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BRASIL/BRASIS Paulo Herkenhoff HA um Brasil. Ha muitos Brasis. Ha dois Brasis. E nesse territério — UNITARIO e mil-ti-plo — que se faz(em) uma/ varias arte(s), Un “Brasil” acaba sendo um ponto de vista, do qual se olha o mundo. “Antes de os portugueses terem descoberto o Brasil, o Brasil tinha descober- toa felicidade” (Oswald de Andrade, 1928). A cultura que se faria no Brasil — veremos — seria obra de artistas antropdfagos, Nada mais simples que explicar 0 Brasil (ou talvez mais complexe). Quase como uma tautologia, pode-se dizer que o Brasil existe porque ha no Brasil um certo desejo de Brasil, como se unificado por alguma dimensio consensual desse pais miltiplo, Talvez por isso, no catalogo da mostra “Information” no MOMA em 1970 (mas também porque era o apogeu da ditadura militar de 1964), nao havia no comportamento de artistas de alta envergadura uma necessidade de representar o Brasil (simbélica ou ins- titucionalmente), como declararam, I Iélio Oiticica (“Fam not here representing Brazil; or representing anything else”) ¢ Cildo Meireles ¢“Tam here, in this exhibition, to defend neither career nor any nationality”). E por ai que a escritora Clarice Lispector, numa crénica, escreve “I belong to Brazil in the sense that I am Brazilian”, Nisso, Lispector quase se inscreve naquela categoria de “explicadores do Brasil” (Sérgio Buarque de Holanda, Lévi-Strauss ou Gilberto Preyre, e, na mitsi- ca, Cactano Veloso). Ja se disse que 0 Brasil adquire coesio através da lin gua, da religido, da psicologia social ou da capacidade de miscigenagao do colonizador portugués, da misica ou até mesmo do futebol.A moeda é um espaco de coesao social com o qual trabalharam os artistas Cildo Mcireles (operando no proprio sistema de circulag3o como um circuito ideolégico), Waltercio Caldas e Jac Leirner (numa séric, a artista joga com a homofonia das palavras“cem” = 100 e“sem” = falta, despossuido), Meireles criou uma cédula de Zero Cruzeiro (entio o padrdo monetério do Brasil), ostentando imagens de um indio ¢ de um interno em hospital psiquidtrico naqueles espagos onde as cédulas exibem imagens de reis, presidentes ¢ herdis. Reu- nindo 0 Blogiod loucura de Erasmo € 0 elogio ao bom selvagem de J. J. Rousseau, 359, ad Meireles fala de um grau zero da razao, que no Brasil sao também grupos aos quais a sociedade parece negar qualquer valor. Em 1924, 0 poeta Oswald de Andrade afirmava-se “contra a copia, pela invengio e pela surpresa”, A arte brasileira talvez seja como 0 brasileiro é: Macunaima (o personagem do romance raps6dico de Mario de Andrade), isto 6, talvez seja daquela classe dos herdis sem nenhum caréter, que aqui diriamos ser uma forma criticamente problematizadora de discutir sua especificidade a partir do grau zero da formacio de sua identidade cultural. Num jogo de palayras cm que o dilema shakespeareano se confunde com o nome de im- portante grupo indigena do Brasil, Oswald de Andrade declara sinteticamen- te cm scu Manifesto de 1928: “So a antropofagia nos unc. Socialmente, Eco- nomicamente, Filosoficamente. Tupi, or not tupi, that is the question”. Hg nuitos Brasis, © Brasil & um pais de telespectadores analfabetos. O Brasil inventa a discus foi discutida em 1966 pelo critico Mario Pedrosa, com motivos, argumentos, substrates filos6ficos semelhantes aos que ocupariam o pensamento europeu io © o termo “arte pds-moderna” (a condigao pos-moderna enorte-americano nos anos 1970 ¢ 1980). Pedrosa, no Rio de Janeiro, falava no gueto — isso equivale a dizer que nao falava para o mundo, Estranhamente, 0 Brasil inicia e supera a discussao sobre o pés-moderno antes da Europa, mas sobretudo antes que vastos modernidade com a alfabetizagio. egmentos de sua populagao atingissem a Ha uma arte implicita do “Brasil, pais do futuro”. E uma arte de desenga- nos, O século XX viu distintos fluxos da arte que traziam certa crenga no progresso e antecipagao do futuro, Necessidade de realizagio quase messianica do mito e das promessas de futuro: Futurismo, Descnvolvimentismo, Pri- meiro Mundismo. A etapa inicial do Modernismo nesses trépicos, scm uma adequada compreensio do programa dos movimentos europeus, ingenuamente se autoproclamava “futurista” (enquanto em Buenos Aires, Borges ja falava da inaclequagao desse movimento como modelo). Nos dois Brasis, 0 pals que experimentava uma incipiente industrializagao ameacava o pais rural com promessas estéticas e taticas de choque futurista ¢ escindalos dadafstas. E do fundo do mato-virgem que nasce a Antropofagia, ndo como dieta alimentar ou compensagio por falta de proteinas, mas como programa de absor¢ao ten- sae criativa dos valores do Outro transformada em cnergia prépria, confron- tada com os valores proprios e fundida em linguagem, O nosso futuro — ea 360 Arte contemporanca brasileira identidade que se constitufa simbolicamente — implicava inventar um passado proprio que se projetasse na cultura, A maquina de guerra futurista se trans- formava em tacape tapuia. Depois, na Guerra Fria, 0 desenvolvimentismo tornou-se a nova promessa, contraposta as investidas da utopia socialista. Nelson Rockefeller versus Stalin: Bienal de Sdo Paulo e Museus de Arte Moderna no Rio e Sao Paulo (com pr senga de obras de Pollock ou Rothko, {cones de individualidade em arte) versus programas do partido comunista (como os Clubes de Gravura). Bauhaus e Ulm ofereciam o modelo estético para a sociedade que prometia realizar uma modernidade, A abstragao gcométrica, mais para o cilculo da arte conercta de Max Bill do que os riscos ¢ sonhos da pequena utopia gréfica soviética, via Mé- xico, Na justa medida e pressa, construiu-se Brasilia, a cidade ideal. O urbanis mo ¢ a arquitetura monumental erigiriam a cidade justa, piedosa crenga no estilo moderno como argamassa da utopia social. Haveria esperanga porque a cidade cra moderna. FE 0 paradoxo de uma cidade nova sem arte abstrata ou construtiva, por gosto de seu arquiteto, O Brasil vive novas dimensdes da rela- Gao espago/ tempo. A aceleragao do tempo (a industrializagao e 0 Plano de Me- tas do governo Juscelino Kubitschek: crescer cingiienta anos em cinco) ¢ o ores cimento sem limite (“Sio Paulo nio pode parar” e a marcha brasileira para 0 Oeste com Brasilia). Nesse quadro, a crise do Coneretismo e sua solugo em Neoconcretismo revelam os limites do modelo estético “progressista”, que 0 gramsciano Waldemar Cordeiro havia se dedicado a construir. Com grande preciso, Barrio compreendeu que os materiais condi cionavam a linguagem dos artistas dos paises mais pobres, Em manifesto, pro- pSe um novo yocabulario de materiais (lixo, dejetos do corpo ete.) que pos- sibilitasse potente expresso. Em plena ditadura, fez trouxas ensangiientadas, que ambiguamente se pareciam com corpos mutilados, e as distribuiu em lugares ermos, disparando reagies populares. Hoje, como ¢ tipico dos pafses do'lerceiro Mundo ou de uma arte que busca pairar sobre as tensdes do teci- do social, o ufanismo neoliberal proclama a realizagao de “padrécs do Primeiro Mundo”, espelho ¢ rapido substituto do “Brasil Grande” da ditadura de 1964. Arte, metas do governo ou discurso da publicidade convergem para o mesmo simulacro. Agora, uma simples afluéncia, revelada no uso suntudrio dos ma- teriais, csconde uma certa academia de materismos e¢ gestos simulando a melancélica realizagao do programa estético de Greenberg. Brasil/Brasis 361 Melhor é a arte da contramio. A pungente obra de Goeldi e Guignard, cada um a scu modo, desempenhando o papel de 0 Outro da banda de misica do Modcrnismo. Ou a obra lirica de Volpi, as delicadas monotipias de Mira Schendel, arte ténue, “o que se faz. de um cabelo € o que pode ser uma viga”, como analisa Max Bense., “Da adversidade, vivemos”—escreveu Hélio Oiticica. Aarte inauditos: saberes ria, entao, desmedida e exatiddo, Razo em panico, delicados Hé dois Basis. So separados por um abismo, opostos. Rural ¢ industrial. Ha um Brasil avangado temnologicamente e hd um Brasil onde ainda ressoam, na literatura de cordel, acordes ¢ mitologias de um cancioneiro ibérico medieval Miseravel ¢ rico, ou dividido entre 0 “bom selvagem” e 0 “capitalismo selva- gem”. Hé um Bras ainda hoje projeta as conseqiténcias da escravidao, A rigida estrutura de clas- ses ¢ a imobilidade social no Brasil nao se alteraram com a queda do muro de formado por um encontro de culturas e hé um Brasil que Berlim ¢ 0 ocaso do império sovietico. H4 um Brasil sem pontos cardeais, que pouco sabe de didlogos Leste/ Oeste ou Norte/Sul. Esse Brasil nunca compreenderia a ligio deTorres- Garela, que inverte o mapa da América do Sul e diz. que o nosso Norte ¢ 0 Sul, do deve ser determinado por nés mesmos. O sto é, que nosso ponto de orienta Brasil desprezou até aqui o didlogo com seus vizinhos, Até a década de 1980 havia grande dificuldade em assumir’o bloco cultural latino-americano (com algumas excegdes, como a critica Aracy Amaral). Foram os curadores euro- peus € norte-americanos que “latino-americanizaram” a arte brasileira. Tive- mos medo, suspeita ¢ mal-estar. Temfamos que as nossas bananas fossem con- fundidas como procedentes de alguma Repablica de Bananas qualquer. Havia quem preferisse que féssemos “universais”, espécie de filhos mestigos da ra- z&o Ocidental, Para que tanto temor? JA tinhamos a chave do mundo: a Bienal de Sao Paulo, que hoje envolve artistas de mais de oitenta paises. HA um Brasil que se lembra do mundo e outro Bri sil que se esquece de si mesmo, Goghs. © segundo Brasil nao tinha nenhuma obra de Hélio Oiticica em mu- scu até meados da década de 1980. © Brasil é também um sistema de arte de ¢ primeiro Brasil tem museus com cinco Cézannes ou cinco Van eqiiidistincia: a mesma distancia politica que separa os grandes centros brasi- leiros de arte dos centros hegeménicos curopeus ¢ norte-americanos parece separar os centros regionais e periféricos brasileiros dos centros hegeménicos 362 Arte contemporsnea brasileira do pais (Sio Paulo ¢ Rio de Janeiro). Em outras palavras: 0 (neo/p6s) colonia lismo das relagdes internacionais se reproduz como um (neo/pés) colonialismo interno, Uma concentragio de artistas e de instituigdes de arte corresponde a uma concentracio de renda interna num quadro de graves desequilfbrios re gionais estruturais. Nesse quadro politico, os mapas de Anna Bella Geiger representam a imagem grifica do sistema de poder das artes no mundo e€ suas conseqiiéncias sobre a América Latina, a partir das convengdes cartogréficas de Mercator. Adversidade, a viga feita em cabelo, a precariedade, os equilibrios insta- veis, Zero dollar (obra de Cildo Meireles), obras feitas de ago e tempo (Oiticica ¢ Clark) sio valores de uma arte magra no territorio da forma barroca. Na misica, ouvimos cangées como “Desafinado” ou “Samba de uma nota so”. Ea nossa poesia tem estruturas como “ossos de borboleta” (Murilo Men- des). A obra de Fernanda Gomes ¢ feita de quase nada: fios de cabelo, pala- yras recortadas do dicionario, alfinctes. A obra Cruzeiro do Sul de Cildo Meireles é um pequeno cubo de 9 mm, feito com duas madeiras (uma dura e outra mole) usadas pelos indios para a produgio do fogo. O pequeno cubo deve ficar sozinho em espagos de até 2 mil m*, Confronta-se af com a poréncia do fogo, fi pequena imens ‘ae mitic _ No entanto, 0 plano simbélico é destruido por outra dio tecnoldgica: a introdugao do fésforo ou de um isqueiro no ambiente de uma tribo é suficiente para destruir sua visio cosmogénica, com seus apoios na origem do fogo. No fim da década de 1950, Amilcar de cortar ¢ dobrar uma chapa de ago, como duas operacdes que se mantém visveis na obra, com indice de transparéncia Castro reduz a escultura a dois atos do método. Isso nao é forma fragil, mas sim densidade. Inutil, no entanto, tratar da arte brasileira a partir do Minimalismo, Sem uma tradiga0 maior de pintura, no Brasil produz-se, a partir de fins da década de 1950, uma arte de antecipagoes. Tentar reduzi-la a dicgio minimalista é negar a existéncia de possibilidades de historias da arte paralelas. Ao contra- rio, certos arranjc neos (como certas fissuras entre os planos/telas na obra de Lygia Clark e Ad Reinhardt) ou mesmo t&m aqui seus precedentes (como de Lygia Pape sobre formais assemelhados da arte brasileira sio contempora- Frank Stella ou Robert Morris, a redugao da esculturaa dois verbos porAmilear de Castro, mais econémica que as dezenas de acdes/verbos de Richard Ser- ra). Na América Latina se poderia falar de uma redugio ao essencial Brasil /Brasis 363 Opostamente, nos Estados Unidos, o “less is more” minimalista é ainda um pro cesso de acumulagao ao revés, como se 0 vocabulario plastico fosse submeti- do a uma espécie de denegagao: quanto mais nega (isto é, quanto mais re- duz) mais quer (isto é, trata de acumulagao ¢ expansio). O que se extrai dessas postulagdes ¢ 0 americanocentrismo desse olhar. Alguns criticos (ou viajantes “etndlogos”?) analisam obras brasileiras, como a de Waltercio Cal- das, na perspectiva do Minimalismo, Essa é a tentagio de uma critica que substituiria o curocentrismo por um norte-americanocentrismo. Se aque- les principios de economia do Minimalismo funcionam como um diagrama de uma ética do capitalismo, na arte brasileira encontra-se uma marca ética que aponta para uma idéia de cidadania e, sobretudo, para uma nogao de alteridade e resposta 4 crise social permanente do pais (¢ menos para uma nogao de arte engajada). Faz-se, no Brasil, uma arte que fere € cura. Fere com o Tiaape deTunga ou 0 Mapa mudo (um mapa do Brasil em cacos de vidro), 0 tapete, o bumerangue e o consolador de cacos de vidro de Ivens Machado, Sociedade nacional, vida doméstica, relagécs de alteridade ¢ indivi- duo esta representados respectivamente nesses objetos de Machado, como uma espécie de adverténcia sobre o que ja sabjamos: ninguém te ouvird no pais do individuo, escreveu um pocta, Outro poeta, Joao Cabral de Melo Neto, escreve: O que vive nio entorpece. O que vive fere Arte de crimes ecol6gicos (no apenas as esculturas de troncos queimados das florestas destrufdas de Krajcherg), mas do Totem de Cildo Meireles: galinhas amarradas a um tronco sio queimadas vivas. Esse totem é uma espécie de arte de bonzos, contempordnea 4 guerra do Vietna, e remetia aos presos politicos, torturados nas prisoes brasileiras na ditadura de 1964. Sendo Monumento ao ‘ibilida- Preso Politico, era uma espécie de voz do gueto, isto ¢, ar no vacuo. Pos de (para 0 preso isolado) de dizer através do artista, Cura do silénci Uma arte que cura, mas que nao cura s6 pelo dbvio, como os objetos relacionais num processo terapéutico da “nao artista” Lygia Clark. A artista ja havia afirmado: “O instante do ato nao é renovavel. Ele existe por si proprio 364 Arte contemporinea brasileira o repetir é Ihe dar uma outra significago, Ele nio contém nenhum trago de percep¢ao do passado, [...] S6 0 instante é ato de vida". Aqui estamos diante de uma arte das pulsdes de vida. E uma arte dos sentidos, que nao recalea a libido. Admite ¢ erotiza a participagio do Outro, Hélio Oiticica dirigiu suas proposigSes aos sentidos para produzir uma percepgéo total atuando sobre a supra- sensacio, que dilatasse as. capacidades sensorais hebitunis do individuo, Toda experi- mentacio, superando os condicionamentos, dizia Oiticica, desemboca no pro- prio problema da liberdade, Uma obra de arte que, para realizar sua completude, requisita o tempo imanente do Outro é, portanto, um ato de politizagio, O Outro, em tempos de ditadura e ruptura dos limites da lingua- gem da arte, é sujeito. Clark ¢ Oiticica haviam curado a arte da melancolia, “Onde esta a matemitica?”, perguntava Max Bill perplexo e irritado dian- te das primeiras manilestagdes do Concretismo brasileiro, sob o impacto do suico, trazido aos tropicos pela Bienal de Sao Paulo e os novos museus de arte. © Brasil ama o panico da razio, Desmedida e vertigem. No Rio de Janeiro, os primeiros artistas geométricos (Almir Mavigner e Ivan Serpa) primeiro tra- balharam no programa do Centro Psiquiétrico D, Pedro Il, no programa de arte ¢ terapia da Dra. Nise da Silveira. Na década de 1940, artistas, como gatos, eram ai co-terapeutas. Antes de verem Mondrian, Max Bill, Taucber- Arp ¢ outros, Mavigner ¢ Serpa viram ‘naquele hospital as primeiras obras concretas feitas no Brasil: os movimentos de pequenos quadrados negros so- bre fundo branco, redugao da imagem do jogo de dominé, clo interno Arthur Amora da instituicao psiquidtrica. Mavigner depois foi para Ulm, levado por Max Bill. Serpa foi professor de Hélio Oiticica e Waltercio Caldas. A ciéncia, como na obra de Tunga, ¢ pscudo-exatidio, como uma episteme que se fizes se no contagio poetico, A arte brasileira ja se curou de uma sindrome de atributo da razao. Livrou- se do papel de ser uma espécic de encarnagio do Verbo, ilustragao de teorias. Desde o conto Oalienista, de Machado de Assis, que a cultura do Brasil nao sabe —e nem quer saber — dos limites entre razdo c loucura desbordadas. Antonio Manuel fez um filme com o titulo Loveurae cultura, “Ha. uma diwvida que perten- ce 4 clareza” escreve Waltercio Caldas, As aparéncias nao enganam, mas tam- bém nada garantem. Nelson Leirner inscreveu um porco empalhado num salio de arte no periodo da ditadura. A operaco de Leirner foi a introdugao de um dilema insoliivel ao jéri do salao oficial, um pequeno diagrama da Brasil/Brasis 365 estrutura do Estado autoritario: se 0 aceitasse como obra, o juri demonstraria nao saber distinguir um porco de uma obra de arte. Se recusasse, estaria con- fundindo uma obra de arte com um porco. Em ultima anilise, a agio de Leirner era demonstrar a irracionalidade do terror, A arte é“exercicio experimental da liberdade”, ha algumas décadas afirmava o critico Mario Pedrosa Poderfamos falar, no Brasil, de uma arte de negociagdes. A Antropofagia (na literatura de Oswald de Andrade ou na pintura de Tarsila do Amaral) con- sagra uma formagao étnica, de negociagao de valores culturais entre distintos grupos nativos, europeus e africanos, Na ditadura, os artistas construiram uma arte de resisténcia ¢ um espaso politico da obra (Nelson Leirner, Cildo Meireles, Antonio Manuel, Hélio Oiticica, Lygia Clark, Antonio Dias) As relacGes de alteridade na fotografia de Rosingela René ou de PaulaTrope, com suas fotos de criangas de rua em cdmera de pin-hole, ao mesmo tempo em que esses meninos também fotografam objetos de sua preferéncia com ames- ma cémera e se tornam sujeitos da linguagem fotografica. No campo retorico, o Brasil livrou-se do miserabilismo, Em troca, nao perdeu de vista 0 oprimido Uma recente pesquisa! revela que 43% da populagdo considera o Brasil 0 pais mais feliz do mundo € 9% considera o Brasil o pats mais infeliz do mundo (s6 perdendo para a “Africa” e Etidpia, com 12%, mas ganhando da Bosnia em infelicidade). O otimismo brasileiro vive um mal-estar diério ao ler os jornais, confrontar-se com a fragilidade das cohquistas sociais. A precariedade da vida a margem da subsisténcia marca a vida do pals, Nesse quadro, temos uma arte de resisténcia contra 0 Olvide, como na instalagio de Cildo Meireles, ¢ exclusio. Na fotografia, Rosingela René trabalha com um conceito de amnésia social. Nessa sociedad, fotograla-se para esquecer, A fotografia scria um mecanismo ative de produgao de esquecimento, ali onde existe abandono social. E a isso que se opde a arte de Rend. No Brasil, a minoria é a maioria Se, na arte moderna em geral, deve-se falar de um discurso masculino triunfante, a questao no Brasil é diferente. Na historia da arte do Brasil, no cabe falar de uma contribuigéo das mulheres. Ainda que menos do que muitos paises da América Latina, 0 Brasil ¢ um pafs machista. Dizer que a mulher contribui para a. arte moderna brasileira seria menosprezar sua participagio. Pesquisa do Datafolha, publicada na folla de 8, Paulo, 25 cle maio de 1997. 366 Arte contemporfnea brasileira Na verdade, a mulher constitui a arte brasileira do século XX, quase sempre 4 frente, muitas vezes ao lado ¢ raramente atras dos homens. A arte moderna explode com Anita Malfatti e ganha seu conceito maior (Antropofagia) com Tarsila. Depois houve Maria Martins, Lygia Clark e Lygia Pape, Maria Leontina e Mira Schendel, Fayga Ostrower eTomie Ohtake e tantas outras, J4 prenun- ciando, Oswald de Andrade, em seu Manifesto Antropofigico, celebra 0 matriarcado de Pindorama, territério que um dia passou a se denominar Brasil. Divergindo da posigao simplista da arte engajada, no Brasil produziu-se uma arte de cidadania. Hélio Oiticica trata de uma ordem ético-social da arte, pertinente ao “problema mais amplo, qual seja, 0 da criago de uma cultura participante dos problemas brasileiros que na época afloravam” (em “Nova Objetividade Brasileira”, 1967). Os reflexos da Pop Art no Brasil foram filtrados por um processo de negociago com o real, como superacio de con- tradigées, Onde a Pop Art americana era referéncia ao universo da comunica- go de massa, aqui se enfrentou a questo do analfabetismo, das formas tradi- cionais de comunicagao (comoAntonio Henrique Amaral, Samico eAnna Maria Maiolino e suas referéncias 4 literatura de cordel ¢ suas imagens xilograficas) © a censura em perfodo ditatorial (de modo comparavel a experiencia da Equipo Crénica ou Genovés na Espanha). Gramsciano, o artista Waldemar Cordeiro afirma que no basta que apenas os meios de produgio estejam a. disposicao de todos, mas também os de comunicaso. Marx encontra Barthes e McLuhan. Onde a Pop Art celebrava 0 consumo, aqui se explorou o consumo marginal, a economia de subsisténcia e a miséria estrutural (também o argentinoAntonio Berni, com seu personagem Juanito Laguna, enfrenta essas contradicSes em pinturas feitas do lixo dos arrabaldes de Bucnos Aires). Existe ainda uma rela- So entre escatologia e ethos no Brasil. Vimos como o artista Artur Barrio, argumentando que os matcriais de arte eram impostos e seu prego condicionava a criagao, sobretudo no Terceiro Mundo, passou a usar materiais perecivieis, baratos (1969). Com Barrio, a escatologia deixa de ser uma questo de dejetos, para restaurar seu sentido filoséfico de indagagao sobre o destino dltimo das coisas. E assim, contemporaneamente, com a obra de artistas como Frida Baranek (¢ os restos da indiistria bélica americana), Fernanda Gomes, Jac Leirner ou Nina Moraes. Na experiéncia brasileira, 0 artista nao apenas fez a arte, mas também teve de constituir, muitas vezes, o espago social e armar a possibilidade politica de seu discurso. Uma marca que atravessou geragdes de Brasil /Brasis 367 artistas brasileiros deste século, como Goeldi, Oiticica ou Cildo Mcireles, foi a tradigao de tomar a arte como uma experiéncia ética. A arte brasileira toca a palavra e é moldada pelo verbo. No século XVIII, os poetas brasileiros enfrentaram a desmedida das florestas nativas, seus habitantes e seus mitos ¢ o descompasso com o modelo do bosque deVirgilio. A crise dessa Arcadia tropical prenuncia relagdes ora tensas ora convergentes entre 0 olhar ¢ o discurso verbal. No Modernismo, os escritores (Oswald de Andrade, Mario de Andrade, Murilo Mendes, Manuel Bandeira) foram uma espécie de artilharia da arte moderna, na defesa de Anita Malfatti, Tarsila, Ismael Nery ¢ outros. Sérgio Camargo advogou o “vacuo verbal” diante do fato plistico. Sem anuncio e sem retorica, Mira Schendel ja havia trabalhado, em suas monotipias, os limites do indizivel ¢ a re-escultura do vazio. O indizivel (das questdes propostas por Wittgenstein ao conceito de Deus pelo raciocinio da apophasis) & desbastado daquilo que ainda se poderia dizer através do signo visual. Hélio Oiticica exigiu, na obra Homenagem 2 Cara de Ciralo, 0 siléncio na contemplagio do corpo de um bandido morto, visto como um indice da revolta individual com 6 Brasil, pais de impossibilidades sociais. Na instalacio Entrevidas, Anna Maria Maiolino criou uma superficie recoberta por ovos, pela qual se devia caminhar. A tensio em face do simbolo da vida e do fragil cresce a medida que se avanca sobre 0 territério. Maiolino explorou af as relagdes entre o momen- to pré-verbal (simbolizado no prétnascimento) © © nao-verbal (aquilo que nao se diz por limites da linguagem ou da experidncia, como a vida num periodo de ditadura). Cildo Meireles tratou nao das interdigdes, mas da im- poss “voz do gueto” é a constitui¢ao da dizibilidade frente 4 opressao. Para Cildo ilidade politica de dizer sob 0 Terror contemporéneo, Em sua obra, a Meireles, explorando os limites da razo iluminista, era necessario enfrentar ibilidades de apreen- os limites do mensurdvel e, por conseqiiéncia, das pos sao racional do mundo, como em Fureka/Blindhotland, Existe, também no Brasil, um campo de arte de substantivos. Filosofia, Barroco e superficie so trés exemplos. A filosolla de Merleau-Ponty de“L’ ceil et esprit”, com sua questo da carnalidade da arte, subjaz na obra de Hélio Oiticica (Bélides) e Lygia Clark (Obra mole). Tunga trabalhou sobre questdes abertas por Santo Agostinho ou Bataille. A topologia da psicanilise de Lacan deve ser confrontada com a obra de Tunga (os Toros) ou a fita de Mocbius na produgio de Lygia Clark e Hélio Oiticica (respectivamente com as obras Caininhando ¢ 368 Arte contemporanea brasileira alguns arangolés), conotando a continuidade entre o Eu e o Outro, Do mesmo modo, Wittgenstein marca 0 raciocinio plastico de Mira Schendel ow os con- ceitos de natureza dos jogos visuais deWaltercio Caldas. A filosofia ou a psica- nalise aqui nao sao a sua ilustragao pela arte, nem mesmo sua interpretacio, mas funcionam como disparador do imaginario ou ponto de partida para uma problematizagao plastico-visual, em que aarte constitui sua propria episteme. Essa arte de substantivos pode ser pensada com relagdo ao Barroco, que nfo se toma apenas como jogo de aparéncia, mas como forma persuasiva, retérica dos monumentos, argumento ideolégico preciso da Contra-Refor- ma e da catequese naAmérica. A instalacao Missio/Missaes, how to build cathedrals de Cildo Meireles nao tem qualquer alusio ao Barroco, no entanto testemunha criticamente 0 argumento ideolégico da forma barroca, Ao se compor de um chao de moedas ligado a um teto de ossos por uma coluna de héstias, Missio/ Missies indica que as relagdes de conexdo do homem ao céu, reivindicada pela Igreja Catdlica na Contra-Reforma ¢ demonstrada pelo templo barroco, era também uma conexio entre o capital e a morte (destruigao das culturas nati- vas) através da catequese na América, Adriana Varejio cita o Barroco e a catequese nao como uma colagem de estilos, mas como recuperagao critica do sentido da historia na sua projegio sobre o presente, como continuidade da opre! nham uma idéia de agenciamento da historia através da arte A relagao substantiva entre arte e superficie, no Brasil, pode ser pensada a 0. Cildo Meireles © Adriana Varejio, em duas geragdes, testemu- partir da obra de muitos artistas. Ou buscaria, numa apropriaggo de um texto de Nuno Ramos, “Inventar uma pele para tudo”, ow ainda operar os “trés modos de invisibilidade: a) tudo refletir [...]; b) nada refletir; c) transparén- cia”. Em Oswaldo Goeldi, a xilogravura era a tensio entre a noite moral e a luz cegante, Na obra de José Resende, a superficie opera a revelagao do méto- do de construgao da escultura. Assim, a superficie, sendo fisicamente opaca, no entanto mantém-se conccitual e eticamente transparente, posto que se faz como revelacao ética de sua inteligéncia ¢ estratégia. A economia ¢ a escultu- ra da palavra, na poesia de Joao Cabral de Melo Neto, entre a seca do Norde: te e a severidade catal, ¢ palayra densa. Essa tradigao de densidade admite que se pense, no Brasil, uma densidade da superficie. Uma certa fotografia brasileira, que trabalha como intervengio na crise social, seria uma espécie de espessura da luz, como a produgéo de Claudia Brasil /Brasis 369) Andujar e sua relacao com a defesa dos indios iamomami. Na obra de Mario Cravo Neto, a superficie fotografica e scu gro formam uma espécie de pele ¢ seus poros, em que a identidade desloca-se das aparGncias fisicas para uma relasao simbélica ¢ cosmogénica. A simbologia de Cravo Neto, muitas vezes, refere-se ao universo do candomblé da Bahia e sua obra filia-se 4 tradigdo aberta por Pierre Verger. A aventura da obra de Lygia Clark, como a saga do plano, entre a geome- tria e a arquitetura, da arte a dimensao fantasmatica, seria, em suma, a explo- racio da tese da densidade do plano, A Obramole é um plano de borracha que se arma em estrutura, com seu corpo sensual que se molda com 0 mundo. Cam nhando é uma proposta de percurso por uma estrutura de lita de Moebius (uma superficie continua entre o dentro ¢ o fora), que se transforma em experién- cia de tempo transcendente. Por vezes, a superficie ¢ haptica, provocando o desejo do tato. Finalmente, o toque —a realizagao erdtica do tato — é exigido para que a obra possa se realizar. E nesse momento que a cor torna-se corpo nos Bilides de Helio Oiticica. J4 nao se trata apenas de superficie de luz, mas corporeidade capaz. de oferecer experiéncias sensoriais miltiplas (cheiro, peso etc.) de espessura da cor. Nessas obras o tato, alu: aparéncias do corpo desejante, para atuar como energia da libido. Nessa tra- 10 aos sentidos, supera as digao estaria a obra de Ernesto Neto. O Espelho cego de Cildo Meireles substitui a superficie por uma massa plastica cinza, que sc molda com os dedos As avessas & um Elogiod cegueira, porque, em lugar de celebrar a visio, como em Diderot, explora os scus limites. A superficie é 0 territério da vi da obra de Waltercio Caldas. A cada projeto, esse artista parece buscar 0 grau Jo e campo zero do olhar. 1u objeto Condutores da percepeao, dois bastées de cristal, aludem 4 transparéncia, ao cristalino da viséo e 4 fragilidade do olhar, Para o artista Waltercio Caldas o olhar sobre a superficie é 0 desafio e a possibilidade de estar no munda, No Brasil, a idéia de eqilidistincia parece aludir & proximidade entre Paraiso e Inferno e a ‘a equivaléncia. Contra um maniqueismo entre os dois Brasi , existe a pottica critica da misica de Chico Buarque de Holanda e Cae- tano Veloso, ou a fotografia de Miguel do Rio Branco, As superficics fotogra- ficas de cor de Rio Branco, ora estridentes, ora suaves, resultam, em seu con- junto, de imagens rapsddicas do Brasil, como uma terrfvel e sedutora realida- de que se exala como “doce suor amargo”. 370 Arte contempordnea brasileira

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