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Eros e Logos: a Propésito de Foucault e Platao* Francis Wolf** Resumo: O artigo visa discutir a andlise que Foucault faz. da erdtica platénica no quinto capitulo de Ouso dos prazeres, Para responder is dificuldades de insergo deste texto no livro ¢ no conjunto da obra do autor, nfo seria licito afirmar que tudo aquilo que Foucault diz a respeito da relagio erdtica nfo valeria também para a relagdo discursiva? Nao se trata, em ambos os casos, da “busca da verdade”? Palavras-chave: ética, scxualidade, amor, desejo, verdade, Foucault nao tinha o habito de poupar seus leitores. Estava sempre onde nao 0 esperavam, e divertia-se a despistar seus perseguidores, ressurgindo sempre sob outras mascaras. Seus tiltimos livros ndo sao uma excegdo. Pois enfim, acreditavamos que estivesse na aurora de nossa modernidade, atento em escrutar os mecanismos que ontem orientavam nossas formas de pensar e viver nossa “sexualidade” hoje (FOUCAULT 11, vel. 1), € 0 reencontramos no outro extremo do caminho, na aurora de nossa cultura, interrogando Sécrates, dialo- gando com Platdo ou relendo os estéicos (id., ibidem, vol. 2 e 3). Mas o volume 2, O Uso dos Prazeres, reservava ao leitor um novo tipo de surpresa, menos * Conferéncia proferida no Departamento de Filosofia da USP, em agosto de 1989, Tradugae de Yanet Aguilera ** Professor da Universidade Champagne-Ardennes (Reims) e professor convidado do Departa- mento de Filosofia da USP. 136 Wolf, F., discurso (19), 1992 : 135-164 esperada se assim se pode dizer; e Foucault introduzia em sua “obra” um novo. tipo de linha interrompida, que desta vez afravessava um livro. Ha com efeito entre os quatro primeiros capitulos e o quinto (O Verdadeiro Amor) uma solugéo de continuidade que nao se pode deixar de interrogar. Em todo 0 caso, ela provoca perplexidade a primeira leitura. Tudo se passa, além disso, como se houvesse uma distancia entre a intengao do capitulo — momento crucial do livro, de sua Aufhebung, se assim se pode dizer, j4 que tudo o que precede encontra ali seu sentido ¢ scu acabamento, mas para ser a0 mesmo tempo revirado, negado, ultrapassado —, uma distancia, pois, entre sua intengao e seu propésito efetivo, ao menos quanto aquilo que se deixa entrever ao leitor apressado. As reflexdes que seguem devem, portanto, ser entendidas como notas de segunda leitura. A ética dos gregos: uma “estética da existéncia”’ Lembremos de inicio 0 propésito do livro. Sabe-se que sob a aparéncia de um segundo momento da Historia da Sexualidade, 0 Use dos Prazeres tem de fato por objeto a articulagio da ética e do sexo. Por que, pergunta-se Foucault, ‘0 comportamento sexual se tornou (se torna ainda, sob outras formas) objeto de uma preocupagao moral? Por que a mancira como os homens se amam, como 0 dizem € o mostram uns para os outros, como fazem ou nao amor, deve ser normatizada, regida, preserita, em todo o caso deve tornar-se objeto de uma atengio e de euidados que tém como fim medir-lhe o valor ¢ por efeito dominar-lhe os riscos? Toda explicagao funcionalista tropegaria numa obje¢do fundamental: é raramente nos casos e sob os aspectos em que a “sexualidade” € mais ameagadora para a reprodugfo da espécie ou do grupo que ela é impedida ou condenada (se excetuarmos aquelas grandes proibigdes como ado incesto). Mas, sobretudo, a explicagdo confundiria o interdito e a moralidade. Ora, ocorre que o interdito e seus corolarios (leis sociais, coagdes institucio- nais) ndo sio a forma historicamente constante, nem a mais prolixa, nem mesmo talvez a mais eficaz da atengdo moral. O desvio pela antiguidade classica tem ao menos o desconcertante efeito de nos mostrar uma cultura na Wolf, F., discurso (19), 1992 : 135-164 137 qual “‘a reflexdo moral sobre o comportamento sexual nao procurou justificar os interditos, mas estilizar uma liberdade” (FOUCAULT 11, vol. 2, p.111). Para compreender como o sexo pdde se tornar um objeto de atengao “moral”, ainda precisamos nos entender sobre esta palavra, na qual Foucault descobre trés sentidos. Pode designar-se por ela “um conjunto de valores ¢ regras de a¢fio que so propostas aos individuos ou aos grupos por intermédio de aparelhos prescritivos diversos, como podem ser a familia, as institugdes educativas, as Igrejas etc.” (id., ibidem, vol. 2, p. 32); em suma, um cédigo. Ao contrario disso, pode entender-se por moral “o comportamento real dos indivi- duos na sua relagio com as regras e valores que thes sio propostos” (id., ibidem, vol. 2, p. 32); em suma, praticas. Ora, ndo é nem destas nem daquele que Foucault faz a historia, ¢ nao é nem num sentido nem no outro que a moral lhe interessa. Pois nela descobre um terceiro. “Uma coisa, com efeito, é uma regra de conduta; outra coisa a conduta que se deve medir a esta regra. Mas outra coisa ainda a maneira pela qual se deve ‘conduzir-se' — isto é, a maneira pela qual se deve constituir-se a si mesmo como sujeito moral agindo em teferéncia aos elementos prescritivos que constituem 0 cédigo” (id., ibidem, vol, 2, p. 33). E este campo de historicidade nova que retém Foucault: as diferentes maneiras constituidas que tém os homens de “reconhecer-se como sujeito moral” (id., ibidem, vol. 2, p. 33). E esta r 0 consigo mesmo, para além das praticas e para aquém dos cédigos, que é 0 objeto da interrogagiio de Foucault e a matéria de sua genealogia da moral. Este terceiro sentido da moral, ao qual reserva o nome de ética, Foucault nele descobre quatro aspectos (id., ibidem, vol. 2, pp. 33-34, p. 333)? que se poderiam dizer formalmente constantes, mas historicamente variaveis —e que Deleuze chama as “quatro dobras, eminentemente varidveis”, mas que “sio como a causa final, a causa formal, a causa eficiente, a causa material da subjetividade ou da interioridade como relagaio consigo mesma” (DELEUZE 3, p. 112). Primeiramente a substincia ética: “qual é a parte de si mesmo ou o comportamento que esta em relagdo com uma conduta moral” (FOUCAULT 14, p, 333). Podem ‘ser para nds os sentimentos, ou, na ordem do sexo, o desejo. Para os gregos a substancia ética, a matéria da moral sexual, nao é a “sexuali- dade” ou “a carne”. Entendamos com isso que nem o corte do campo, nem a 138 Wolf, F., discurso (19), 1992 : 135-164 organizacio dos conceitos, nem os centros de interesse moral correspondem ao que s¢ entende, desde o comego do século XIX, por “sexualidade”, ou ao que entendiaa “moral crista” por “carne”, Os gregos falam de aphrodisia, as “obras de Vénus”. Como se opéem elas, por exemplo, a “sexualidade”? A sexualidade se define a partir do desejo, “estrutura propria do ser humano”, distinto do prazer, ¢ auténomo em relagao aos atos; nas aphrodisia uma mesma dindmica liga os atos, “o prazer que lhes é associado ¢ 0 desejo que suscitam” (FOU- CAULT 11, vol. 2, p. 51). Partindo da lenict do desejo, a concepg¢ao moderna da sexualidade se liga as diferengas qualitativas de preferéncias sexuais (com que tipo de parceiro?); 0 que define o sujeito das aphrodisia é a intensidade de sua atividade. A sexualidade é definida por um grande corte; ha a do homem e a da mulher; as aphrodisia reconhecem a oposigio entre dois pélos nio passiveis de superposigao na diferenga de sexos: 0 papel ativo e o papel passivo (seja exercido pelas mulheres, criangas ou escravos). Enfim, a sexualidade se estrutura segundo normas clinicas (o normal e o patologico) e deve ser decifrada segundo uma hermenéutica douta (sob a atitude inocente, a obscura perversao); as aphrodisia se estruturam segundo valores politicos (o superior e 0 inferior, o senhor e 0 escravo) e devem ser tomadas como “uma forga por natureza virtualmente excessiva” (id., ibidem, vol. 2, p. 60). E outro tanto de oposigdes, mas nao evidentemente as mesmas, definiriam as aphrodisia em relagao a “carne”. Seguido aspecto da ética, sua “forma” diria Deleuze, o “modo de sujei- gio” do sujeito ético, escreve Foucault (11, vol. 2, p. 34), “modo segundo 0 qual os individuos tém de reconhecer as obrigagdes morais que a eles se impdem” (id., ibidem, p. 333). Pode ser “uma lei divina revelada num texto, uma lei natural que é sempre a mesma para todo ser vivo(...) uma lei racional etc.” A resposta grega A questio da forma é diferente ¢ consiste em “uma estética da existéncia”. O homem dos séculos V e 1V procura com efeito “ dar a sua vida uma forma que responda a critérios de brilho, beleza, nobreza ou perfeigao” (id. ibidem, vol. 2, p. 34). Idéia que é para nés duplamente desconcertante: nds para quem a forma que torna a moral aceitavel por um sujeito é a da wniversalidade; nos que perdemos até mesmo esta idéia, nota Foucault em outra parte, “de que a obra que temos a fazer nao é somente, nao é principalmente uma coisa (um objeto, um texto, uma fortuna, uma invengao, Wolf, F., discurso (19), 1992 : 135-164 139 ‘uma instituigdo) que deixariamos atras de nés, mas simplesmente nossa vida e nés mesmos” (FOUCAULT 11, vol. 2, p. 329). Terceiro aspecto da ética, sua causa eficiente diria Deleuze, “a elaboragao do trabalho ético que se efetua sobre si mesmo... para tentar transformar-se a si préprio em sujeito moral de sua conduta” (id., ibidem, vol. 2, p. 34); em suma, “a pratica de si mesmo” (id. 14, p. 334) ou o ascetismo, que nao tinha entre os gregos a forma de uma hermenéutica dos desejos, mas de uma fechné ou antes de trés ou quatro técnicas (téenica do corpo, técnica do papel marital, técnica da corte amorosa), ao estudo das quais Foucault consagra o grosso de seu livro. Enfim guarto aspecto da ética, a teleleogia do sujeito moral: “que tipo de ser queremos nos tornar quando temos um comportamento moral?” (id., ibidem, p. 334), A esta questio, os gregos respondem pelo conceito de “domi- nio de si mesmo” (enkrateia). Quer-se assegurar sobre si préprio a dominagao da forga dos prazeres pata melhor assegurar sobre os outros a forga de seu império: uma moral de homens, um dever de chefes. E sobre este tltimo aspecto que se vé melhor de que modo uma moral, esta, pode ser completa- mente estranha ao par permitido/proibido, assim como a todo fundamento pela lei ou pelo universal. A moral é de alguma forma o luxo do senhor, necessaria ascu dominio, O essencial do livro é portanto consagrado a “analisar esses quatro aspectos da relagdo consigo mesmo através dos temas classicos de austeri- dade do cédigo” (id. 11, vol. 2, p. 335), da satide, da esposa, ¢ dos rapazes, que permitiram aos gregos produzir técnicas de austeridades especificas, Cnearregadas de dar um estilo a sua liberdade. Em torno e a propésito do corpo, constituiram uma dietética (id., ibidem, vol. 2, cap.2), em que o tegime imposto aos prazcres os integra num modo de ascese do corpo inteiro, destinado a elevar-Ihes ao maximo a eficdcia. “Arte estratégica” destinada Por homens livres a homens livres, pois se trata “do dominio, da forga e da vida de um homem”, “da possibilidade de constituir-se como sujcito senhor de sua conduta” (id., ibidem, vol. 2, p. 120, 122, 141, 156). A propésito da instituigao do casamento, constituiram uma econémica (id., ibidem, vol. 2, Cap. 3) destinada ao chefe de familia “enquanto exerce o poder” (id., 11, vol. 2, p. 167). A ética do marido Ihe € ditada por seu duplo estatuto de senhor: 140 Wolf, iscurso (19), 1992: 135-164 para assegurar sobre a esposa sua autoridade, deve assegurd-la sobre si proprio, enquanto nada fora dele a isto o obriga (nenhum dever de fidelidade, nenhuma proibigao para ele de relagdes extraconjugais...). Enfim, a proposito da relagio dos homens (sempre os mesmos: os adultos machos, livres ¢ dirigentes) com os rapazes, constituiu-se uma técnica da corte amorosa, uma erética (cap. 4), que regula estas relagdes de maneira casuistica, a fim de reduzir seus custos para o adulto (pois o amante deve permanecer senhor de si) € os riscos para a crianga (pois o amado também é um futuro chefe), ainda que nenhuma coagao institucional nem nenhuma censura se ligue a pederastia enquanto tal. Essas complexas regras da corte amorosa aos rapazes, esta dialética sabia da recusa e da aceitagao, esta partilha rigorosa, mas proble- mitica, dos papéis nos mostram com evidéncia que a proibigdo nao faz a ética; ¢ que uma pratica dita “livre” pagava um prego muito alto: o da liberdade justamente. Tudo isso seria belo e bom e faria uma ética sistematica, s¢ nado houvesse... a filosofia, E este livro formaria um todo muito coerente se nfo houvesse (a mais?) o Ultimo capitulo. Perplexidades Lembremos de inicio rapidamente o contetdo do capitulo 5. Ele trata, através da analise de duas obras de Platao, O Fedro ¢ sobretudo o Banquete, da “reflexao socratico-platénica sobre o amor”. E na erotica que ela se insere. Mas a antiga questaio: “como do objeto de prazer fazer 0 sujeito senhor de seus prazeres?”, dara uma resposta nova: “substitui 4 problematica da ‘corte’ ¢ da honra a da verdade e da ascese” (FOUCAULT 11, vol. 2, p. 253). O acesso 4 verdade aparece com efeito como um outro “motive de problematizagiio da atividade sexual” (id., ibidem, vol. 2, p. 251). Dai “um certo nimero de transformagées e deslocamentos essen ” (id., ibidem, vol. 2, p. 258) que Platéo inaugura no Banguete (palavras de Diotimo) e no Fedro (o mito da parelha alada) ¢ que se pode medir por simples comparagio com a erdtica de Xenofonte respondendo 4 questo tradicional: quem é necessario amar ¢ em que condigdes o amor pode ser honroso tanto para a amado como para 0 Wolf, F., discurso (19), 1992 : 135-164 141 amante?" (FOUCAULT 11, vol. 2, p. 256). Estas modificagdes sfio em mimero de quatro: — Substituigdo de uma questdo deontolégica (como se conduzir bem no amor?), posta ao er6mano, por uma questdo ontolégica (0 que é o amor?) que interroga desta vez o ser que ama, 0 erén, — “Passagem da questao da honra do rapaz aquela do amor da verdade”. No que Platio introduza a idéia, Xenofonte ja o tinha feito, de que é “ ‘mais 4 alma dos rapazes que a scus corpos que 0 amor deve enderegar-se”’; 0 que antes introduz é que o valor do amor nao esta fundado sobre a dignidade do objeto amado, mas “sobre o valor daquilo que no proprio amante determina 0 ser € a forma de seu amor (seu desejo de imortalidade, sua aspiragdo ao belo, 4 reminiscéncia)”. Ou seja, finalmente o amor da verdade. — “Mas se Eros é relacionado a verdade, o amado nao é simples objeto”, € necessario “que se torne efetivamente sujeito na relagio amorosa” (id., ibidem, vol. 2, p. 263). Os parceiros deixam de estar em posigao dissimétrica, sao simetricamente e do mesmo modo levados para o verdadeiro. — Enfim uma personagem nova aparece, 0 mais sébio em amor, Socra- tes, também o mestre da verdade, que, “pelo dominio completo que exerce sobre si mesmo inverte o sentido do jogo, muda os papéis, coloca o principio de uma reniincia as aphrodisia e se torna, para todos os jovens avidos de verdade, objeto de amor” (id, ibidem, vol. 2, p. 264) — pois é por eles amado apenas se é capaz de resistir A sua sedugdo” (id., ibidem, vol. 2, p. 265). “O amor do senhor e de sua sabedoria” substitui-se, pois, 4 “virtude do rapaz amado” (id, ibidem, vol. 2, p. 265). Aerética platénica ¢ portanto equivoca, j4 que,num sentido, respondesomente deuma maneira nova ao problema tradicional do estatuto dos rapazes como objeto de prazer, mas, ao mesmo tempo, introduz pela primeira vez a questo da verdade como uma dimensiio essencial da relagAo amorosa; e enfim interroga, outra novi- dade, o sujeito sobre seu ser proprio, “sobre o desejo, pois” (e no mais as aphrodi- Sia) “que é preciso conduzira seu ser proprio, a verdade”’ (id., ibidem, vol. 2, p.267). Oque faz, nota finalmente Foucault (11, vol. 2,p. 268), “que se veja assim marear-se ‘um dos pontos onde se formard a interrogagio do homem de desejo”. Que pensar disso? Que pensar, nado desta leitura de Platio (nio nos Ocuparemos em saber se e em que medida é “fiel” aos textos, se e em que 142 Wolf, F., discurso (19), 1992 : 135-164, medida rompe com a tradigdo dos comentirios do Banguete), mas deste texto de Foucault? E a Foucault, com efvito, ¢ nio a Platéio que é preciso confrontar este texto de Foucault sobre Platio, perguntando-lhe de inicio se e em que medida coloca-se na linhagem do resto do livro e do resto dos livros de Foucault. Estes livros, é preciso certamente evitar fazer deles um sistema, ¢ de seu autor um Autor; isto seria “uma moral de estado ”, teria ele protestado (FOUCAULT 9, p. 28). Entretanto, quem confundiria o prazer de escrever “para jd nao ter rosto” (id., ibidem, p. 28) com a reivindicagdo de um direito 4 inconsisténcia? Este capitulo nao pode deixar, portanto, 4 primeira vista ao menos, de surpreender, De inicio, em relagdo 4 prépria economia do livro, coloca um primeiro problema: conforme a maneira pela qual o ligamos ao conjunto, pode-se hesitar entre dois livros diferentes. Poderiamos com efeito considerar, primeira estru- tura possivel, que um primeiro capitulo (4 problematizagde moral dos praze- ves) pSe em evidéncia os conceitos fundamentais em torno dos quais se articula a moral sexual-classica, e que os guafro capitulos seguintes sio 0 desenvolvi- mento dos quatro temas da austeridade sexual. E de algum modo 0 “plano” anunciado a p. 28 e retomado ds pp. 30, 39 ¢ 44 (id. 11, vol. 2). Em tornoe a propésito da vida do corpo constitui-se uma dictética, em torno da instituigao do casamento uma econdémica, em torno das relagées entre homens uma erética, enfim, em torno “da existéncia da sabedoria” (p. 28) ou ainda a propésito da “relagdo com a verdade” (p. 39), “onde se coloca a questo das condigées espirituais que permitem o acesso 4 sabedoria” (p. 30), isto é, “na Filosofia” (p. 44), constitui-se um uiltimo tipo de estilizagao da conduta sexual” (p. 44)(id., ibidem, vol. 2). Nesta dtica, pois, a verdade nio é senéo um tema de austeridade sexual ao mesmo titulo que 0 corpo, o casamento ou a pederas- tia. Seria preciso dai concluir que a filosofia nao € sendo uma técnica de asces¢ entre outras? Sem diivida nao, no minimo porque o capitulo 5, ao contrério dos trés precedentes (dietética, econdmica, erdtica), nao leva o nome da técnica (é a filosofia uma delas alias? todo o problema esta ai), mas um titulo com duplo sentido “o verdadeiro amor”, Porém, ha razdes mais sérias. Observar-se-a, de inicio, que ao fim do capitulo 1 (p. 107), quando Foucault anuncia e resume as prdticas As quais a estilizagiio da conduta sexual Wolf, F., discurso (19), 1992 : 135-164 143 deu lugar, 0 quarto tema (a relagdo com a verdade) desapareceu; talvez este esquecimento aqui signifique apenas que a filosofia nao pode justamente ser considerada em sua relagio com a verdade como uma simples pratica “pela ual os homens procuram dar forma a sua conduta”. Entretanto, em outra parte Foucault (14, p. 335) declara: “No Uso dos prazeres, analiso os quatro aspectos da relagao consigo mesmo através dos trés temas de austeridade do cédigo: a satide, a esposa e os rapazes”. Trés ou quatro? A sabedoria e a relago com a verdade instituida pela filosofia constituem, pois, efetivamente (como esta dito ds pp. 28, 30, 39, 44) um tema de austeridade sexual?”. Em qualquer hipstese, arelagdio com a verdade parece tanto menos um tema que se possa colocar no mesmo plano que os outros, que mesmo se, como diz Foucault (11, vol. 2, p. 251), “ele constitui o quarto dos grandes temas que percorreram, ao /anga de toda sua histéria no mundo ocidental, a moral dos prazeres”, é entretanto 0 tinico do qual nao se acompanha o destino cinco séculos mais tarde no Cuidado Consigo Mesmo™. No estado atual, e para terminar as consideragdes formais, ha pois duas estruturas possiveis do livro, ambiguidade ao menos reveladora da relagio equivoca de Platdéo com a erética comum. Quer este livro nos descreva um sistema moral com quatro dispositivos, onde a filosofia contribuiria, por sua vez, para o estilo de austeridade propria do periodo, vindo de algum modo arrematar ¢ suturar o sistema — é efetivamente em certo sentido o que faz Plato. Quer nos descreva um sistema moral montado sobre trés dispositivos (dietético, econdémico ¢ erdtico), moral que viria romper ao contrario a pratica filos6fica de acesso a verdade — e efetivamente é também o que faz Platao. E nesse equilibrio instavel, em todo caso, que a questio da verdade é instalada por Foucault na historia da moral: posta como a tltima pedra de um edificio que no entanto faz desabar. A filosofia vem, se quisermos, “reerguer” (aufhe- ben) a moral instalando-a na sua verdade, Mas este capitulo nos oferece um segundo motivo de perplexidade: nao mais sua posigdo no proprio livro, mas sua posigdo na obra de Foucault. Pois No fundo, nado se esta em presenga de um comentdrie de uma obra de um 4uior?, Certamente, nao se trata de “historia da filosofia”. Mas assim mesmo ha o que surpreender quem quer que tenha aprendido com Foucault a livrar-se das armadilhas do comentario (“que decifra, no texto, a transcrig&o de alguma 144 Wall, F,, discurso (19), 1992 : 135-164 coisa que ele esconde e manifesta ao mesmo tempo” (FOUCAULT 9, p. 35), ou que “enunciando o que foi dito, diz outra vez o que nao foi jamais pronunciado” (id. 12, p. XII), a dissipar a miragem da obra (fundada sobre o pressuposto “de uma certa forma de expressio’ (id. 9, p. 35) ¢ a interrogar o privilégio moderno concedido 4 fung’o do autor (id. 13, pp. 28-30), onde projetamos “o jogo de uma identidade que tem a forma da individualidade e do ew” (id. 13, 31). Melhor — ou pior — eis Foucault, e pela primeira vez na sua obra publicada, relendo algumas das paginas mais célebres da historia da filosofia, ele que parece sempre experimentar um prazer de colegial em desafiar a veneragao de que desfrutam estes “textos sagrados”, como os chama Deleuze (5, p. 11), ou a divertir-se em reduzir Descartes ou Kant a uma pega de um dispositivo que os engloba, submerge-os mesmo, com o risco, se calhar, de por os pontos sobre os i, se para isso acreditar-se impelido. Foucault voltaria, tardiamente, para as fileiras académicas”? Consentiria afinal em atribuir a obra filos6fica um lugar, se nao separado, ao menos protegido, no interior do “sistema de pensamento” do qual é filha? E ao menos a impressio deixada por este estranho capitulo, . Mas ha algo melhor ainda, Ou pior. E que Platao nao somente acaba a pagina de uma histéria que ele vira, e nao pertence apenas, a um sé tempo, a antiga moral das aphrodisia (os quatro primeiros capitulos se apoiam eviden- temente fambém sobre os textos platénicos) ¢ 4 nova erética aberta pelo Banquete e Fedro, onde devemos nos interrogar sobre “o verdadciro amor” (0 que € o verdadeiro amor? Resposta: 0 amor do verdadeiro). Platdo nao esta somente montado sobre dois sistemas. Ele parece misteriosamente fora de qualquer sistema. Pois aquilo que inaugura parece permanecer letra morta. Como se “anunciasse”, como um “precursor”, um futuro sistema que ja estava nele “em germe”, com auxilio de conceitos que sé “adquiririam sentido” bem mais tarde: em vao se esperaria encontrar Foucault nestas pesadas nogdes do velho fundo metafisico da histéria evolucionista. Escreve, entretanto, a props- sito da erética platénica: “ela inaugura questdes cuja importancia seré muito grande posteriormente, para a transformagio desta ética numa moral da renun- cia ¢ para a constituigao de uma hermenéutica do prazer” (id. 11, p. 252), ou seja, se fizermos bem as contas, mais ou menos oito séculos mais tarde. E, alias, © que é que Platdo ja anuncia? E 0 deciframento do desejo e a concupiscéncia, Wolf, F., diseurso (19), 1992 : 135-164 145 que s6 terdo sentido quando se censtituir, gragas ao cristianismo, “o homem de desejo’? Foucault escreve, com efeito, a propdsito do combate da alma no Fedro: “Vé-se assim assinalar-se um dos pontos em que se formara a interro- gagdo do homem de desejo” (FOUCAULT 11, vol. 2, p. 268), E, por que nao, uma vontade de verdade sobre 0 amor que nado se realizard plenamente, na nossa cultura, sendo no século XIX, na forma de uma scientia sexualis — cuja analise constituia a matéria do primeiro volume da Histéria da sexualidade? ‘Vé-se em todo o caso a qual interrogacio sobre a relagao dos enunciados com o sistema (do Banguete de Platao 4 estética da existéncia), de um lado, do acontecimento do discurso com a histéria, de outro lado, observagdes como aquelas que citamos ha pouco poderiam servir. E possivel que abandonando a arqueologia, o prdprio genealogista deva sacrificar ao dogma historicista fundado sobre o modelo biolégico do germe, da eclosao, do desenvolvimento, de um antes que anuncia um depois que ja estava nele virtualmente, de um depois que nao faz sendo traduzir um antes que ja o exprimia? E no fundo, nossas duas perplexidades so apenas uma, visto que é um mesmo combate que Foucault sempre sustentou, no fronte do “comentario” ¢ do “autor” ¢ no fronte da “histéria”, o combate contra a metafisica da expressdo. Elas aumentam em todo 0 caso o embarago de Deleuze, que, no texto que consagra ao Uso dos Prazeres (As dobras ou o lade de dentro da pensamenio, in DELEUZE 5), s6 concede uma frase ao capitulo V. Ela ¢ interrogativa ¢ trata-se de nossa propria interrogagao: “E possive] que Platao fique no corpo € no prazer segundo a primeira dobra, mas ja se eleve ao Desejo segundo a terceira, tornando a dobrar 4 verdade sobre 0 amante, liberando um novo processo de subjetivagao que leva a um ‘sujeito desejante’ (¢ nio mais a um sujeito dos prazeres)?” (id., ibidem, p. 112). De tudo isso, retenhamos ao menos uma licao positiva. A ambiguidade do Capitulo considerando-se © livro revela certamente a ambiguidade de Platao Considerando-se o sistema da “estética da existéncia”, nds o notamos; mas o Cardter paradoxal do capitulo considerando-se a obra de Foucault traduz ao Menos o que ele chama de “um paradoxo histérico” (FOUCAULT 11, vol. 2 P. 268), Como se Platéo pertencesse ao mesmo tempo a dois tipos de histori- Cidade, dois tipos de temporalidade, ¢ mesmo, como veremos, dois tipos de Tacionalidade: uma racionalidade da curta duragao pela qual pertence a “esté- 146 Wolf, F., discurso (19), 1992 : 135-164 tica dos prazeres ¢ seus usos” (FOUCAULT 11, vol. 2, p. 268); ¢ uma racionalidade da longuissima duragao pela qual pertence a uma ética nova, e pela qual, mais amplamente, ja € de nosso tempo — o que faz com que ja nos reconheeamos nele, se é verdade, como € publicamente notério, e como o préprio Foucault nota em outra parte, que “a filosofia grega” fundou uma racionalidade na qual nos reconhecemos" (id. 14, p. 345). ___ Emque Plato pode inagurar essa racionalidade, a da longissima duragao? E © que Foucault nos explica em outro lugar, num texto que pode contribuir para dissipar algumas de nossas perplexidades. Platdo e a historia da vontade de verdade Recorda-se que na Ordem do Discurso, “a coagio a verdade” aparece como um dos procedimentos de controle, selegio ¢ organizagao do discurso. No género da exe/usdo, ela é vizinha do interdito ¢ da rejeigao. Essa situagao poderia nos espantar: ao contrario dessas partilhas, aquela oposigao, a do verdadeiro e do falso, nao parece depender do histérico, mas do transcendental, seriamos tentados a pensar. “Certamente, se nos colocamos no nivel de uma proposigdo, no interior de um discurso”, esta partilha “ndo ¢ nem arbitraria, nem modificavel, nem institucional, nem violenta” (id. 13, p. 16). Mas numa outra escala, ela aparece como historicamente constituida. “Pois ainda entre os poetas gregos do VI século, o discurso verdadeiro... pelo qual se tinha respeito ¢ terror, aquele ao qual era necessdrio submeter-se completamente, porque ele reinava, era o discurso pronunciado por quem de direito e segundo o ritual requerido” (id., ibidem, p. 17). E aos trabalhos de M. Detienne que Foucault aqui faz alusdo sem divida. Em Os Mesires da verdade na Grécia arcaica, M. Detienne também denuncia a ilusdo segundo a qual a verdade seria uma das nogdes que teriam “sempre existido, sem sofrer mudanca alguma” e mostra como cla “é solidaria de todo um sistema de pensamento” (DETIENNE 6, p- 3). © primeiro mestre da verdade é © poeta arcaico que, arrancando a0 esquecimento (/ethé) os altos feitos dos homens e dos deuses, Ihes da uma memoria, Por ele o feito se torna real ¢ acede ao mundo do “que foi, do que & do que sera” (id., ibidem, p. 15): “verdade assertérica que ninguém contesta wolf, F., diseurso (19), 1992 : 138-164 147 nem demonstra” (DETIENNE 6, p. 27). Ao lado do poeta, a época arcaica nos oferece outros mestres da verdade, o adivinho, © rei de justiga que testemu- nham um “sistema de pensamento... onde a palavra é naturalmente uma poténcia, uma realidade dindmica, onde esta palavra, enquanto poténcia, age espontaneamente sobre outrem” (id., ibidem, p. 80). Estas andlises nos mos- tram, em outros termos, que por vezes, quando dizer é fazer, dizer a verdade é tornar real. “Ora, escreve desta vez Foucault, eis que um século mais tarde a verdade mais alta ja nao residia no que era o discurso ou no que fazia, mas no que dizia: chegou um dia em que a verdade deslocou-se do ato ritualizado, eficaz ¢ justo, de enuncia¢io, para o préprio enunciado: para seu sentido, sua forma, seu objeto, sua relagao com sua referéncia, Entre Hesiodo e Platao uma certa partilha estabeleceu-se, separando o discurso verdadeiro ¢ o discurso falso; partilha nova, visto que doravante o discurso verdadeiro ja nao ¢ o discurso precioso e desejavel, visto que ja nado € o discurso ligado ao exercicio do poder” (FOUCAULT 13, pp. 17-18). Ainda aqui, como se pode ver, Platao é o nome, ou o lugar, de uma passagem historica, 0 momento de ruptura de um conjunto coerente. Talvez valha a pena aprofundar a analogia. Nos dois casos, a formagiio antiga (até Sécrates) esta estruturada em torno. das relagdes antagonistas de forgas: “o discurso precioso ¢ desejavel” é o discurso pelo qual se exerce o poder sobre outrem, o amor precioso e desejavel € aquele pelo qual se assegura superioridade ¢ poder sobre outros homens; nos dois casos as respostas a questaio “como agir?” se fundam sobre um modelo politico e variam segundo os pap¢is politicos que alids contribuem para definir; Nos dois casos, amar, de um lado, ¢ falar, de outro, constituem o objeto de uma ars ou de técnicas: o “bom uso dos prazeres” é num sentido ars erotica, arte de bem amar, de amar como se deve, segundo as técnicas dietética, econémica, erética; o bom uso do discurso é, ao menos até os Sofistas, uma ars orationis, arte de bem falar, de falar como se deve, a quem se deve, e quando se deve, Segundo a lei do misterioso Kayrés. Sabe-se, alids, que no século V, a fechné Por exceléncia, a fechné simplesmente, é a retérica. __ Mas, paralelamente e nos dois casos, 0 que Platao inagura ¢ um novo dispositivo de racionalidade. Quando se ama, quando se fala, j4 nao se trata doravante de assegurar seu poder, de demonstrar sua forga, trata-se de saber, 148 Wolf, F., discurso (19), 1992 : 135-164 trata-se da verdade. Nos dois casos a irrupgiio da “vontade de verdade” abala © antigo sistema ético: e a nova ética, a do eros, e também a do logos, se reorganiza em torno desta questo da verdade. O novo estilo de coagiio ¢ ascese ao qual o discurso, ¢ também o amor, vio ser submetidos serdio doravante o da verdade. Nos dois casos, ja niio se trata de ars, mas de scientia, ou de episteme, em todo 0 caso, de conhecimento. Nos dois casos, enfim, nao é somente um novo sistema de pensamento que inagura Platao, ¢ uma racionalidade de longa duracdo, aquela na qual j4 podemos reconhecer nossa moderna ciéncia do amor (scientia sexualis), nossa propria “ordem do discurso”, atravessada pela nossa prépria vontade de verdade. Aanalogia dos dois acontecimentos de que Platao é portador é demasiado clara para que nao se pergunte: e se fossem o mesmo? O verdadeiro discurso verdadeiro Para pér a prova esta hipotese, é preciso tratar de prolongar, se possivel, as anilises de Foucault. A verdadeira “fidelidade”, ao menos aquela que lhe devemos, zomba da “fidelidade”, passa pelo abandono de toda idéia ingénua de fidelidade fundada sobre a metafisica da expressio, que ele denunciava. E a melhor maneira de ler Foucault, nao é comenta-lo, é trabalha-lo utilizando-o. Interroguemo-nos primeiramente sobre a natureza deste novo discurso verdadeiro, ou antes desta nova figura da verdade do discurso, apregoada em nome de Platao, que j nao reside naquilo que ¢ o discurso, mas naquilo que ele diz. Numa extremidade, a verdade reside em tudo 0 que qualifica o enunciado como ato de enunciagao singular, sustentado por um sujeito investido de uma autoridade veridicional, em circunstancias excepcionais ¢ sobre um modo que s6 pode ser veraz, visto que diz o que é, mas que o que diz ‘precede e determina o que é. Na outra extremidade, eis nossa verdade, comunicavel, laicizada pela isegoria democritica, residindo no enunciado sustentado por qualquer um para qualquer um, verificdvel porque diz 0 que é € que a que é precede & determina o que diz. O movimento histérico pelo qual se passa de uma figura 4 outra nao estard na realidade acabado sendo com os Analificos aristotélicos ‘Wolf, F., discurso (19), 1992 : 135-164 149 ue consumam a teoria da episteme como discursividade verdadeiramente qualificada a titulo de verdade. Doravante, 0 tinico discurso susceptivel da oposigao verdadeiro/falso é 0 logos apophanticos, pelo qual o que ja esta 14 yem a ser enunciado™, mas o verdadeiro enunciado verdadeiro é 0 enunciado. -epistémico que se poderia definir como aquele no qual todo trago de enuncia- gao desapareceu absolutamente, Precisemos. Sabe-se que é a relagao do enunciado com o ser que 0 qualifica como verdadeiro, visto que segundo Aristételes, sistematizando neste ponto Platao (16, 385b; 24, 263a) “dizer do que é que nao é ou do que niio & que 6, é dizer o falso; dizer do que é que é, ¢ do que nao é que nao é, é dizer o yerdadeiro” (ARISTOTELES 2, IV, 7, 1011b 26-27). E esta relag’io que determina que o enunciado seja apofantico. Mas, com relagao 4 enunciagio arcaica, o sentido da relagao ¢ invertido e ja nao vai do dizer ao ser, mas do ser ao dito. Pois, nota Aristételes, “nao é porque se aprecia de maneira verdadeira que tu és branco, que tu és branco, mas é porque tu és branco que, ao dizé-lo, dizemos 0 verdadeiro” (id. 2, IX, 10, 1051b 6-9). A isto é preciso acrescentar que 0 que qualifica o enunciado como sendo verdadeiramente verdadeiro ¢, diria Platdo, que ele é capaz de defender-se e assistir-se a si proprio sem a presenga de scu pai (PLATAO 21, 275e). E verdade que neste texto Sécrates censura o enunciado escrito por nado possuir esta capacidade: “que se lhe dirija a palavra com a intengao de se esclarecer Sobre um de seus dizeres, é uma coisa tinica que eles se contentam com Significar, a mesma coisa, sempre! Outra coisa: quando de uma vez por todas foi escrito, cada discurso vai rolar da direita para a esquerda, indiferentemente Junto daqueles que conhecem e igualmente junto daqueles que nada tém a ver Com isso, nfo sabendo quais sio aqueles a quem justamente deve ou nao dirigir-se, Que, de outra parte, se elevem a seu respcito vozes discordantes ¢ Que seja injustamente desdenhado, sempre precisa da assisténcia de seu pai: Por si s6, com efeito, niio ¢ capaz nem de defender-se, nem de assistir-se a si Proprio”, A légica histrica que levava a verdade classica se acaba de fato com © cnunciado epistémico escrito, independente de quaisquer circunstancias, de Qualquer autoridade ligada a qualificagio politica do locutor, e de quaisquer Condigdes empiricas particulares, como aquelas do lugar e do momento. Este texto do Fedro traz a marca de uma nostalgia ou de um desejo de deter este 150 Wolf, F., discurso (19), 1992 : 135-164, movimento: a transformagéo democratica da autoridade do discurso gragas 4 qual qualquer locutor é igualmente qualificado, traz segundo Platao o duplo risco da retérica e da eserita que irresponsabilizam os parceiros do ato de discurso. O privilégio da relagao em sentido tinico do ser ao enunciado tem, com efeito, por corolario a negagao da relagao do enunciado a suas condigées de existéncia. Sustentado por ninguém, em parte alguma, 0 enunciado epistémico 0 tinico que € nao somente verdadeiro, mas verdadeiramente verdadeiro: nao ha nele indicador algum, como se diz em linguistica. Nenhum pronome pessoal (nem eu, nem tu). Para dizer algo verdadeiro, € preciso que o ser seja dito, e para isto basta que seja dito por ninguém em particular: “Que nao se trate nem de ti, nem de mim, nem de Gorgias, nem de Filebo, e confiando apenas em nosso logos, digamos antes isto...” (PLATAO 29, 59 b-c). O enunciado é assim verdadciro. Mas para que o s¢ja verdadeiramente, para que seja, pois, episté- mico, é preciso que a presenga do ser no enunciado seja, se nao garantida, ao menos manifesta; é preciso, pois, que esta relagdo pela qual diz respeito ao ser seja reduplicada no enunciado pelos signos manifestos do ser assim dito” (permanéncia, impessoalidade etc.), Nao somente, pois, qualquer um pode dizé-lo a qualquer um e eit s6 posso dizé-lo com a condig¢aéo de me fazer nao importa quem”, mas a presenca do ser deve manifestar-se no dito pela auséncia “tangivel” daquele que fala (¢ niio se nomeia) como daquele a quem se fala (¢ jamais é designado). O modelo do mestre da verdade é doravante, finalmente, aquele de um mesire qualquer demonstrando a um discipulo qualquer. Aquilo pelo qual um discurso é centrado sobre seu agente, aquilo pelo qual aquele que fala é, a cada ato de fala, e por este ato mesmo “uma parte do mundo” (como escreve J. C. Pariente (15, pp. 92, 103 e 104))"", tudo isso deve ter desaparecido. Nenhum outro tempo sendo o presente, nenhum outro modo senao 0 indicativo, O presente ¢ o tempo do ser, mas com a condigao de nao enviar a nenhum “agora” singular: a instantancidade toca a eternidade. 0 indicative é 0 modo do apofantico. A terceira pessoa do singular € a do ser e, portanto, a tinica presente no enunciado epistémico, aquela em nome da qual se faz a enunciagao, aqui, em parte alguma, agora, sempre. Em suma, tudo o que no enunciado o reporta a suas condigdes dé existéncia, ao ato de um locutor, 4 enunciagado particular de um agente a um Wolf, F., discurso (19), 1992 : 135-164 151 paciente, Ihe subtrai alguma coisa do vinculo com aquilo que enuncia. A ordem, a proibigao, o pedido pertencem 4 retérica, ndo a apofantica. Estes modos de discurso dizem respeito tanto menos ao ser quanto mais dependem daquele que fala e daquele a quem se dirige, da natureza de seu estatuto singular como das circunstancias de sua relagao. Estes discursos nao séo nem yerdadciros nem falsos, sao atos. O discurso da episteme, ao contrario, é tanto mais verdadeiro quanto menos é discurso. Quanto mais diz 0 ser, tanto menos o ser é dito. Quanto mais se fala a outrem, tanto menos se fala de quem quer que seja, Tudo se passa como se, das duas relagdes que definem a discursivi- dade (0 discurso como relagao entre interlocutores: falar a; 0 discurso como relacdo ao ser: falar de), uma nao pudesse existir sendo em detrimento da outra. De um lado, e no limite, aquela em que o privilégio da relagdo “pragmatica” apaga qualquer trago da relag&o apofantica, e tem-se a retérica, ars orationis. Oorador é tanto mais liberado da coagao de dizer o verdadeiro, quanto tem por tarefa agir sobre aquele a quem fala. De outro lado, tem-se um outro herdeiro do antigo mestre da verdade, o fildsofo-sabio, tanto mais liberado da tarefa de agir pelo discurso sobre outrem, quanto deve dizer o que é (PLATAO 22,VI, 500b seg). Com Platao, entretanto, o movimento nao esta acabado. Mas ele é 0 anel privilegiado da cadeia. A apofantica ainda nao se da numa analitica, mas numa dialética (arte do didlogo). E pela e numa relagiio com outrem que a coagdo a verdade se exerce. Qual é pois 0 sujeito da verdade? Nao é mais aquele que fala, nao é ainda aquele de quem se fala, Para que 0 sujeito da verdade possa Sobrevir, € preciso ainda uma relagdo. Mas ela se desliga da antilégica (falar contra) para se tornar dialética (falar com): é assim que o que se chama légica Se constitui. O que é que opde, portanto, dialética (platénica) e antilégica Sofistica? ___ Entre os sofistas a antilégica” é relagdio de forgas, eristica, agonistica. O discurso é “aterrador™’, Entretanto, é desprovido de tudo o que arcaicamente © designava como verdadeiro: a qualificagao daquele por quem era sustentado, assim como as circunstancias nas quais era sustentado e que o manifestavam Como discurso de poder. O mestre, doravante, é aquele que sabe fazer de qualquer discurso fraco um discurso forte. Mas o discurso forte néio € mais Vverdadeiro que o outro, Ele vale mais’), Curioso momento: desembaragado da 152 Wolf, F., discurso (19), 1992 : 135-164 tarefa e do poder de dizer a verdade, é puro poder. E este poder se da como técnica, Todo o mundo, portanto, pode se tornar por sua vez o mestret!); ¢ questio de formagao, e mais uma vez de técnica. Simetricamente, a dialética platénica se dé como técnica ascética de acesso a verdade. O logos j4 é verdadeiro por aquilo que o vincula ao ser. Mas nao o € verdadeiramente por tudo aquilo que o retém aquele a quem se dirige. Momento curioso: o discurso jd esta desprovido de tudo o que fazia seu poder sobre outrem, quer seja aquele do antigo mestre da verdade ou do moderno mestre sofistico. Mas ainda esta dotado de tudo aquilo pelo que ele ¢ relagdo com um interlocutor. E ainda ato (0 didlogo) de um agente sobre um paciente. Temos pois, grosseiramente, duas figuras intermedidrias entre a enuncia- ao do mestre da verdade arcaica, de um lado, e 0 enunciado epistémico, de outro. O sophistés herda o discurso do poder e 0 poder do discurso, mas este poder nao € mais veridicional. Simetricamente a pratica platénica do logos ja o consagra exclusivamente 4 verdade, mas 0 acesso a esta verdade s6 é possivel por meio de uma dialética e na pratica dual do discurso, heranga da agonistica. Eis por que tudo o que se pode dizer, em Platéo, da relagdo erética sem divida também se pode dizer da relagdo diseursiva, Eros e Logos Retomemos pois, ponto por ponto, a leitura de nosso capitulo 5 e po- nhamo-lo sob a prova sistematica desta hipdtese. Pensemos portanto como Jogos a relagao que Foucault nos da a pensar sob 0 nome de eros. Com a erética platénica, escreve Foucault, primeiro ponto, assiste-se a passagem da questo como conduzir-se em presenca do amado (para garantit sua propria forga)? 4 questo o que é @ amor na sua verdade?. Do mesmo modo, paralelamente, pode-se dizer que em Platdo assiste-se A passagem da questao como conduzir-se pelo discurso em presenga daquele a quem sé dirige? (ars orationis), como agir sobre ele, assegurando sobre ele sua domi- nagdo? a questio o que é que é dito? 0 que é que o discurso diz em verdade? Em outros termos, 4 antiga erética organizada em torno da questao como amar? substitui-se a erética platdnica em torno da questao ontolégica o que é wolf, F., discurso (19), 1992 ; 135-164 153 em si 0 amor?, néo como ato (ato positivo, forga ativa, ligada 4 dominagio sobre o corpo do outro, até mesmo a penetragio) mas nele mesmo? Nao mais amar, mas o amor. A antiga dialética, organizada em torno do camo falar? (como agir sobre o outro?), substitui-se a questéo o que é em si falar? (nao como ato positivo, como forga ativa, exercendo-se sobre 0 outro, levando-o a seu gosto, pela ordem ou a persuasio por exemplo), mas o que é em si substantivamente o discurso? O que é, ele? Nao o dizer, mas o dito. Ele é enunciado de alguma coisa sobre alguma coisa; e nao mais fala para qualquer um®. Ele diz o que é e nada mais. Segunda passagem assegurada pela erotica platénica, “passagem da ques- tio da honra do rapaz para a do amor da verdade”. Lembremos que, segundo Foucault, desde que se interrogue antes sobre o amor que sobre o amado, tao logo se substitui, se poderia dizer, 0 que é que ao come, entdo a problematiza- gdo do amor é relacdo com a verdade. Com efeito a antiga erdtica partia do que é o amado para procurar dai deduzir o que deve ser 0 amor “que se deve dar-lhe” (FOUCAULT 11, vol. 2, p. 261) — donde teda a casuistica das praticas da corte amorosa; a erética platénica parte ao contrério do que é substantivamente o amor (no amante portanto). Ora, 0 que é o amor como pura substantivagao de uma relagdo, independentemente do objeto sobre o qual se aplica a relagdo, sendo o amor do que é enquanto é, 0 amor do objeto indifereneiado que permite que nos interroguemos sobre o movimento que para ai nos leva, O que é 0 amor senfio o amor do que é, e o que 6 0 amor em verdade, 0 “verdadeiro amor”, sendio o amor da verdade. O jogo de palavras que tanto agradava ao jovem Marx (0 a de b, é 0 b de a) faz sentido aqui. Do mesmo modo, paralelamente, desde que nos interroguemos antes sobre o discurso que sobre 0 dizer, desde que se substitua 0 gue é? a0 como?, entao a problematiza- go do discurso é relagdo com a verdade. Com efeito, a antiga ars do dizer Partia do que é 0 destinatdrio para dele deduzir o discurso que deve dirigir-se a ele (dai, entre outras, todas as regras segundo as quais 0 orador deve moldar seu dizer ao auditério e das quais dao testemunho o livro II da Retorica aristotélica); a dialética platénica parte ao contrario do que é substantivamente © logos — naquele que fala, portanto. Ora, o que € o logos como pura Substantivagao duma relagaio independente do objeto sobre o qual ela se aplica, sendo o discurso do que é enquanto é, como é, o discurso sobre o ser que 154 Wolf, F., discurso (19), 1992 : 135-164 permite que se interrogue sobre o movimento que para la nos leva. O que é 0 discurso sendo o discurso daquilo que é, e o que é discurso na verdade, o verdadeiro discurso, senao o discurso da verdade, o discurso verdadeiro. “O discurso verdadeiro diz daquilo que é, que ele é” (PLATAO 16, 385b; 24, 263a). O discurso depurado de tudo o que nele o reenvia aquele que fala ou para quem se fala, o puro, o verdadeiro enunciado é o enunciado da verdade. Terceira modificagdo que Foucault atribui a erdtica plat6nica: “passagem da questio da dissimetria dos parceiros para a da convergéncia do amor”. Desde 0 momento em que “Eros é relagao com a verdade, os dois amantes s6 podero se encontrar com a condig&o de que o amado também tenha sido levado ao verdadeiro pela forga do mesmo Eros” (FOUCAULT 11, vol. 2, p. 263). A verdade introduz a simetria. A relagdo da antiga erdtica era do forte (0 amante ativo: adulto, macho e chefe) para o fraco (o amado passivo: crianga, escravo ou mulher). A relagéo com a verdade é relagao que converge para 0 mesmo. Os dois amantes se encontram no ponto exato em que um ¢ outro atingiram aquilo pelo que eram levados, a verdade. Do mesmo modo, desde o momento em que a dialética é relagao com a verdade, os dois interlocutores do didlogo sao levados por um movimento convergente em diregio ao verdadeiro, A antiga pratica do didlogo essencial- mente agnéstico, na qual a contradigdo & impelida a seu maximo entre os adversarios que sustentam teses opostas, onde os dois papéis sao complemen- tares e dissimétricos (0 papel ativo do “questionador” que tenta se impor a0 outro pela “refutagfo”; 0 “respondedor” passivo, que tenta resistir ao assalto das questées do outro, de resistir o mais que pode, sustentando sua tese 0 melhor possivel), substitui-se a pratica platénica do didlogo ea dialética como busca em comum da verdade: “Sei que, aquilo sobre o qué minha alma julga e com o qué estards de acordo, serd a partir de entéo a verdade” (PLATAO 17, 486d). E a convergéncia com o outro que é buscada‘'”, seu acordo sabre 4 propria coisa. E ainda que os dois dialogantes tenha papéis distintos (como, alias, 0 amante ¢ 0 amado na erotica platénica), os dois interlocutores s¢ encontram no ponto exato em que alcangaram aquilo para o que seu discurso ‘os levava, a verdade. q A quarta passagem da qual nos fala Foucault é a mais delicada, mas # crucial; “passagem da virtude do rapaz ao amor do mestre e 4 sua sabedoria -

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