢ Braque no caminho da abstrag&io. Nao existe mais o pretexto dos retratos, ateliés ou naturezas-mortas. $40 “ocorréncias” surrealistas, minimas as vezes, 0 que 0 cataldo mais jovem “representa”. Mas, ao contra- rio dos colegas surrealistas — Max Ernst, Magritte e Tanguy —, ele ignora De Chirico (outra obra transversal a Paris) e constréi seu estilo no em- bate direto com o fauvismo e 0 cubismo. E se o surrealismo era, de fato e de direito, em termos culturais amplos, a vanguarda francesa entre as duas guerras, em pintura ele 6 0 foi através de Miré e, secundariamente, André Masson (Duchamp é um dbvio caso a parte e Magritte nao pode nem gosta- ria de ser tomado exatamente como pintor.) A recusa da abstrag4o, a revolta surrealista contra 0 que chamou de “casas desertas” quando convidado a expor com o grupo Abstraction- Création, mostra apenas 0 grau de dependéncia do artista de seu ambiente produtivo. Ao olhar contemporaneo, todavia, Miré aparece como 0 polo oposto a Mondrian no processo de radicalizagao da vanguarda pictorica do inicio do século — 0 segundo exprimia a vontade de ordem absoluta, 0 ou- tro a livre pulsdo do desejo, a proximidade do caos. Enquanto o holandés tentava reorganizar 0 ambiente a partir de sua determinagao racional mais abstrata, o espanhol assumia a dispersdo, mergulhava nela para celebré-la poeticamente. Que 0 fizesse com encanto e exuberancia infaliveis é mais uma caracteristica que o liga a Manet e, assim, mais uma feliz coincidéncia para este modesto artigo. 92 Criando um outro Belo De fato, os dois artistas pareciam quase condenados ao Belo, coisa que a modernidade de cabega para baixo reputa, no minimo, suspeita. O que aca- bou por torné-los grandes, cada dia maiores, foi a luta contra esse estigma —dela resultou um outro Belo, diibio e problematico, as vezes corrosivo. Em todo caso, um Belo ativo, que se esquiva 4 contemplagao, provoca e de- safia a leitura. Basta lembrar a audacia da pobreza do vocabulario plastico de Mird, com meia diizia de elementos que se repetem ao longo de uma enorme obra; ou 0 olhar franco e direto de Manet, no barco com sua mu- her, em um quadro que se resume a um flash, um momento qualquer na vida agora cotidiana do artista. Despojados, cada qual a seu modo, nem por isso deixam de ser enigmaticos ¢ exigir um pensamento cerrado e uma sen- sibilidade aguda pasa decifra-los. Ambos, por meios diversos mas igualmente paradoxais, sio 0 que sio, mantém uma esquisita irredutibilidade. © precursor imediato do impressio- nismo jamais aderiu integralmente ao movimento, nao consentiu nunca em se abandonar, como 0 amigo Claude Monet, & pura logica das sensagdes, O maior pintor surrealista, por sua vez, nao é um surrealista ortodoxo. E. por 10 cultua a imaginagao, esré longe de ser um visiondrio. Como notamos, repete incansavelmente 0 mesmo sumério alfabeto ¢ extrai dele a mais variada e complexa magia. O surrealismo aqui esté na inexplicavel ago da pintura, no gesto automatico, na auséncia de censura aos movimentos da mio, na aparente irracionalidade da organizagdo de cores e formas. Manet foi o pintor das muiltiplas influéncias. “Toda vez que enfia a mao no bolso encontra alguém”, comentou a propésito de seu poder de apro- priagio. Courbet, Velazquez e Goya o formaram mas seguiu absorvendo elementos de muitos artistas, sobretudo dos impressionistas. Em compensa- cao, determinou de uma maneira ou outra toda a pintura subseqiiente — para comecar, Monet, Degas e 0 préprio Cézanne. Quando morreu, em abril de 1883, gozava ironicamente de uma reputagio tio ambigua quanto o mun- do que a sua obra apresentava. No discurso de despedida, captando 0 senti- mento dos artistas presentes ao funeral, Edgar Degas sentenciou: “Ele era maior do que nés pensdvamos”. 93 Miré, ao contrario, constituiu cedo a sua linguagem e soube reproces- sé-la com recursos préprios. A rigor, sempre foi inconfundivel. As fre- giientes aproximag&es com Klee so, a meu ver, livrescas e derivam da ilu- sao das ilustragdes — como confundir um aquarelista, um artista do papel (com seu mundo onirico) ¢ um pintor de grandes formatos, cujos largos gestos foram decisivos para ultrapassar a pintura de cavalete? E como mis- turar o intimismo poético de um ¢ 0 lirismo exuberante ou agressivo do outro? Com o triunfo da pintura americana, 0 advento da Escola de Nova York, Miré teve a sua contribuigao corretamente dimensionada, Mais do que o precursor da action-painsing de Pollock, de De Kooning, de Kline, ele esté colocado junto a Matisse, Mondrian, Picasso e Léger como o fun- damento de toda a pintura americana moderna. Edouard Manet recebeu de volta do mundo a indiferenga com que o pintou. Miré esta pagando agora 0 prego por assumir o disperso e o volatil do mundo contemporaneo. Como uma avalanche incontrolavel as suas imagens aparecem por toda parte, em gravuras, cerdimicas, pdsteres e cami- setas, contribuindo para a poluicdo visual reinante. As novas geragdes, os distraidos e os inadvertidos, que sempre os ha, momentaneamente podem até tomar Joan Mir6 por alguma coisa facil e corriqueira. E ai, quando che- gar 0 momento, vira com certeza um outro Degas para lembrar: “Ele era maior do que nés pensavamos”. 94 Malasartes: um depoimento pessoal Arte em Revista, agosto de 1983 Como a maioria das iniciativas do género, Malasartes foi mais do que a soma de suas trés edigdes: foi um momento cultural, uma certa associagao e, até certo ponto, um contexto produtivo. Mas, como sempre nesses casos, foi menos do que a imaginagao dos agentes culturais, e seu desejo de encontrar simbolos tende a transformé-la com a passar do tempo. © fato de haver sido, por assim dizer, tinica, pode reforcar ainda mais essa segun- da tendéncia. E convém lembrar, logo de saida, que certamente ela tera sido algo diferente para cada um de seus nove editores. Para este redator, 0 seu tinico critico de arte, a revista significou quase a primeira intervengao direta na poli ca cultural do pais. A atua- go no semandrio Opinido era muito mais reservada do ponto de vista pessoal. Com Malasartes fiz a experiéncia do “real” do circuito de arte, sobretudo me expus ao contato com artistas e demais elementos desse circuito. Portanto, provavelmente, ela se tornou importante paraa minha pratica posterior mesmo que ndo me agrade tanto, atualmente, como vei- culo cultural. Claro, na sua forga residia também a sua fraqu a — érgao muito mais politico, espécie de frente contempordnea contra 0 descaso © obscurantismo que cercavam entio o trabalho de arte, ela implodiu antes de fixar e aprofundar as suas questdes. Ou melhor, 0 que eu consi- derava as suas questoe Como nao podia deixar de ser, Malasartes se passava principalmente no nivel de uma “sociologia” da arte. Uma deliberacio, unindo elemen- tos do Rio de Janeiro e Sao Paulo, de interferir sobre um proceso que 9 ameacava se desvincular por completo das instancias de atribuigao de valor cultural estabelecidas. A nova forga de mercado parecia, naquele momento, se substituir aos mecanismos normais de juizo cultural. O mo- mento politico fascista transformava o mercado numa forga quase tota- litaria — 0 jogo do capital e o do status resumiam as atividades do meio de arte. Por isso, “Analise do circuito” era menos um texto de autor do que 0 resultado da conversa entre os nove editores e suas vinte mil Ansias e expectativas. Para a maioria dos seus artistas-editores, Malasartes seria ja o segun- do, terceiro ou quarto lance, em suas histérias pessoais, dentro do meio cultural brasileiro. Tratava-se, pois, para eles, tanto de adotar novas posi- ges quanto de reafirmar posicdes anteriores. E nesse sentido, havia um problema. Penso que a revista, ou talvez a sua continuidade, conduziria inevitavelmente a um questionamento que alcangaria o préprio trabalho de cada um. Isto, entretanto, nao chegou a se colocar. O fato de “pegar” de imediato tornou, paradoxalmente, a existéncia da revista dificil — logo apareceu a decisao, a inesperada decisao do que fazer com ela. Cumprido © seu papel inicial — em torno do qual todos se agruparam ~, impés-se a necessidade de redefinir o projeto. E havia varios deles, dois dos quais se materializaram, antagénicos. Um dos projetos gostaria de repotencializar 0 veiculo, torna-lo um fluxo de informagées culturais amplas. © outro preferia radicaliza-lo, iransforma-lo em algo mais proximo a um contexto produtivo, artistico € tedrico. Este redator militava pelo segundo projeto. O importante, 0 que acabou sendo crucial, foi que os dois pareciam, ento, excludentes entre si. O primeiro até viabilizaria Ma/asartes industrialmente, mas as custas talvez de seus limites produtivos e suas ambigées tedricas. O segundo implicava possivelmente um recuo do ponto de vista da projecao imediata em favor de um desafio cultural que viria a ser, ou nao, mais interessante a médio prazo. A posteriori constato a inépcia do nosso contexto cultural, a solidao produtiva dos artistas e intelectuais brasileiros. Que eu me lembre nenhu- ma forca, nenhuma instancia surgiu para mediar essa dissensio. Quer dizer: as duas posiges nao conseguiram obter, de fora para dentro, ins- 96 tncias de mediag’io. Nao as havia, como nao as hé — as iniciativas cultu- rais brasileiras permanecem agio isolada de grupos € pessoas, A comuni- dade cultural, essa espécie de materialidade que deve existir acima dos individuos e das instituig6es, aqui ela € apenas um fantasma. Ora, tudo girando entre individuos, diminuem as chances de solug%o ~ por que, entre eles somente, formar compromissos que sempre acarretam desgastes ¢ desgostos pessoais? Solicitada, associada até, de todos os lados, para publicar trabalhos, Malasartes nao encontrou porém um suporte objetivo, nao digo econdmi- co, mas cultural mesmo. Naquele momento, como agora, tudo dependia das pulses individuais e sua capacidade para atravessar uma situagdo que talvez. niio fosse pessimismo qualificar de desoladora. Acredito, no entan- to, que o prdprio final de Malasartes tenha sido importante como uma determinada marca — 0 sinal de mais um esforgo para a constituigao de um contexto produtivo. As linguagens, a discussdo sobre a sua inteligibilidade e seus efeitos, sobre 0 seu reprocessamento, enfim, ganharam com ela um veiculo novo. Alguma coisa do que se passa na arte brasileira esta direta- mente vinculada ainda aquelas decisdes: a de fazer e a de terminar a revista. Era necessario, sem duvida, fazé-ia. Mas antes termina-la, deixando em suspenso as suas questdes, do que simplesmente desfigura-la de um modo ou de outro. E me apresso em esclarecer que isso poderia ocorrer com a “vitdria” de qualquer uma das faces. O que, felizmente, nao se fez foi sacrificar as questées da revista em fungao de uma existéncia que, afi- nal, nao seria mais @ swa. Ha um idealismo ai, provavelmente. Eu 0 assumo contra qualquer politica cultural com sentido imediatista: é preferivel obe- decer a ldgica profunda da transformagao das linguagens — processo lento ¢ irregular — do que dissolvé-las no fluxo das “politizagdes” cotidianas. Todos os movimentos culturais estio presos a tensdo entre a historia das linguagens ¢ as suas inscrigGes sociais, as mais imediatas inclusive. E claro que, em iiltima instancia, esses pdlos se comunicam, interpenetram e inte- ragem. Mas, sobre um ou outro, as politicas culturais esto condenadas a colocar a sua énfase. Nao tenho a chave do problema e, na duvida, prefiro acompanhar a produgao das linguagens e procurar compreendé-la de umn modo imanente. No momento acredito mesmo que 0 vicio do imediatismo ajude a sustentar a abi nea, suas origens e a historia de suas questdes. Malasartes, nesse senti al ignorancia do nosso meio acerca da arte moderna e contempora- 10, teria que ir e vir, incessantemente. E ainda, no meio disso, existir no pre- sente. Como se viu, nove editores era muito, mas foram pouco. Vejo assim. Existem, porém, oito ourras versdes autorizadas. Pessoal- mente acho que Malasartes foi demais. E de menos. Manuel Mousinho, um polemista secreto" Folha de S.Paulo, 6 de fevereiro de 1983 Um polemista secreto, esta é a Unica e paradoxal definigao possivel. E ver- dade que ela se aplica somente ao critico de arte 0 politico e 0 poeta Manuel Mousinho apareciam com alguma freqiiéncia. Trés ou quatro dis- cursos contra Roosevelt € Stalin se tornaram, discretamente, publicos; a sua exacerbada embora incerta defesa do modernismo também foi notdria. Em matéria de politica ¢ literatura, Manuel Mousinho era, moderada mas inequivocamente, um homem de esquerda. Na época, isso explicava tudo, ou qua‘ tudo. A recente “descoberta” e publicagao de seu diario e corres- pondéncia apenas confirmam a sua coeréncia, ou, antes, a sua espécie de diividas. Isto é: apenas confirmariam, caso o didrio no apresentasse, sur- preendentemente, cerca de cingiienta paginas sobre arte moderna que estiio entre as mais veementes ja escritas em lingua portuguesa. De fato, como anunciam de maneira obliqua os seus conhecidos ver- sos — “Nos bibelds da casa / 0 minimo touro / pode ser / 0 minotauro” =, a firia com que Mousinho investia contra 0 gosto académico, ou moderno- so, parece indicar que julgava enfrentar 0 proprio monstro. Talvez fosse tanta e tio intensa essa fiiria que dispensasse publicaco. O sentimento e os * Este texto foi escrito para o caderno Fothetim, da Folha de $.Paulo, numa edigao que teve 0”. O texto censral era sobre Ossian, o titulo de “A cultura come esyuecimento & falsificag: um poeta romantico que, descobriu-se anos depois, nunca teria existido. Inspirado nesse episddio, Rodrigo Naves, enitio editor do Fohetim, convida alguns colaboradores para escrever sobre personagens inventados, sem fazer qualquer ceferancia so fato de serem per- sonagens falsos. Ronaldo esereveu sobre um eritico portugués, Manuel Mousinho. [v.0.] yo argumentos, sozinhos, bastavam. Tinkem que bastar. No entanto, é uma pena, digo mais, é lamentével mesmo que no tenham vindo a pablico no momento em que foram escritos. Quem mais, no contexto cultural brasileiro dos anos 30, poderia pole- mizar em torno do que chamou “o cubo-surreal-expressionismo atacado de elefantiase” de Portinari? Ou reclamar da “eterna ¢ estipida linha de horizonte em Tarsila, estragando a complexidade dos planos”; ou ainda deplorar a falta de ousadia da mesma pintora, “cujas cores, com um pouco mais de pincel e menos de brasileirice, ficariam realmente modernas”? E quem mais sendo esse portugués erudito ¢ impiedoso nos advertiria contra 0 proprio pais ~ “Portugal? Portugal é verbo s6: Camées tinha um olho 86. O Brasil, o Brasil que se cuide...”? Realmente, ninguém nos lembrou que Pessoa dificilmente seria, por exemplo, francés, mas Matisse com toda a certeza jamais seria portugués. Claro, havia também as incompreensoes e as idiossincrasias. Por exemplo, a incluso do monétono Yves Tanguy (“o melhor dos supra-rea- Jistas”) numa lista (1946) dos artistas que deveriam ser os modelos para a producao local. A presenga nessa lista (provavelmente ela ficaré famosa daqui para a frente) de nomes como os de Matisse, Delaunay, Picasso, Bran- cusi, Laurens, Pevsner ¢ Magnelli, embora lado a lado com ilustres desco- nhecidos como Giarolo e Bothkof, mostra como Mousinho tinha o olho mais apto a enxergar a arte moderna entre nés. Pelo menos nao considerava, como Mario de Andrade, o insipido André Lhote um génio. E, sobretudo, nutria horror ao que nomeava “pin- tura letrista”. Por essa razao, inclusive, perdeu a razdo ao julgar algumas obras decisivas da modernidade. O genial De Chirico metafisico foi suma- tiamente taxado de “decadentista” e 0 dowanier Rousseau nao passava de “uma empulhagao de boémia artistica parisiense, um imbecil”. Essa recusa enfatica da pintura literdria o deixava numa situagao difi- cil diante de nossa incipiente arte moderna. Numa carta a Jaime Simoes, datada de margo de 49, sentenciava: A nfo ser Guignard, ¢ assim mesmo em algumas poucas telas, os pinto- res de cd parecem no sair nunca a rua, ndo poem os pés fora, ndo vao 100 sequer a janela, niio traduzem a luz da terra. A tal “brasilidade” é uma fa- licia de literatos e com isso ninguém pinta de fato 0 Brasil moderno, s6 os seus mitos, a sua “poesia”, 0 seu “futuro” e 0 seu “passado”. Isso justificaria a retragao de Manuel Mousinho. Apenas em parte, porém. Nao fora ele, contra tudo e todos, um detrator de Jorge Amado, nao the pesou sobre os ombros toda a vida a atribuigdo de uma frase (quase certa- mente pronunciada) durante um congresso internacional de literatura, rea- lizado no Rio de Janeiro, em 1950, segundo a qual “o Brasil rem uma gran- de literatura — chama-se Machado de Assis”? Se a éowade lhe custou a antipatia generalizada dos companheiros de oficio, por que hesitaria ele em se pronunciar abertamente sobre a nossa arte? Pensando d /a Mousinho a resposta talvez fosse a mais cruel possivel — “porque nao ha sequer um Machado de Assis pintor”. Brancusi e Munch A conclusio seria precipitada. Na verdade, o problema reside na propria rela- gio ~ meio truncada, meio irreal — do autor comas artes plasticas. Agressivi- dade e timidez, paixao ¢ diletantismo, sensibilidade ¢ desprezo eram os con- traditérios e constantes elementos dessa relagao. Assim, 0 liicido observador de Brancusi ~ “o estilo levado 4 maxima depuragao universal: sozinho ele re- construiu o arquétipo da narureza para nés, homens do século xx” — reputa- va os mobiles de Calder “brinquedos de crianca, frutos de uma meme débil”. Do mesmo modo 0 incondicional admirador de Picasso, 0 precoce apreciador de Pollock (no Brasil de 1950! !), era cego para o fabuloso Miré, “um tolo, amalgamador de tolices”. Utilizando a propria verve do critico, dirfamos que a liberdade e 0 descompromisso de Miré e Calder, seus valo- res estritamente plasticos, eram demais para a alma lirica ¢ profunda do lusitano ~afinal, sobre os quadros de Miré e as esculturas de Calder nao se pode verter uma lagrima, ou pelo menos compor um soneto. S6 a partir de tais desigualdades ¢ desencontros € possivel estudar 0 raciocinio plastico de Manuel Mousinho, sua inteligéncia, seus lapsos e 101 lacunas. E depois, sim, procurar a solugao do enigma — que se saiba, a nao ser talvez com Goeldi, seu amigo particular e pessoa ultra-reservada, ele no falava de arte com ninguém. Ha tempos me empenho em obter dados ¢ referéncias nesse sentido e, até agora, consepui apenas uma boa anedota. Segundo uma testemunha, Mousinho € José Simeao Leal certa vez disser- taram pelo menos cinco horas ininterruptas sobre Picasso, numa mesa de bar, no Catete. No final da noite, elegeram Picasso “A Personalidade do Século”. Conhecendo a quantidade de bobagens ¢ inutilidades que os jor- nais compulsivamente publicam, me pergunto se tais conversas e tais con- clusdes nao deveriam ter o seu pequeno lugar reservado na imprensa. Em todo caso, a conversa entre aqueles dois senhores, no inicio dos anos 50, nao saiu no jornal. E Simedo Leal, instado, ndo lembra de nenhuma outra sobre 0 assunto com alguém que supunha “exclusivamente voltado para a literatura e para a politica”. © “caso” Manuel Mousinho, critico de arte, permanece assim em aberto. Talvez muitas informagées, junto a diversas pessoas, nos varios con- textos em que figurava, ainda venham a tona. Até setembro de 1960, quan- do retornou a Portugal, para morrer logo em seguida, Mousinho levou uma vida ativa nos meios politicos e culturais brasileiros. Mas, seja nas reu- nides do Partido Socialista, nas palestras da Associacao Brasileira de Im- prensa ou nos artigos publicados pelo Diario de Noticias e Correio da Ma- nhd, nao hd mengao as artes plasticas. Descobri, no entanto, duas excegdes, “‘secretas”, como nao podiam deixar de ser. Uma delas, filosdfica, certamente soou esotérica 4 maioria do auditério que o escutava discorrer sobre “A ética do homem moderno” (1952). A certa altura, ele afirma: “O nosso simbolo nao é mais a pomba do fildsofo mas um passaro minimo e pleno, esséncia ¢ existéncia em um s6 gesto”. Quer dizer: & pomba kantiana, que ao querer voar tao facil poderia esquecer da matéria, a adverténcia do fildsofo quanto as ilusdes da razdo, Mousinho substituia, claramente a meu ver, 0 famoso Pdssaro de Brancusi como 0 monument ético tipico da modernidade. A outra excegio fui encontra-la num artigo politico de 1955, justo em cima do trauma do suici- dio de Vargas -- “a situagio, o clima, tudo enfim parece digno apenas do Grito”. A maitiscula praticamente obriga a conclusto de que este “Grito” 102 outro no é senio 0 célebre quadro do noruegués Munch, pintado no ini- cio do século. Embora “sccretas”, ou exatamente por causa disso, as alusdes possuem valor de verdade: refletindo sobre a ética ¢ a politica, o critico vai recorrer justamente arte como metifora exemplar. Foi sempre nesse registro supe- rior que Manuel Mousinho procurou pensar a arte, mesmo se as vezes suas invectivas parecam rudes e suas conclusées, ligeiras ¢ equivocadas. Jamais, porém, condescendeu com 0 “gosto” ¢ 0 farisaismo até hoje dominantes em nosso meio artistico. Dispersas, perdidas quase, em meio as suas intimeras notas, vamos encontrar idéias, comentarios e indicagdes acerca das artes plasticas que merecem ser consideradas, no minimo, provocantes, e, algu- mas delas, geniais até. Com a data de agosto de 1956, por exemplo, ha o seguinte projeto: Estudar com calma e afinco as relagdes entre Goeldi ¢ Volpi, os seus con- trastes € a pertinéncia de ambos a essa massa ainda disforme, o Brasil. A econémica formalizagio da angtistia em Goeldi, a econdmica formaliza- 40 da alegria ingénua em Volpi e suas relagdes com o ambiente brasilei- ro, © primeiro visualiza os cantos, as ruelas, as latas de lixo das cidades, olha para as nossas sombras e para as nossas visceras. O outro visualiza fachadas e bandeirinhas, a nossa exterioridade, enfim, que estrutura a atmosfera, 0 ar que respiramos. Depois de Machado e Euclides da Cunha, juntos com Guimaraes Rosa ¢ Drummond de Andrade, sito os grandes fildsofos brasileiros. Eu insisto: filésofos. 103 Contra o culto da ignorancia Folha de S.Paulo, 19 de junho de 1983 JA se sabe e cansa de saber — 9 que distingue a cultura brasileira é a natu- era, A recusa da razo aparece, assim, como a negagao da clissica separa- cdo entre natureza e cultura. Nés, 0s outros europeus, somos os que nao se deixam aprender pelo /agos, os refratarios ao conhecimento e a ordem, Meio negros, meio indios, colonizados por uma raga quase moura, escapa~ mos a definigdo de ser grego. A nossa diferenga nao é a diferenga entre 0 ser € 0 simples ser-ai — ela é uma certeza pré-metafisica cuja inteligéncia consiste em driblar os designios da logica Mais ¢ mais, inelutavelmente, nos realizamos com e pela logica, mais e mais participamos do processo de objetivagdo moderno do capi- tal. O Brasil atual é um objeto légico, precario, contraditério e absurdo, mas légico. O Brasil simbélico, porém, nao gosta e reage. Em tiltima instancia nesse dominio, devemos recusar 0 pensamento sob pena de perder a nossa diferenga, a nossa preciosa diferenga. E ela que nos per- mite o prazer de receber e receber apenas, como dom natural, 0 nosso ser. Ao contrario da metafisica grega, nao vamos “nos tornar 0 que so- mos” porque fingimos ser 0 que somos. Usamos 0 nosso atravessado sec europeu para atravessd-lo, assim como o malandre tira proveito da ordem que o marginaliza. 104 0 bergo espléndido Nao podemos, portanto, pensar 0 nosso ser — ele é opaco, foi dado ¢ imposto. Nao fizemos a sua hist6ria, nao tivemos o trabalho de produzi-la. Vamos vi- vé-lo entdo a maneira da farsa, astutos e espertos. A propria natureza sera a nossa providéncia — ao trazé-la para dentro da cultura nos beneficiamos de um estado hibrido que propicia 0 famoso jogo de cintura, 0 jeito, a ginga, en- fim, toda espécie de milagre brasileiro. Por isso, o culto da ignorancia. Aos problemas do pensamento aplicamos a natureza. Aos da natureza, 0 pensa- mento, Toda a nossa confianga na técnica parece repousar, secretamente, so- bre a crenga na natureza — afinal ela é amazdnica, prédiga e inesgotavel. Que o digam a Transamaz6nica, [taipu e outros empreendimentos mitolégicos do género. Diariamente assistimos, pobres e perplexos, aos desastres desse racio~ cinio técnico-teliirico e sua formidavel capacidade de nao resolver problemas. © nosso simbélico responde a técnica de uma maneira sinples — pro- curando mitificd-la, torna-la, de um modo ou outro, magica. A verdade da nossa industria seria assim 0 turismo: somos os outros a ser olhados € con- sumidos pelos eus. E 0 narcisismo do outro é da ordem da sedugao — 0 “feminino” é 0 que nao deve sequer ser conscientizado para nao quebrar 0 encanto. O jogo é atrair e enfeiticar, nao permitir acesso a razo que decifra e destréi. Por ai se compreende em parte a desconfianga, quando nao a rai- va, contra 0 pensamento, toda essa vontade generalizada de nao-saber, nao querer saber. Com muita propriedade, acho, um psicanalista (J. Lacan) declinou as trés paixdes humanas: 0 amor, 0 édio e a ignorancia. O Brasil, como se vé, é um apaixonado — a nossa alma boa e ingénua, a nossa indole pacifica, vivem a paixao da ignorancia. E ela que nos dispensa a alegria e a irresponsabilidade caracteristicas. O pensamento corre aqui o perigo de matar a espontaneidade, a paixdo de ser brasileiro. Apropriar e domesticar Sempre sob suspeita, a cultura é tomada como um sintoma a ser sublimado ou reprimido. Sabendo ou nao, querendo ou nao, toda essa ansia pelo real, 105 pelo concreto, pela vida pelo povo exprime quase sempre uma vontade mitica, um amor pelo mito e suas relagdes estritamente hierarquizadas. Claro, desconfiamos da palavra, desconfiamos da razao, desconfiamos da historia. Desejamos uma “ordem natural” — ao pensamento cabe, 0 mais depressa possivel, voltar a ela. A nossa escabrosa desordem social a contra- partida é a obrigagao de um discurso simples ¢ direto, a obrigago de uma fantasia imediatamente colada “a vida”. Contra a barbarie do capital mo- nopolista sonhamos com a fechada organizagao do mito. Toda a cultura deve resumir-se a achar os nossos sentidos e exalta-os. Teorizar ja significa assaltar o ultimo reduto de nosso ser feliz. E até a arte se prescrevem fun- gdes rituais definidas: denunciar tudo o que impede a nossa felicidade ou mostrar os signos que nos fazem felizes. E, evidentemente, a nossa natureza nao é agressiva e empreendedo- ra como a dos saxdes americanos. Ela é dissimulada — a sua exuberancia é apenas aparente, o suficiente para deslumbrar os eus. No fundo, é pregui- 08a, pacata e feliz, Natureza de subsisténcia, avessa a historia. E uma natu- reza portuguesa, com certeza. Dai a busca da identidade se fazer para tras, com a nostalgia de um mito de origem. Nés, 0s outros, gostariamos de ser eus sem outros. Ficamos assim espécies de outros sem alteridade. Este ser outro em nés mesmos, esse constrangimento e esse estranhamento possibi- litaram 0 nosso maior escritor, Machado de Assis. A mesma duplicidade, denegada ou recalcada, responde pela nobreza da cultura brasileira como um todo. Sobretudo explica o paradoxal carater reativo, defensivo, de uma cultura sem passado, sem marcas histéricas que a identifiquem positiva- mente. © que temos nés a preservar sendo uma relativa disponibilidade ante a cultura ocidental que nos engendrou ¢ engendra ainda? Quer dizer: o que de fato guardamos ¢ protegemos é a nossa amante, a nossa paixao secreta: a ignorancia Nao falo, é dbvio, do enorme Brasil que ndo tem nome e que por isso mesmo serve as mais diversas retoricas. Falo do pais escrito e falado, can- tado e pintado, nomeado pela poesia, inventado pela ciéncia. Ele lembra um Narciso masoquista que se compraz em nao contemplar a sua imagem. Ao invés, sonha com um remoto lago que um dia seré resgatado. Voltada para si mesma como uma natureza, eterna imediatidade, a cultura brasilei- 106 ra tende a se reduzir a um simples movimento de apropriar e domesticar. Logo 0 elemento estranho é pacificado pela cor local e sua origem esque- cida. Ao apagar essa origem apagamos a nés mesmos, a consciéneia do nosso gosto de apropriagao. Talvex consideremos esse esquecimento a nossa originalidade ~ de fato, ndo queremos ser primitivos e sim ingénuos. Eso 0 querer ser ingénuo jé denuncia o sofisma da ignorancia. Rejeitamos a consciéncia do gesto de apropriagio como se ele anulasse o Brasil. Por- que 0 que nos promove e da forga € precisamente 0 ndo-saber, 0 saber do nao-saber, 0 culto da ignorancia. Ele driblaria 0 projeto dos eus e criaria um lugar onde, finalmente, poderiamos desfrutar em paz de nds mesmos. Um dos desejos inconscientes de toda colénia é 0 de, pelo menos, ser esquecida pelo colonizador. E, no entanto, como provam os grandes trabalhos de arte brasileiros, © nosso destino é ser reflexivos, excessivamente reflexivos até. Basta, de saida, lembrar a ironia supremamente inteligente de Machado de Assis, a auténtica tara construtiva de Joao Cabral ¢ a extrema complexidade mini- mal do violio e da voz de Joao Gilberto. Qu ainda os relevos de Sergio Ca- margo, os “Bichos” de Lygia Clark e, num outro registro, 0 véo barroco da Invengio de Orfeu de Jorge de Lima. Sao muitos e os mais diversos os exemplos desse inevitavel movimento reflexivo, essa compulsio de ir e vir, com um material artistico que reccbemos sempre de forma transversal. O que nos pode revelar, profundamente, a nés mesmos sendo um continuo e meditado corpo-a-corpo com uma tradi¢ao que permanece meio exterior? E é0 trabalho de pensamento interioriza-la, mediatizd-la e domind-la. A 16s, justamente a nds, é impossivel gerar um dowanier Rousseau, semelhan- te desconsideragao esquizo pela historia da arte ¢ que, por isso mesmo, tor- na-se um momento importante dela. Se existe algo assim como uma arte Jatino-americana, quem foi o seu Colombo senao Jorge Luis Borges, ou seja, o antiingénuo, o homem que encarnou a enciclopédia absurda que € a América como projeto europeu? E qual seria a determinagao final dessa arte se nao a de cruzar de volta 0 mito que esta na sua origem — desmistificd-lo, num certo sentido, e em ou- tro criar um rito ainda mais complexo e conturbado que escape & compre- ensiio de seus idealizadores? Seja como for, a marca da nossa diferenga é 107 um outro sinal que se conhece e se desdobra imprevisivelmente. Se em nossa fala passa, constitutivamente, um eles, duas coisas parecem eviden- tes: primeiro, nao ha como recalca-los (de certo modo eles nos precedem), segundo, eles nao so os nossos verdadeiros interlocutores — falamos antes de mais nada conosco, é claro. Compulsao reflexiva Com a questo e na tensao desse e/es, Borges abismou o ser da cultura oci- dental, assumindo ¢ pervertendo, para além das medidas dadas, 0 pressu- posto de sua universalidade. Tornou-se, por assim dizer, uma palavra fan- tdstica — ela dominava tudo mas esse tudo era apenas ela mesma. A questiio da identidade ultrapassava a busca de um sentido para virar a pergunta radi- cal sobre o proprio sentido, a perplexidade diante da (alta de relagao entre as palavras € as coisas (Michel Foucault que o diga). Nés nao fazemos sentido, portanto, nao fazem eles sentido, eis enfim a crise do nosso ponto de vista O inaceitavel, a essa altura Gbvio, é assumir os modelos sem nega-los ou negé-los, sem assumi-los. Em ambos 0s casos o sofisma da ignorancia tem sido uma arma eficaz: ou nao sabemos ou nem queremos saber. Essas omissdes justamente nos desarmam. A arte moderna brasileira eferiva, a0 contrario, sempre dobra ¢ desdobra os saberes que se nos impdem e somos levados a incorporar. A estranheza desses saberes aciona a reflexao que cir- cula ¢ circula, viciosamente, ¢ afinal, vitoriosamente. No estilo econdmico € sibilino de Machado ou na prosa a um tempo derramada e abrupta de Guimaraes Rosa ¢ facil notar essa carga reflexiva que carrega a memoria negativa de seus modelos. E até a nossa suposta espontaneidade é conquis- ta ardua. Acusado pela “pobreza” de seus didlogos, Nélson Rodrigues re- plicou: “S6 eu sei o trabalho que me da empobrecé-los”. O cliché da ingenuidade da arte brasileira resulta do desconhecimen- to sobre a defasagem histérica, as “mentiras” de uma linguagem, ou sobre os limites positivos de um trabalho. Portinari é uma contrafacdo moderna; Volpi é uma realizago que precisa ser medida e admirada a partir de sua situagao dentro da pintura moderna, As duas démarches, em si mesmas, 108 nada tém de ingénuas. Tampouco 0 adjetivo inggnuo é utilizado ingenua- mente — atras dele, a mové-lo, esta o culto da ignorancia, a deliberagao de ndo-saber. A mesma vontade de nao ver sacraliza assim trabalhos opostos, mistura e mistifica os seus efeitos. Quando o interesse, agora, imediata- mente e ja, esta no momento de ruptura entre Portinari e Volpi ~ a analise desse salto, sem diivida, viria esclarecer um pouco mais o drama da visua- lidade brasileira moderna. Mas, acima de tudo, ha a falsa, a obtusa questao do elitista e do popu- lar. © primeiro representaria uma sabia abstragao sem contato com a reali- dade; 0 outro, uma espécie de autenticidade ignara que traria a verdade do povo. Essa manobra de ma-fé simplista mascara um antagonismo real e, até segunda ordem, inelutavel, e induz a inteligéncia popular a uma debilidade mental que pertence, isto sim, aos autores de tais manobras, Afinal, existe algo mais sofisticado do que um samba de Cartola? E possivel compara-lo as varias subespécies musicais que assolam a to propalada mes? FE haveria alguma coisa mais popular, na acepgao estrita do termo, do que Cartola, ou Pixinguinha (por favor, 0 proprio, nao o “projeto”*)? A consciéncia e a se- giiéncia dessa tradigao de pensamento popular quem melhor as representa é Paulinho da Viola, a primeira vista, entretanto, um personagem solitario no panorama atual da men. Talvez exatamente por representé-las como uma sensibilidade irredutivel a chavées ideoldgicos ou cifras de mercado. A distingao entre o elitista e 0 popular, como se vé, finalmente nao distingue nada, porque cada trabalhador possui uma origem e uma historia até certo ponto particulares, e s6 pode ser percebido e acompanhado a par- tir delas. O imprescindivel é 0 acesso a essa origem e a essa histéria, € eis af um probleminha que nos envolve a todos, como cidadaos, e nao sera resol- vido a base de simplismos e afetos deslocados. O fetiche do popular cumpre, portanto, uma estratégia evidente: recalcar o pensamento, 0 perigoso jogo de suas figuras, 0 novo, o insdlito e o indesejado que nelas emergem. Nao é por acaso que 0 Brasil simbélico sofre febre da instituigdo — antes mesmo de surgir, 0 fato cultural jé esté guardado e protegido por programas, arquivos + O autor se refere ao Projeto Pixinguinha, realizado pela Funarte desde a década de 70, que leva shows de masica brasileira para todo pais. [8.0.] 109 ¢ paredes. Assim, devidamente burocratizado, nos dispensamos de vé-lo e pensé-lo, No caso, T, Adorno tem toda razio: “Quando me perguntam o que € possivel fazer pela cultura, respondo: por favor, nao faga nada” Quer dizer: enquanto procuramos uma identidade mitica as produ- es passam em branco, as marcas de linguagem néo se fixam, as figuras do nosso ser no aparecem com clareza, Dai a sensacao de vazio que retorna a cada geragao. E cada uma delas sabe o quanto custa enfrentar esse vazio, decifra-lo € tomd-lo pelo que € — um sofisma, uma instituigdo e, como vimos, uma paixio. Dedicada e intensamente, a nossa cultura parece entre- gar-se todos os dias de corpo e alma ao Brasil. Perdao, mas nao esqueca- mos a cabeca. 110) Pés, pré, quase ou anti? Folha de S.Paulo, 2 de outubro de 1983 Nada mais compreensivel do que a vontade de um pés-moderno ~ no minimo, deixariamos para tras 120 anos de angustia, 120 anos de um com- bate ininterrupto com o ser e 0 destino da arte. Porque este pés, de qual- quer modo, nao sera inocente: ou pretende indicar uma conquista e, assim, uma nova situagdo, ou declara encerrada uma €poca e nos libera de seus compromissos e impasses. Quer dizer: ficamos mais livres ou mais alegres. Com um pouco de sorte, os dois. Forgamos 0 moderno até os seus limites, ultrapassamos finalmente as suas origens metafisicas e com isso permiti- mos a arte acontecer no real, fora de sua teleologia e do cerco institucional. Ou entao, simples, magicamente, detemos 0 passado moderno, e ele se co- loca & nossa disposig’io para manipulagées de toda espécie, Nao é mais uma Ansia, uma resposta e um projeto — como tudo mais, vira um estilo, melhor, varios e atraentes estilos. Simplificando, drasticamente talvez, hd ai duas posigdes e duas pulsdes diversas. Um certo pés-modernismo, a essa altura minoritario e “marginal”, obedece a um desejo de utopia. Quando, ha vinte anos, Mario Pedrosa o mencionou, 6 fez para dar conta dos novos procedimentos que, em diltima andlise, trocavam a obra pelo ato, lutavam para fundir arte e vida. O pés- moderno marcava assim, pensando bem, o triunfo das vanguardas — era o ser da arte no mundo, constituindo-o efetivamente, ou entdo, pelo menos, subvertendo as suas certezas. A arte se transformava, fenomenologicamen- te, numa experiéncia dae com a vida (a premissa estava lé desde Rimbaud “changer la vie”). Extravasando as suas fronteiras institucionais, adquiria uma nova forga social. O museu, naturalmente, nao podia abrigar “o exer- cicio experimental da liberdade” (Pedrosa). Muito menos as ruas, replicou, implacavel, a realidade. O que era furor utépico legitimo, duas décadas depois existe apenas como sintoma melancélico e nostalgico. Nada mais museoldgico, num cer- to sentido, do que esse utdpico. A essa espécie de pos-moderno, paradoxal- mente, a modernidade sobreviveu. Hélas ou too bad, como preferirem. Na verdade esse pds se inscrevia claramente na voragem de antecipagiio carac- terfstica da modernidade, acompanhava a sua estranha tradigGo de rupruras. Mas, se ha algo que os 120 anos de arte moderna ensinam, é a relatividade das “rupturas”, a estrita seqiiéncia légica que as governa e dimensiona. Para © seu bem e 0 seu mal, a contemporaneidade carrega 0 peso dessa cons- ciéncia, Em 50, Jackson Pollock era a loucura, 0 acaso elevado a categoria de estilo; em 80, Pollock maravilha e desconcerta como o maximo de ordem, a mais completa estruturagao cubista, a sintese inexordvel da pintu- ra moderna de Monet a Miré, passando por Picasso e Kandinski, Nos anos 20 Man Ray marcava uma liberagao, chocava e escandalizava; hoje, diver- te eesclarece. A primeira e herdica aquarela abstrata (1910) de Kandinski se revela agora uma lirica € inequivoca paisagem; tanto quanto o lance re- volucionario, aparece, flagrante, o recurso ao ilusionismo. O fim das vanguardas, a descrenga na légica da historia da arte mo- derna esto na raiz do pés-moderno agora em evidéncia. Ele tem algo de sumiria afirmagao -- opta pela realidade imediata da arte. E essa realida- de, como se sabe, é... um mercado, uma modalidade de lazer, um exerci- cio superior da fantasia, Com maior ou menor consciéncia, esse pos- moderno recusa a negatividade moderna, o seu obsessivo sentido hist6rico eo seu radical antiilusionismo. Em suas manifestagSes mais caricatas, prega um novo naturalismo, um retorno a ordem, dentro da qual a arte voltaria a ser, digamos, um devancio. A sua ala mais conseqiiente, por sua vez, oscila e vacila entre um ceticismo e um voluntarismo “decadentes”. Algo como uma pop sem culpa, mais hipécrita do que cinica, ou um expressionismo que repde em questdo a subjetividade, de uma forma familiar, porém sem heroismo e sem a preocupagao de determinar histo- ricamente a sua angustia. Depois que a minimal acabou de desmistificar o idealismo da forma para enfatizar os processos, sobretudo os procedimentos, pode-se afirmar que a arte moderna chega, duchampianamente, ao grau zero. O que ocor- re a seguir nao esta garantido por nenhum a priori —- ou se impoe por sua forca particular, no fogo cruzado das mais diversas séries de linguagens, ou perde logo 0 contato com a arte na acepgao forte do termo. A conceptual, finalmente, foi apenas uma variante minima/e o hiper-realismo nao logrou sequer 0 estatuto ambiguo de ismo —a rigor, era mesmo uma contrafagao. Nesse impasse, contra esse impasse, emerge 0 sintoma pés-moderno: 0 de- sejo de atravessar a arte moderna ou, simplesmente, utiliza-la. Isto é, paro- dia-la cética ou furiosamente, ou entao consumi-la. A manobra seria ado- tar justamente um descompromisso. E possivel até aceité-lo como um meio para levar & frente a produg&o € nao sucumbir ao peso opressivo da histé- tia. Muitas das novas obras, no entanto, quase obrigam a considerar esse descompromisso uma tentativa de recuperar um lugar acritico para a arte, uma nostalgia para voltar a mediar, serenamente, 0 homem e a natureza. Ou seja: exatamente o par que a modernidade comegou a estranhar, a ques- tionar, a dissolver e a redefinir. A primeira e dbvia questo diante desse pés é se ele nao é somente um pré, quem sabe um anti. Uma epidérmica reacao as aporias de uma era que se desdobra sempre convulsiva e problematicamente. Assim, em vez de precipitar a hist6ria da arte moderna, tensionar as suas questées, pretende- se estar fora dela ~ 36 este fora vai permitir 0 seu uso descompromissado, vagamente alegérico ¢ aleatério. Por isso, em muitos aspectos, essa arte parece o triunfo do kitsch, a glorificagao dos efeitos no lugar dos nexos. E ainda quando reivindica uma pertinéneia hist6rica ela o faa através da per- versio do ktesch, desenvolyendo-o contra si mesma mas também contra qualquer sentido experimental positivo. © que vai caracterizé-la, sempre, é a aglomeragao de informagées dispares. Seja pelo sabio ceticismo quanto ao poder cognitivo das formas modernas, seja pelo ressentimento pessoal € “inexplicdvel” diante delas, a vontade aqui é agenciar cada um a sua hist6- ria com fragmentos de “qualquer coisa”. A rigorosa contextualizagao minimal, em que 0 pensamento sobre > lugar e 0 tempo em que iria aparecer 0 objeto de arte praticamente o 113 determinava como tal, se contrapée a inteligéncia da descontextualizagio ~ a tela energética satura épocas ¢ estilos, assume a entropia dos ismos; descrente da singularidade, aposta na pluralidade mais conspicua. E se esta pluralidade inclui a condensagao e a dispersdo modernas, ela o faz contra o seu antigo cardter transformacional. Dispersio e condensagao so agora auténomas, ndo se supdem momentos de um processo. Ao con- trdrio, satirizam o processo moderno e suas inrengdes emancipatérias. Um quadro é s6 um quadro, vale quanto custa. E claro, atras dele esté um artis- ta. Mas que artista? Talvez um novo tipo de dandi, produto de um outro fin de siécle ¢ sua inevitavel aura decadente. A agao do artista “energético” pode até ser Aor, a atitude é cod. Do mesmo modo, apés um periodo de intensa concentragao formal, a arte parece querer voltar a simbolizar, a produzir e discutir “contetidos”. O problema é como fazé-lo sem cair no velho ilusionismo. Um artista como Jasper Johns ha 2s anos é capaz de duvidar da percepgao (da arte “retiniana” que Duchamp tanto desprezava) com pinturas e desenhos que possuem, entretanto, a forga de puros enigmas visuais. E uma obra tao “literdria” quanto a de René Magritte resiste, ha varias décadas, as sucessivas investi- das publicitarias e as mais cretinas leituras nonsense que propicia. O seu contra-ilusionismo permanece tinico — a total pertinéncia de suas extraor- dindrias imagens a seus conceitos, ¢ $6 a eles, torna logo as apropriagdes fraudulentas e inécuas. Magritte e Johns atacam, sim, a visualidade, mas a partir dela mesma, de seus proprios fundamentos. A pasteurizagao das linguagens A Ansia pés-moderna de “esquecer” a histdria nem por isso é menos ansio- sae nada mais dificil, na cultura atual, do que a “facilidade”. Portanto, se pretende ser mais do que uma corrente ideolégica ou uma especulagaio de mercado, esse pés tem que provar sé-lo. Com obras, efetivamente. Uma coisa é a imprevisivel dinamica do reprocessamento das linguagens, e a incessante reavaliagdo do passado que esta sempre gerando, outra, ben diversa, ¢ deliberar um uso indiferente e indiscriminado de sintagmas « ng estilos, Essa deliberagao pressupée, hipécrita ou ingenuamente, a nio-his- téria, parece mesmo uma forma de pasteurizar 0 processo de vir-a-ser das linguagens. Vai ver ¢ o horizonte desse pds ¢ um divertido, ou irremedia- velmente perdido, presente total. Um ou outro, tanto faz: de qualquer ma- neira se estaria cedendo a aparéncia mais grosseira da sociedade de con- sumo, tomando 0 actimulo empirico das coisas pelo real, esquecendo 0 conflito da produgao. A releitura pés-moderna de certas obras, recalcadas por sua inade- quagao ao zélos autoritario da arte moderna, traz 4 tona questdes relevan- tes... quando as obras so relevantes, como € 0 caso das de Picabia e Philip Guston. © mesmo se aplica & reavaliacio critica do modernismo germa- nico, rardio em relagio a Paris, e que por isso mesmo apresenta uma forga singular. Nao sera, porém, para reexumar o expressionism enquanto tal ou promover todo género de bel-artistas enrustidos que nao compreende- rama modernidade. Assim teriamos apenas alguma coisa como um hiper- expressionismo. Igual ao outro, esse hiper seria, na verdade, mais um es- pasmo da academia. Certamente a idéia de uma transvanguarda, uma das outras ébvias, variantes do pos-moderno, nao pode se impor apenas com releituras, pra- tica moderna por exceléncia. Com seu perspectivismo nietzschiano e con- seqiiente negacao das totalidades, ela implica uma operagdio bem mais ampla — a propria reescritura da historia da arte. E ai se daria um embate mental com 0 conceito de modernidade e uma redistribuigao e revaloriza- cdo completas de seus nexos e produgdes. Até agora, entretanto, isto ainda esta muito vago e ténue, miséria mesmo, a julgar por revistas, catélogos e exposigdes no Soho. O que é forte, imediatamente perceptivel, é a crise cultural do meio de arte, que nao deve ser tomada como uma crise da arte. Esta, parece, cada vez mais se torna avessa a rétulos ¢ apelos, até mesmo a ismos. As linguagens contemporaneas exigem, como tudo mais, uma aten- gao € um pensamento especificos. Com isso — apesar dos 120 anos, sempre é necessario lembrar —a arte nao nos aliena do mundo. Ao contrario, nos faz reencontra-lo, pleno e diferente. Mais ainda, repde em aberto as possi- bilidades de mundos. ny O samba cubista Fotha de S.Paulo, 19 de fevereiro de 1984 Para falar de Joao Gilberto é quase necessario... nao falar. Em varias dou- trinas misticas é proibido dar atributos a Deus — todo atributo é uma limi- taco, mesmo 0 de supremo e todo-poderoso. Mas, como 0 assunto nao é Deus, posso comegar justamente criticando a reveréncia, a falsa reveréncia, diante do idolo — no caso me parece evidente que o rétulo de mestre, 0 peso histérico de que se o investe, serve para sublimar e desviar a atengao de uma efetiva relagdo com o seu trabalho. Bis a palavra: trabalho. E isto que ele, acima de todos os outros, realiza: uma operagdo incansavel de es- truturagio poética com a musica. E essa operago vem se acirrando, decan- tando ¢ adensando, a um ponto-limite. Esta claro que nao se trata mais de cangées e sim de miisica. Mas estar to claro, também, que essa espécie de miisica desafia o conceito vigente de misica popular? Ha mais de vinte anos Jodo Gilberto nos acostumou com uma nova sutileza, variagdes minimas, no canto do samba; ha algum tempo jd, vem nos acostumando com uma serialidade que substitui o tempo convencional da cangao por uma repetigdo obsessiva do tema, valorizando nao somente as inflexdes mas sobretudo alteragdes harménicas ¢ ritmicas quase infinite- simais. Tudo isso solicita uma outra qualidade de atencio que consiga detectar intensidades e modulagdes infimas ¢ extremamente precisas. Mais, muito mais do que criando um samba da Zona Sul ~ como chegou a ser dito —, o homem estava levando a experiéncia popular do samba a uma inteligéncia rigorosa, a um grau de formalizagio inédito. Ao contrario do que tentam nos fazer acreditar diariamente, com todo género de velhos ¢ 116

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