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«O FENOMENO HUMANO» DO Pe TEILHARD DE CHARDIN REPLEXORS oniTICAS 1 Questies Preliminares 10 recurso a sinteses césmicas de inspiragio antro- pomérfica foi utilizada desde as épocas mais recuadas. Lem- bremo-nos das cosmogonias gregas, to presentes © vivas ainda, ao menos na sua dimensio postica. A ideia ce uma duragdo, pois, de um tempo irreversivel, de uma chistéria» do Mundo (matéria inclufda) foi a mais espontinea e antiga categoria para compreender o real empirico; cla resultava, directamente, da transposi¢io, para o plano das coisas, da constituico biolégica do homem e da estrutura histérica da sua personalidade, Nao teri assim razio © A. quando apresenta como recente a perspectiva de uma duracio do Universo (Outra coisa seria assinalar, tio s6, como contemporinea, uma visio global do mundo inspirada nos pontos de vista e método da Biologia, ¢ em oposicio ao predominio da Fisiea sobre 0 pensamento filosdfico, como a teve Bergson). Também a idcia de um pan-psiquismo, de um dentro fou alina das coisas, mais ou menos responsabilizado nos movimentos siderais © no actuar dos seres terrenos, € muito antiga, mesmo fora do campo religioso, e situada, >recisa- mente, no plano de uma sintese total em que 0 A. se coloca, 136 REVISTA DA FACULDADE DE LETRAS — FILOSOFIA 2—Nio ¢ todavia o problema da maior ow menor originalidade de O Fendmeno Humano que verdadeiramente interessa (Aligs, como veremos, 0 P Chardin dispée, nessa matéria, de um largo saldo positive). Mas o do esclare- cimento dessas nogdes complexas de evolucao e de pan psiguismo, fundamentals na concepeso teilhartiana, © exi gindo, a primeira de forma muito especial, un cuidadoso estudo histérico-filosdfico, antes de ser utilizeda, Na verdade, se ni houver a prudéncia de tais dilu- cidagées, correse o risco de tomar a nuvem por Juno, ot seja, no caso presente, de julgar que se aleancou a mais ampla facagem sobre 0 Mundo, quando se ob:eve sé uma nova fonte de ilusdes. E um facto que © P? Teilhard de Chardin, alegando pretender situarse num plano estritamente cientifico, se considera dispensado de abordar, e deliberadamente evita, fas questdes metafisicas, ou seja, em seu entender, 0 terreno préprio da Filosofia'. A seu tempo faremos a critica mais Gircunstanciada desta posigio. Bastard, por enquanto, esta objeccio fundamental: € que 0 problema da unificagio ou sintese dos conhecimentos cientilicas, a passagem das cig: cias para a Cigncia, assim como os correspoadentes pro: blemas metodologicos sio filoséficos por natureza Por isso repetimos: nfo tendo esclarecido suficiente- mente aquelas nordes, em particular a de evolucdo, sujeitouse 0 A. a0 grave risco de graves enganos. Tentaremos ver se foi ou ndo impunemente que o fez, —Certamente se mio esperaré que nos entreguemos aqui as andlises delicadas © morosas que para o efeito seriam necessarias; mas exigi-se-4 que digames o preciso para definir uma posigao critica. Para tanto se nos afigura serd bastante assinalar os pontos fundamentais do itinerario a percorrer em tal investigacao hist6rico-filosifica. Assim Faremos, 2 Tollhard do Chatdia, Le Phénoniéne Human, Pats, Bas do Seu, 1962, pips. 21 e segs. As ctagoessepuintesreferemse x ena eligi, (0 sFENOMENO HUMANO» 137 4—Em primeiro lugar deveria atentarse no facto de as antigas cosmogonias terem sido pessimistas e degressivas, © procurar uma explicacio para 0 caso, Diremos, muito resumidamente, 0 que se nos oferece a este respeito: 4) a explicacao causal (a mais espontinea, inteligivel e fecunda forma de entender a existéncia das coisss que se dio 4 nossa experiéncia, mau grado as dificuldsdes © defeitos que apresenta) valoriza necessariamente as :ausas em relagdo aos efeitos; 0 que existe, existe por forga das suas causas; 6) logo (no plano espontineamente éntico ¢ teraporal em que a questo ¢ posta) as causas deverdo ser mais reals do que os seus efeitos; ¢) todavia, so os efeitos de causas ocultas cue se nos patenteiam irrecusavelmente na experiéncia; ¢ est2 mis. rio, muito antes de levar a perplexidade de indole gnosio- ogica, impos uma concepetio pessimisia de ordem moral — no inicio dos tempos teria havide uma plenitude de mani festacao do Ser; depois, certamente por culpa do homem (visto que ¢ ele a sofrerJhe as consequéncias), o Ser, gerador dos seres, ter-seia ocultado aos seus olhos; d) © por tal motivo a salvagio dos humanos tinha sempre, neste contexto, 0 sentide de uma expiagdo ¢ de um regresso, 5—Deveria repararse seguidamente que a passagem das cosmogonias para as cosmologias, que marcou, na Grécia, © nascimento da filosofia, consistiu num esforco orientado rho sentido de uma racionalizagao (ou seja, de uma unifi cago) da maltiplicidade e da contingéncia dos seres captados nha experiéncia empirica; e que foi por virtude desse eslorgo que @ ideia de duragdo foi abandonada. Continuou a pensar-se em causalidade, mas numa causalidade situada agora num tempo que deixou de ser irreversivel, que se espacializou, que passou a ser mera dimensio do movimento, e a permitir, por iss0, a repelicio. Poderiamos em sintese dizer que essa passagem con: sistiu na formagdo de uma nova ideia explicativa do Universo 138 REVISTA DA PACULDADE DE LETRAS — FILOSOFIA —a ideia de Natureza — que se concebia como’ uma entidade neutrat relativamente a todos os grandes planos énticos: nada tinka da divindade dos deuses; também nio era humana, por ser impessoal; ndo sendo animica, separava-se da esfera dos seres vivos; e distinguiase ainda das coisas materiais por ser abstracta ou ideal‘, Certamente que a ideia de Natureza possuia determinantes positivas, embora seja duvi- doso que, logo @ nascenca, todas elas tenham sido clara mente vistas. Como quer que fosse, e com maior ou menor cumplicidade dos geémetras, ela implicou uma valorizagio do espaco © das suas condigdes de inteligibilidade, e cons- titulu a primeira tentativa coerente e determinada de unifi- cacao do real 6—Seguidamente se deveriam apontar os momentos mais radicais e opostos da nova concepgio cosmoldgica que despontava: 0 de Parménides (0 Ser é 0 Nao-Ser ndo é, ogo, 0 maltiplo, o movimento, a evolugéo s8o ilusérios) € 0 de Heraclito (a salvagio de um movimento inelutével devorador esté no Logos, na lel, na harmonia dos contrévios, no elemoxetorno em que finalmente se aquieta e define, face ao abismo de uma temporalidade irreversivel e sem limites), 7-—Mostrar por Gltime como o Cristianismo, ou, mais precisamente, a Incarnagio de Cristo, inverteu 0 sentido da duragéo do Mundo, que passou de regressiva a progressiva, mas sem que por esse facto se tenha alterado a posicio relativa das perspectivas cosmogénica © cosmolégica, salvo no que se refere & possibilidade de uma explicagio finalista fem que terlam Ingar a Providéncia divina e a liberdade dos homens (Notese que 0 facto histérico da Tnearnacio, fou seja, o facto de um homem se ter intitulade Deus ¢ 9 Ve. 0, Gigon, Le Grands Probldmes de 1a Philosophie Antique, Paris, 1961. 0 «FENOMENO HUMANO» 139 ter dado origem a uma religifo que tem disposto até hoje de uma vigencia sociolégica intensa ¢ universal, possui um significado cultural objectivo que nfo depende das convic- des de cada um). 8—Estes teriam sido, em nosso critério, temas prévios de reflexio para quem pretendesse revalorizar 0 tempo como, dimenséo fundamental do que existe. Eu sei que, dentro de uma perspectiva evolucionista, estas oscilagdes, este voltar atras, quadram mal e no sio muito cémodos. Todavia 0 preco da verdade nao deve regatear-se, até porque ha sempre © risco de pagar muito caras economias dessas. 9—Mas seri a altura de perguntar o que haveré de caracteristico ou original em O Fenémeno Humano, se & verdade que a ideia de duragao do Universo ja vem dos ‘gregos, se a ideia de progresso histérico masceu com 0 Cristianismo, se a partir de entio tais nogdes se nfo apaga- ram munca inteiramente no horizonte cultural da Europa, nem mesmo no espirito de quem, como Kant, tio longe levou a concepcio de uma filosofia inspirada, e interessada no conhecimento fisieomatemético’, ¢ se é verdade, inclusive, que ja nos nossos dias, outros pensadores (Bergson designa- damente), foram também buscar & Biologia a sugestio de uma éptica mais ampla e profunda para aprender a reali dade. (Também « nogéo de um pan-psiguismo, & de génese helénica, enquanto categoria filoséfica, e conheceu aliés, em especial com Plotino, uma elaboracéo extraordindsiamente profunda). 10—Segundo julgamos, e em sintese, so os seguintes os pontos mais importante do pensamento que o P Teilhard 3B, Kant, A Teora Envelece? (Ia «Koenigaborgscen Frag un Anzei= ipungmachrichtens, Vid G. Paseal, Le Pensée de Kant, Pais, 57, pig. 16h 140 REVISTA DA FACULDADE DE LETRAS —FILOSOFIA de Chardin desenvolve nesta sua obra notavel, e acerca de cuja originalidade parece nao ser possivel a divide a) Ter apresentado a perspectiva evolucionista como uma condicfo da inteligibilidade do real exigida contempo- raneamente pela ciéncia no seu desenvolvimento. +) Ter integrado, na linha da evolugio, a propria cosmovisiio cientifica, a propria cultura, estabelecendo, con- sequentemente, sugestivos mas discutiveis paralelos entre a hereditariedede, por um lado, e a tradigio, a accio peda gogica e a invencio técnica ¢ artistica, por outro‘ ¢). Ter apresentado o Cristianisme como um fenémeno imtegrado na evolucio césmica, ¢ susceptivel de revelar, em plano cientifico, o ponto Omega ou remate dessa mesma evolugio—a Hiper Pessoa de Cristo? (Esta alianga entre seu entender, tem, entre ouiras, a consequéncia de desva- lorizar a Filosofia. E talvez seja essa desvalorizagio a prin- cipal responsivel pelas lacunas mais graves da obra). 11—Nama segunda linha de importancia, e na sequen: cia ja, a0 que supomos, da perspectiva evolucionista asst mida, deverio assinalarse ainda as seguintes teses: 4) [acto de se verificar, num ponto qualquer do Universo, determinado fenémeno, é prova bastante para se + Va Le Pidnomine Human, pigs 280 © sep% Als, so muito fequentes, 20 longo da obra, as incrpretagSes bioléiess da vide soi, de acordo com a prevengéo fitn ma dverdncia. pelo “Ac.«Preeminenle Fignifcagio do homem na Natura, e natrezn orginica a Humanidade: dds hipsteses que podemos tentar reps de ince, mas sem as guais fu no vejo como se hice poder dar uma represtnagzo total e coerene 60 P. Teilhard de Chardia, O Fendneno Hunan, tad. ott de Léon Bourdon Joxé Terra, Porto, Livasia Tavares Martins, 1965, ig. 3. As Tutus tranterigdes orto fetus dena tradusto; etbors pesando, 4 nosso vet, por excesivamente literal —o alc lev, por ve2es a0 empreno de fexpresbes © censugdes menos respetadoras da indole da nos lngta (iss, 9 lo de exemple, seguinte fare, na pina 107: 4c) Os ellos de Jonges, que sparentemente suprimem, ele») —afigurse-nas de. intica conflanga, © mesmo escrupulos, na fidelidade ao pensamento da A. FOP. it, pigs. 334 6 95 0 «FENOMENO HUMANOs 141 concluir que toda a tessitura do mesmo Universo possuiu, desde sempre, em toda a sua extensio, as caracteristicas reveladas pelo relerido fenémeno, embora de forma latente. (De acordo com esta tese, © fenémeno humano revela um psiquismo universal’) 5) O dinamismo energético do Universo desenvolve-se da seguinte forma: enrolandose sobre si mesmo e formando esferas ou corpisculos no interior dos quais a energia se potencia a si mesma e vai progressivamente aumentando de intensidade, e irradiando ainda para o exterior a partir desses miicleos fechados ¢) © aumento de intensidade energética no interior daquelas globalidades conduz a um estado de «saturagios onde bruscamente podem ocorrer mutagdes qualitativas da mesma energia'. © 0b. ala pig. 82 © Ob cin pig 62 © OB. cin pigs Oe sas Ac bastante complexa: cemerando por afimar que tods a enersia € pighica (que sentido poderd er a afm, admitinda mesmo que elt resulta do principio da unidade do Mundo?) sisingue depois entre um energi tan sgenelal~ que € iesdhote, embora <6 no plano de complexidade Sntca ‘que pertnga elemento energeico-e uma eergia radial ox centre, ‘ue faz aumentar a complesidade do corptsculo (por aumento dt intensidade fenergtiea © incorporao de elementos viaahos), © o impale para a entess fwabelce sepidamente ene amber, uma isi de proporsionaliade inverse © tomo possuira sixina radiagio e a minima nega tadil enquanto {que © homem posits a mixin enegia radial ¢ 4 minima eneeia tangeacil (als energia tangerciat”aiesia ow simples, digamos assim, pols sta pecesio Sisinguir sinds entce extn form inmate, einima no homem, uma forma medita ob struments! caracterzadamente humana): intro ‘aadose, por imo, sobre quat serk x forms de enogin prevlente na fexpansio Jo Univesa, sobre se chaverd” um limite © sm term deingos pats o valor elementar © para s soma tlah dis energie radia detemvovidas no decurso aa tansfermacios, sobre ses rewltame das enersis rade rio exard sujet a deagrezarse um dit © a represar te formis iniciis de acordo com as eigéncias da Entropia» — desde logo dedhts que las problemas sé. podetio soluconarse se for levada em conta a exstéacis 8e um polo superior do Mundo—0 powto. Omepn Apesar den compleridade, pensamos ter reledo 0 esencll ¢ 0 que mais interes 2 uma gendsin parspeciva evolusionista, Adiante. volte- remot a0 aSiUnlO «© anulisafemos oF tesiantes aspector da questo, M42. REVISTA DA FACULDADE DE LETRAS—FILOSOFIA 4) A uma progressiva complexidade de organizacio da matéria corresponde um grau progressive de psiquismo €) Tal complexidade nao pode orientarse porém no sentido de uma eespecializacao», ou soja, no sentida de uma capacidade de realizacio eficaz mas limitada®. II Anilisy da perspectiva evolucionista tellhardiana 12—Nio podemos afirmar dogmaticamente a evolucio. (J nao serie relacionar, mas inverter as posigées da Ciéncia fe da Religie se passassemos a ter £é nas verdades cienti- ficas ¢ a demonstrar as religiosas). Nem bastaré dizer que ‘a Biologia se constituiu finalmente como ciéncia auténoma, libertando-se da tirania dos conceitos bésicos e dos procedi- mentos metédicos da Fisica e da Quimica, ¢ acrescentar que deveré ser ela, por mais evoluida, mais complexa, de objecto mais rico, a absorver as primeiras. Tio pouco sera suficiente registar o facto de que no mundo cientilico de hoje a perspectiva evolucionista, caracteristica da Biologia, invadin o terreno das outras ciéncias. Ou mesmo considerar fa ideia de evolucio como um postulado necessério para a compreensio do Universo. Serd necessdvio ir mais Ionge e dilucidar as arduas questées epistemologicas que a propé- sito se levartam, 13—B nio falamos nos problemas gnosiolégicos de fundo que atingem o conhecimento em geral e cuja solugio = 86 ela — poderd valorizar, em definitivo, 0 saber cientifico. © Ob, eh. pies 56.6 sees Ob. ole pigh 170 e 13. 0 «FENOMENO HUMANO» 13 Referimomnos apenas aos problemas metodolégicos da Bio: logia que se centram na questio da passagem de uma explicacdo causal para uma explicacgo final, 14—Teilhard de Chardin ¢ bastante lacénico ¢ um tanto obscuro neste particular. O facto poder imputar-se a sua formacdo ce investigador especializado, mas nao deixa de comprometer a consisténcia da sintese global que pre- tende oferecer-nos, Comecemos pela Adverténcia. Previnenos 0 A. de que do é sua intengio invadir © campo da Metafisica nem da ‘Teologia, mas manter-se nos limites do conhecimento cientifico; avisanas, todavie, de que deseja realizar uma sintese cien- tifica global centtada no Homem. E ja agui, como vimos, um ponto muito importante a esclarecer: seri vidvel tal pretensfio? Ser possivel ensaiar uma sintese global sem invadic, ipso facto, © terreno da Filosofia? E, no caso afir- mativo, qual podera ser o sentido gnosiologico de uma sintese do conheeimente cientifice? ‘© problema ndo escapa ao P* Chardin, mas parecem pouco eficazes es elementos que adiantou para o retirar do caminho, e que sto, em esséncia, os seguintes: @) a Cigncia movese no plano do fendmeno, a Meta- fisiea no plano do «ser profundo»; 4) uma sintese no plano da Ciéncia deve visar 0 sfenémeno inteiro», ou seja (ao que supomos), 0 mundo inteiro da experincia que indefinidamente se espraia pelas dimensdes do espago e do tempo. 15—Apontemos, sé esquematicamente, pois de outra forma nos enzeéariamos em infindéveis problemas gnosio- logicos, as objecsdes mais sérias que hd a fazer a esta posigao: 1a) Nao se diz o que € fendmeno; ¢ a concepcio de fendmeno global aumenta ainda mais as interrogacses e dhividas sobre 0 sentido teilhardiano deste conceito basico, E € grave sobreudo a completa auséncia de uma reflexio sobre a perspectiva fenomenologica husserliana, Daqui resul- li REVISTA DA FACULDADE DE LETRAS —FILOSOPIA tam, @ nosso ver, ambiguidades que contaminam toda a obra, designadamente, a conviccdo inicial de uma sintese cientifica poder ser a introdugio a uma explicagio do mundo, © 0 procedimento metodologico aberrante de se apresentarem hipéteses como se fossem dados fenoménicos b) A distingzo que 0 A. pretende fazer entre a «apa: rente filosofia» de uma interpretagio cientifica geral do Universo e a filosofia verdadeira é particularmente preja dicial pelo exemplo a que recorre, Convenhamos em que suma Hiperlisica no é ainda uma Metalisicay; mas per guntemos; passarse:i o mesmo com uma «Hiperbiologian que tenha integrado em si a Psicologia e a Sociologia e se abalance a abarcar, no seu dominio, todo 0 espirito do Homem? 16—E todavia no Pralogo, sob o breve mas auspicioso titulo de Ver, que o Pe Chardin coneretiza @ sua posigio metodolégica, Comeca por falar numa forma previlegiada de conhecimento— ver e no objecto que Ihe corresponde, © fendmeno, Quando tenta porém, caracterizar essa visio, servese primeiro de comparagies bioldgicas pouco precisas (poderse-ia dizer que toda a vida consiste em vers, «ver ou perecer», etc.) e depois—, referindase de relance ao delicado ¢ debatidissimo problema gnosiolégico da matua determinacio do sujeito © do objecto, que deliberadamente situa s6 no plano cientifico —, logo 0 aproveita para inculear uma concepcio bioldgica de conhecimento que imediatamente pretende confirmar, mercé da inesperada e ilegitima trans- 2 sfiem observado, ssa embora mum nico ponte, um fendmeno fem necestviamste em vite da anidade fundamental do Mundo, um vale © rales ubigsitis, Ob. cit, pig. 35. E alver mais expicitmente ainda Una represenugio. simplifinds, mis estrtursl, da vida terest em evolu. Umit visio euja verdade jorre por mero e iresiivel efeito de omosenelade ¢ de cocréneia, Nem pormenorer scessriog, nem discuss, ‘Ainda sempre uma perspecva a ver e a aceitar~—ou a ana ver. Bis 0 ‘que sme proponto deseavolver no Jecursg dos patigiafos gue se. segvem Mew, pig. $8 (0s sublinhados 530 nos OB, cis pbs 25 © sexs 0 «FENOMENO HUMANO» M45 matagze do acto humano de ver em fenémeno @ ver («Nio 6 necessario ser-se homem para aperceber os objectos © as Forgas & sua volta. Todos os animais se encontram neste caso, tal como nés proprios. Mas ¢ proprio do Homem ocupar na Natureza uma posigdo tal que esta convergencia de linhas no & apenas visual mas estrutural. As paginas que se seguem mada mais fario do que verificar e analisar este fenémeno. Em virtude da qualidade ¢ das propriedades biolégicas do Pensamento, encontramo-nos colocados num ponto singular, num n6, que domina a fraccéo inteira do Cosmo actualmente aberta & nossa experiéncia. Centro de perspectiva o Hemem é, a0 mesmo tempo, centro de cons- trucdo do Universo. Tanto por conventéncia como por neces: sidade & pois a ele que, finalmente, toda a Ciéncia tem de ser referida»). ‘Surgenos asim 0 fendmena hnmano identificado, no fundo, com 0 conhecimento do homem, conhecimento global porque aberto para todo 0 espago, para todo o tempo pas: sado, © até, xsimétricamente» ® para o futuro, Por conse quéncia, 0 conhecimento do fenémeno humano apresenia-se como sende © conhecimnento do conhecimento globel do homem, ou seja, como sintese total das ciéncias, nao s6 no sentido de s todas abragar, mas global também por estar aberta para o futuro. E assim, também por esta razio, a perspectiva evclucionista se justificaria, 17—Mas convird demorarmos um pouco mais neste onto. De todos 9s problemas gnosiolégicos que seria neces sirio abordar para esclarecer © conceito de evolugio © para justificar a primazia da perspectiva evolucionista no conhe- cimento, um inieo—o fundamental alidés—nos propusemos tratar, em fungao da obra do P.* Chardin, como deiximos dito ja: 0 da passagem de uma explicagio pelas causas para uma compreensio pelos fins, que & caracterfstica da Biologia, e que o nosso A. deveria ter dilucidado exaustiva Ob. ety 4. 30. 146 REVISTA DA FACULDADE DE LETRAS ~FILOSOFIA ‘mente, dada a importancia nuclear que ele possui no seu pensamento. Ora, a posicdo gnosiolégica assumida no Prélogo de © Fenémeno Humano & a seguinte, conforme comesamos a verificar @) Num primeiro momento identifica-se conhecimento 4 visio; visio a consciéncia; consciéncia a unificagdo; ©, Finalmente, snificagao a ser. Em resumo, pois, e num pri- meiro momento, conhecer é ser Nao vamos tratar agora da legitimidade de tais iden- tificagdes ou correspondéncias, porque isso nos levaria longe demais. Limitemonos a observar que, a0 menos na aparéncia, Go entrou ainda em cena a perspectiva evolucionista, Tudo se passa num plano estético, quer na experiéncia externa (a visde dé-nos uma simultaneidade de coisas no espaco) quer na experiéncia interna (a conscigneia € actual; seja pela sua fungio «presentificadoras, seja pela misteriosa capa- cidade que tem de se renovar, emerge da corrente do tempo fe assiste & sua passagem), quer ainda na concepcio ontol6- gica (a estrutura do Ser é unitéria), b) Tocavia, num segundo momento, este quadro esti fico comega a animar-se: «Ver mais € ser mais»; logo, devemos. procurar a maxima visio para possuirmos 0 méximo ser. Mas, como conseguir a visio maxima? Aqui uma subtil ¢ radical mudenca: ja no € a visio que ilumina © unitica © Ser; é 0 fendmeno maximo, o fendmeno global, que baliza © solicita uma visio maxima ®, E yerdade que esse fenémeno MB avileme que esta sfmagso bo ever ser ented om fermos idealistae 2B ality veemente o apelo do P. Tellhard nes sentido: «A. verda+ sir Fisica € ayuela que conseguir um ola inegrar 9 Homem total numa repesenlagio covrenle do Mundo, Oxalt eu posta fazar sentir nea abet ve esa tenlaa ¢ possiel e que dela depends, para quem quer © sabe ie wo fundo das coisis, a conservagio em és roesmos da coragem © , ile ig. 189. Pela hominizaglo, apessr das iisigaficnciae do sat anstimicn, tums nova face comega. A Terra eminda de pele, Minor ainda, encoatre ua alas, lem. pdg. 191 © 0 "pensamento do P* T. de Chardin parecenos pouso lato neste onto. Nio deia efestiamente de ceconteer que a evaligic, 20 aliogir o plano do Homem, se teansmoda em progresso ¢ pasta a comstuir ua sctivigade consiente, intelignte e live. Ma preso taver a0 postulido de uma contnuidate, ou posuido daquele entusasme postice qu & um dos tragos mis admicévels da sua personalidad, acetus, por vezes, uti. per rmanéncia do. proceso. evalulive no dominio sa Histéria que A origem slgumas perlendades. Pensamos que a passagem tramsritt a seguir ists e confirma a nossa observasior «No Homets, consierado como grupo ooligleo, probgam-se 20 mesmo tempo: = atsceio sexta! com a kit 4 reprodugio; a tendéncia para a hla pela vids, com as stax somprtigies, & necessidade de se slimentar, com 0 goxo de aprecadse © devorar; = utiosidade de ver, com 0 praaet da invesigagSo: o deejo de apronimagto situa para viver em soviedade... Ceds unm deste bras atravessa cada tun de nds, wndo de mais balto © subinda mais alto do que nis, de modo que, retvameste 2 cada uma delay poder ser rscomporta ums historia (@ nfo a menos verdadeit!) de toda 4 evoligio: evlupao do. amon, fevolugio da guera, evouglo da pesquss, evalugfo do sentido. social ‘Mas também, sada ume dela, pressamente por ser evolutva, se metamor: © «FENOMENO HUMANO» 155 31—Na verdade, 0 Homem, liberto da tirania de uma vontade anénima e obscura de viver, convertide em centro pessoal de opgdes éticas, pode, como admite melancdli mente 0 Ps Chardin®, perder 0 gosto pela aventura césmica que 6 a sua existéncia e a ela renunciar, fazendo abortar dessa forma, ingloriamente, a prodigiosa ascen¢o do Uni verso (Aliés, a mera remiincia & personalizagao, por virtude de uma organizacio social totalitaria aceite como valor abso- Juto, pode conduzir aa mesmo desiderato)®. E nem a atracgo, jd presente, da Hiper-Pessoa que aguarda, no termo do seu longo paregrinar, um Universo Finalmente homini- zado, pode forcar os homens a viver e a progredir (Esta, fovsis A pasiagem do rellexio, E dai cla parte novamens, enriguesida de possibilidades, de. cows © de fevundigader ovat. A mesma coisa, num fio seid, Mas também oma coisa inteiramente dlersa. A figura que ‘= transform ao mudar de espago © de dinensbes... A. descontinudade, Fepetimos, sobre o coatings, A mutagio sobre a evolucson. Ob. ci, pg. 187 ‘Se atendermos, por ouiro lado, que 0 P* Chardin dedara, logo ro infio de O Fencneny Humana, quende trata da a linka de orientac3o que o ditige, alias solidarias entre si. Como entend@las? Como geradas pela propria evolugao? Nao se compreenile como um agente inconsciente ¢ incapaz de se representat fins possa autodeterminarse para seguir’ um caminho de aperfeigoamemto. Como estando presentes: desde 0 inicio do proceso evolutiva? Isso roubaria & evolucio: © seu caracteristico poder criador e melhor legitimaria a hipé= tese de um movimento circular ou eterno retorno. Poderé dizerse, por fim, que as estruturas © o sentido da evolucio se determinam a posteriori ¢ constituem a ossatura intel givel de um proceso conereto que foi como foi mas poderia ter sido diverso? Esta, sem davida, a posicao mai fe aquela em que o Ps Chardin se teri colocado de prefe- réncia, A primeira vista, haveria aqui um paralelismo com) fas leis da Natureza: também clas pretendem constituir 0 tecido inteligivel de uma fenomenalidade factual, Hé todavia diferengas profundas. As leis naturais so prospectivas por exceléncia: necessirias, ou altamente proviveis, projectam-se no futuro indefinidamente e possibilitam uma eficaz actuacio técnica, Em contrapartida, as «leis» evolutivas nada mais permitem do que uma problemitica compreensio do pasado. Seré portanto aventurosa e sem fundamento qualquer pro- jecctio «simétricay sua no tempo vindouro; pelo contratio, acientifica» 188 REVISTA DA FACULDADE DE LETRAS —FILOSOFIA a lige a tirar seria a de que se nfo podem fazer previsies porque o futuro nos traré sempre algo de novo; ¢ nem Sequer para a eventual permanéncia de certas formalidades ow estruturas haveria recurso, dada a sua transposi¢éo para contextos inéditos, Portanto, uma sé conclusio segura a tirar: a de que nem o pasado nem o presente facultam imagens artecipadas do tempo a haver, sendo, por isto, sua negayio 0 tinico comportamento com interesse pros- pectivo, Reparese como as atitudes nibilista ¢ revolucionaria coincidem neste ponto: ambas se propdem destruir © que existe, ou pela obsessiva exigencia de uma perfeicio impos- sivel, ow pelo cego ¢ impaciente amor do futuro. Mas essa coincidéncis apoiase num equivoco: é que, nfo o esque. samos, tudo o que se disse respeita ao plano da evolucso e se situa no interior do ritmo lentissimo que the é préprio, relativamen:e ao qual a frenética gesticulago humana seria impotente e ridicula. $6 no palco da Histéria os actos dos homens sio significativos © operantes; mas ai, como observmos, ja nao podemos falar em evolucio pois estamos no dominio do progresso; © no vem a0 caso saber se 0 progresso p-olonga © coroa a evolugio, ou se caminha sobre ela a um ritmo que Ihe paraliza, na prética, a marcha imperceptivel; interessa, sim, insistir em que o progress 86 pode resultar de uma acco livre ¢ inteligente, estabele- cida em fungao de valores positivamente determinados” A forma como esta estrotra ds acyS0 livre © individual do homem se loses na Hila & como se compreenders, matérit de grandes dliiuldades e problemas— ZBm que termos se articlatt, numa nice links ezniral, os vitor progress corespondentes os grandes planos da active ade humana? Através das comunidades socioldgicas slobas, das naebes? Dor ciclo de Civilizgso ¢ de Cultuc? Como se realizri efetvamente o progissio? Por vinude ds obra os grandes ginios? Du estrutra ou orgunizagia socal? Das. polémiss © «FENOMENO HUMANO» 139 35—As notes que acabimos de analisar eriticamente constituem, a nesso ver, 9 niicleo das teorias expostas em © Fenémeno Humano. Tudo o mais que se dissesse, € as ‘objecgdes ainda possiveis, limitar-se-iam a glosar ou desen- volver 0 que ficou tatado. ‘Mas no queremos dar estas notas por findas sem uma. palavra de admiragio e simpatia pelo pensador vigoroso ¢ pelo visiondrio audaz que foi o Ps Teilhard de Chardin. E também pela sua ardente f& cristae pelo espirito de humildade de qse deu sobejas provas. As paginas que dedica, nesta sua obra notdvel, as dimensoes cosmicas do Amor, ¢ & salvagio personalista que eusionus? Merst do. jogo alternuso de um exforgo de universalist de um esforgo de eilerenciagio? Qual o valor trading pars © progress? Havert indices objectives de peterénia para a programagio do. foto? Ou dependerd a marcha vin Hist de opgses teas que consigam incarmar mo poder polio? ‘Az inerogapSee podetlam prolongar-se ainda mais. Mas bastam como sondagem da compleidide do assunto, Retervamos naturamente 9 set esd pasa melhor oportindade. Gostalamos todavia de ania desde jt als ras observagSen que poderio ser ste por coatdbuleon, eventualmente, para contatiae equiocos muito generalizados 1) © patino axielsgico da Humanidade—-constiuido mere® ds dscoberts, eo determinados momentos da Hlséra, de novos valores, © ds sus incorporagho socal—nfo 6 liquide, nem firme; nfo & a segura plats forma de onde s posa salar para mais allo; © negativo da sua imagem foise consituindo en contraponto; a renincia e voluatria. desuigio de flgeotes pudtSes dts 46 condua humana uma mligidade cortexpon- dente (66.0 male pereita dos Anjos podera ter sido o Principe das Trevas..) © prosresso ago cree, automitisamente, por adiefe, nem boldsicments, por sigesti; € sempre uma esclada indus € isepure, 1) A imagem proxi e coneeta do progreso tem « figura de lum cero tipo ou mcdelo humano dateral cuja realaagio exige 2 feidade om mesmo evla a4 coerénea inten e a modifiagio de ums sitwagto dls facto, natural, svat © colra ©) Ese modo deve reflect todn a experénca hisica © com templar toda a conpleidade das eseuuras exstencils € socials 10 REVISTA DA FACULDADE DE LETRAS — FILOSOFIA aponta & Humanidade sdo invulgarmente sugestivas © muito aciuais. Corstituem leitura obrigatéria para todos aqueles que se preo:upam com o préprio futuro, mas se inguietam também con 0 destino dos seus companheiros de peregti: acto. Eduardo Abranches de Soveral

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