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INTERPRETACAO E APLICACAO_ DA CONSTITUICAO FUNDAMENTOS DE UMA DOGMATICA CONSTITUCIONAL TRANSFORMADORA REGISTROS Indmeras pessoas participaram deste projeto, com maior ov menor {ntensidade, em contribuigdesintelectuais e afetivas, Por evident, ne ‘numa dela em culpa no resultado. académica Ana Paula de Barcellos, ‘minha monitora, tem sido um adorvel anjo da guarda destes shimos ‘anos, com sua dedicasaoe talento, Luis Eduardo Barbosa Morera ptes- tou-me valiosa ajuda na pesquisa dos materia em italiano e reviu em ‘miniciao texto Final, Licia Maria Lefebvre Fisher de novo e sempre, fo a bibliotecria que tornou minha vida mais fcil€ methor. Devo igual- mente, ao Professor Osiris Cuadrat de Souza inimeras coregdes da pri- ‘Nelson Nascimento Diz, Mauro Fichinr Pereirae Joel Alves Andrade, advogados ¢ pessous notveis, foram inerlocutores reqUentes e graf: ‘antes de minhas angistas e perplexidades. Os Professores José Carlos Barbosa Moreira, Milton Flak, Joaquim Arruda Falcao e Hélio Assun- ‘980 honraram-me com a leiturs dos originais e com suas eriticaslicidas € proveitosas. O Professor Gustavo Tepedino tem sido companheiro e “amigo constante de muitos caminhos, que vm desde 0 movimento est- dani chegario a um mundo melhor. ‘Os Professores Doutores Caio Técito, Raul Machado Horta, José Aifredo de Oliveira Baracho, Carlos Alber Direito e Jacob Dolinger integraram a banca de concurso que me contferiu o grau de titular em Direito Constitucional, com nota méxima, A leitura atenta que fizeram «de meu trabalho e as argigbes erudite instigantes valorizaram imen- Samente a conquista. Partlho o titulo, em profunda comunhio afetiva, com a Professora Carmen Tibircio, pelo estimulo, carinho e transcen- dente amizade de todos estes anos, Este trabalho & dedicado & Te, que o acompanhou a cada passo,e 2 Luna, que nasceu junto com cle. Nas madrugadase fins de semana em {que o eserevi, e por isto ndo pude estar com elas, reconheci-me no verso cencantado de Jorge Luis Borges, uma linda declaragao de amor: “Estar ‘com voc? ou nfo estar com voe® & medida do meu tempo” Dezembro de 1995 LRB XX} INTRODUCAO ‘Um texto, depois de ter so separado do seu emissor fe das circunstincias concretas da sua emissao, flatua no tnicuo de um espaco infiito de interpretagoes possveis Por conseqiéncia, nenhum texto pode ser interpretado de ‘acordo com a utopia de wm sentido autorizado defnido, originale inal. A linguagem diz sempre algo mais do que ‘seu inacessive sentido literal, que jd se perdeu desde o inicio da emissdo textual.” Umberto Eco! 1. A interpretagio. Generalidades ‘A Terra plana, ¢ todos 0s dias 0 sol nase, percore 0 e&u de ponta a pontae se pde do lado oposto, Por muito temp isto foi tdo como uma ‘obviedade e toda a compreensdo do mundo era tributéria dessas premis: 88, Que, todavia, eram falsas. Desde logo, uma primeira constatagao: as verdades, em cigncia, no si absolutas nem perenes. Toda interpretagio € produto de uma época, de uma conjuntura que abrange os fos. a8 circunstincias dointéprete, e, evidentemente, 0 imaginério de cada um, ‘Ao longo dos seus, o homem tem recorrido 3 mitologia, ao sobrenat rail, ao panteismo, & Fé monotesta de diversos eredos && obsessio do ‘acionalsmo. Nao necessariamente nesta order. [Em instigante trabalho no qual procurou tragar um paralelo entre Fisica eo dreto consttucional, Laurence Tribe dissertou sobre 0s és grandes estgios da Fisica modem e como cada um delesinuenciou a percepeio do universo.em geral. Newton trabalhou sobre a iia de que ‘sobjetos eram isoladas interagiam a distnciae utlizou-se de concei- T mh i Lv iis de Perrin, 1992p {os metfisicos como espagoe tempo absolutes. A Fisica pos-newtoniana, ‘marcada pela teora da relatividade de Einstein, superou a fase do abso- Iuto,divulgou a ida da curvatura do espaco & de que todos 0s corpos. interagem entre si, Por fim, com a Fisica quintica percebeu-se que propria atividade de observagio e investigagio interfere com os fatos pesquisados. Vale dizer: nem mesmo a mera observaglo éneutr, ‘Ao longo do tempo, varia percepeo que o homem tem, no apenas ‘do mundo a sua volt, como também de si mesmo. Em passagem cissi- ‘a, Sigmund Freud elencou rés momentos em que, pela mao da ciéncia, ‘o homem se viu ahalado em suas convicgSes e mesmo em sua autos ‘ma, O primero golpe deveu-se a Copémnico, com a revelagdo de que a ‘Terra no era o centro do universo, mas apenas um minisculo fragmento de um sistema cdsmico cuja vastidao ¢ inimagindvel, O segundo golpe veio com Darwin, que através da pesquisa biolGgica destraiu 0 suposto {ugar privilegiado que o homem ocuparia no émbito da criagdoe provou sua incontestéve natureza animal. Otereir aba, possivelmente 0 mais contundente, veio com o proprio Freud, criador da psicanlise: a desco. berta de que o homem no ésenborabsoluto sequer da prépria vontade, de seus desejs, de seus instintos. Seu psiquismo no é dominado pela ‘azo, mas pelo inconscient’ E certamente possvel inclu neste elenco um outro golpe mais re ‘ente: 0 fiasco dos paises que se organizaram sob inspirago do marxis- ‘mo e puseram em prtica 0 chamado socalismo real. A ideologia, que chegou a envolver quase metade da humanidade e cativou coragées € mentes por todo © mundo, representava um exercicio supremo de ‘acionalismo e um esforgo de criagSo de um nove homer, Um hamem {que nio seria predestnado pela faalidade, pela providéncia ou por seus rSprios instintos, mas pla histria, Uma histria que poderia ser toma- «da nas mos para promover uma sociedade igualitéria, solidéria e pretensamente universal, sem Estados, nacionalismos ou froneiras. Se io fltam os que possam alegar que, desde a primeira hora, denuncia- ram a inviabilidade ou 0s desvios do modelo, nlo deixa de ser desolador 2 Lawrence Tie, Ts cuatro contin ce wh yes can ea fe ‘tes pyc Hand ae Rei, 1 199 3. Sigmund Fel, Opemamens i de Frew 18,9. 59 0 spirito humano que tudo tenha acaba em secessio,desordem & Fraticidi. ‘Otabalho quea seguirse desenvolve parte da premissa consolidada ‘de que & interpretagio nao & um fendmeno absoluto ou atempora. Ela tspelha o nivel de conhecimento ea realidade de cada época, bem como fr crengas e valores do intérpret,sejam os do contexto social em que tena inserido,sejam os de sua propria inividualidade. 2. Apresentagio do tema ‘A interpretagdo constitucional no Brasil era um tema espera de um autor Possvelmente continuaria ser. Este estudo, todavia, tem a ambi (io de identficare sistematizar os elementos essenciais da toria da in- {expretacioaplicaveis ao diritoconsttucionl. No seu desenvolvimento, ‘sem embargo da enfase dada a realidade brasileira, procurou-se impor: tar seletivamente, com moderagoe sentido ertico, 0 que de melhor ba via no direto comparado sobre a matéria Neste esforgo, deu-se especial atengio 2 bicentendria produgio {urisprudencial da Suprema Corte norte-americana, bem como a fecunds ‘tuapio do Tribunal Consttucional Federal alemao em pouco mais de ‘um quarto de século, Contudo, enaturalmente, reservou-se maior desta ‘que para as decisdes do Supremo Tribunal Federal brasileiro, eferidas reproduzidas com frequncia ao longo do text, contariando um velho hbito da dowteina de tatar a jurisprudéncia, sobretudo a nacional, com certo desdém, Nao se coreu 0 rsco, aqui, de fcar de frente para o mar, de costas para o Brasil CO trabatho que se segue no tem por objeto afilosofia da interpret ‘elo constitcional, nem tampouco pretende ser uma teoria geral sobre 0 tema Elese volta predominantemente, para a atividade de realizaio d3 vontade constitucional, e procura fundamentar, desenvolvere sistema ‘aro conhecimento necesséri atl desiderato. Concentra-se, assim, 10 itinerrio intelective a ser percorrido no processo de interpretagso da CConsituigio, desde a determinago da norma aplicivel até oat final de sua incidéncia sobre o caso conereto, sem descurar do questionamento ‘acerca do papel desempenhado pela subjetividade do piri inéxpete ‘A interpretago consttucional, como a interpretagio em geral,nio€ ‘um fendmeno monolitco, singular Elaé essencialmente plural ecompor ta énfase em aspectos diferentes. Em uma anise cienttica, asim, & possive volar a tengo em primero lg é © conjunto de normas,pinipon concitosincretes a0 eden imereave Ps dot pre dar on pp! esa ale dict wn a inert snes di, 0 poems gue even elope meprean dana, Forno el copa: ind vega papel dose da erp, ‘olla os thos paaon valores ea elopa do inet es reper, sono produto de eu taba. Metndoloscanente porno, : 5 ant. ¢ pose encararainerpretagio cons Sion pari sea, pina da i ed dpi pa cational, gual we acon priculaidades xis plo car ter singular da Consiuiio.Aimerpetaocontituconal, ora de ‘onseqiéncia, € uma espécie de interpretagto juridica, eniquecida por rics eres propa. Exe modo que Se pode identcar corm) nod herent sin, ta Cosa como I cn scrvolr sun frganormatv, sem embargo de difuldades ue + peculiar estuturadas noms consttuionis muta ves suite E possivel, igualmente, optar por stodo oar por una metoologia qu valorze an ts abe ie mon itp, noe on problema a eesti, Nos pats oe iors a igor wadiglo do common ter somo nos Estas Unidos a fn da spumentaao iia ey, precisament, a discuss dos aspectos de fata da cus ¢na busca do precedente mais adequdo, sem que exis, normalment ager de uma norma tasativaemanada do sistema’, Pallamert 2 cate sty ‘norte-americano, desenvolveu-se entre 0s al or to lems pic, ochamado ‘néodotpio apical ax problemas, plo ual essen 0 primad 4oprobiena brea nom juice e soe o tema end inert “ca BNE ris se des ann, 9) fa tin mi ere sl ers et es 1 espe a nn oe o> ume concede Kowa Hee (Crmige de leurs Bond ‘Devtschland, 1976) e F. Maller (Excstiopie de vite Baw cle er een Aton 2). deni de ee ct en sd as Smet Sache she, 18) $. Weise para mcs iia Nig a sng el date The case law system in America, Columbia Law Review, 88980, 988. init 4 do se apresenta como um método aber de argumentaio, idtvo © 3p dedutivo. Nel, a ordem juridica € apenas uma referéncia, um dos rpumentos, um do fopo’ seem Ievadosem conta na solugio das situa ‘bes coneretas ‘Por fim, &possive, na interpretago constitacional, volar os olhos para o papel do intéepret, as possibildades de sua atuago eos Himites Be sua discricionariedade, Aqui é de grande relevo o aporte trazido pela teoria critica do direito e seus desdobramentos, notadamente no seu {qestionamento da onipotéacia da dogmatic juridca convencional eda Fangio ideol6gica do dreto do itérprete- Abre-s, assim, um espago para a discussio da objetividade da norma e da neutralidade de seu Erlicador, e do papel do dieito como intrumento de conservagao ede teansformagao\ CO presente estado procurou, na medida do possivel,produzira sinte- se necessiria dessis perspectivas distintas. Sem deixar de reconhecer, ontudo, ge tanto a tépica quanto a critica —bem cone outras vari (Bes, que vio do sociologismo ao economicismo—sio questionamentos {o sistema legal, do saber juriico tradicional, e no propostas que pos- sam erradicd-lo ou desdenhi-lo, Rejetou-se, assim, o ceticismo tesrico de que o dieito, tanto na sua dimensio cientfica quanto na normativa, no seja mais do que um instrumento assegurador do starus quo € perpetuador de certasrelagbes de poder. Sem embargo da critica hist tc severa que se Ihe poss fazer. €inegavel a existneia de um amplo fespago onde o dieito pode ser no mero reflexo da realidad, mas uma forga capaz de conformé-La€ transforma, Tvestu-se também, grande esforgo na divulgasio do conhecimento tradicional, na exibigo dos métodos clssicos de intepretagdo na ex A ars Finda siege de Teodor Vee, Tp ol ripen 1951, vous, umben, Hk, Princpen derogation, 1963 rs Walgng Bike, Exitos bre dros dames. it 9.19.8: AOD Enter aj, La Citi come pea» dese YB; Edo Gs Ae Ener Resins stele spies ener del dro, 19 x Tins cgi Palo Boars. Car ded outacioal198, 9.04 es TT Mie Mile, Ii rice a den, 1988; Cas aria Cae oe Maser aan eri ica dl dec, =: Lis Ae Ware Eur A. Ru, eres doe 198 1 Ban ds pnp epson de inter casita. recsoconhscer ottelo posto, Tal peswupagao poder decores da diventnciade Umberto td ue pa vinkriepen sopra ‘import, antes de tudo, conhecé-ls e, eventualmente, saber mostrar su iors eo rane i Masa eu ees ienmina do quote ons antes peconcta J ge ag Oexamedo cso brasileiro revelaexis elacxsivem amplasgeneross pos sibiidaesexepeeasno text constacinal em vigor © texto wie we Segue procurafomece elementos, dentro do stoma uriico ge Por tan inert ear ceras presses xmas ealzandn ina doa cane Eu exo em busca de uma dogma jurdia autora e progress, Mas, de ‘ie’ da Peden as ras coals een, em ea. ma ie era cone ote mer dese) qu ta neni ura oeao ‘dconetan to us ecchee i nee pelos ups de contra’ (idee de sont asercaeale’) mas ou nes amp 1 Diogo de Fwtelo Morea Neo, Observer ao Proje de Consiugo da Cos de Sema Assembla Nacional Const, renga, 187 22. Hers Ling, Ira a nid, 194 11 02 possuem uma composi¢ao dplice, assim fotogrvel:prevéem um fato.e ‘ele aribuem uma determinada consequéneia jurdica Existe, por certo, na Consttuigdo certa quantidade de normas dessa natureza, prescrevendo comportamentose gerando direitos eobrigagGes. ‘Todavia, 0 Texto Constitucional também € sede de outs categoria de ‘normas, que sio as normas de organizasio. Ni se destinam elas adisci- plinarcondutas de individuos ou grupos; 8m um carter instrumental ¢ precedem, logicamente, a incidéncia das demais. E que. além de estraturarem organicamente o Estado, as regras dessa natureza discipli- ‘nam a prépia cago e aplicagdo das norms de conduta®, As noemas

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