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Nilo Batista: As duas faces do dominio do fato Em corajoso artigo, que analisou percucientemente a argumentacao expendida pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da aco penal n° 470 (ou do assim chamado “caso mensalat”), Alaor Leite demonstrou como 0 corpus tedrico elaborado em torno do conceito juridico-penal de dominio do fato foi mal utilizado para estabelecer a responsabilidade de acusados que ocupavam postos de comando, e nao para intervir em seu préprio campo dogmitico de aplicacao, ou seja, na caracterizagao e atribuigdo da qualidade de autor[1]. recente e desventurado episddio que culminou na morte do cinegrafista Santiago Andrade, atingido por um rojo ativado e langado ao solo por dois manifestantes, também envolverd a teoria do dominio do fato, como veremos em seguida. Mas é quase certo que a imprensa conservadora, tendo adorado a versio abastardada dessa teoria na fundamentacdio de condenagées no “caso mensalao”, agora j4 ndo se entusiasmaré com ela Ao lamentavel ébito do desventurado repérter sequiu-se implacdvel campanha pela imediata priso dos dois manifestantes. Afiaram-se as facas longas para uma noite agitada. O presidente da Associaco Brasileira de Jornalismo Investigativo (rectius: Jornalismo Judicante) pedia a condenacao dos manifestantes antes mesmo de que as circunstancias mais elementares do acontecimento estivessem minimamente investigadas. O Presidente do Senado resolveu incluir na pauta de votaces uma absolutamente desnecesséria (como procurei demonstrar em outra ocasido[2]) lei sobre terrorismo, cuja Unica utilidade residird na criminalizagdo de movimentos sociais € reivindicacées politicas. O Secretdrio de Seguranca Publica do Rio de Janeiro retornou a sua tese de criminalizar 0 uso de mascaras, tal como Carlos V fez em Valladolid hd quase cinco séculos atras[3]. Editoriais, entrevistas artigos, 4s vezes permeados por um olhar suspeitoso sobre a advocacia dos manifestantes, completam a irrespiravel atmosfera do fascismo punitivista operando a todo vapor na grande causa que supée ter em méos. O sistema penal emite sinais de que esta disposto a exercer 0 papel que a midia ~ nao a Constituicéo da Republica ~ Ihe prescreve. A prisdo cautelar de um suspeito que se apresentou & policia, concedeu entrevista & TV Globo - sem qualquer adverténcia acerca de seu direito de ficar calado, de no produzir prova contra si mesmo - e confessou em rede nacional que passou a outro manifestante o rojo, essa priséo cautelar no tem as orelhas, os olhos e 0 focinho de uma pena antecipada? E 0 que dizer da espetaculosa condugio coercitiva de familiares do outro atatexthii:charset=ut-8 aC 1% 20syle%IO%Z2ert-size%IA KARRI YAO a gIMAIAY2OSpHAZOINTZO NOM SBADpaAIEPLIAN DOOD... rariro1s [As das faces do dominio do ato, por Nilo Batista | GGN indiciado, que acendeu e colocou no chao 0 rojo, s6 explicavel como aterrorizacéo para que ele se entregasse logo? Ao contrario do que pode parecer a primeira vista, a mais delicada questo juridico-penal que este caso oferece ndo residird no dilema dolo eventual/culpa temeraria. © Delegado nao hesitou um segundo: indiciou-os por homicidio doloso qualificado pelo meio explosivo (art. 121, § 2°, inc. III CP). Insatisfeito, indiciou-os também pelo crime de perigo comum explosdo (art. 251 CP). Ou seja, na opini&o da autoridade policial a explosio de fogos de artificio, independentemente de algum dano ou perigo que venha concretamente a infligir a outrem, configura o crime de explosdo, No réveillon, teriamos que usar 0 novo Maracand como primeira carceragem privada do Rio de Janeiro para atender 4 demanda Suprimir as fronteiras entre o dolo eventual e a culpa temeraria é um dos dispositivos mais recorrentes no ativismo punitivista. De modo geral, no noticidrio policial e na crénica forense, 0 “assumir 0 risco de produzir o resultado” (art. 18, inc. I CP) é interpretado como “correr o risco” (no que 0 dolo eventual nao se diferenciaria em nada da culpa temeréria) e nao, como preconiza Zaffaroni, “em sua acepcao forte de ‘avocar’, ‘apropriar-se’, ‘imputar-se’, a Unica compativel com a incorporacéo vontade realizadora do agente de um efeito possivel dos meios por ele escolhidos"[4]. Na verdade, a insustentavel opcio teérica pelo dolo eventual frequentemente esté encobrindo uma opcao ideolégica pela pena mais grave, ainda que o delito tenha sido mais leve. A mais delicada questo que o caso oferece, contudo, reside nas dificuldades para imputar objetivamente ao manifestante que acendeu e langou ao solo 0 rojao o resultado morte do cinegrafista. Sem duivida esta presente o mais elementar requisito para que a morte seja imputada ao manifestante: 0 nexo causal entre sua conduta e o resultado, requisitado pelo artigo 13 CP. No entanto, se perante uma visdo baseada apenas na equivaléncia dos antecedentes (critério da conditio sine qua non) a conduta do manifestante foi causal, saltam aos olhos certas caracteristicas do caso que questionam seriamente a imputacao do resultado, a partir de um arco doutrindrio que se iniciou historicamente com a categoria da causalidade adequada € hoje se espraia nas teorias pés-finalistas de imputacao objetiva. Quem deixa de lado as paixées que conduzem o debate puiblico do caso tem que deter-se sobre essas caracteristicas, que permitem reconhecer ali um curso causal irregular ou inadequado. Arrolemos algumas dessas caracteristicas. a) Rojées nao so propriamente armas (ainda que possam ser utilizados como armas: para ficar num exemplo claro, A obriga B a abrir a boca e nela introduz e acende 0 artefato); b) rojdes so licitamente comercializados, com a Unica proibigo de serem vendidos a adolescentes; c) rojées so licitamente utilizados em muitas situagées, dos festejos juninos a comemoracies esportivas; d) 0 trajeto dos bélidos desorientadamente erratico e flexuoso, mesmo se 0 foguete for apontado para um alvo; e) no caso, o artefato foi, apés aceso, colocado no cho, onde se concluiu automaticamente o procedimento de disparo; f) 0 objetivo do manifestante era que o rojo se deslocasse na direcio dos policiais militares[5], no s6 protegidos por escudos como adestrados para proteger-se, tal como acontecera em tantos conflitos no pai: a PM, atras de seus escudos, disparando armas de fogo municiadas com balas de chumbo ou de borracha e também de gas lacrimogéneo ou de efeito moral, e os manifestantes, atrés de suas méscaras, disparando rojées e mais raramente coquetéis molotov; g) ressalvados acidentes juninos, nos quais preponderam auto-lesdes, estamos diante de um raro ~ quigd o primeiro ~ caso de um homicidio doloso cometido com o emprego de um rojo. Pols este curso causal atatexthim) chr set=ut-8 4309420811240 22fot26%3A 2026x385 omar grA%205pH°4200px%420 1% 38% 20padeing HAAS Z00... 24 sea0ss ‘As ds ace do dominio df, por Nilo Babsia | GGN evidentemente irregular ou inadequado esta sendo acodada e levianamente equiparado ao homicidio de quem aponta, mira e dispara uma pistola a poucos metros de sua vitima, atingindo- ana cabeca. Nos crimes comissivos dolosos, é autor quem dispde do dominio do fato, ou seja, quem decide ~ solitaria ou compartilhadamente com algum coautor - sobre 0 “se”, 0 “quando” e 0 “como” do feito tipico. Mas 0 dominio do fato abrange o dominio do curso causal que produzird o resultado tipico. Quando este curso causal, por sua irregularidade ou inadequagio, nao é domindvel, é desnecessério investigar 0 dominio do fato, ou seja, a autoria. A dominabilidade do curso causal constitui 0 pressuposto objetivo do dominio do fato. O exemplo mais surrado da doutrina[6] (0 sobrinho que estimula o tio a passear na montanha onde caem raios) sera aqui “carioquizado”. A, sobrinho e herdeiro Unico de B, observando que em determinada ocasiéo toda semana explodia um bueiro da Light - que pena que nosso Delegado e nossa midia estivessem entdo distraidos, porque ninguém se recorda da noticia de instauragao de inquéritos policiais por aquelas explosdes ~ convence-o, com 0 intuito de maté-lo, que o melhor lugar para assistir a0 pér-do-sol no Arpoador é postado sobre um enorme bueiro na calcada, sucedendo-se uma explosao e a morte de B. Pode este resultado morte ser imputado a A? A resposta negativa proveio, em primeiro lugar, da teoria da causacéo adequada, e para além dos trabalhos pioneiros de Von Bar e von Kries, na segunda metade do século XIX, podemos recorrer a filosofia de Spinoza: “chamo de causa adequada aquela cujo efeito pode ser percebido clara e distintamente por ela mesma; chamo de causa inadequada ou parcial, por outro lado, aquela cujo efeito ndo pode ser compreendido por ela s6"[7]. Ao langamento de um rojéo associa-se clara e distintamente como efeito a morte de um homem?! Uma segunda resposta negativa proviria da consideracio de que nao se poderia reconhecer no sobrinho ambicioso a vontade de matar que é = eno direito penal brasileiro por imposicdo legal, releia-se o artigo 18, inc. I CP ~ a esséncia do dolo, e sim um mero desejo de que o tio morresse. Como lembrava Welzel, um dos inimeros defensores dessa solugdo, em direito penal “querer” nao significa “querer ter” ou “querer alcangar", e sim “querer realizar’[8). Mas a superioridade dogmatica da resposta negativa fundada na falta de dominabilidade (por alguns chamada “controlabilidade”, por outros “planejabilidade racional”) parece irrecusdvel. Diante de um curso causal irregular ou inadequado, insusceptivel de dominio, a imputacao do resultado ao autor é inadmissivel devido - valham-nos palavras de Roxin - “ao carater objetivamente casual (objektiven Zufallligkeit) do acontecimento"[9]. Se 0 nosso Delegado resolvesse fazer uma reconstituicao do fato - a midia gostaria muito - poderiamos verificar empiricamente se um rojao langado naquelas condigées, do solo, implica um curso causal domindvel. A irrepetibilidade do fato confirmaria seu caréter casual. Nenhum desses problemas, aqui apressadamente esbocados, se apresentaria na imputagdo a titulo de culpa, ou seja, da producao por imprudéncia de resultado. O autor do crime culposo é apenas um causante (art. 18, inc. II CP) que nao observou o cuidado exigivel, e ndo um autor que domina 0 fato - inclusive o curso causal -, como nos crimes comissivos dolosos. Porém, como 0s ncoras poderiam encher a boca com a palavra “assassinos’, se o enquadramento juridico- penal do caso fosse corretamente efetuado? etatexthm| charset=ut-8 963Ch1*420sty e220 % 22fent-size%3AY202Epx 438% 2omargnk@A%2 px 200x%20 Opa IBY ZOpaddingKAAN ZOO... 4 rains [As dus fas do domirio do fat, per Nilo Batista | GGN © dominio do fato, que fez as delicias de muita gente no "caso mensalao”, pode ser agora um artefato teérico perigoso, se lancado ao caso do momento. Até quando as forcas politicas progressistas nao se darao conta dos perigos que a hipertrofia do sistema penal traz para a democracia? O sistema penal, Presidenta, também pratica, e massivamente, seus mal-feitos... (*) Professor titular de direito penal da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e da Universidade Federal do Rio de Janeiro. [1] Leite, Alaor, Dominio do fato, dominio da organizacao e responsabilidade penal por fatos de terceiros - sobre os conceitos de autor e participe na APn 470 do STF, em Revista Brasileira de Ci€ncias Criminais, S. Paulo, ed. RT, v. 106, pp. 47 ss. [2] Reflexdes sobre terrorismos, em Passetti, Edson e Oliveira, Salete (orgs.), Terrorismos, S. Paulo, 2006, ed. PUC-SP, pp. 13 ss. [3] Novisima Recopilacién de las leys de Espafia, liv. XII, tit. XIII, lei T: “Porque del traer de las méscaras resultan grandes males, y se disimulam con ellas y encubren; mandamos, que no haya enmascarados en el reyno, ni vaya con ellas ninguna persona disfrazada ni desconocida”. As penas eram, se se tratasse de "persona baxa", cem agoites puiblicos; se se tratasse de “persona noble o honrada”, desterro por seis meses. No uso noturno da mascara, penas dobradas. [4] Zaffaroni, Raul et al, Direito Penal Brasileiro, Rio, 2010, ed. Revan, v. II, t. I, p. 276. [5] No ingressarei no debate, que também interessaré ao caso, acerca da aberratio ictus (art. 73 cP), [6] Nao 0 mais antigo. Em 1894, Thyrén formulava o seguinte exemplo: A, totalmente desajeitado no manejo de armas dispara contra B, querendo maté-lo, a uma distncia na qual nem mesmo um campedo de tiro consequiria acertar, e nao obstante B é atingido e morre. Cf. Gimbernat Ordeig, Delitos Cualificados por el resultado y causalidad, Madri, 1966, ed. Reus, p. 39. [7] Spinosa, Bento de, Etica, trad. T. Tadeu, B. Horizonte, 2007, ed. Auténtica, p. 163. [8] Welzel, Hans, Das Deutsche Strafrecht, Berlim, 1969, ed. W. de Gruyter, p. 66. [9] Roxin, Claus, Strafrecht A.T., Munique, 2006, ed. C. H. Beck, v. I. ‘datatexthimicharset=ut-8 ACh %20syle%30%22e-size A 2026p 3B% 20mar gia ZNEpX*%200pH%2010px%43B%2Npadeng A200, 44

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