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0s COMPLEXOS FAMILIARES Jacques Lacan OPW TEM TORO NIM TEER QZAHAR Este texto foi escrito por Jacques Lacan para o tomo VIIl da Encyclopédie fran- gaise, consagrado a “vida mental” e pu- blicado em 1938. Mas nao se ira ler estas paginas pelo que elas foram em 1938: um artigo de enciclopédia, solicitado a um jovem psicanalista por um renomado professor de psicologia, Henri Wallon, para inclusao na segao sobre “a familia”, numa série onde seguiam-se “a escola” e “a profissao”. Devera ser lido pelo que ele representa hoje, isto 6, um escrito precursor do en- sinamento de Lacan. Cabe talvez escla- recer que este texto nado foi inserido nos Ecrits por iniciativa de seu editor, em vir- tude de sua extensao. Nao procuraremos nele “o inconsciente estruturado como linguagem’, mas ja encontraremes aqui o eu definido pelo narcisismo, é totalmente distinguido do sujeito, apreendida na sua divisdo pelo sintoma. A familia, tema em questéo, é abordada de inicio como uma estrutura na ordem da cultura. A énfase colocada sobre o so- cial vale como ersatz (substituto) de um simbdlico cuja nogao vird mais tarde; e ele s6 6 uma questao de instintos por sua “economia paradoxal” no homem. “Paradoxal’ também, a imago, pivé de um canceito do complexo, original pela exclu- sao de toda referéncia organica. O estilo de sintese que suporta esse rigoroso es- quema faz do desenvolvimento psiquico uma sequéncia quase estrutural de tripla escansao: desmame, onde o imago ma- ternal tem sua forma fundamental; /n- trusao da imago do semelhante, onde o estddio do espelho 6 momento genético; e, entim, Ecipo, onde a retomada da cas- tragaéo culmina com a imago do pai. A segunda parte constitui um verdadeira compéndio de clinica freudiana, onde é dado um papel central a fun¢ao paterna. A nogdo de “grupo familiar tornado incam- pleto” nao é o prenuncio da foraclusdo de Nome do Pai? Nao se sabe, neste Complexos familia- res, a que admirar mais, se a mestria do todo ou ao fato de ela nao ter se tornado obstaculo aquilo que viria depois. Campo FREUDIANO NO BRASIL Colegao dirigida por Jacques-Alain e Judith Miller Assessoria brasileira: Angelina Harari Jacques Lacan Os Complexos Familiares na formagao do individuo ensaio de analise de uma fun¢ao em psicologia 22 edigdo ‘Tradugdo: Marco Antonio Coutinho Jorge Potiguara Mendes da Silveira Junior “a Y ZAHAR Rio de Janeiro Titulo original: Les complexes familiaux dans fa formation de Uindividu Traducdo autorizada da primeira edigao francesa, publicada em 1984 por Navarin Editeur, de Paris, Franca, na série “Bibliotheque des Analytica” Copyright © 1984, Navarin Editeur Copyright da edigdo brasileira © 1985: Jorge Zahar Editor Ltda. rua México 31 sobreloja 2003 1-144 Rio de Janeiro, RJ rel: (21) 2108-0808 / fax: (21) 2108-0800 e-mail: jze@zahar.com.br site: www,zahar.com.br Tradugao autorizada por Jairo Gerbase e Antonio Quinet 24 edicgfo, 2008, novo projeto grafico CIP-Brasil. Catalogacdo-na-fonte Sindicato Nacional dos Edirores de Livros, RJ Lacan, Jacques, 1901-1981 L129¢ Os complexos familiares na formagio do individuo: ensaio de andlise 2.ed. de uma fiingao em psicologia / Jacques Lacan; tradugio Marco Antonio Coutinho Jorge, Potiguara Mendes da Silveira Jtinior. — 2.ed. — Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008. (Campo Freudiano no Brasil} Traducio de: Les complexes familiaux dans la formation de Vindividu ISBN 978-85-7110-137-1 1, Complexos (Psicologia). 2, Familia, 3. Personalidade. I. Titulo. Ti. Série. CDD: 158.24 08-3526 CDU: 159.9 Sumario Introdugao 1. O complexo, fator concreto da psicologia familiar t. O complexo do desmame Il. O complexo da intrusdo Ill. complexo de Edipo 2. O5 complexos familiares em patologia I. As psicoses de tema familiar ll. As neuroses familiares 19 a7 39 61 64 73 Este texto foi escrito por Jacques Lacan para o tomo VIII da Encyclopédie francaise, consagrado a “vida mental” e publicado em 1938; ele ocupa em sua segunda parte, “Circonstances et objets de activité psychique” , a secao A: “A familia’, titulo sob © qual é comumente designado. Restabeleci nesta edigao o titulo dado por Lacan; resta- beleci também a continuidade do texto, interrompida pela paginagao da Encyclopédre (intertitulos, caracteres de corpos diferentes), Este texto nao foi inclufdo nos EZerits por iniciativa do editor, em virtude de seu tamanho. JacQues-ALAIN MILLER Introdugao: A instituigao familiar A familia surge inicialmente como um grupo natural de in- dividuos unidos por uma dupla relacao bioldgica: a geragao, que dé os componentes do grupo; as condicées do meio que o desenvolvimento dos jovens postula e que mantém o grupo na medida em que os adultos geradores asseguram sua fungao. Nas espécies animais, essa fungao da lugar a comportamentos instintivos, freqiientcemente muito complexos. Tivemos que renunciar a fazer derivar das relagdes familiares assim defini- das os outros fendmenos sociais observados nos animais. Estes Ultimos mostram-se, ao contrario, tao diferentes dos instintos familiares que os pesquisadores mais recentes os aproximam de um instinto original, dito de intera-tracao. A espécie humana caracteriza-se por um desenvolvimento singular das relagSes sociais — desenvolvimento esse que é sus- tentado por capacidades excepcionais de comunicacio mental —, e, correlativamente, por uma economia paradoxal dos instin- tos que ai se mostram essencialmente suscetiveis de conversio e de inversio, e nio tém mais efeito isolavel senio de maneira esporddica. Comportamentos adaptativos de variedade inf- nita sao assim permitidos. Sua conservagio e seu progresso, por dependerem de sua comunicagio, so, antes de tudo, obra 7 8 Os complexes familiares coletiva e constituem a cultura. Esta introduz uma nova di- mensdo na realidade social e na vida psiquica. Esta dimensao especifica a familia humana como, de resto, todos os fendme- nos sociais no homem. Se, com efeito, a familia humana nos permite observar, nas fases mais primevas das fungdes maternas, por exemplo, alguns tragos de comportamento instintivo, identificdveis aos da familia bioldgica, basta pensarmos no que o sentimento de paternidade deve aos postulados espirituais que marcaram seu desenvolvimento, para compreendermos que nesse dominio as instancias culturais dominam as naturais, ao ponto de nao se poderem considerar paradoxais os casos em que umas substi- tuem as outras, como na adogao. Sera essa estrutura cultural da familia humana inteira- mente acessivel aos métodos da psicologia concreta: observagao c andlise? Sem divida, estes métodos bastam para colocar em _ evidéncia tracos essenciais, como a estrutura hierdrquica da fa- milia, e para reconhecer nela o érgio privilegiado desta coagao do adulto sobre a erianga, coagde 4 qual o homem deve uma etapa original e as bases arcaicas de sua formagio moral. Mas outros tragos objetivos: os modos de organizagio dessa autoridade familiar, as leis de sua transmissa0, os concel- tos da descendéncia e do parentesco que a ela estéo unidos, as leis da heranga e da sucess4o que af se combinam, enfim, suas relac6es {ntimas com as leis do casamento — obscurecem ¢ embaralham as relagdes psicoldgicas. Sua interpretacao deverd, entao, se esclarecer com os dados comparados da etnografa, da histéria, do direito e da cstatistica social. Coordenados pelo método sociolégico, esses dados estabelecem que a familia hu- mana é uma instituicdo. A andlise psicolégica deve se adaptar a essa estrutura complexa e ndo tem o que fazer com as tencativas Introdugde 9 per (iloséficasyque tém por objeto reduzir a familia humana seja a um fato biolégico, seja a um elemento tedrico da sociedade. Essas tentativas tém, no entanto, seu principio em certas aparéncias do fendmeno familiar; por mais ilusérias que sejam essas aparénicias, clas merecem um exame demorado, pois re- pousam sobre convergéncias reais entre causas heterogéneas. Descreveremos sew mecanismo em dois pontos sempre polé- micos para o psicélogo. Entre todos os grupos humanos, a familia desempenha um papel primordial na transmissao da cultura. Se as tradigGes espirituais, a manucencdo clos ritos e dos costumes, a conserva- ¢do das técnicas ¢ do patriménio sao com ela disputados por outros grupos sociais, a familia prevalece na primeira educagao, na repressdo dos instintos, na aquisicao da lingua acertada- mente chamada de materna. Com isso, ela preside os processas fundamentais do desenvolvimento psiquico, preside esta orga- nizacga’o das cmogées segundo tipos condicionados pelo meio ambiente, que é a base dos sentimentos, segundo Shand; mais amplamence, ela transmite estruturas de compertamento e de representagdo cujo jogo ultrapassa os limites da consciéncia. Ela estabelece desse modo, entre as geracgGes, uma con- tinuidade psfquica cuja causalidade é de ordem mental. Esta continuidade, se revela o artificio de scus fundamentos nas préprios conceitos que definem a unidade de linhagem, desde o totem até o nome patronimico, nao se manifesta menos pcla transmissao 4 descendéncia de disposigées psiquicas que esto préximas do inato; Conn ctiou para estes efcitos o termo he- reditariedade social. Este termo, bastante imprdéprio em sua ambigiiidade, teve pelo menos o mérito de assinalar o quanto é dificil para o psicdlogo nao majorar a importancia do biold- gico nos fatos ditos de hereditariedade psicoldgica. 10 Os complexus familiares Uma outra similitude, inteiramente contingente, é vista no fato de que os componentes normais da familia, tal qual se observam hoje no Ocidente: 0 pai, a mae e as filhos, sao os mesmos que os da familia biolégica. Essa identidade nada mais é do que uma igualdade numérica. Mas 0 espirito ¢ tentado a reconhecer ai uma comunidade de estrutura diretamente fun- dada na constncia dos instintos, constancia que lhe é preciso, entdo, encontrar nas formas primitivas da familia. Com base nessas premissas é que foram construfdas teorias puramente hipotéticas da familia primitiva, ora 4 imagem da promiscui- dade observavel nos animais, por criticos subversivos da ordem familiar existente, ora sobre o modelo do casal estdvel, nao me- nos observavel na animalidade, por defensores da instituicgao considerada como célula social. As teorias das quais acabamos de falar ndo estado apoiadas em nenhum fate conhecido. A promiscuidade presumida nao pode ser afirmada em parte alguma, hem MesMoO nos casos di- tos de casamento grupal: desde a origem existem interdigdes e leis. As formas primitivas da familia tém os tracos essenciais de suas formas acabadas: autoridade, se nao concentrada no tipo patriarcal, ao menos representada por um conselho, por un) matriarcado ou seus delegados do sexo masculino; modo de parentesco, heranga, sucessao, transmitidos, as vezes distin- tamente (Rivers), segundo uma linhagem paterna ou materna. Trata-se af de familias humanas devidamente constituidas. Mas, longe de nos mostrarem a pretensa célula social, véem-se nessas familias, quanto mais primitivas sao, nao apenas um agregado mais amplo de casais biolégicos, mas sobretudo um parentesco menos conforme aos lagos naturais de consangiiinidade. O primeire panto é demonstrado por Durkheim e, de- pois, por Fauconnet, em cima do exemplo histédrico da familia Lntrodugéo 11 romana; pelo exame dos nomes de familia e do direito suces- sétio, descobre-se que trés grupos apateceram sucessivamente, do mais amplo ao mais estreito: a gens, agregado muito amplo de origens paternas; a familia agndtica, mais estreita, mas in- divisa; finalmente, a familia que submete & patria potestas do avé os casais conjugais de todos as seus filhos ¢ netos. Quanto ao segundo ponte, a familia primitiva desconhece os lagos bioldgicos do parentesco: desconhecimento apenas juridico na parcialidade unilinear da filiagdo; mas também ignorancia positiva ou talvez desconhecimento sistematico (no sentido de paradoxo da crenga que a psiquiatria dd a este termo), exclusdo total desses lacos que, por ndo se poderem exercer senao em relacio a paternidade, se observariam em certas culturas matriaccais (Rivers e Malinowski). Além disso, 0 parentesco sé € reconhecido por intermédio de ritos que le- gitimam os facos de sangue e, quando necessdrio, criam lacos ficticios: fatos do totemismo, adocdo, constituicao artificial de um agrupamento agnatico como a zadruga eslava. Do mesmo modo, segundo nosso cédigo, a filiagao ¢ demonstrada pelo casamento. A medida que se descobrem formas mais primitivas da fa- milia humana, elas se ampliam em agrupamentos que, como o cla, também podem ser considerados come politicos. Pois se transferirmos para o desconhecido da pré-histéria a forma de- rivada da familia biolégica para fazer nela nascer por associag’o natural ou artificial esses agrupamentos, teremos uma hipdtese contra a qual a prova fracassa, mas que é ainda menos provavel aceitar tal porquanto os zodlogos recusam — como vimos génese para as préprias saciedades animais. Por outro lado, se a extens4o e a estrutura dos agrupa- mentos familiares primitives nao excluem a existéncia em seu 12 Os complexas familiares seio de familias limitadas a seus membros biolégicos — o fato é tio incontestavel quanto o da reprodugao bissexuada —, a forma assim arbitrariamente isolada n3o pode nos ensinar nada de sua psicologia e nao pode ser assimilada 4 forma familiar atualmente existente. O grupo reduzido formado pela familia moderna niio se apresenta, com efeito, a0 exame, como uma simplificagao, mas antes como uma contracdo da instituicao familiar. Ele mos- tra uma estrutura profundamente complexa, da qual alguns pontos sao muito melhor esclarecidos pelas instituicdes posi- tivamente conhecidas da familia antiga que pela hipdtese de uma familia elementar que nao se apreende em lugar algum. Isso nao quer dizer que seja ambicioso demais procurar nessa forma complexa um sentido que a unifique e talvez dirija sua evolucao. Esse sentido é dado precisamente quando, a luz desse exame comparativo, se apreende o remanejamento pro- fundo que conduziu a institui¢&o familiar 4 sua forma atual; reconhece-se, ao mesmo tempo, que € preciso atribuf-lo a in- fluéncia prevalente que assume aqui o casamenito, instituigao que devemos distinguir da familia. Dai a exceléncia do termo “familia conjugal”, pelo qual Durkheim a designa. 1 O complexo, fator concreto da psicologia familiar E na ordem original de realidade constitufda pelas relacdes sociais que se deve compreender a familia humana. Se, para assentar esse principio, recarremos as conclusdes da sociologia, ainda que a soma dos fatos com os quais ela o ilustra ultra- passe nosso tema, € porque a ordem de realidade em questao é 0 objeto préprio desta ciéncia. O principio é assim colocado num plano onde ele tem sua plenitude objetiva. Como tal, ele permitird julgar segundo seu verdadeiro alcance os resultados atuais da pesquisa psicolégica. Na medida em que, com efeito, ela rompe com as abstragdes académicas e visa, seja na observa- fo do behaviour, seja pela experiéncia da psicandlise, dar conta do concreto, essa pesquisa, especialmente quando se exerce nos fatos da “familia como objeto e circunstdncia psiquica”, nunca objetiva os instintos, mas sempre os complexos. Esse resultado nao é o fato contingente de uma etapa redu- tivel da teoria; é preciso reconhecer nele, traduzido em termos psicoldgicos, mas conforme ao princ{pio preliminarmente colo- cado, esse cardter essencial do objeto estudado: seu condiciona- mento por fatores culturais, 4 custa dos fatores naturais. O complexo, com efeito, liga sob uma forma fixada um conjunto de reagées que pode interessar todas as fungées 15 16 Os complenos familiares organicas desde a emogdo até a conduta adaptada ao ob- jeto. O que define o complexo é que ele reproduz uma certa realidade do meio ambiente, e duplamente: 12 — Sua forma representa essa realidade no que cla tem de objetivamente distinto numa certa etapa do desenvolvi- mento psiquico; essa etapa especifica sua génese; 2° — Sua atividade repete na vivéncia a realidade assim fixada, cada vez que se produzem certas experiéncias. que exi- giriam uma objetivacao superior dessa realidade; essas expe- riéncias especificam 0 condicionamento do complexo. Esta definicdo por si sé implica que o complexo seja do- minado por fatores culturais: em seu. conteddo, representativo de um objeto; em sua forma, ligada a uma etapa vivida da ob- jetivacio; enfim, em sua manifestagao de caréncia objetiva em relagdo a uma situacao atual, quer dizer, sob seu triplo aspecto de relagao de conhecimento, de forma de organizacio afetiva e de prova ao chocar-se com 0 real, o complexo se compreende por sua referéncia ao objeto. Ora, toda identificagao objctiva exige ser comunicavel, isto é, repousa sobre um critério cultu- ral; é também por vias culturais que ela é na maiaria das vezes comunicada, Quanto a integracdo individual das formas de objetivagao, ela é a obra de um processo dialético que faz sur- gir cada forma nova dos conflitos da precedente com o real. Neste processo, é necessdrio reconhecer o cardter que especi- fica a ordem humana, a saber, esta subversio de toda fixidez instintiva, da qual surgem as formas fundamentais, prenhes de variagoes infinitas, da cultura. Se o complexo em seu pleno exercicio pertence ao do- minio da cultura, e se esta é uma consideragdo essencial para quem quer explicar os fatos psiquicos da familia humana, isso nao quer dizer que nao exista relagdo entre o complexo eo Fator concreto da psicologia fumitiar 17 instinto. Mas, fato curioso, em virtude das obscuridades que o conceito de instinto opée a critica da biologia contemporanea, o conceito de complexo, ainda que recentemente introduzido, se revela mais bem adaptado a objetos mais ricos; é por isso que, repudiando o apoio que o inventor do camplexo acredi- tava dever procurar no conceito classico de instinto, acredita- mos que, por um reviramento teérico, ¢ 0 instinto que se po- deria esclarecer atualmente por sua referéncia ao complexo. Dessa forma, poderiamos confrontar ponto por pont: 1°) a relagZo de conhecimento gue o complexo implica com esta co-naturalidade do organismo no meio ambiente onde est4o suspensos os enigmas do instinto; 2) a tipicidade geral do complexo em relagio com as leis de um grupo social, com a tipicidade genérica do instinto em relagao com a fixidez da espécic; 3°) o protefsmo das manifestagdes do complexo que, sob formas equivalentes de inibigdo, de compensacio, de des- conhecimento, de racianalizacio, exprime a estagnacao diante de um mesmo objeto, com a estereotipia dos fenémenos do instinto, cuja ativagao, submetida 2 lei do “tudo ou nada’, per- manece rigida quanto as variagées da sicuagao vital. Essa estag- na¢do no complexo, tanto quanto essa rigidez no instinto — enquanto forem referidas unicamente aos postulados da adap- ta¢ao vital, disfarce mecanicista do finalisma, fica-~se conde- nado a tornd-los enigmas; seu problema exige o emprego dos conceitos mais ricos que o estudo da vida psiquica impée. Definimos 0 complexo num sentido muito amplo que ndo exclui que o sujeito tenha consciéncia do que ele representa. Mas foi como fator essencialmente inconsciente que Freud o definiu a princfpio. Sua unidade é, com efeico, surpreendente sob essa forma, na qual ela se revela como a causa de efeitos psiquicos ndo dirigidos pela consciéncia, atos falhos, sonhos, 18 Os complexos familiares sintomas. Esses efeitos tm caracteres tao distintos e contin- gentes que forgam a admitir como elemento fundamental do complexo esta entidade paradoxal: uma representacao incons- ciente designada pelo nome de imago. Complexos e imago re- volucionaram a psicologia e especialmente a da familia, que se revelou como o lugar de eleigéo dos complexes mais estaveis e mais tipicos: de simples tema de pardfrases moralizantes, a familia tornou-se o objeto de uma andlise concreta. Os complexos, no entanto, demonstraram desempenhar um papel de “organizadores” no desenvolvimento psiquico; assim, eles dominam os fenédmenos que, na consciéncia, pare- cem os mais integrados a personalidade; assim, s40 motivadas no inconsciente nao apenas justificagdes passionais, mas ra- cionalizacdes objetivaveis. O alcance da familia como objeto e circunstancia psiquica foi, ao mesmo tempo, aumentado. Esse progresso tedrico nos incitou a dar do complexo uma formula generalizada, que permite incluir os fendmenos cons- cientes de estrucura semelhante. ‘Tal como os sentimentos nos quais € preciso ver complexos emocionais conscientes, os sen- timentos familiares especialmente sendo, muitas vezes, a ima- gem invercida de complexos inconscientes. ‘Tal como também as crengas delirantes, nas quais o sujcito afirma um complexo como uma realidade objetiva, o que mostraremos particular- mente nas psicoses familiares. Complexos, imagos, sentimen- fos e crencas vao Scr estudados cm sua rclagao com a familia c em fungao do desenvolvimento psiquico que organizam, desde a crianca educada na familia até o adulto que a reproduz. Fator concrete da psicologia familiar 19 |. O complexo do desmame _ “mentacao,, sob 0 modo parasitério que a as s necessidades dos _Primeiros meses de vida do homem exigem; ele representa a forma primordial da imago materna. Portanto, ele funda os sentimentos mais arcaicos e mais estdveis que unem o indivi- duo & familia. Tocamos aqui no complexo mais primitivo do desenvolvimento psiquico, aquele que se compde com todos os complexos ulteriores; é mais surpreendente ainda vé-lo in- teiramente dominado por fatores culturais e assim, desde este estadio primitivo, radicalmente diferente do instinto. Aproxima-se dele, no entanto, por duas caracteristicas: 0 complexo do desmame, por um lado, se produz com tragos tao gerais em toda a extensio da espécie que podemos considerd- lo como genérico; por outro lado, ele representa no psiquismo una fungao biolégica, exercida por um aparelho anatomica- mente diferenciado: a lactagao. Desse modo, compreende-se que se tenba querido relacionar a um instinto, mesmo no homem, os comportamentos fundamentais que ligam a mae A crianga. Mas isso é negligenciar um cardter essencial do ins- tinto: sua regulagao fisiolégica se manifesta no fata de que o _instinto materno para de agic no animal quando o fim da ama- _condiciona Oo desmame. Ela surge eal como o dominante, mesmo “se o limitarmas ao ciclo da ablactag4o propriamente dita, ao qual corresponde, entretanto, o periodo fisiolégico da glan- dula comum na classe dos mamiferos. Se a regulagao que se observa na realidade nao aparece como nitidamente contra a natureza a nao ser em praticas retrégradas — que nfo esto 20 Os complexes familiares todas em via de desuso —, seria ceder a uma ilusao grosseira procurar na fisiologia a base instintiva dessas regras, mais con- formes A natureza, que o ideal das culturas mais avangadas im- poe ao desmame, como ao conjunto dos costumes. De fato, © desmame, por qualquer das contingéncias operatérias que . comporta, € freqiientemente um traumatismo psiquico cujos efeitos individuais, anorexias ditas mentais, toxicomanias pela boca, neuroses gastricas, revelam suas caisas a psicanilise. Traumatizante ou nao, o desmame deixa no psiquismo -humano 0 trago permanente da relacao bioldgica que ele in-_ _ terrompe. Essa crise vital se duplica, com efeito, numa crise do psiquismo, a primeira sem duvida cuja solugSo tenha uma estrutura dialética. Pela primeira vez, parece, uma tensao vital se resolve em intengao mental. Por esta intencdo, o desmame éaceito on recusado; a intencdo certamente é bastante elemen- tar, uma vez que nem mesmo pede ser atribuida a um eu ainda no estado de rudimento; a aceitagdo ou a recusa néo podem ser concebidas como uma escolba, uma vez que, na auséncia de um eu que afirma ou nega, elas ndo séo contraditérias; mas, polos coexistentes ¢ contrarios, clas determinam uma atitude ambivalente por esséncia, ainda que uma delas prevalega. Essa ambivaléncia primordial, durante as crises que asseguram a continuidade do desenvelvimento, se resolverd em diferen- ciagdes psiquicas de um nivel dialético cada vez mais elevado e de uma irreversibilidade crescente. A prevaléncia original ai mudard muitas vezes de sentido e poderd, por isso, softer os destinos mais diversos; ela ai se reecontrara, entretanto, no tempo € no tom, préprios a ela, que impord a essas crises ¢ As novas categorias com que cada um dotard a vivéncia. FE arecusa do desmame que funda 0 positivo do complexo, a saber, a imago da rclacdo nutriente que ele tende a restabele- fator concreta da psicologia familiar 21 cer. Essa imago é dada em seu contetido pelas sensacdes pré- prias aos primeiros meses de vida, mas sé tem forma 4 medida que estas se organizam mentalmente. Ora, sendo esse estddio anterior ao advento da forma do objeto, ndo parece que esses contctidos possam se representar na consciéncia. Eles af se re- produzem, entretanto, nas estruturas mentais que modelam, como dissemos, as experiéncias psiquicas ulteriores. Eles serio reevocados por associacao na ocorréncia destas, mas insepara- veis dos contetidos objetivos que terao informado. Analisemos esses contetidos ¢ essas formas. O estudo do comportamento da primeira infancia per- mite-nos afirmar que as sensagdes cxtcro-, préprio- ¢ in- teroceptivas ainda ndo estao, apds a décimoa segundo més, suficientemente coordenadas para que seja concluido o reco- nhecimento do préprio corpo, nem correlativamente a nocao do que lhe é exterior. Muito cedo, entretanco, certas sensacdes exteroceptivas se isolam esporadicamente em unidades de percepcio. Esses elementos de objetos correspondem, como € de prever, aos primeiras interesses afetivos. Disso dao testemunho a preco- cidade ¢ a eletividade das reagées da crianga diante da apro- ximacao e da partida das pessoas que cuidam dela. E preciso, porém, mencionar a parte, como um fato de estrucura, a reagao de interesse que a crianca manifesta diante do rosto human: ela é extremamente precoce, observando-se desde os primeiros dias ¢ antes mesmo que as coordenagdes motoras dos olhos estejam conclufdas. Esse fato nao pode ser desta- cado do progresso pelo qual o rosto humano assumird todo o seu valor de expresso psiquica. Esse valor, por ser social, nao pode ser tido como convencional. A poténcia reativada, muictas vezes de modo inefavel, que a mdscara humana assume 22 (ds complexos familiares nos conteuidos mentais das psicoses parece dar testemunho do arcaismo de sua significagao. Seja como for, essas reagdes eletivas permitem conceber na crianga um certo conhecimento muito precoce da presenga que a fungaéo materna preenche, ¢ o papel de traumatismo causal que, em algumas neuroses e certos distirbios do carater, pode desempenhar uma substitui¢ao dessa presenga. Esse conheci- mento, muito arcaico e¢ para o qual parece feito o calembur claudeliano de co-naissance*, pouco se distingue da adaptacio afetiva. Ele permanece inteiramente comprometido com a sa- tisfagao das necessidades préprias aos primeiros meses de vida e com a ambivaléncia tipica das relagées mentais que nela se es- bogam. Essa satisfagéo surge com os sinais da maior plenitude com que possa ser preenchido o desejo humano, por pouco que se considere a crianga ligada 4 mama. As sensacées proprioceptivas da sucgdo e da preensao cons- tituem, evidentemente, a base dessa ambivaléncia da vivéncia, que decorre da propria situagao: o ser que absorve é inteira- mente absorvido e o complexe arcaico lhe responde no abrago materno. Nao falaremos aqui, com Freud, de auto-erotismo, uma vez que 0 eu nao esté constituido, nem de narcisismo, uma vez que nao ha imagem do eu; muito menos ainda de ero- tismo oral, uma vez que a nostalgia do seio nutriente, sobre a qual se equivocou a escola psicanalitica, ndo depende do complexo do desmame sendo através de seu remanejamento pelo complexo de Edipo. “Canibalismo”, mas canibalismo fusional, inefdvel, simultaneamente ativo e passivo, sempre sobrevivente nos jogos e palavras simbdlicas que, no mais evo- luide amor, recordam o desejo da larva —~ reconheceremos * Co-nascimento, que cm francés soa equivocamente: conbecimento. Fator concreto da psicologia familiar 23 nesses termos a relagao com a realidade sobre a qual repousa a imago materna. * Mesmo essa base nao pode ser destacada do caos das sen- sag6es interoceptivas de que ela emerge. A angustia, cujo pro- ttipo surge na asfixia do nascimento, o frio, ligado a nudez do tegumento, ¢ o mal-estar labirintico a que corresponde a satis- fagdo do acalanto, organizam, por sua trfade, o com peneso da vida orgdnica que, para os melhores observadores, domina os seis primeiros meses do homem.. Esses mal-estares primordiais tém todos a mesma causa: uma insuficiente adaptacdo a rup- tura das condigdes do ambiente e de nutrig4o que constituem o equilibrio parasitdrio da vida intra-uterina. Essa concepcao esta de acordo com o que, ma experiéncia, a psicandlise encontra como fundamento ultimo da imago do seio materno: sob as fantasias do sonho, como sob as obsessécs da vigflia se desenham com uma precisdo impressionante as imagens do Aabitat intra-uterino e do limiar anatémico da vida extra-uterina, Em presenga dos dados da fisiologia e do fato anatémico da nao-mielinizacao dos centros nervosos supcrio- res no recém-nascido, é, no entanto, impossivel fazer do nasci- mento, como certos psicanalistas, um traumatismo psiquico. A partir dai, essa forma da imago permaneceria um enigma se o estado pds-natal do homem nao manifestasse, por seu prdéprio mal-estar, que a organiza¢ao postural, ténica, equilibratéria, peculiar 4 vida intra-uterina, sobrevive a esta. E preciso notar que o atraso da dentigdo e da marcha, wn atraso correlative da maioria dos apareihos e das fungGes, de- terminam na crianga uma impoténcia vital total que perdura além dos dois primeiros anos. Deve esse fato ser considerado como soliddrio daqueles que dado ao desenvolvimento somatico ulterior do homem o cardter de excegdo em relagdo aos animais 24 Os complexos familiares de sua classe: a duracdo do periodo da infancia ¢ o atraso da puberdade? Seja como for, ndo se deve hesitar em reconhecer, nos primeiros meses de vida, uma deficiéncia biolégica positiva ecm considerar o homem como um animal de nascimento pre- maturo. Essa concepgao explica a gencralidade do complexo e que ele seja independente dos acidentes da ablactagao. Esta — desmame no sentido estrito — dd expressao ps{quica, a pri- meira e também a mais adequada, 4 imago mais obscura de um desmame mais antigo, mais penoso e de maior amplitude vital: aquele que, no nascimento, separa a crianga da matriz, separagio prematura da qual provém um mal-estar que ne- nhum cuidado materno pode compensar. Recordemos a esse respeito um fato pediatrico conhecido, o retardo afetivo muito especial que se observa nas criangas prematuras. Assim constituida, a imago do seio materno domina toda a vida do homem, Em razio de sua ambivaléncia, no entanto, ela pode conseguir se saturar no reviramento da situagdo que ela re- presenta, 0 que so é realizado estritamente na ocasiao da materni- dade. Na aleitamento, no abrago e na contemplagao da crianga, a mac, ao mesmo tempo, recebe e satisfaz o mais primitivo de todos os desejos. Até a tolerancia da dor do parto pode ser com- preendida como o fato de uma compensagio representativa do primeiro dos fendmenos afetivos que surge: a angustia, nascida _coma vida, Apenas a imago que imprime no mais profundo do psiquismo o desmame congénito do homem pode explicar a po- téncia, a riqueza e a duracdo do sentimento materno. A realizacao dessa imago na consciéncia assegura 4 mulher uma satistagSo psi- guica privilegiada, ao passo que seus efeitos na conduta da mie preservam a crianca do abandono que seria fatal para esta. Opondo o complexo ao instinto, nao negamos ao com- plexo todo e qualquer fundamento biolégico e, definindo-o Fator concreto da psicologia frrmilior r por certas relagdes ideais, nds o ligamos, contudo, a sua base material. Esta base ¢é a fungdo que ele assegura no grupo social; e esse fFundamento bioldgico pode ser visto na dependéncia vital do individuo em relacgao ao grupo. Ao passo que o instinto tem um suporte organico e nao € nada mais do que a regulagao deste numa fungao vital, o complexo sé acasionalmente tem uma relacdo organica, quando ele supre uma insuficiéncia vital pela regulagdo de uma fungae social. Este é 0 caso do complexe do desmame. Essa relacao orginica explica que a imago da mde se, atenha as profundezas do psiquismo € que sua sublimagio seja : ~*particularmente dificil, o que se manifesta na ligagao da crianga. “As saias da mae” e na duragio as vezes anacrénica desse clo. A imago, no entanto, deve ser sublimada para que novas telages se intreduzam com o grupo social, para que no- vos complexos as integrem ao psiquismo. Na medida em que resiste a essas exigéncias novas que sao as do progresso da personalidade, a imago, salutar na origem, torna-se fator de morte. Que a tendéncia & morte seja vivida pelo homem como objeto de um apetite, esta é uma realidade que a andlise faz. apa- recer em todos os niveis do psiquismo; dessa realidade, coube ao inventor da psicandlise reconhecer o cardter irredutivel, mas a explicacdo que ele deu através de um instinto de morte, por mais deslumbrante que seja, nao deixa de ser contraditéria nos termos; tanto é verdade que o génio mesmo, em Freud, cede ao preconceito do bidlogo que exige que toda tendéncia se re- lactone a um instinto, Ora, a tendéncia A morte, que especifica © psiquismo do homem, explica-se de modo satisfatdrio pela concepgao que aqui desenvolvemos, a saber, que 0 complexo, unidade funcional desse psiquisma, nao corresponde a fungGcs vitais, mas & insuficiéncia congénita dessas fungées. 26 Os complexos familiares Essa tendéncia psiquica & motte, sob a forma original que lhe dé o desmame, revela-se em suicidios muito especiais que se caracterizam como “nao-violentos”, ao mesmo tempo que ai aparece a forma oral do complexo: greve de fome da anorexia mental, envenenamento lento de certas toxicomanias pela boca, regime de fome das neuroses gastricas. A andlise desses casos mostra que, em seu abandono 4 morte, o sujeito procura reen- contrar a imago da mae. Essa associagao mental nao € apenas morbida. Ela é genérica, como se vé na pratica da sepultura, da qual certas formas manifestam claramente o sentido psicaldgico de retorno ao seio da mae; como revelam ainda as conexées es- tabelecidas entre a mae e a morte, tanto pelas técnicas mdgicas quanto pelas concepgées das teologias antigas; come se observa, enfim, em toda experiéncia psicanalitica bastante avangada. Mesmo sublimada, a imago do seio materno continua a desempenhar um importante papel psiquico para nosso sujeito. Sua forma mais subtrafda da consciéncia, a do habitat pré-natal, encontra na habitacao e no seu limiar, sobretudo em suas formas primitivas, a caverna, a cabana, um simbolo adequado. Com isso, tudo o que constitui a unidade doméstica do grupo familiar torna-se, para o individuo, 4 medida que ele é mais capaz de abstrai-la, o abjeto de uma afeigao distinta daquelas que o unem a cada membro desse grupo. Com isso, ainda, o abandona das segurangas que a economia familiar comporta tem o alcance de uma repetigéo do desmame e, na maioria das vezes, ¢ apenas nessa ocasido que o complexe é li- quidado suficientemente. Todo retorno, ainda que parcial, a essas segurancas pode desencadear no psiquismo ruinas sem proporgao com o beneficio pratico desse retorno. Tode acabamento da personalidade exige esse novo des- mame. Hegel formulafque o individuo que nao luta para ser Fator conereto da psicologia familiar = 27 reconhecide fora do grupo familiar nunca atinge a personali- dade antes da morte}O sentido psicolégico dessa tese aparecera na seqiiéncia de nosso estudo. No que tange a dignidade pes- soal, é apenas & das entidades nominais que a familia promove o individuo, e ela sé pode fazé-lo no momento da sepultura. A saturac’o do complexo funda o sentimento materno; sua sublimagdo contribui para o sentimento familiar; sua liqui- dagao deixa tracos onde é possfvel reconhecé-la: é essa estru- tura da imago que permanece na base dos progressos mentais que a remanejaram. Se fosse preciso definir a forma mais abs- trata onde a encontramos, nds a caracterizariamos assim: uma assimilacdo perfcita da totalidade ao ser. Sob essa formula de aspecto um pouco filosdfica, reconheceremos as seguintes nos- talgias da humanidade: miragem mcetafisica da harmonia uni- versal, abismo mistico da fusao afetiva, utopia social de uma tucela totalitaria, todas safdas da obsessao do paraiso perdido de antes do nascimento e da mais obscura aspiragdo 4 morte. ll. O complexo da intrus4o O complexo da intruso representa a experiéncia que o sujeito primitivo realiza, na maioria das vezes quando vé um ou varios de seus semelhantes participar com ele na relagao doméstica, melhor dizendo, quando ele se reconhece como tendo irm4os. As con- digées sero, portanto, muito varidveis, por um lado, segundo as culturas ¢ a extensa0 que elas dao ao grupo domeéstico, por outro, segundo as contingéncias individuais, ¢ primeiramente segundo o lugar que a sorte dd ao sujeito na ordem dos nascimentos, se- gundo a posigao dindstica, pode-se dizer que cle ocupa assim an- tes de qualquer conflito: a de abastacdo ou a de usurpador. 28 Os complexes familiares © citime infantil tem jé de longa data impressionado os observadores: “Vi”, diz Santo Agostinho, “e observei uma [crianga], cheia de inveja, que ainda nao falava e ja olhava, pd- lida, de rosto colérico, para o irmaozinho colaco”* ( Confissées, I, VID. © fato aqui revelado ao espanto do moralista perma- neceu muito tempo reduzido ao valor de um tema de retdrica, utilizdvel para todos os fins apologéticos. A observagao experimental da crianca ¢€ as investigacGes psicanaliticas, demonstrando a estrutura do citime infantil, esclareceram seu papel na génese da sociabilidade ec, por ai, do préprio conhecimento enquanto humano{Digamos que 0 ponto crftico revelado por essas pesquisas € que o cidme, em sua esséncia, representa nao uma rivalidade vital, mas uma identificagao mental.) Criangas entre seis meses e dois anos scndo confrontadas aos pares € sem terceiros, e deixadas em sua espontaneidade hidica, fazem-nos constatar o seguinte: entre as criangas assim colocadas juntas aparccem reagGes divetsas nas quais parece manifestar-se uma comunicagao, Entre essas reagdes, um tipo se distingue, pelo fato de se poder reconhecer uma rivalidade objetivamente definivel: ele comporta, com efeito, entre os su- jeitos, uma certa adaptago das posturas e dos gestos, a saber, uma conformidade em sua alterndncia, uma convergéncia em sua série, que os ordenam em provocagées € respostas, permi- tindo afirmar, sem prejulgar consciéncia dos sujeitos, que cles tealizam a situagao como tendo dupla saida, como uma alter- nativa. Na medida mesma dessa adaptagao, pode-se admitir que, desde esse estddio, se esboga o reconhecimento de um rival, ou seja, de um “outre” como objeto. Ora, se tal reagdo ” “Traducao de I. Oliveira Santos, S. J., eA. Ambrdsio de Pina, S. J. Fator concreto da psicologia familttr oy pode ser muito precoce, ela se mostra determinada por uma condigao tao dominante que aparece como unfvoca: a saber, um limite que nado pode ser ultrapassado na distancia de idade entre os sujeitos. Esse limite se restringe a dois meses € meio no primeiro ano do perfodo considerado e permanece estrito do mesmo modo ao se ampliar. Se essa condigao nao for preenchida, as reagdes que se observam entre as criangas confrontadas tém um valor intei- ramente diferente. Examinemos as mais fregiientes: as da exibicdo, da seducdo, do despotismo. Ainda que af igurem dois parceiros, a relagao que caracceriza cada uma delas se revela & observagao, nao como um conflto entre dois indi- viduos, mas, em cada sujeito, como um conflito entre dutas atitudes opostas ¢ complementares, e essa participacao bi-po- lar é constitutiva da prdpria sicuagao. Para compreender essa estrutura, detenhamo-nos por wm instante na crianga que se oferece como espetacula e naquela que a acompanha com o olhar: qual das duas é mais espectadora? Ou entao observe- mos a crianga que prodigaliza a uma outra suas tentativas de seducdo: onde esta o sedutor? Finalmente, da crianga que se de- leita com as provas da dominacdo que exerce e daquela que se compraz em sc submeter a elas, perguntemo-nos: qual estd mais esctavizada? Aqui se realiza o seguinte paradoxo: que cada par—_. _ceito confunde a parte do outre com a sua prdpria e com ele se identifica; mas que ele pode sustentar essa relagio numa pattici- pagao propriamente insignificante desse outro e vivet, cntao, toda a situagao sozinho, tal como é manifestado pela discordancia, as vezes total, entre suas condutas. Vale dizer que a identifica- ¢40, especifica das condutas sociais, nesse estédio, se funda num sentimento do outro, que sé pode ser mal conhecido sem uma concepgio correta de seu valor inteiramente imagindria, 30 Os complexes familiares Qual ¢; entdo, a estrutura dessa imago? Uma primeira indicagao nos é dada pela condic¢&o reconhecida acima como necessdria a uma adaptagao real entre parceiros, a saber, uma diferenca de idade muito estreitamente limitada. Se nos refe- rirmos ao fato de que esse estddio é caracterizado por transfor- magoes da estrutura nervosa bastante rapidas e profundas para dominar as diferenciagSes individuais, compreenderemos que essa condic¢ao equivale & exigéncia de uma similitude entre os sujeitos. Depreende-se que a imago do outro estd ligada 4 es- trutura do corpo préprio, e mais especialmente de suas funcées de relacdo, por uma certa similitude objetiva. A doutrina da psicandlise permite uma maior aproximacao do problema. Ela nos mostra no irm4o, no sentido neutro, o objeto eletivo das exigéncias da libido que, no estédio que estu- damos, sa0 homossexuais. Mas ela também insiste sobre a confu- sao, nesse objeto, de duas relacées afetivas, amor e identificacio, cuja oposicao sera fundamental nos estadios ultetiores. Essa ambigitidade original € novamente encontrada no adulto, na paixao do cittme amoroso, ¢ é af que podemos melhor apreendé-la. Com efeito, devemos reconhecé-la no poderoso interesse que 0 sujeito tem pela imagem do rival: interesse que, ainda que se afirme como édio, ou seja, como negativo, e ainda que se motive pelo objeto pretendido do amor, nao deixa de parecer menos entretido pelo sujeito da maneira mais gratuita e mais custosa, e, freqiientemente, do- mina a tal ponto o ptdéprie sentimento amoroso, que deve ser interpretado como o interesse essencial e positive da paixdo. Esse interesse confunde nele a identificacao e o amor, e, por s6 aparecer mascarado no registro do pensamento do adulto, nao deixa de conferir a paixdo que ele sustenta esta irrefutabi- lidade que a aparenta com a obsessfo. A agressividade maxima Fator concrete da psicologia familiar 31 que encontramos nas formas psicoticas da paixdo € constituida bem mais pela negacao desse singular interesse do que pela ri- validade que parece justifica-la. Mas ¢€ especialmente na situacio fraterna primitiva que a agressividade se demonstra secundaria 3 identificagao. A doutrina freudiana permanece incerta nesse ponto; a idéia darwiniana de que a luta est na prdpria otigem da vida conserva, efetiva- mente, um grande crédito junto ao bidlego; mas, sem duvida, é pteciso reconhecer aqui 0 prestigio menos criticado de uma én- fase moralizante, que se transmite através de clichés tais como: home homini lupus. Ao contrario, é evidente que a proviso de alimentos constitui precisamente para os jovens uma neutraliza- 40 temporaria das condicées da luca pelo alimento. Essa signi- ficagio é ainda mais evidente no homem JO aparecimento do_ _citime telacionado com a alimentagao, segundo o tema classico lustrado acima por uma citacao de Sanco Agostinho, deve, pois, _ _ser interpretado com prudéncia. De fato, o cittme pode se ma- nifestar nos casos em que o sujeito, tendo sofrido o desmame hd4 muito tempo, nao estd em situacae de concorréncia vital em re- lagao a scu irmdo. O fendmeno parece, pois, exigit como prévia uma certa identificagiio ao estado do irmao. De resta, a douttina analitica, caractetizando como sadomasoquista a tendéncia tipica da libido nesse mesmo estddio, ressalta sem duivida que a agressi- vidade domina, entao, a economia afetiva, mas também que ela é sempre simultaneamente sofrida e posta em ato (agie), ou seja, sustentada por uma identificagao ao outro, objeto da violéncia. Lembremos que esse papel de foro intimo que o maso- quismo desempenha no sadismo foi posto em relevo pela psi- candlise e que é 0 enigma que o masoquismo constitui na economia dos instintos vitais que leveu Freud a afirmar um instinto de morte. 32 Os complexes familiares Se se quiser seguir a iddia que indicamos acima e desig- nar conosco, no mal-estar do desmame humano, a fonte do desejo de morte, reconhecer-se-4 no masoquismo primirio o momento dialético em que o sujeito assume, por seus primei- ros atos de jogo, a reprodugao desse mesmo mal-estar ¢, com isso, o sublima e o ultrapassa. Foi justamente assim que os joges primitivos da crianga se mostraram ao olho conhecedor de Freud: essa alegria da primeira infancia em rejeitar um ob- jeto do campo de seu ofhar, depois, encontrado o objeto, em renovar inesgotavelmente sua exclusao, significa justamente que € 0 patético do desmame que © sujeito inflige de novo a si mesmo, tal como ele o sofreu, mas do qual ele triunfa, agora que ¢ ativo em sua reproducao. O desdobramento assim esbogado no sujeito é a identifi- cagdo com o irm4o que permite sua conclusao: ela fornece a imagem que fixa um dos pélos do masoquismo primdrio. As- sim, a nao-violéncia do suicidio primordial engendra a violén- cia do assassinio imagindrio do irmao. Mas essa violéncia nao tem relagéo com a luta pela vida, O objeto que a agressividade escolhe nos primitivos jogos da morte ¢, com efeito, chocalho ou rebotalho, biclogicamente indiferente; 0 sujeito o abole gra- tuitamente, de algum modo pelo simples prazer, consumindo assim apenas a perda do objeto materno. A imagem do irmao no sujeito a imago da situagdo materna e, com cla, o desejo de_, morte. Esse fenémeno é secundario & identificagao. _ A identificagao afetiva é uma fungao psiquica cuja origi- nalidade foi estabclecida pela psicandlise, especialmente no complexe de Edipo, como veremos. Mas 0 emprego desse termo no estddio que estudamos permanece mal definido na doutrina; foi o que tentamos suprir por uma teoria dessa iden- Fittor concreto da psicologia familiar 33 tificagao, cujo momento genético designamos com o termo estédio do espelho. O estddio assim considerado corresponde ao declinio do desmame, ou seja, ao fim desses seis meses cuja dominante psi- quica de mal-estar, correspondente ao atraso do crescimento fi- sico, traduz essa prematuragdo do nascimento que é, coma clis- semos, 0 fundamento especifico do desmame no homem. Ora, __o teconhecimento pelo sujeito de sua imagem no espelho é um _. _ fendmeno que, para a andlise desse estaclio, é duplamente signi- _ ficativo: o fenémeno aparece apds seis meses € sc estudo nesse momenta revela de maneira demonstrativa as tendéncias que constituem, entie, a realidade do su jeito; a imagem especular, em virtude mesmo dessas alinicades, fornece um bom simbolo _de sua estrutura, como ela reflete a forma humana, A percepcao da forma do semelhante enquanto unidade mental estd, no ser vivo, ligada a um nivel correlativo de inteli- géncia e de sociabilidade. A imitagao ao ouvir um sinal mostra essa percepcdo, reduzida, no animal de rebanho; as estruturas econémicas, ecoprdxicas manifestam sua infinita riqueza no macaco ¢ no homem. F esse o sentido primério do interesse que um e outro manifestam por sua imagem especular. Mas se sells comportamentos cm relacdo a essa imagem, sob a forma de tentativas de apreensdo manual, parecem assemelhar-se, cs- ses jogos sé predominam no homem durante um momento, ao fim do primeiro ano, idade denominada por Biihlcr “idade de chimpanzé”, porque ai o homem passa por um nivel seme- Ihante de inteligéncia instrumental. Ora, o fendmeno de percepcao, que se produz no homem desde o sexto més, surgiu a partir desse momento sob uma forma inteiramente diference, caracteristica de uma intui¢ao 34 Os complexos familiares iluminativa, a saber, sobre o fundo de uma inibigao atenta, revelacao stibita do comportamento adaptado (aqui, gesto de referéncia a alguma parte do corpo préprio); depois, esse es- banjamento jubilatério de energia que assinala objetivamente © triunfo; essa dupla reagio que deixa entrever o sentimento de compreensio sob sua forma inefavel. Tais caracteristicas traduzem, como afirmamos, o sentido secundirio que o fe- némeno recebe das condig6es libidinais que envolvem sen aparecimento. Essas condigées so apenas as tensdes psiquicas provenicntes dos meses de prematuragao e que parecem tradu- zir uma dupla ruptura vital: ruptura dessa adaptagio imediata ao meio que define 0 mundo do animal por sua co-naturali- dade; ruptura dessa unidade do funcionamento do vive que submete, no animal, a percepgao a pulsao. A discordancia, nesse estadio, no homem, tanto das pul- sdes quanto das funcées, nao é senfo a seqiiéncia da incoor- denacao prolongada dos aparelhos, Daf resulta um estddio constitufdo afetiva e mentalmente sobre a base de uma pro- prioceptividade que dé o corpo como despedagado: por um lado, o interesse psfquico se acha deslocado para tendéncias que visam algum recolamento do corpo préprio; por outro, a sealidade, submetida inicialmente a um despedagamento perceptivo, cujo caos atinge até suas categotias, “espagos”, por exemplo, tao dispares quanto as estaticas sucessivas da crianga, se ordena refletindo as formas do corpo que fornecem de al- guma forma o modelo de todos as objetos. Traca-se af de uma estrutura arcaica do mundo humano, cujos profundos vestigios a andlise do inconsciente mostrou: fantasias de desmembramento, de deslocagao do corpo, encre as quais as da castracio sao apenas uma imagem valorizada por um complexo particular; a imago do duplo, cujas objetivagdes Fatar concreto da psicolagia familiar 35 fantdsticas, tals como diversas causas as realizam em diferentes idades da vida, revelam ao psiquiatra que ela evolui com o cres- cimento do sujeito; enfim, esse simbolismo antropomérfico e organico dos objetos dos quais a psicandlise, nos sonhos e nos sintomas, fez, a prodigiosa descoberta. A tendéncia pela qual o sujeito restaura a unidade perdida de si mesmo toma lugar, desde a origem, no centro da cons- ciéncia. Ela é a fonte de energia de seu progresso mental, cuja estrutura é determinada pela predominancia das funcGes vi- suais. Se a procura de sua unidade afetiva promove no sujeito as formas em que ele representa sua idencidade, a forma mais intuitiva é dada, nessa fase, pela imagem especular. O que o sujeito dela satida é a unidade mental que lhe ¢ inerente. O que ele reconhece nela € 0 ideal da imago do duplo. O que ele nela aclama € 0 triunfo da tendéncia salutat. _O munde proprio a essa fase ¢, pois, um mundo narcisico. Designando-o dessc modo, no evocamos apenas sua estru- tura libidinal pelo termo mesmo com que Freud e Abraham, desde 1908, assinalaram o sentido puramente energético de investimento da libido no corpo préprio; quetemos também penetrar sua estrutura mental com o sentido pleno do mito de Narciso; que esse sentido indica a morte: a insuficiéncia vital de que provém esse mundo; ou o reflex especular: a imago da duplo que lhe é central; ou a ilusao da imagem: esse mundo, | como veremos, nio contém o outro. A percepeio da atividade do outro nao basta, com efcito, para romper o isolamenta afetivo do sujeito, ‘Tanta quanto a imagem do semelhante sé desempenha seu papel primario, li- mitado 4 fungdo de expressividade, ela desencadecia no sujeito emogocs € posturas similares, ao menos na medida em que a estrutura atual de seus aparelhos o permite. Mas enquanto 36 Os complexes familiares sofre essa sugestao emocional ou motora, o sujeito nao se dis- tingue da propria imagem. Mais do que isso, na discordancia caracteristica dessa fase, a imagem sé faz acrescentar a intru- séo temporaria de uma tendéncia estrangeira. Chamemo-la intrusao narefsica: a unidade que ela introduz nas tendéncias contribuird, entretanto, para a formac3o do eu. Mas, antes que o eu afirme sua identidade, ele se confunde com essa imagem que o forma, mas o aliena primordialmente. Digamos que 0 eu conservard dessa origem a estrutura ambigua do espetdculo que, manifesto nas situacées acima des- critas do despotismo, da seducdo, da exibicdo, dd sua forma a pulsdes, sadomasoquista e escoptofilica (desejo de ver e de ser visto), em sua esséncia destruidoras do outro. Notemos, tam- bém, que essa intrusao primordial faz compreender toda proje- ¢40 do eu constituido, quer ela se manifeste como mitomaniaca na crianga cuja identificagao pessoal ainda vacila, como tran- sitivista no parandico cujo eu regride a um estAdio arcaico, ou como compreensiva quando é integrada num eu normal. O eu se constitui ao mesmo tempo que o outro no drama do citime. Para o sujeito, é uma discordancia que intervém na satisfagao espetacular, pela tendéncia que esta sugere. Ela implica a introducgao de um terceiro objeto que substizui a confusao afetiva, assim como a ambigitidade espetacular, pela concorréncia de uma situagao triangular. Assim, o sujeito, comprometido no citime por identificagao, desemboca numa alternativa nova em que a sorte da realidade estd em jogo: ou ele reencontra o objeto materno e vai se agarrar A recusa do real e A destruigao do outro; ou, levado a algum outro objeto, ele o recebe sob a forma caracteristica do conhecimento hu- mano, como objeto comunicavel, j4 que concorréncia implica ao mesmo tempo rivalidade ¢ concordancia; mas, ao mesmo Fator concreto dit psicologia familiar 37 tempo, ele reconhece 0 outro com o qual se engaja a luta ou o contrato, em resume, ele encontra, a0 mesmo tempo, o outro e o objeto socializado. Ainda aqui o cittme humano se distin- gue, portanto, da rivalidade vital imediata, j4 que ele forma seu objeto mais do que o determina; ele se revela como 0 ar- quétipo dos sentimentos sociais. O eu assim concebido nao encontra antes da idade de trés anos sua constituigao essencial; é aquela mesma, come ve- mos, da objetividade fundamental do conhecimento humano. Ponto notdvel, este ultimo retira sua riqueza e seu poderio da insuficiéncia vital do homem em suas origens. O simbolismo primordial do objeto favorece tanto sua cxtcnsao fora dos limites dos instintos vitais quanto sua percepgd0 como ins- trumento. Sua socializagao pela simpatia ciumenta funda sua permanéncia e sua substancialidade. Sao esses os tragos essenciais do papel psiquico do com- plexo fraterno. Seguem-se algumas de suas aplicagdes. _ © papel traumatizante do irmag, no sentido neutro, é, pois, _constituido por sua intrusao, O fato e a época de seu apateci- mento determinam sua significacao para o sujeito. A intrusdo parte do recém-chegado para infestar o ocupante; na familia, é, em regra geral, a ocorréncia de um nascimento e ¢ 0 primogé- nito que, em principio, desempenha Oo papel de pacicnte. / A teacao do paciente ao traumatismo depende de seu de- senvolvimento psiquico. Surpreendido pelo intruso na aflicdo do desmame, ele o reativa sem cessar diante de seu esperaculo: faz, entao, uma regressao que se revelard, segundo os destinos do cu, como psicose esquizofrénica ou como neurose hipo- condriaca; ou entao ele reage pela destruigdo imagindria do monstro, que dara, do mesmo mado, quer impulsées perver- sas, quer uma culpa obsessiva. 38 Os complexes familiares O intruso sobrevindo, do contrario, s6 apds o complexo de Edipo, ele é adotado na maioria das vezes no plano das identificagSes parentais, mais densas afetivamente e mais ricas de estrutura, como iremos ver. Ele nao é mais, para O sujeito, 0 obstdculo ou o reflexo, mas uma pessoa digna de amor ou de édio. As pulsdes agressivas se sublimam em ternura ou em severidade, Mas 0 irmdo fornece, também, o modelo arcaico do eu. Aqui, o papel de agente cabe ao primogénito como sendo o mais acabado. Quanto mais conforme for esse modelo com o conjunto das pulsdes do sujeito, mais feliz serd a sintese do eu € mais reais as formas da objetividade. Sera essa formula confirmada pelo estudo dos gémeos? Sabe-se que numerosos mitos thes imputam a poténcia do herdi, através do que € res- taurada na realidade a harmonia do seio matetno, mas & custa de um fratricidio. Seja como for, ¢ pelo semelhante que o ob- jeto como o eu se realiza: quanto mais pode assimilar de seu parceiro, mais 0 sujeito conforta ao mcsmo tempo sua perso- nalidade e sua objetividade, garantes de sua futura ehcdcia. Mas 0 grupo da fratria familiar, diverso em idade e sexo, é favoravel as identificagées mais discordantes do eu. A imago primordial do duplo sebre o qual o eu se modela parece ini- cialmente dominada pelas fantasias (fantaisies) da forma, como aparece na fantasia (fantasme)* comum aos dois sexos, da mde fdlica ou no dupie falice da mulher neurdtica. Tanto mais facilmente ela se fixaré em formas atipicas, onde perti- néncias acessérias poderao desempenhar um papel rao grande * Utiliza-se aqui o mesmo terme brasileiro faztasia para traduzir tanto fantaisie quanto fantasme, sendo o segundo o termo francés que designa a categoria psicanalitica, inttoduzida por Freud, de fantasia tnconsciente. (N, do T.) Fator concreto da psicologia familiar 39 quanto diferengas organicas; e veremos, segundo o impulsa, suficiente ou n4o, do instinto sexual, essa identificacdo da fase narcisica engendrar as exigéncias formais de uma homosse- xualidade ou de algum fetichismo sexual, ou entio, ne sistema de um eu parandico, objetivar-se no tipo do perseguidor, ex- terno ou intimo. As conexées da parandéia com o complexe fraterno se ma- nifestam pela freqiiéncia dos temas de filiagdo, de usurpacao, de espoliagado, como sua estrutura narcisica se revela nos temas mais parandides da intrusdo, da influéncia, do desdobramento, do duplo e de todas as transmutagées delirantes do corpo. Tais conexdes se explicam pelo fato de que o grupo fa- miliar, reduzido a mae e & fratria, desenha um complexo psi- quico no qual a realidade tende a permanecer imagindria ou, no maximo, abstraida. A clinica mostra que, efetivamente, o grupo assim tornado incompleto é muito favordvel 4 eclosio das psicoses ¢ que af se encontra a maioria dos casos de deli- rio a dois. Ill. O complexo de Edipo Foi descobrindo na andlise das neuroses os fatos edipianos que Freud evidenciou o conceite de complexe. O complexo de Edipo, exposto, tendo em vista o numero de relacées psfquicas que ele interessa em muitos pontos desta obra, impdc-sc aqui — tanto para nosso estudo, uma vez que ele define mais particu- larmente as relag6es psiquicas na familia humana — quanto para nossa critica, na medida em que Freud da esse elemento psicolégico como a forma especifica da familia humana c lhe subordina todas as variagées sociais da familia. A ordem me- 40° Os complexos familiares tédica aqui proposta, tanto na consideracao das estruturas mentais quanto dos fatos sociais, conduzird a uma revisio do complexo que permitiré situar a familia paternalista na histéria e esclarecer mais adiante a neurose contemporanea. A psicandlise revelou na crianga pulsdes genitais cujo apo- geu se situa no quarto ano de vida. Sem nos estendermos aqui sobre sua estrutura, digamos que elas constituem uma espécie de puberdade psicoldégica, bastante prematura, como vemos, em relagdo 4 puberdade fisiolégica. Fixando a crianga por um desejo sexual ao objeto mais proximo que normalmente a pre- senga e o interesse lhe oferecem, a saber, o progenitor do sexo oposto, essas pulses fornecem ao complexe sua base; a frus- tracao delas forma seu no. Ainda que inerente 4 prematuragao essencial dessas pulses, essa frustracao é referida pela crianga ao terceiro objeto que as mesmas condigdes de presenga e de interessc Ihe designam normalmente como obstdculo para sua satisfag4o: a saber, ao progenitor do mesmo sexo. A frustragao que ela sofre é acompanhada, com efeito, co- mumente, de uma repressao educativa que tem por finalidade impedir qualquer realizacao dessas pulsdes e, especialmente, sua realizagdo masturbatdria. Por outro lado, a crianga adquire uma certa intuigao da situagdo que lhe é proibida, tanto pelos sinais discretos ¢ difusos que traem, para sua sensibilidade, as relacdes parentais, quante pelos acasos intempestivos que as desvclam para ela. Através desse duplo processo, 0 progenitor do mesmo sexo aparece para a crian¢a ao mesmo tempo como o agente da interdicao sexual e como o exemplo de sua transgressio. A tensSo assim constituida se resolve, por um lado, por um recalcamento da cendéncia sexual que, a partir daf, perma- necera latente — dando lugar a interesses neutros, cminente- mente favoraveis as aquisicOcs educativas — até a puberdade; fator concrete da psicelogia familiar 41 por outro lado, pela sublimagao da imagem parental que per- petuard na consciéncia um ideal representativo, garantia da coincidéncia futura das atitudes psiquicas e das atitudes fi- siolégicas no momento da puberdadc. Essc duplo processo tem uma importancia genética fundamental, pois permanece inscrito no psiquismo em duas instancias permanentes: ¢ a que. " Tepresentam 1m 0 acabamento da crise eedipiana. Esse esquema essencial do coimplexo corresponde a um grande niimero de dados da experiéncia. A existéncia da se-, xualidade infantil ¢ doravante incontestada; de resto, por cer se revelado historicamente pot essas seqiielas de sua evolugdo que constituem as neuroses, ela ¢ acessivel & observagaio mais imediata, e scu desconhecimento secular € uma prova impres- sionante da relatividade social do saber humano. As instancias psiquicas que, com o nome de supereu e de ideal do eu, foram isoladas numa andlise concreta dos sintomas das neuroses, ma- nifestaram seu valor cientifico na definicao e na explicagao dos fendmenos da personalidade; ha af uma ordem de determina- Gao positiva que dd conta de um grande numero de anomalias do comportamento humano e, ao mesmo tempo, torna cadu- cas, para esses disturbios, as referéncias a ordem organica que, ainda que de puro principio ou simplesmente miticas, servem de método experimental para coda uma cradi¢ao médica. Na verdade, esse preconceito que atribui & ordem psiquica um cardter epifenomenal, ou seja, inoperante, era favorecido por uma andlise insuficiente dos fatores dessa ordem e € precisa- mente A luz da situagao definida como edipiana que tais aciden- tes da histéria do sujeito adquirem a significacdo e a importancia que permitem relaciond-los a determinado trago individual de sua personalidade; podemos mesmo precisar que, quando esses 42 Os complexas familiares acidentes afetam a situacao edipiana como traumatismos em sua evolucio, eles se repetem de preferéncia nos efeitos do supereu; se eles o afetam como atipias em sua constituigao, é de prefe- réncia nas formas do ideal do eu que se refletem. Assim, como inibigdes da atividade criativa ou como invers6es da imaginagio sexual, um grande numero de disttirbios, entre os quais muitos aparecem ao nivel das fungdes sométicas elementares, encontra- ram sua reduce teérica e terapéutica. Descobrir que desenvolvimentos tao importantes para o homem quanto os da repressdo sexual e do sexo psiquico es- tavam submetidos A regulagdo e aos acidentes de um drama psiquico da familia era fornecer a mais preciosa contribuigao 4 antropologia do grupo familiar, especialmente para o estudo das interdicg6es que csse grupo formula universalmente e que tém por objeto o comércio sexual entre alguns de seus mem- bros. Do mesmo modo, Freud chega rapidamente a formular uma teoria da familia. Ela estava fundada numa dissimetria, surgida desde as primeiras pesquisas, na situagio dos dois se- xos em telacio ao Edipo. O processo que vai do desejo edi- piano a sua repressao sé no menino aparece tao simples como expuscmos inicialmente. Da mesma forma, este ultimo ¢ que é tomado constantemente como sujeito nas exposigées didd- ticas do complexo. _O desejo edipiano aparece, com efeito, muito mais intenso no menino e, portanto, para a mac. Por outro Jado, a repressdo revela, em seu mecanismo, tracos que sé parecer justificdveis inicialmente sc, em sua forma tipica, ela se exerce do pai para o filho. Ai se encontra 0 cerne do complexo de castragao. Essa repressfo se opera através de um duplo movimento afetivo do sujeito: agressividade contra 0 progenitor em relagao ao qual seu desejo sexual 0 coloca em postura de rival; temor Fator concreto da psicologia familiar 43 secunddrio, experimentado em retorno de uma agressdo seme- ihance. Ora, uma fantasia sustenta esses dois movimentos, tao notavel que foi individualizada com eles num complexo dito de castracdo. Se esse termo se justifica pelos fins agressivos e repres- sivos que aparecem nesse momento do Edipo, ele é, no entanto, pouce conforme a fantasia que constitui seu evento original. Essa fantasia consiste essencialmente na mutilagao de um membro, ou seja, numa sevicia que s6 pode servit para castrar um macho. Mas a realidade aparente desse perigo, unida ao fata de que a ameaga é realmente formulada por uma tradigdo educativa, devia levar Freud a concebé-lo como sentido ini- cialmente pelo seu valor real e a reconhecer num temar inspi- cado de macho para macho, de fato pelo pai, o protétipo da repressao edipiana. - Nessa trilha, Freud recebia um apoio de um dado sociold- gico: nfo apenas a interdigao do incesto com a mae tem um ca- rater untversal, através das relagées de parencesco infinitamente diversas e muitas vezes paradoxais que as culturas primitivas punem com o tabu do incesto, mas ainda, qualquer que seja o nivel da consciéncia moral numa cultura, essa interdicZo esta sempre expressamente formulada e sua transgressao € sempre nhece_no tabu da mic a lei primordial da humanidade, E assim que Freud da 0 salto cedrico cujo abuso assinala- mos em nossa introdugio: da familia conjugal que ele obser- vava em seus sujeitos, a uma hipotética familia primitiva con- cebida como uma horda que um individuo do sexo masculino domina por sua superioridade biolégica monopolizando as mulheres ntibeis. Freud se fundamenta no [iame que se cons- tata entre os tabus e as observancias em relacio ao totem, alter- nadamente objeto de inviolabilidade e de orgia sacrifical. Ele 44 Os complexos familiares imagina um drama de assassinio do pai pelos filhos, seguido de uma consagrag30 péstuma de seu poder sobre as mulhe- res pelos assassinos prisioneiros de uma insoltvel sivalidade: evento primordial do qual, juntamente com o tabu da mae, teria saido toda tradigao moral! e cultural. Mesmo que essa construgao nao fosse arruinada pclas pe- tigdes de principio que comporta — atribuir a um grupo bio- légico a possibilidade, que se trata justamente de fundar, do reconhecimento de uma Jei —, suas prdéprias premissas preren- samente bioldgicas, a saber a tirania permanente exercida pelo chefe da horda, se reduziriam a um fantasma cada vez mais incerto 4 medida que nosso conhecimento dos Antropéides avanca. Mas sobretudo os tragos universalmente presentes ¢ a extensa sobrevivéncia de uma estrututa matriarcal da familia, a existéncia em sua area de todas as formas fundamentais da cul- tura, e especialmente de uma repressZo com freqiiéncia muito rigorosa da sexualidade, manifestam que a ordem da familia humana possui fundamentos que escapam a forga do macho. Parece-nos, entretanto, que a imensa colhcita dos fatos que © complexo de Edipo permitiu objetivar, faz cerca de cin- qiienta anos, pode esclarecer a estrutura psicolégica da fami- lia mais do que as intuigGes demasiadamente precipitadas que acabamos de expor. O complexo de Edipo marca codos os nfveis do psiquismo; mas 0s tedricos da psicandlise nao definiram sem ambigtiidade as fungies que ele af preenche; é por nao ter distinguido sufi- cientemente os planos de desenvolvimento sobre os quais eles 0 explicam, Se, com efeito, o complexe aparece para eles como o eixo segundo o qual a evolugéo da sexualidade se projeta na constituicdo da realidade, esses dois planos divergem no homem por uma incidéncia especifica que é certamente reconhecida Fator concrete da psicologia famitiar 45 por eles como repressdo da sexualidade e sublimacao da reali- dade, mas deve ser integrada numa concepgao mais rigorosa dessas relag6es de estrutura: o papel de maturaga0 que o com- plexo desempenha nesses dois planos sé pode ser considerado como paralelo de modo aproximativo. © aparelho psiquico da sexualidade se revela inicialmente na crianga sob as formas mais aberrantes cm relag4o a seus fins bioldgicos, e a sucessao dessas formas dé testemunho de que é através de uma maturacdo progressiva que ele se conforma a organizagao genital, Essa maturagao da sexualidade condiciona o complexo de Edipo formando suas tendéncias fundamen- tais, mas, inversamente, o complexo a favorece dirigindo-a para seus objetos. O movimento do Edipo se Opera, com efeito, através de um conflito triangular no sujeito; jd vinos o jogo das tendéncias provenientes do desmame produzir uma formagio dessa espécie; também é a mae, objeto primeiro dessas cendéncias, como ali- mento a absorver e mesmo como seio onde se rcabsorver, que se ana ptopée inicialmente ao desejo edipiano. Compreende-se, assim, que esse desejo se caracterize melhor no homem, mas também que ele ofereca af uma oportunidade singular para a rcativagao das tendéncias do desmame, ou seja, para uma regressdo sexual. Essas tendéncias no constituem, com efeito, apenas um impasse psicoldgico; além disso, elas se op6em, aqui particularmente, 4 aticude de exteriorizacdo, conforme A atividade do macho. De modo intciramente opesto, no outro sexo, no qual essas tendéncias possuem uma safda poss{vel no destino bio- Idgica do sujeito, o objeto materno, desviando uma patte do desejo edipiana, tende decerto a neutralizar o potencial do complexo ec, com isso, seus efeitos de sexualizagdo, mas, im- pondo uma mudanga de objeto, a tendéncia genital se destaca 46 Os complexes familiares melhor das tendéncias primitivas ¢ ainda mais facilmente por- quanto nao tem que inverter a atitude de interiorizagao herdada dessas tendéncias que sao narcisicas. Desse modo, chega-se 4 conclusao ambigua de que, de um sexo a outro, quanto mais a formacio do complexo for acusada, mais aleatério parece ser seu papel na adaptac4o sexual, Vemos aqui a influéncia do complexo psicoldégice sobre uma relagao vital e é por esse vies que ele contribu: para a constituicao da realidade. O que ele proporciona se dissimula nos termos de uma psicogénese intelectualista: € uma certa profundeza afetiva do objeto. Dimensao que, por constituir o fundamento de toda compreensao subjetiva, nao se distingui- ria como fendmeno se a clinica das doengas mentais nao nos fizesse apreendé-la como tal propondo toda uma série de suas degradagées aos limites da compreensao. Por constituir, com efeico, uma norma da vivéncia, essa dimensdo sé pode ser reconstrufda através de intuicées meta- féricas: densidade que confere existéncia ao objeto, perspectiva que nos da a sensagio de sua distancia € nos inspira o respeito pelo objeto. Mas ela se demonstra nessas vacilagées da realidade que fecundam o delirio; quando 0 objeto tende a se confundir com 0 eu ao mesmo tempo que a se reabsorver em fantasia, quando ele surge decomposto segundo um desses sentimentos gue formam o espectro da irrealidade, desde os sentimentos de estranheza, de déa vu, passando pelos falsos reconhecimentos, ilusdes de sdsia, sensagdes de adivinhagao, de participacao, de influéncia, intuigées de significacao, para chegar ao crepiisculo do mundo ea essa abolicdo afetiva que se designa formalmente em alem4o como perda do objeto (Odjekrverlust). ‘Tais qualidades tao diversas da vivéncia, a psicandlise as ex- plica pelas variagdes da quantidade de energia vital que o desejo fator concreta da psicotogia familiar AG investe no objeto. A férmula, por mais verbal que possa parcect, corresponde, para os psicanalistas, a um dado de sua pratica; eles contam com esse investimento nas “transferéncias” operatérias de suas curas; ¢ nos recursos que esse investimento oferece que eles devem fundamentar a indicagao do tratamento. Assim, cles reconheceram nos sintomas citados acima os indices de um in- vestimento demasiado narcisico da libido, ao passo que a for- magio do Edipo aparecia como o momento e a prova de um investimento suliciente para a “transferéncia’. Esse papel do Edipo seria correlativo da maturagao da se- xualidade. A atitude instaurada pela tendéncia genital cristali- zaria, segundo seu tipo normal, a relagao vital com a realidade. Caracteriza-se essa atitude pelos termos de dom e de sacrificio, termos grandiosos, mas cujo sentido permanece ambiguo e hesita entre a proibicdo e a rentincia. Através deles, uma con- cepgao audaciosa reencontra o conforto secreto de um tema moralizador: na passagem da captatividade a oblatividade con- funde-se 4 vontade a prova vital com a prova moral. Essa concepgao pode ser definida como uma psicogénese analdgica; ela é conforme ao defeito mais marcante da doutrina analftica: negligenciar a estrucura em beneficio do dinamismo. No entanto, a prépria experiéncia analftica traz uma contti- buigdo para o estudo das formas mentais, demonstranda sua relaciio — seja de condigées, seja de solugdes — com as crises afetivas. EB diferenciando Oo jogo formal do complexo que se pode estabelecer, entre sua fungao e a estrutura do drama que lhe € essencial, uma relacia mais fixa. O complexo de Edipo, ao mesmo tempo que marca o dpice da sexualidade infantil, também ¢ o mével da repressio que reduz suas imagens ao estado de laténcia até a puberdade; se ele determina uma condensacfo da realidade no sentido da 48 Os complexos familiares vida, também é 0 momento da sublimagao que no homem abre sua extensdo desinteressada para essa realidade. As formas sob as quais se perpetuam esses efeitos sao de- _signadas como. supereu ou ideal do eu, conforme sejam in- conscientes ou conscientes para o sujeito. Elas reproduzem, ise image progenitor do mesmo sexo, o ideal do eu contribuindo assim para o conformismo sexual do psiquismo. Mas a image do pai teria, segundo a doutrina, nessas duas fungSes, um papel prototipico em virtude da dominagao do sexo masculino. Quanto A repressfo da sexualidade, cssa concepgao se ba- seia, como indicamos, na fantasia de castragao. Se a doutrina relaciona essa fantasia a uma ameaga real, é antes de mais nada porque, genialmente dinamista para reconhecer as tendéncias, Freud permanece enclausurado, pelo atomismo tradicional, na nogio de autonomia das formas; é assim que, ao observar a cxisténcia da mesma fantasia na menina, ou de uma imagem falica da mae nos dois sexos, ele é coagido a explicar esses fatos por precoces revelacées da dominagio do sexo masculino, re- velagdes que conduziriam a menina A nostalgia da virilidade, a crianga a conceber sua mae como viril. Génesc que, por encon- trar um fundamenro na identificacSo, requer para seu emprego uma sobrecarga tal de mecanismos que parece errdnea. Ora, o material da experiéncia analitica sugere uma inter- pretagao diferente; a fantasia de castracdo é, com efeito, pre- cedida por toda uma série de fantasias de despedacamento do corpo que vio, regressivamente, da deslocagdo e do desmem- bramento, passam pela eviracio, pelo eventramento, e chegam até 4 devoracio ¢ ao amortalhamento. O exame dessas fantasias revela que sua série se inscreve numa forma de penetracao, de sentido ao mesmo tempo destru- Fator concreto da psicolagia famitiar 49 tivo e investigador, que visa o segredo do seio materno, ao passo que essa relacdo é vivida pelo sujeito de mede mais ambivalente na proporeao de seu arcaisme. Mas os pesquisadores que com- pteenderam melhor a origem materna dessas fantasias (Melanic Klein) s6 se atém & simettia e a extensao que elas trazem 4 forma- cao do Edipo, revelando, por exemplo, a nostalgia da materni- dade no menino. Seu interesse reside, a nosso ver, na irrealidade evidente de sua estrutura: o exame dessas fantasias encontradas nos sonhos e em algumas impulsdes permite afirmar que elas nda se relacionam com nenbum corpo real, mas com um manequim heteréclito, uma boneca barroca, um troféu de membros no qual é preciso reconhccer o objeto narcisico cuja génese evocamos acima: condicionada pela precessiio, no hamem, de formas ima- gindrias do corpo sobre o dominio do corpo prépria, pelo valor de defesa que o sujeito dd a cssas formas, contra a anguistia do dilaceramento vital, fato da prematuragao. A fantasia de castragdo se relaciona a esse mesmo objeto: sua forma, nascida antes de qualquer referenciagio do corpo pré- prio, antes de qualquer distingio de uma ameaga do adulto, nao depende do sexo do sujeito e determina, de preferéncia, que ela nao sofra as formulas da tradigao educativa. Ela representa a de- fesa que o eu natcisica, identificado a seu duplo especular, opde a renovagao de angustia que, no primeiro momento do Edipo, tende a abal4-lo: crise que nao ocasiona tanto a irrupgio do de- sejo genital no sujeito quanto o objeto que ele reatualiza, a saber, amie. A angtistia despertada por esse objeto o sujeito responde reproduzindo a rejeigao masoquista com a qual ulcrapassou sua perda primordial, mas cle a opera segundo a estructura que ad- guiriu, ou seja, numa localizagio imagindria da tendéncia. Tal génese da repressdo sexual ndo deixa de ter referén- cia sociolégica: ela se exprime nos ritos através dos quais os 50 Os complexos familiares primitivos manifestam que essa repressdo encontra suas rafzes no liame social: ritos de festa que, para liberar a sexualidade, ai designam por sua forma orgfaca o momento da reintegra- cao afetiva no Todo; ritos de circuncisdo que, para sancionar a maturidade sexual, manifestam que a pessoa a ela sé acede ao prego de uma mutilacdo corporal. Para definir no plano psicoldgico essa génese da repressao, devemos reconhecer na fantasia de castragdo 0 jogo imagindrio que a condiciona, na mae 0 objeto que a determina. Ea forma radical das contrapulsées que se revclam 4 experiéncia anali- tica por consticuirem o nucleo mais arcaico do supcreu e por representarem a repressdo mais macica, Essa forca se reparte com. a diferenciagao dessa forma, isto é, com o progresso pelo qual o sujeito realiza a instancia repressiva na autoridade do adulto; nao se poderia compreender de outra forma esse fato, aparentemente contrdério 4 teoria, de que o rigor com o qual o supereu inibe as fungGes do sujeito tende a se estabelecer em razao inversa das severidades reais da educacdo. Ainda que o supereu ja receba somente da repressao materna (disciplinas do desmame e dos esfincteres) tracos da realidade, é no complexo de Edipo que ele ultrapassa sua forma nateisica. Aqui sc introduz o papel desse complexo na sublimagao da realidade. Deve-se partir, para comprecndé-lo, do momento no qual a doutrina mostra a solugao do drama, a saber, da forma que ela af descobriu, a da identificacao. E, com efeito, em vit- tude de uma identificagéo do sujeito com a imago do progenitor do mesmo sexo que o supereu e o ideal do cu podem revelar A experiéncia tracos conformes 4s particularidades dessa imago. A doutrina vé nesse ponto a obra de um narcisismo se- cundario; ela nao distingue essa identificagao da identificagao narcisica: ha igualmente assimilagdo do sujeito ao objeto; ela Fator concrete da psicologia fimiliar 5 nao vé af outra diferenga sendo a constituigao, com o desejo edipiano, de um objeto de mais realidade, opondo-se a um eu mais bem formado; da frustragao desse desejo resultaria, se- gundo as constantes do hedonismo, o retorno do sujeito a sua primordial voracidade de assimilagao e, da formagao do eu, uma imperfeita introjegio do objeto: a imago, para se impor ao sujeito, se justapde apenas ao eu nas duas exclusdes do in- consciente e do ideal. Uma andlise mais estrutural da identificagao edipiana pet- mite, no entanto, reconhecer-the uma forma mais distintiva. O que aparece inicialmente é a antinomia das funcSes que a imago parental desempenha no sujeito: por um lado, ela inibe a fungao sexual, mas sob uma forma inconsciente, pois a experiéncia mos- tra que a agdo do supereu contta as repetigées da tendéncia per- manece tao inconsciente quanto a tendéncia permancce recal- cada, Por outro lado, a imago preserva cssa fungio, mas a salvo de seu desconhecimento, pois é justamente a preparagao das vias de seu retorno futuro que o ideal do eu representa na conscién- cia, Assim, se a tendéncia se resolve sob as duas formas maiores, inconsciéncia, desconhecirmento, nas quais a andlise aprendeu a reconthecé-la, a prépria imago aparece sob duas estruturas cujo afastamento define a primeira sublimacao da realidade. Entretanto, no se ressalta suficientemente que o objeto da identificagdo nao ¢ aqui o abjeto do desejo, mas aquele que no triangulo edipiano se opée a ele. A identificagio de mimé- tica tornau-se propiciatéria; o objeto da participagao sado- masoquista se desprende do sujeito, distancia-se dele na nova ambigiiidade do temor e do amor. Mas, nesse passo rumo 4 realidade, o objeto primitivo do desejo parece escamoteado. Esse fato define, para nés, a originalidade da identificagao edipiana: ele nos parece indicar que, no complexo de Edipo, 52 Os complenos familiares nao é o momento do desejo que erige o objeto em sua nova realidade, mas o da defesa narcisica do sujeito. Esse momento, fazendo surgir o objeto que sua posicgao situa como obstdculo ao desejo, mostra-o aureolado da twans- gresso sentida como perigosa; ele surge para o eu ao mesmo tempo como o apoio de sua defesa ¢ o exemplo de seu triunfo. E por isso que esse objeto vern normalmente preencher 0 qua- dro do duplo com o qual o eu se identificou a principio ¢ atra- vés do qual ele ainda pode se confundir com outrem; ele traz ao eu uma seguranga ao reforgar esse quadro, mas ao mesmo tempo se opde a ele como um ideal que, alternadamente, o exalta e o deprime. Esse momento do Edipo fornece 0 protétipo da subli- magao tanto pclo papel de presenga mascarada que nele de- sempenha a tendéncia quanto pela forma com que reveste 0 objeto. A mesma forma é sensivel, com efeito, em cada crise em que se produz, para a realidade humana, essa condensa- 40 cujo enigma colocamos acima: é essa luz do espanto que transfigura um objeto dissolvendo suas equivaléncias no sujeito ¢ © propde n&o mais come meio para a satistagao do desejo, mas como pélo para as criagdes da paixdo. E reduzindo no- vamente tal objeto que a experiéncia realiza todo e qualquer aprofundamento. Uma série de fungGes antindmicas se constitui assim no sujeito pelas crises maiores da realidade humana, por conter as virtualidades indefinidas de seu progresso; se a fungao da consciéncia parece exprimir a angustia primordial e a da equi- valéncia refletir o conflito narcisico, a do exemplo parece a contribnigao original do complexo de Edipo. Ora, a propria estrutura do drama edipiano designa o pai para dar & fungao de sublimacao sua forma mais eminente, Fator concreto da psicologia fimitutr 53 porque mais pura. A imago da mie na identificagdo edipiana trai, com efeito, a interferéncia das identificagées primordiais; ela marca com suas formas e com sua ambivaléncia tanto o ideal do eu quanto o supereu: na menina, da mesma forma que a repressao da scxualidade impée mais preferencialmente as fungées corporais esse despedagamenta mental no qual se pode definir a histeria, a sublimacdo da imago materna tende a se transformar em sentimento de repulsa por scu declinio ¢ em preocupacao sistemdtica com a imagem ¢specular. A imago do pai, 4 medida que domina, polariza nos dois sexos as formas mais perfeitas do ideal do eu, sobre as quais basta indicar que realizam o ideal viril no menino ¢ 9 ideal vir- ginal na menina. Ao contrdrio, nas formas diminuidas dessa imago podemos ressaltar as lesdes fisicas, especialmente aque- las que a apresentam como estropiada ou enceguecida, para desviar a energia de sublimagao de sua direcdo criadora e fa- vorecer sua reclusao em algum ideal de integridade narcisica. A morte do pai, em qualquer etapa do desenvolvimento que se produza e segundo o grau de acabamento do Edipo, tende, do mesmo modo, a estancar, coagulando-o, o progresso da realidade. A experiéncia, relacionando a tais causas um grande ntimero de neuroses ¢ sua gravidade, contradiz, portanto, a orientac4o teérica que designa a ameaga da forca paterna como seu maior agente. Se na andlise psicolégica do Edipo ficou evidenciado que ele deve ser compreendido em fung4o de seus antecedences narcisicos, isso nao quer dizer que ele se funde fora da relativi- dade socioldgica. A forca mais decisiva de seus efcitos psiquicos se deve ao fato de que, com efeito, a imago do pai concentra a fungao de repressda com a de sublimacao; mas este é 0 resul- tado de uma determinac4o social, a da familia pacernalisca. 54 Os complexos famitiares A autoridade familiar, nas culturas matriarcais, nao € re- presentada pelo pai, mas ordinariamente pelo tio materne. Um etnélogo cujo conhecimento muito deve a psicandlise, Mali- nowski, soube penetrar as incidéncias psiquicas desse fato: se o tio materno exerce esse apadrinhamento social de guardiaio dos tabus familiares ¢ de iniciador dos ritos tribais, o pai, de- sincumbido de toda fungao repressiva, desempenha um papel de patronagem mais familiar, de mestre em técnicas e turor da audacia nas empreitadas. Essa separacao de fungées acarreta um equilibrio diferente do psiquismo, que o autor atesta pela auséncia de neurose nos grupos que ele observou nas ilhas do noroeste da Melanésia. Esse equilibrio demonstra, felizmente, que o complexo de Edipo é relativo a uma estrutura social, mas nao autoriza em nada a miragem paradisiaca, contra a qual o socidlogo deve sempre se defender: 4 harmonia que ele comporta se op6e, com efeito, a estcreotipia que marca as criagées da personalidade, da arte & moral, em semelhantes culturas, e devemos reconhe- cer nesse reverso, de acordo com a presente teoria do Edipo, 0 guanto o impulso da sublimagio ¢é dominado pela repressao social quando essas duas fungdes estao separadas. E, pelo contrério, por ser investida pela repressdo que a imago paterna projeta sua forga original nas prdprias sublima- ges que devem ultrapass4-Ja; € por amarrar em tal antinomia o progresso dessas fungées que o complexe de Edipo retira sua fecundidade. Essa antinomia funciona no drama individual, nés a veremas ai se confirmar através de efeitos de decompo- sicao; mas seus efeitos de progresso ultrapassam em muito esse drama, por estarem integrados num imenso patriménio cultu- ral: ideais normais, estatutos juridicos, inspirag6es criadoras. O psicélogo nao pode negligenciar essas formas que, concen- Fator concreto du psicologia familiar 55 trando na familia conjugal as condicg6es do conflito funcional do Edipo, reintegram no progresso psicoldégico a dialética so- cial engendrada por esse conflito. Que o estudo dessas formas se refira & histéria, cis af ja um dado para nossa andlise; com efeito, é a um problema de estrutura que é preciso relacionar o fato de que a luz da tradi- cao histérica sé atinge plenamente os anais dos patriarcados, ao passo que sé esclarece a franja — aquela mesma em que se mantém a investigacdo de um Bachofen — dos matriarcados, estes por toda parte subjacentes a cultura antiga. Aproximaremos desse facto 0 momento critico que Bergson definiu nos fundamentos da moral; sabe-se que ele faz voltar a sua funcao de defesa vital esse “todo da obrigacdo” pelo qual designa o liame que fecha o grupo humano em sua coeréncia, e que ele reconhece, opostamente, um impulso transcendente da vida em tado movimento que abre esse grupo ao universa- lizar esse liame; dupla fonte que uma andlise abstrata descobre, sem divida volrada contra suas ilusdes formalistas, mas que permanece limitada ao alcance da abstracao. Ora, se, através da experiéncia, o psicanalista assim como 9 socidlogo podem reconhecer na interdiggo da mae a forma concreta da obriga- cdo primordial, da mesma maneira eles podem demonstrar um processo real da “abertura’ do liame social na autoridade pa- ternalista e dizer que, através do conflito funcional do Fdipo, ela introduz na repressio um ideal de promessa. Se eles se referem aos ritos de sacrificio mediante os quais as culturas primitivas, mesmo as que atingiram uma concentracéo social elevada, realizam com o mais cruel rigor — vitimas hu- manas desmembradas ou enterradas vivas — as fantasias da re- lacao primordial com a mie, eles lerao, em varios mitos, que ao advento da autoridade paterna corresponde um temperamenta 56 Os complexes familiares da primitiva repressao social. Legivel na ambigiiidade mitica do sacrificio de Abrado, que, de resto, o liga formalmente a ex- pressio de uma promessa, esse sentido nao aparece menos no mito de Edipo, mesmo que nao se leve em consideracao 0 epi- sédio da Esfinge, representago nao menos ambigua da emanci- pagiio das tiranias matriarcais e do declinio do rito do assassinio régio. Qualquer que seja sua forma, todos esses mitos se situam na orla da histéria, muito longe do nascimento da humanidade da qual os separam a duraco imemorial das culeuras matriar- cais ¢ a estagnagao dos grupos primitivos. Segundo essa referéncia socioldgica, o fato do profetismo pelo qual Bergson recorre & histéria, na medida em que se produziu eminentemente no povo judeu, se compreende pela situagao eleita que foi criada para esse povo de ser o defensor do patriarcado entre grupos dados a cultos maternos, pela sua luta convulsiva para manter o ideal patriarcal contra a sedugio irreprimivel dessas culturas. Através da histéria dos povos pa- triarcais, vemos assim afirmar-se dialeticamente na sociedade as exigéncias da pessoa e a universalizagao dos ideais: o que testemunha esse progresso das formas jurfdicas que eterniza a missio que a Roma Antiga viveu tanto em poder quanto em consciéncia, ¢ que se realizou pela extensio ja revoluciondtria dos privilégios morais de um patriarcado a uma plebe imensa € a todos os povos. Nesse processo, duas fungdes se refletem na estrutura da prépria familia: a tradig&o, nos ideais patricios, de formas pri- vilegiadas do casamento; a exaltag&o apotedtica que o cristia- nismo traz as exigéncias da pessoa. A Igreja integrou essa tra- digao na moral do cristianismo, colocando em primeiro plano no lago do casamento a livre escolha da pessoa, fazendo assim a institui¢ao familiar dar o passo decisivo para sua moderna Fator coucrete da psicologia familiar if estrutura, a saber, 0 secreto reviramento de sua preponderancia social em beneficio do casamento. Reviramento que se realiza no sécule XV com a revolucaéo econémica da qual sairam a sociedade burguesa e a psicologia do homem moderno. Com efeito, sdo as relagdes da psicologia do homem mo- derno com a familia conjugal que se propdem ao estudo do psicanalista; esse homem é o unico objeto que ele submeteu verdadeitamente 4 sua experiéncia, ¢ se o psicanalista reencontra nele o reflexo psiquico das condigdes mais originais do homem, como pode ele pretender curd-lo de suas fraquezas psiquicas sem compreendé-lo na cultura que lhe impée as mais elevadas exi- géncias, sem comprechdet também sua propria posigio perante esse homem no ponto extremo da atitude cientifica? Ora, em nosso tempo, menos que nunca, o homem da cultura ocidental nao podetia Ser compreendido fora das an- tinomias que constituem suas rclagdcs com a natureza € com a saciedade: como, fora delas, compreender no sé a angtis- tia que ele exprime no sentimento de uma transgressa0 pro- metéica em relacao As condigées de sua vida, mas tambént as concepgdes mais elevadas cam que vence essa angustia reco- nhecendo que € através de crises dialéticas que ele se cria, a si mesmo e a seus objetos. Esse movimento subversivo ¢ critico no qual o homcm se realiza encontra seu germe mais ativo em trés condigées da familia conjugal. Para encatnar a autoridade na geracaa mais proxima c sob uma figura familiar, a familia conjugal poc essa aucoridade ao alcance imediato da subversdo criadora. O que traduzem, mesmo para a observagdo mais comum, as invers6es que a crianca imagina na ordem das gerag6es, nas quais ela propria se substitui ao pai ou ao avé. 58 Os complexes familiares Por outro lado, 0 psiquismo ai nao é menos formado pela imagem do adulto do que contra sua coagao: esse efeito se opera pela transmissao do ideal do eu c, mais puramente, como dissemos, de pai para filho; ele comperta uma selecao positiva das rendéncias e dos dons, uma realizagio progressiva do ideal no cardter. E a esse progresso psicolégico que se deve a existéncia das familias de homens eminentes, e nao a pretensa hereditariedade que seria preciso reconhecer em capacidades essencialmente relacionais. Finalmente, e sobretudo, a evidéncia da vida sexual nos representantes das coagdes morais, o exemplo singularmente transgressivo da imago do pai quanto 4 interdicio primordial exaltam no mais alto grau a tensao da libido ¢ 0 alcance da sublimagao. E para realizar mais humanamente © conflito do homem com sua anguistia mais arcaica, é para oferecer-lhe 0 campo cerrado mais leal onde ele possa medir-se com as figuras mais profundas de seu destino, é para colocar ao alcance de sua existéncia individual 0 triunfo mais completo contra a servi- dao original que o complexe da familia conjugal cria os éxitos superiores do carater, da felicidade ¢ da criagio. Dando a maior diferenciagdo 4 personalidade antes do periodo de laténcia, o complexo traz aos confrontos sociais desse perfodo sua maxima eficdcia para a formagdo racional do individuo. Com efeito, pode-se considerar que a acdo edu- cativa ness¢ periodo reproduz, numa realidade mais lastrada c sob as sublimacées superiores da ldgica ¢ da justiga, o jogo das equivaléncias narefsicas no qual nasceu o mundo dos objetas. Quanto mais diversas ¢ mais ricas forem as realidades incons- cientemente integradas na experiéncia familiar, mais formador sera para a razdo o trabalho de sua redugao, Fator concreto da psicologta familiar 59 Desse modo, portanto, se a psicandlise manifesta nas con- digdes morais da criagéo um fermento revoluciondrio que sé pode ser apreendido numa andlise concreta, ela reconhece, para produzi-lo, na estrutura familiar, um poder que ultrapassa qual- quer racionalizacao educativa. Esse fatco merece ser proposto aos tedricos — qualquer que seja o lado a que pertengam — de uma educacao social com pretensdes totalitdrias, a fm de. _que cada um tire suas conclusées segundo seus desejos._ © papel da imago do pai se deixa perceber de maneira sur- preendente na formagao da maioria des grandes homens. Sua irradiacdo literdria e moral na era cldssica do progresso, de Cor- neille a Proudhon, merece ser ressaltada; ¢ as idedlogas que, no século XIX, dirigiram contra a familia paternalista as criticas mais subversivas, nZo sdo os que menos carregam sua marca, Nao somos daqueles que se afligem com um pretenso _afrouxamento do liame familiar. Nao sera significativo que a famflia tenha se reduzido a seu agrupamento bioldgico 4 medida gue integrava os mais elevados progressos culturais? Mas um grande ntimero de efeitos psicolégicos nos parecem __depender de um declinio social da imago paterna. Declinio condicionado pelo retorno de cfeitos extremos do progresso social no individuo, declfnio que se marca sobretudo, em nossos dias, nas coletividades que mais sofreram esses efeitos: concentrac4o econdmica, catdstrofes polfticas. O fato nao che- gau a set formulado por um chefe de Estado totalitdrio como argumento contra a educagao tradicional? Declinio mais inti- mamente ligado 4 dialética da familia conjugal, j4 que se opera pelo crescimento relative, muito sensfvel, por exemplo, na vida americana, das exigéncias matrimoniais. Qualqucr que seja seu futuro, esse declinio conscitui uma crise psicolégica. Talvez seja a essa crise que se deve rclacionar 60 Os complexas familiares 0 aparecimento da prépria psicandlise. Apenas o sublime acaso do génio talvez nao explique que tenha sido em Viena — entdo centro de um Estado que era 0 me/tingpot das formas familiares mats diversas, das mais arcaicas 4s mais evoluidas, dos ultimos agrupamentos agnaticos dos camponeses eslavos 4s formas mais reduzidas do lar pequeno-burgués e as formas mais decadentes do casal instdvel, passando pelos paternalis- mos feudais e mercantis ue um filho do patriarcado judeu tenha imaginado o complexe de Edipo,/Seja como for, s40 as formas de neuroses dominantes no final do ultimo século que revelaram que elas estavam intimamente dependentes das con- digdes da familia. Essas neuroses, desde o tempo das primeiras adivinhag&es freudianas, parecem ter evoluido no sentido de um complexo caracterial no qual, tanto pela especificidade de sua forma quanto por sua generalizacgao — ele é 0 nucleo do maior ni- mero de neuroses —, pode-se reconhecer a grande neurose contemporanea. Nossa experiéncia nos leva a designar sua de- terminac&o principal na personalidade do pai, sempre carente de alguma forma, ausente, humilhada, dividida ou postica. E essa caréncia que, de acordo com nossa concepgio do Edipo, vem nao sé exaurir o impulse instintivo como também preju- dicar a dialética das sublimag6es. Madrinhas sinistras instala- das no bergo do neurético, a impoténcia e a utopia encerram sua ambig&o, seja porque ele sufoque em si as criagdes que o mundo para o qual ele vem espera, seja porque ele desco- nhega seu prépric movimento no objeto que ele propée para sua revolta. 2 Os complexos familiares em patologia Os complexos familiares preenchem, nas psicoses, uma funcao formal: temas familiares que prevalecem nos delirias por sua conformidade com a estagnac4o que as psicoses constituem no eu e na realidade; nas neuroscs, os complexos preenchem uma funcao causal: incidéncias e constelagdes familiares que determinam os sintomas ¢ as estruturas segundo os quais as neuroses dividem, introvertem ou invertem a personalidade. ‘Tais sao, em algumas palavras, as teses que sao desenvolvidas neste capftulo. E evidence que, qualificanda de familiares a forma de uma psicose ou a fonte de uma neurose, entendemos esse termo no sentido estrito de relagao social que este estudo sc cmpe- nha em definir e, ao mesmo tempo, justificar por sua fecun- didade objetiva: assim, o que depende apenas da transmissao bioldgica deve ser designado como “hereditario” e nao como “familiar”, no sentido estrito deste termo, mesmo se s¢ tratar de uma afecgao psiquica, e isso apesar do uso corrente ne vo- cabuldrio neuroldgico. 63 64 Os complexos familiares |. As psicoses de tema familiar FE. com esta preocupagao de objetividade psicolégica que estu- damos as psicoses quando, entre os primeiros na Franga, dedi- camo-nos a compreendé-las em sua relacdo com a personali- dade*, ponto de vista a que nos levava 2 nogio, a partir dai cada vez mais reconhecida, de o todo do psiquismo estar intcressado na lesdo ou no déficit de algum elemento de seus aparelhos ou de suas funcdes. Essa nogao, que os disturbios psiquicos causados por lesdes localizavcis demonstravam, parecia-nos ainda mais aplicavel As produgdes mentais ¢ as reagGes sociais das psicoses, a saber, a esses delirios e a essas pulsdes que, em- bora consideradas como parciais, evocavam, no entanto, por sua tipicidade, a coeréncia de um eu arcaico e, em sua prépria discordancia, deviam trair sua Jei interna. Lembremo-nos apenas de que essas afecgdes correspon- dem ao quadro vulgar da loucura para conceber que nao podia se tratar para nés de definir af uma verdadeira personalidade, a qual implica a comunicagao do pensamento e a responsabili- dade da conduta. Uma psicose, certamente, que isolames com o nome de parandia de antopuni¢ao, nao exclui a existéncia de semelhante personalidade, que é constitufda nao apenas pelas relacées do eu, mas do supereu ¢ do ideal do eu, mas o supe- reu lhe impée seus efeitos punitivos mais extremos, e o idcal do eu nela se arma numa objetivaco ambfgua, propicia as projegoes reitcradas; o fato de haver mostrado a originalidade * J, Lacan se refere a sua tese de doutorado em medicina, De fa paychose paranoiague dans ses rapports avec la personnalité, publicada pela primeira ve7 por Le Frangots, om 1932, Panis, ¢ reeditada pela Seuil, cm 1975, Paris. (N, do T.) Os complexos familiares em patologia 65 dessa forma, ao mesmo tempo que definido por sua posig4o uma fronteira nosoldgica, é um resultado que, por mais limi- tado que seja, fica como um crédito do ponto de vista que dirigia nosso esforgo. O progresso de nossa pesquisa devia nos fazer reconhe- cet, nas formas mentais que as psicoses constituem, a recons- tituigdo de estddios do eu, anteriores 4 personalidade; se, com efeito, caracterizarmos cada um desses estddios pelo estddio do objeto que lhe € correlativo, toda a génese normal do objeto na relacao especular do sujeito com o outro, ou como pertinéncia subjetiva do corpo despedagado, se reenconcra, numa série de formas de estagnacao, nos objetos do delirio. E notavel que esses objetos manifestam os caracteres cons- titutives primordiais do conhecimento humano: identidade formal, equivaléncia afetiva, reprodugao iterativa e simbo- lismo antropomedrfico, sob formas coaguladas, certamente, mas acentuadas pela auséncia ou pelo apagamento das integrac6es secundarias, que sio para o objeto sua movéncia € sua indivi- dualidade, sua rclatividade e sua realidade. © limite da realidade do objeto na psicose, 0 ponto de reversao da sublimagao nos parece dado precisamente por esse momento que marca para nds a aura da realizagdo edipiana, a saber, essa erecdo do objeto que se produz, segundo nossa formula, na luz do espanto. E esse momento que essa fase reproduz, que considetamos constante c designamos como fase fecunda do delirio: fase em que os objetos, transformadas por uma escranheza inefével, se revelam como choques, enig- mas, significacées. E nessa reprodugio que o conformismo se desmorona, superficialmente assumido, mediante o qual o sujeito mascarava até entéo o narcisisme de sua relacio com a realidade. 66 Os complexes familiares Esse narcisismo se traduz na forma do objeto. Esta pode se produzir progressivamente na crise reveladora, como o ob- jeto edipiano se reduz numa estrutura de narcisismo secun- dério — mas aqui o objeto permanece irredutivel a qualquer equivaléncia ¢ o prego de sua posse, sua virtude de prejuizo prevalecerae sobre toda possibilidade de compensagao ou de compromisso: é o delirio de reivindicagio. Ou, entao, a forma do objeto pode permanecer suspensa no apice da crise, como se a imago do ideal edipiano se fixassc no momento de sua transfiguragao — mas aqui a imago nio se subjetiva por identificagSo ao duplo, ¢ o ideal do eu se projeta iterati- vamente em objctos de cxemplos, por certo, mas cuja agdo é inteiramente externa, na verdade reproches vivos cuja cen- sura tende a vigilancia onipresente: é 0 delirio sensitive de relacées. Finalmente, o objeto pode reencontrar, aquém da crise, a estrutura de narcisismo primario na qual sua forma- cao se deteve. Pode-se ver neste tiltimo caso o supereu, que nao sofreu o recalcamento, nZo apenas se traduzir no sujeito em inten- ¢8o repressiva, mas ainda surgir af como objero apreendido pelo eu, refletido sob os tragos decompostos de suas incidén- cias formadoras e, 4 mercé das ameagas reais ou das intrusdes imagindrias, representado pelo adulto castrador ou pelo irmao penetrador: ¢ a sindrome da perseguig4o interpretativa, com seu objeto de sentido homossexual latente. Num grau a mais, o eu arcaico manifesta sua desagre- gacio no sentimento de ser espiado, adivinhado, desvelado, sentimento fundamental da psicose alucinatéria, ¢ o duplo com o qual ele se identificava se op&e ao sujeito, seja como eco do pensamento e dos atos nas formas auditivas verbais da alucinag4o, cujos contetides autodifamadores marcam a Os complexas familiares em patologia 67 afinidade evolutiva com a repressio moral, seja como fan- tasma especular do corpo em certas formas de alucinago vi- sual, cujas reagdes-suicidas revelam a coeréncia arcaica com o masoquismo primordial, Por fim, é a estrutura fundamen- talmente antropomérfica ¢ organomérfica do objeto que vem 4 luz na participagio megalomaniaca, na qual o sujeito, na parafrenia, incorpora o mundo a seu eu, afirmando que ele inclui o Todo, que seu corpo se compéc das matérias mais preciosas, que sua vida e suas fungdes sustentam a ordem ¢€ a existéncia do Universo. Os complexos familiares desempenham um notdvel papel no eu, nesses diversos estddios em que a psicose o detém, seja como mativos das reagdes do sujeito, seja como temas de seu delirio. Pode-se até mesmo ordenar sob esses dois registros a in- tegracio desses complexos no eu segundo a série regressiva que acabamos de estabelecer para as formas do objeto nas psicoses. As reagées mérbidas, nas psicoses, 840 provocadas pelos objetos familiares em fungdo decrescente da realidade destes obje- tos em beneficio de seu alcance imagindario: podemos medi-lo partindo dos conflitos que eletivamente colocam o reinvidica- dor as voltas com o circulo de sua familia ou com seu cénjuge — passando pela significagao de substitutes do pai, do irm4o ou da irm4 que o observador reconhece nos perseguidores do pa- randico — para chegar a essas filiagSes secretas de romance, a essas genealogias de Trindades ou de Olimpos fantasticos, onde atuam os mitos do parafrénico. O objeto constituido pela re- lagao familiar mostra, assim, uma alteracdo progressiva: em scu valor afetivo, quando ele se reduz a ser apenas precexto para a exaltacdo passional, depois em sua individualidade quando ele é desconhecido em sua reiteragao delirante, enfim, em sua propria identidade, quando nado mais o reconhecemos 68 Os complexes familiares no sujeito a nao ser como uma entidade que escapa ao prin- cipio de contradigao. Quanto ao tema familiar, seu alcance expressivo da cons- ciéncia delirante mostra-se como fingo, na série das psicoses, de uma crescente identificagzo do eu com um objeto familiar, 4 custa da distancia que o sujeito mantém entre ele e sua con- vicgao delirante: podemos medi-lo, se partirmos da contingén- cia relativa, no mundo do reivindicador, das queixas que ele alega contra os seus — passando pelo alcance cada vez mais existencia] que tomam os temas de espoliacao, de usurpagio, de filiagdo, na concepsao que o parandico tem de si — para chegar até essas identificagdes com algum herdeiro arrancado de scu bergo, com a esposa secreta de algum principe, com as personagens miticas de Pai todo-poderoso, de Vitima filial, de Mac univessal, de Virgem primordial, nas quais o eu do parafrénico se afirma. Essa afirmagao do eu torna-se, de resto, mais incerta & me- dida que, assim, ela se integra mais ao tema delirante: de uma estenia noravelmente comunicativa ha reivindicacio, ela se re- duz, de maneira intciramente surpreendente, a uma intcngdo demonstrativa nas reagdes e nas interpretacdes do parandico, para se perder, no parafrénico, numa discordancia desconcer- tante entre a crenca ¢ a conduta. Assim, dependendo de as reacdes serem mais relativas as fantasias e de o tema do delirio se objetivar mais, o eu tende a se confundir com a expresséo do complexo e o complexo a s¢ exprimir na intencionalidade do eu. Os psicanaliscas di- zem, pois, Comumente, que nas psicoses os complexos sao conscientes, ao passo que sao inconscientes nas neuroses, [sto nao é nada rigoroso, pois, por exemplo, o sentido hamosse- xual das rendéncias na psicose é desconhecido pelo sujeito, Os complexos familiares cm patalowtt Gl ainda que traduzido em intengao persecutoria. Mas a formula aproximativa permite que nos espantemos com o fato de que tenha sido nas neuroses, onde eles estao latentes, que os com- plexos tenham sido descobertos, antes de serem reconhecides nas psicoses, onde sido patentes. E que os temas familiares que isolamos nas psicoses sido apenas efeitos virtuais e estaticos de sua estrutura, das representagdes em que o eu se estabiliza; portanto, eles sé apresentam a morfologia do complexo sem revelar sua organizacao, nem, conseqiientemente a hierarquia de scus caracteres. Dat o evidente artificio que marcava a classificagao das psicases pelos temas delirantes, ¢ o descrédito em que caira o estudo desses temas, antes que os psiquiatras fossem a eles re- conduzidos por este impulso em cliregdo ao concreto dado pela psicandlise. Foi assim que alguns, que se acreditaram menos aferados por essa influéncia, renovaram o alcance clinico de certos remas, como a crotomania ou 0 delirio de filiacdo, trans- ferindo a ateng&o do conjunto para os detalhes de seu roman- ceamenco, para nele descobrir os caracteres de uma estructura. Mas apenas o conhecimento dos complcxos pode trazer para uma pesquisa como esta, com uma direg4o sistematica, uma seguranca € um avan¢o que ultrapassam em muito os meios da pura observacao. Tomemos, por exemplo, a estrutura do tema dos interpre- tadores filiais, tal como Sérieux ¢ Capgras a definiram come entidade nosoldégica. Caracterizando-a pela forga da privagao afetiva, manifesta na freqtiente ilegitimidade do sujeito, ¢ por uma formagdo mental do tipo do “romance de grandeza” de surgimento normal entre oito e 13 anas, seus aucores rcunirao a f4bula, amadurecida desde essa idade, da troca de criangas, fabula através da qual determinada solteirona do vilarejo se 70 Os complexos familiares identifica com alguma outra mais favorecida, ¢ as pretenses, cuja justificativa parece equivalente, de algum “falso delfim”. Mas que este pense apoiat seus direitos mediante a descrigao mi- nuciosa de uma maquina de aparéncia animal, no ventre da qual teria sido preciso escondé-lo para realizar o rapto inicial (histéria de Richemont e de seu “cavalo extraordindrio”, citada por esses autores), de nossa parte acreditamos que essa fantasia, que se pode certamente considerar como superfetatéria e colocar por conta da debilidade mental, revela, tanto por seu simbolismo de gestagdo quanto pelo lugar que o sujeito lhe reserva em seu delirio, uma estrutura mais arcaica de sua psicose. Resta estabelecer se os complexos que desempenham es- ses papéis de motivagdo e de tema nos sintomas da psicose também tém um papel de causa em seu determinismo; c essa questao ¢ obscura. Quanto a nés, se quisermos compreender esses sintomas através de uma psicogénese, estamos longe de ter pensado com isso reduzir o determinismo da doenga. Muito pelo contrario, demonstrando que a fase fecunda da parandia comporta um estado hipondico: confusional, onfrico ou crepuscular —, res- saltamos a necessidade de alguma base organica para a subdu- ¢40 mental em que o sujeito se inicia no delirio. Ainda em outro trabalho, indicamos que é em alguma tara bioldgica da libido que é preciso procurar a causa dessa estag- nacio da sublimagdo, na qual vemos a esséncia da psicose. Vale dizer que acreditamos num determinismo enddgeno da psicose € que quisemos apenas fazer justiga a essas lastimdveis patoge- nias que nao podcriam, atualmente, nem mesmo passat por re-_ presentar alguma pénese “orgdnica”: por um lado, a redugdo da doenga a algum fenédmcno mental, supostamente automatico, que, como tal, nao poderia corresponder & organizagao percep- Os complexos fantiliares cm patilagus ON tiva, quer dizer, ao nivel de crenga depreendido nos sintomas realmente elementares da interpretagio ¢ da alucinagao; por outro lado, a preformagao da doenga em tragos pretensamente consticucionais do cardter, os quais se desvatrecem quando sc submete a pesquisa sobre os antecedentes as exigéncias da de- finigao dos termos e da critica do testemunho. Se alguma tara é detectada no psiquismo antes da psicose, devernos pressenti-la nas prdprias fonces da vitalidade do su- jeito, da maneira mais radical, mas também no mais secreto de seus impulsos c de suas aversGes, e acreditamos dela reconhecer um sinal singular no dilaceramento inefdvel que esses sujeitos acusam espontaneamente por terem matcado suas primeiras efusdes genitais na puberdade. Aproximar essa tara hipotética dos fatos antigamente agru- pados sob a rubrica da degenerescéncia ou das nogdes mais recentes sobre as perversdes bioldgicas da sexualidade ¢ entrar nos problemas da hereditariedade psicolégica. Limitamo-nos aqui ao exame dos facores propriamente familiares. A simples clinica mostra em muitos casos a correlagio de uma anomualia da situacao familiar. A psicandlise, por outro lado, seja pela interpretagao dos dados clinicos, seja por uma exploragio do sujeito que, por nao poder ser aqui curativa, deve permanecer prudente, mostra que o ideal do eu formou- se na maiotia das vezes cm virtude dessa sicuagao, segundo o objeto do irmao. Esse objeto, transportando a libido destinada ao Edipo sobre a imago da homossexualidade primiciva, for- nece um ideal narcisico dlemais para n&o abastardar a estru- tura da sublimacio. Além disso, uma disposicio “em redoma’” do grupo familiar cende a intensificar os efeitos de somagio, caracteristicos da transmissio do ideal do eu, como indicamos em nossa andlise do Edipo; mas enquanto ele se exerce lé nor- 72 Os complexes familiares malmente num sentido seletivo, esses efeitos atuam aqui num sentido degenerative, Se o aborto da realidade nas psicoses se deve, em ultima ins- tancia, a uma deficiéncia bioldgica da libido, ele também revela uma derivagao da sublimag3o na qual o papel do complexo fa- miliar é corroborado pelo concurso de intimetos fatos clinicos. Com efeito, é preciso notar essas anomalias da personali- dade cuja constancia ne parentesco do parandico é sancionada pela denominagao familiar de “ninhos de parandicos” que os psiquiatras aplicam a esses meios; a freqiiéncta da transmissao da parandia em linha familiar direta, muitas vezes com agra- vamento de sua forma para a parafrenia e precessao temporal, relativa ou mesmo absolura, de seu aparecimento no descen- dente; por fim, a eletividade quase exclusivamente familiar dos casos de delirio a dois, bem evidenciada nas antigas colegdes, como a de Legrand du Saulle em sua obra sobre o “delfrio de perseguigao”, na qual a amplicude da cscolha compensa a falha da sistematizacao pela auséncia de parcialidade. Para nos, é nos casos de delirio a dois que acreditamos poder apreender melhor as condigGes psicolégicas que podem desempenhar um papel determinante na psicose. Fora os casos em que o delirio emana de um parente acometido por algum disttirbio mental que o coloca na postura de tirano doméstico, temos constantcmente encontrado esses delirios num grupo fa- miliar que chamamos de descompletado, no qual 0 isolamento social a que € propicio comporta seu efeito mdximo, a saber, no “casal psicolégico” formado por uma mae ¢ uma filha ou por duas irmas (ver nosso estudo sobre as irmas Papin)*, mais raramente por uma mie e um filho. * Publicado juntamente com a tesc de Lacan. Ver nota 4 pdgina 66. (N. do T) Os complexes familiares em patolugia 73 ll. As neuroses familiares Os complexos familiares se revelam nas neuroses por uma abordagem inteiramente diferente: isso porque nelas as sinto- mas nao manifestam qualquer relag4o, a nao ser contingente, com nenhum objeto familiar. Os complexos af preenchem, no entanto, uma fungao causal cuja tcalidade c dinamismo s¢ opdem diametralmente ao papel que os temas familiares de- sempenham nas psicoses. Se Freud, pela descoberta das complexos, constituiu uma obra revolucionaria, foi porque enquanto terapeuta, mais preo- cupado com o doente do que com a deenga, procurou com- pteendé-la para curd-lo e prendeu-se ao que se costumaya ne- gligenciar sob o titulo de “contetido” dos sintomas, e que é 0 aspecto mais concreto de sua realidade: a saber, 0 objeto que ptovoca uma fobia, o aparelho ou a fungdo somatica inceres- sados numa histeria, a representacdo ou o afeto que ocupam 0 sujeito numa obsessdo. Foi dessa maneira que ele veio a decifrar messe mesmo contetido as causas desses sintomas: ainda que essas causas, com o progresso da experiéncia, tenham se mostrado mais complexas, o que importa nao é de modo algum reduzi-las a abstracao, mas aprofundar esse sentido dramatico que, em sua primcira formula, se prendia como uma resposta a inspiragdo de sta procura. Freud apontou inicialmente, na origem dos sintomas, uma seducao sexual que o sujeito sofreu precocemente atra- vés de manobras mais ou menos perversas, ou entao uma cena que, na sua primeira infancia, 0 iniciou pelo espetaculo ou pela audi¢io nas relagées sexuais dos adultos. Ora, se por um lado esses fatos se revelavam come traumaticos por desviar a 74 Os complenos familiares sexualidade para tendéncias anormais, eles demonstravam ao mesmo tempo como préprios a primeira infancia uma evolu- cao regular dessas diversas tendéncias e sua normal satisfagao por via auto-erética. E por isso que, se por outro lado esses traumatismos se mostravam como o fato mais comum, seja por iniciativa de um irmao, seja por inadverténcia dos pais, a participagao da crianca revelou-se cada vez mais ativa 4 me- dida que se afirmavam a sexualidade infantil e seus motivos de prazer ou de investigagao. A partir dal, essas tendéncias apare- cem formadas em complexos tipicos pela estrutura normal da familia que lhes oferecia seus primeiros objetos. FE desse modo que nenhum fato, mais do que o nascimento de um irmdo, precipita tal formacao, exaltando por seu enigma a curiosidade da crianga, reativando as emogées primordiais de sua ligagao com a mie pelos sinais de sua gravidez ¢ pelo espetdculo dos cuidados que ela da ao recém-nascido, cristalizando enfim, na presenca do pai junto a ela, o que a crianca adivinha do mis- tério da sexualidade, o que ela sente de seus impulsos preco- ces € 0 que ela teme das ameagas que lhe proibem a satisfagao masturbatdéria. Jal é, ao menos, definida por seu grupo e por scu momento, a constelagSo familiar que, para Freud, forma o complexo nodal das neuroses. EXe extraiu daf o complexo de Edipo e nés veremos melhor mais adiante como essa origem comanda a concepgio que ele formou desse complexe. Concluamos aqui que uma dupla instincia de causas é de- finida pelo complexo: os traumatismos precitados que recebem seu alcance de sua incidéncia na evolugao do complexo, as re- lacdes do grupo familiar que podem determinar atipias em sta constituicao. Se a prdtica das neuroses manifesta, na verdade, a freqiiéncia das anomalias da situag4o familiar, é preciso, para definir seu efeito, retornar A producao do sintoma. Os complexos familiares cm patolagia fy As impressées provenientes do traumatismo pareceram, numa primeira abordagem, determinar o sintoma por uma relagdo simples: uma parte diversa de sua lembranga, se nao sua forma representativa, pelo menos suas correlagées afeti- vas, foi, ndo esquecida, mas recalcada no inconsciente, e 0 sintoma, ainda que sua produ¢do tome caminhos nao menos diversos, deixava-se reduzir a uma funcao de expressao do re- calcado, o qual manifestava desse modo sua permanéncia no psiquismo. Com efeito, a origem do sintoma era compreen- dida nao apenas mediante uma interpretagao segundo uma chave que — entre outros, simbolismo, deslocamento etc. — convinha a sua forma, mas o sintoma cedia 4 medida que essa compreensdo era comunicada ao sujeito. Que a cura do sin- toma se prendia ao fato de que fora trazida de volta a cons- ciéncia a impressdo de sua origem, 20 mesmo tempo que se demonstrava ao sujeito a irracionalidade de sua forma — tal indugao reencontrava no espirito as caminhos abertos pela idéia socrdtica de que o homem se da a conhecer através das intuigdes da razao. Mas foi necessdrio corrigir, cada vez mais rigorosamente, tanto a simplicidade quanto o otimismo dessa concepcao, desde que a experiéncia demonstrou que uma re- sisténcia & oposta pelo sujeito a elucidagio do sintoma ¢ que uma transferéncia afetiva, que tem por objeto o analista, ¢é a forca que vem prevalecer na cura. Permanece, , No entanto, dessa etapa, a pogo, de de que o ) SLI- toma neurético representa no sujeito um momento de sua ex- _ periéncia em que ele nao sabe se reconhecer, uma forma de di- | __visao da personalidade. Mas, a medida que a andlise apreendeu mais de perto a produg&o do sintoma, sua compreensao recuou da clara fungao de expressao do inconsciente para uma fungio mais obscura de defesa contra a angustia. Essa angustia, Freud 76 Os complexos familiares considera, em seus pontos de vista mais recentes, como o sinal que, por estar destacado de uma situago primordial de separa- cio, desperta diante da similitude de tum perigo de castracio. A defesa do sujeito, se é verdade que o sintoma fragmenta a personalidade, consistiria, pois, em levar em conta esse perigo proibindo-se tal acesso 4 realidade, sob uma forma simbélica ou sublimada. A forma que se reconhece nessa concep¢io do sintoma nao deixa, em principio, mais residuo que seu con- tetido ao ser compreendida por uma dinamica das tendéncias, mas ela tende a transformar em termos de estrutura a referén- cia do sintoma ao sujeito, deslocando o interesse para a fungao do sintoma quanto ds relacées com a realidade. Os efeitos de proibigao de que se trata constituem relagoes que, por serem inacessiveis ao controle consciente ¢ se mani- festarem somente em negativo no comportamento, revelam claramente sua forma intencional a luz da psicandlise; mos- trando a unidade de uma organizagao, desde o aparente acaso dos impedimencos das funcées c a fatalidade das “sinas” que fazem com que a agao fracasse, até A coagdo, prépria a espé- cie, do sentimento de culpa. A psicologia classica se enganava, portanto, acreditando que o eu, a saber, esse objeto no qual © sujeito se reflete como coordenado 4 realidade que ele reco- nhece como exterior a si mesmo, compreende a totalidade das rclagdes que determinam o psiquismo do sujeito. Erro corre- lativo a um impasse na teoria do conhecimento e ao fracasso, acima evocado, de uma concepgao moral. Freud concebe o eu, em conformidade com essa psico- logia que ele qualifica de racionalista, como o sistema das relagdes psiquicas segundo o qual o sujeito subordina a reali- dade & percepcdo consciente; devido ao qué cle deve lhe opor inicialmente, sob o termo de supereu, o sistema, definido ha Os complexos familiares em patologia 77 pouco, das proibig6es inconscientes. Mas parece-nos impor- tante equilibrar teoricamente esse sistema unindo-o ao das projegdes ideais que, das imagens de grandeza da “louca da casa’* as fantasias que polarizam o desejo sexual c a ilusao individual da vontade de poder, manifesta nas formas imagi- ndrias do eu uma condigdo néo menos estrutural da realidade humana. Se esse sistema é muito mal definido por um uso do termo “ideal do eu”, que ainda se confunde com o supereu, basta, no entanto, pata apreender sua originalidade, indicar que ele constitui como segredo da consciéncia a prépria apre- ens&o que tem o analista do mistério do inconsciente; mas é precisamente pot ser demasiado imanente a experiéncia que ele deve ser, enfim, isolado pela doutrina: ¢ para isso que esta exposicao contribui. Se as instancias psiquicas que escapam ao eu aparecem inicialmente como o efeito do recalcamento da sexualidade na infancia, sua formacao se revela, na experiencia, cada vez mais vizinha, quanto ao tempo e A estcutura, da situacdo de separa- cao que a andlise da anguistia faz reconhecer como primordial ¢ que é a do nascimento. A referéncia de tais efeitos psiquicos a uma situacdo tao original nao ocorre sem obscuridade. Parece-nos que nossa concep sao do estddio do espelho pode contribuir para escla- . todo um estidio de "Kespodigamento | funcional, ‘detetminado. _ pelo especial inacabamento do sistema neryoso; ela reconhece, . desde esse estadio, a intencionalizacao dessa situacao em duas i manifestagdes psiquicas do ) sujeito: a assungao do dilacera- * Folle di logis, em francés, que era como Malebranche designava a ima- ginagao. (N. do'[) 78 Os complexos famitiares mento original sob o jogo que consiste em rejeitar o objeto, e a afirmacao da unidade do corpo proprio sob a identificagao a imagem especular. Existe af um né fenomenoldgico que, ma- nifestando sob sua forma original essas propriedades inerentes_ ao sujeito humano de mimicar sua mutilagao e de ver-se como _ outro que ele nao é, faz com que sua taz4o essencial seja tam- bém apreendida nas servidées, proprias 4 vida do homem, de ultrapassar uma ameaga especifica e de dever sua salvagio ao interesse de seu congénere. Com efeito, é a partir de uma identificagio ambivalente com seu semelhante que, através da participagao ciumenta e da concorréncia simpdtica, o cu se diferencia, num progresso comum, do outro e do objeto, A realidade que esse jogo dia- lético inaugura guardara a deformagao estrutural do drama existencial que a condiciona e que se pode chamar o drama do individuo, com a énfase que este termo recebe da idéia da pre- maturagdo especifica. Mas essa estrurura sé se diferencia plenamente ali onde foi reconhecida de infcio, no conflito da sexualidade infan- til, o que se concebe pelo fato de que sé entao ela realiza sua fungio quanto a espécie: assegurando a corre¢ao psiquica da prematuragao sexual, o supereu, pelo recalcamento do objeto biologicamente inadequado que sua primeira maturagio pro- poe ao desejo, o ideal do eu, pela identificagdo imagindria que orientard a escolha para o objeto biologicamente adequado a matura¢a4o puberal. Momento que é sancionado pelo acabamento consecutivo da sintese especifica do eu na idade dita da razio; como perso- nalidade, pelo advento dos caracteres de compreensibilidade e de responsabilidade, como consciéncia individual, por uma certa viragem que o sujeito opera, da nostalgia da mae & afir- Os complexos familiares em putologin 1 mac4o mental de sua autonomia. Momento que € marcado, sobretudo, por esse passe afetivo na realidade que esta ligado & integracdo da sexualidade no sujeito, Existe af um segundo né do drama existencial que o complexo de Edipe inicia ao mesmo tempo gue desfaz o primeiro. As sociedades primiti- vas, que trazem uma regulacdo mais positiva 4 sexualidade da individuo, manifestam o sentido dessa integracdo irracional na funcdo inicidtica do totem, na medida em que o individuo nele identifica sua esséncia vital e o assimila a si ritualmente: 0 sentido do totem, reduzido por Freud aa do Edipo, nos parece antes equivaler a uma de suas fungdes: a do ideal do eu. Tendo assim mantido nosso propdsito de relacionar a seu alcance concreto — ou seja, existencial — os termos mais abstratos que a andlise das neuroses elaborou, podemos agora definir melhor o papel da familia na génese dessas afeccdes, Ele esta na dependéncia do duplo encargo do complexo de Edipe: por sua incidéncia ocasional no progresso narcisico, ele interessa o acabamento estrutural do cu; pelas imagens que introduz nessa estrutura, ele determina uma certa animagao afetiva da realidade. A regulagao cesses efeitos se concentra no complexo 4 medida que se racionalizam as formas de comu- nhdo social em nossa cultura, racionalizagao que ele determina reciprocamente humanizando a ideal do eu. Por outro lado, o desregramento desses efeitos surge em virtude das crescentes exigéncias que essa prdépria culcura impGe ao eu quanto a coeréncia ¢ ao impulso criador. Ora, as eventualidades ¢ os caprichos dessa regulagio au- mentam A medida que o mesmo progresso social, fazendo a familia evoluir para a forma conjugal, a submete mais ds varia- c6es individuais. Desse “anomia’ que favoreceu a descoberta do complexo, depende a forma de degradag4o sob a qual os \y 80 Os complexos familiares analistas o conhecem: forma que nds definiremos por um re- calcamento incompleto do desejo pela mae, com reativagao da angustia ¢ da investigacdo, inerentes 4 relacdo do nascimento; por um abastardamento narcisico da idealizagao do pai, que ressalta na identificagdo edipiana a ambivaléncia agressiva imanente 4 relacdo primordial com o semelhante, Essa forma é 0 efeito comum tanto das incidéncias traumaticas do com- plexo quanto da anomalia das relagées entre seus objetos. Mas a essas duas ordens de causas correspondem respectivamente duas ordens de neuroses, as ditas de transferéncia e as ditas de cardter. E preciso colocar de lado a mais simples dessas neuroses, ou seja, a fobia, sob a forma em que ¢ observada mais freqiien- temente na crianga: a que tem por objeto o animal. Ela nao ¢ sendo uma forma substitutiva da degradagdo do Edipo, na medida em que o animal grande nela representa imediatamente a mae como gestante, o pai como ameacador, o irm4o mais novo como intruso, Mas ela merece uma observa- ¢40, porque nela o individuo reencontra, para sua defesa contra a anguistia, a prépria forma do ideal do eu que reconhecemos no totem e através da qual as sociedades primitivas asseguram a formacao sexual do sujeito um conforto menos fragil. O neurético, no entanto, nZo segue o rastro de nenhuma “lem- branga hereditdria”, mas apenas a impresso imediata e nao sem profunda razdo, que o homem tem do animal como mo- delo da relagdo natural. Sao as incidéncias ocasionais do complexo de Edipo no progresso narcfsico que determinam as outras neuroses de transferéncia: a hisceria e a neurose obsessiva. E preciso ver seu protdtipo nos acidentes que Freud, inicialmente ¢ de maneira magistral, precisou como a origem dessas neuroses. Sua agao Os compleros faniliaves cnt patolagni Wt manifesta que a sexualidade, como todo o desenvelyimenta psiquico do homem, esta sujeita a lei de comunicagia que o especifica. Sedugdo ou revelacdo, esses acidentes descmpenham seu papel na medida em que o sujeito, como que surprecn- dido precocemente por eles em algum processo de scu “rece- famento” narcfsice, os compée af pela identificacaa. Esse pro- cesso, tendéncia ou forma, segundo a vertente existencial do sujeito que cle interessa — assungao da separacdo ou afirma- cao de sua identidade —, sera erotizado em sadomasoquismo ou em escoptofilia (desejo de ver ou de ser visto). Como cal, ele tenderd a softer o recalcamento corrclativo da maturagao normal da sexualidade, e arrastard ai uma parce da estrutura narcisica. Essa estrutura faltard na s{itese do cu e 0 retorno do recalcado corresponde ao esfor¢o constitutive do eu para se unificar, © sintoma exprime simultaneamente essa falta e esse esforgo, ou antes, sua composigao na necessidade primordial de fugir da angtistia. Mostrando assim a génese da divisio que introduz o sin- toma na personalidade, apds ter revelado as tendéncias que cle representa, a interpretacao freudiana, unindo-se 4 andlisc clinica de Janet, ultrapassa-a numa compreensio dramatica da neurose, como luta especifica contra a angiistia. O sintoma histérico, que é uma desintegragio de uma fungio somaticamente localizada: paralisia, anestesia, algia, inibigdo, escotomizacao, coma seu sentido do simbelismo or- ganomérfico — estrutura fundamental do psiquismo humano segundo Freud, que manifesta por uma espécie de mutilacdo o recalcamento da satisfagdo genital. Esse simbolismo, por ser essa estrutura mental aquela através da qual o objeto participa das formas do corpo pré- prio, deve ser concebido como a forma espectfica dos dados B2 Os complexos familiares psiquicos do est4dio do corpo despedagado; por outro lado, certos fendmenos motores caracteristicos do estadio do de- senvolvimento que designamos assim, se aproximam muito de certos sintomas histéricos, para que nao procuremos nesse estddio a origem da famosa complacéncia somdtica que é preciso admitir como condigao constitucional da histeria. E por um sacrificio mutilador que a angustia ¢ aqui ecultada; € 0 estorgo de restauragao do eu se marca no destino da histérica por uma reproducao repetitiva do recalcado. Compreende-se assim que esses sujcitos mostrem em suas pessoas as imagens patéticas do drama existencial do homem. Quanto ao sintoma obsessivo, no qual Janet recenhe- ceu justamente a dissociagao das condutas organizadoras do eu — apreensao obsedante, obsessAo-impulsao, cerimoniais, condutas coercitivas, obsessao ruminadora, escrupulosidade, ou diivida obsessiva —, ele toma seu sentido do deslecamento do afeto na representagao; processo cuja descoberta também é devida a Freud. Freud mostra, além disso, por que desvios, na repressfo mesma, que o sintoma manifesta aqui sob a forma mais fre- gliente da culpa, vem a se compor a tendéncia agressiva que sofreu o deslocamento. Essa composigao muito se assemelha aos efeitos da sublimagéo e as formas que a andlise demons- tra no pensamento obsessive — isolamento do objeto, des- conexo causal do fato, anulagao retrospectiva do evento — se manifestam demais como a caricatura das prdéprias for- mas do conhecimento, para que nao se procure a origem dessa neurose nas primeiras atividades de identificagao do eu, o que muitos analistas reconhecem ao insistir num des- dobramento precoce do eu nesses sujeitos; de resto, og sin- tomas vém a ser tao pouce desintegrados do eu que Freud Os compteses fanitiares cme fotioboeae wy introduziu para designd4-los 0 cermo de pensameuto com pulsivo. S40, portanto, as superestruturas da personalidade que sao utilizadas aqui para méstificar a angistia. O eslorgo de restauracdo do eu se traduz, no destino do obsessivo, por uma procura tantalizante do sentimento de sua unidade. [ compreende-se a raz4o pela qual estes sujeitos, distinguidos freqiientemente por faculdades especulativas, moscram em muitos de seus sintomas o reflexo ingénuo dos problemas existenciais do homem. Vemos; portanto, que é a incidéncia do traumatismo no progresso narc(sico que determina a forma do sintoma com seu contetido, Certamente, por scr exégeno, o traumatismo interessard ao Menos passageiramente a vertente passiva antes da vertente ativa desse progresso, e toda divisao da identifica 40 consciente do eu parece implicar a base de um despedaga- mento funcional: o que é confirmado, com efeito, pelo emba- samento histérico que a anélise encontra cada vez que se pode reconstituir a evolugao arcaica de uma neurose obsessiva. Mas uma vez que os primeiros efcitos do traumatismo escavaram seu leito segundo uma das vertences do drama existencial: as- sungao da separacao ou identificagao do eu, o tipo da neurose vai se revelando. Essa concep¢ao nao tem somente a vantagem de incitar a apreender de modo mais geral o desenvolvimento da neu- rose, recuando um pouco a recorréncia aos dados da consti- cuicao onde sempre descansamos rapido demais: ela da conta do cardter essencialmente individual das determinagées da afeccao. Se as neuroses mostram, com efeito, pcla natureza das complicagdes que o sujeito manifesta na idade adulta (por adaptacao secunddria a sua forma e também por defesa secundaria contra o préprio sintoma, enquanto portador do Os complexos familiares recalcado), uma variedade de formas tal que seu catdlogo ainda estd para ser feito, apds mais de um terco de século de andlise — a mesma variedade se observa em suas causas. E preciso ler os relatos de curas analfticas e especialmente os admirdveis casos publicados por Freud para compreender que gama infinita de eventos podem inscrever seus efeitos numa neurose, como traumatismo inicial ou come oeasions de sua “pela perda do objeto parental o ou uma 1a queda de 5 “prestigio. que atinja sua imagem podem ser, experiéncias reveladoras. Nenhuma atipia do complexo pode ser definida por efcitos constantes. No maximo, pode-se notar globalmente um com- ponente homossexual nas tendéncias recalcadas pela histeria ea marca geral da ambivaléncia agressiva em relacdo ao pai na neurose obsessiva; de resto, af estio formas manifestas da subverséo narcisica que caracteriza as tendéncias determi- hantes das neuroses. F também em funcao do progresso narcisico que é preciso conceber a importancia tao constante do nascimento de um irm4o: pois, sc 0 movimento compreensivo da andlise exprime sua repercussdo no sujeito sob qualquer motivo: investigacao, rivalidade, agressividade, culpa, convém nao considerar esses motivos como homogéneos ao que representam no adulto, e sim corrigir seu teor relembrando-se da heterogeneidade da estrutura do eu nos primeiros meses de vida; desse modo, a importancia desse evento pode ser medida através de seus efeitos no processo de identificagao: ele precipita na maioria das vezes a formagao do eu e fixa sua estrutura a uma defesa Os complexos fitneiliares crm prtulogiat Ma suscetivel de se manifestar em tragos de cardter, de avareza ou autoscépicos. E é também como uma ameaga, intimamente sentida na identificagao com 0 outro, que pode ser vivida a morte de um irmao. Constataremos, apés este exame, que, se a soma dos casos assim publicados pode ser colocada na ficha das causas fami- liares dessas neuroses, ¢ impossivel relacionar cada entidade a alguma anomalia constante das instancias familiares. Isso é verdadeiro pelo menos para as neuroses de transferéncia; 0 siléncio sobre elas, num relato sobre as causas familiares das neuroses, apresentado no Congresso de psicanalistas franceses em 1936, é decisivo. Nao é de modo algum para diminuir a importancia do complexo familiar na génese dessas ncureses, mas para fazer reconhecer seu alcance de expresses cxistenciats do drama do individug, ” As neuroses ditas de cardter, ao contrario, permitem ver certas relac6es constantes entre suas formas tipicas e a estru- tura da familia na qual cresceu o sujeito. Foi a pesquisa psica- nalitica que permitiu reconhecer como neurose os discurbios do comportamento e do interesse que s6 se sabia relacionar 4 idiossincrasia do cardter; ela encontrou aio mesmo efeito para- doxal de intengdes inconscientes ¢ de objetos imagindrias que se revelou nos sintomas das neuroses classicas; e ela constatou a mesma acao da cura psicanalitica, substituindo a noc4o inerte de constituigdo por uma concepgao dindmica, tanto na teoria quanto na pratica. © supereu e o ideal do eu so, com efeito, condigdes de estructura do sujeito. Se eles manifestam em sintamas a desin- tegracao produzida por sua interferéncia na génese do eu, tam- bém podem se traduzir por um desequilibrio de sua instancia prdépria na personalidade: por uma variacao daquilo que se 86 Os complexos familiares poderia chamar de a férmula pessoal do sujeito. Essa concep- cao pode se estender a qualquer estudo do cardter, para o qual, por ser relacional, traz uma base psicoldgica pura & classifica- Ao de suas variedades, ou seja, uma outra vantagem sobre a incerteza dos dados aos quais se referem as concep¢ées consti- tucionais nesse campo predestinado a sua eclosao. A neurose de carater se traduz, pois, por entraves difusos nas atividades da pessoa, por impasses imagindrios nas rela- goes com a realidade. Ela é tanto mais pura quanto mais sub- jetivamente integrados ao sentimento de autonomia pessoal estiverem os entraves e impasses. O que nfo quer dizer que ela seja exclusiva dos sintomas de desintegracio, uma vez que a encontramos cada vez mais, como fundo, nas neuroses de transferéncia. As relagoes da neurose de cardter com a estrutura familiar se devem ao papel dos objetos parentais na formagao do supereu e do ideal do eu. Todo o desenvolvimento deste estudo é para demonstrar que o complexo de Edipo supée uma certa tipicidade nas re- lag6es psicolégicas entre os pais, e insistimos especialmente no duplo papel que desempenha o pai, enquanto representa a autoridade e enquante centro da revelagio sexual; ¢ & ambi- gitidade mesma de sua imago, encarnacao da repressdo e ca- talisador de um acesso essencial & realidade, que relacionamos o duplo progresso, tipico de uma cultura, de certo tempera- mento do supereu e de uma orientag4o eminentemente evo- lutiva da personalidade. Ora, a experiéncia revela que o sujeito forma seu supereu e seu ideal do eu nao tanto segundo o eu do progenitor quanto segundo as instancias homdlogas de sua personalidade: o que quer dizer que, no processo de identificacdo que resolve o com- plexo edipiano, a crianga ¢ bem 5 mais nsivel As intengGes, que se. at ee ma canteen Os complexos familiares em patolugia 87 lhe sfo comunicadas afetivamente pelo progenitor, que ao que _se pode objetivar de seu comportamento. Aj estd o que pée no primeiro plano das causas da neurose a neutose parental e, ainda que nossas observagées precedentes sobre a contingéncia essencial ao determinismo psicoldgico da neurose impliquem uma grande diversidade na forma da neu- rose induzida, a transmissao tenderd a ser similar, em virtude da penetragdo afetiva que abre o psiquismo infantil ao sentido mais escondido do comportamento parental. Reduzida 4 forma global do desequilibrio, essa transmis- sdo é patente clinicamente, mas nao € possivel! distingui-la do dado antropolégico bruto da degenerescéncia. Somente a andlise discerne seu mecanismo psicoldgico, ao mesmo tempo que relaciona certos efeitas constantes a uma atipia da situa- cio Familiar. Uma primeira atipia se define assim em raz4o do conflito que 0 complexo de Edipo implica, especialmente nas rela- Ges do filho com o pai. A fecundidade desse conflito reside na selegao psicolégica que ele assegura, fazendo da oposicz0 de cada geracdo A precedente a propria condicgdo dialética da tradigao do tipo paternalista. Mas em toda ruptura dessa tensdo, numa geragSo dada, seja em razdo de alguma debi- lidade individual, seja por algum excesso da dominagao pa- terna, o individuo cujo eu se curva receberd, além disso, 0 fardo de um supereu excessivo. Muitos autores fizeram con- sideragdes divergentes sobre a nocao de um supereu familtar; seguramente, ela corresponde a uma intui¢do da realidade. Parca nds, 0 reforgo patogénico do supereu no individuo se faz em fungio de duas coisas: tanto do rigor da dominagao _patriarcal quanto da forma tiranica das interdigdes que res-_ surgem com a estrutura matriarcal de toda estagnacio das 88 Os complexos familiares _elos domésticos. Os ideais religiosos e seus equivalentes so- ciais desempenham aqui facilmente 0 papel de vefculos dessa opressio psicolégica, na medida em que sdo utilizados para fins exclusivistas pelo corpo familiar e reduzidos a significar as exigéncias do nome ou da raga. E nessas conjunturas que se produzem os casos mais im- pressionantes dessas neuroses que chamamos de auto-puni- ao pela preponderancia freqiientemente univoca que nelas assume o mecanismo psfquico desse nome; essas neuroses, que em razdo da extensio muito geral desse mecanismo di- ferenciariamos melhor como neuroses de destino, se manifes- tam através de toda a gama de condutas de fracasso, inibigao, perda, nas quais os psicanalistas souberam reconhecer uma intengao inconsciente; a experiéncia analitica sugere que se estenda cada vez mais longe, e até A determinagdo de doen- cas organicas, os efeites da autopunigao. Eles esclarecem a reprodugao de certos acidentes vitais mais ou menos graves na mesma idade em que apareceram num progenitor, certas mudangas da atividade e do carater, vencidos prazos andlo- gos, a idade da morte do pai, por exemplo, e toda espécie de comportamento de identificagao, inclusive, sem diivida, muitos desses casos de suicidio que colocam um problema singular de hereditariedade psicoldgica. Uma segunda atipia da situagiio familiar se define na di- mensao dos efeitos psfquicos que o Edipo assegura na medida em que preside a sublimagio da sexualidade: efeitos que nos esforcamos por apreender como de uma animacdo imaginativa da realidade. ‘Toda uma ordem de anomalias dos interesses esta referida a ela, o que justifica para a intuigao imediata o uso sistematizado na psicandlise do termo libido. Com efcito, ne- nhum outro a nao sera eterna entidade do desejo parece convir Os complexes familiares cur prtulogin WS para designar as variagGes que a clinica manifesta no interesse que o sujeito dirige a realidade, no impulso que sustenta sua conquista ou sua criagdo. Nao é menos surpreendente observar que, A medida que esse impulso se amortece, o intcresse que © sujeito reflete sobre sua prépria pessoa se traduz num jogo mais imagindario, quer se relacione a sua integridade fisica, a seu valor moral ou a sua representac4o social. Essa estrutura de involugao intrapsiquica, que designamos como introversao da personalidade, ressaltando que se usa este termo em sentidas um pouco diferentes, correspande a relagao do narcisismo, tal como o definimos geneticamente enquanto a forma psiquica na qual se compensa a insuficiéncia espect- fica da vitalidade humana. Desse modo, um ritmo bioldgico regula, sem diivida, certos distirbios aferivos, ditos ciclotimi- cos, scm que sua manifestagao seja separdvel de uma inerente expressividade de derrota c de triunfo. Da mesma forma, todas as integracées do descjo humano se fazem em formas derivadas do narcisismo primordial. No entanto, mostramos que duas formas se distinguiam por sua func&o critica nesse desenvolvimento: a do duplo e a do ideal do eu, a segunda representando o acabamento e a metamorfose da primeira. O ideal do eu, com efeito, substitui o duplo, ou seja, a imagem antecipadora da unidade do eu, no momento em que esta se acaba, pela nova antecipagio da maturidade libidinal do sujeito. E por isso que toda caréncia da imago formadora do ideal do eu tenderd a produzir uma certa introversio da personalidade por subdugio narcisica da libido. [ntroversao que se exprime ainda como uma estagna- ¢4o mais ou menos regressiva nas relagdes ps{quicas formadas pelo complexo do desmame — o que define essencialmente a concepeao analitica da esquizondia. 90 { Os complexos femitiares Os analistas insistiram nas causas de neuroses constitu{- das pelos disturbios da libido na mae, ¢ a menor experiéncia revela, com efeito, em intimeros casos de neurose, uma m3e frigida, da qual se apreende que a sexualidade, derivando-se nas relagSes com a crianga, subverteu a natureza destas: a mae que paparica e mima, por uma ternura cxcessiva em que se ex- prime mais ou menos conscientemente um impulso recalcado; ou a mie de uma secura paradoxal e de severidade muda, por uma crueldade inconsciente na qual se traduz uma fixac¢io bem mais profunda da libido. Uma justa apreciagZo desses casos nao pode evitar levar em conta uma anomalia correlativa no pai. E no cfrculo vicioso de desequilibrios libidinais, que nesses casos o circulo familiar constitu, que é preciso compreender a frigidez materna para medir seus efcitos.(Acreditamos que o destino psicolégico da crianga depende antes de mais nada da relacao que as imagens parentais mostram ter entre si. E por ai que o desentendimento dos pais ¢ sempre prejudicial 4 crianga, e que, sc nenhuma lembranga permancce mais sensfvel em sua meméria que a confissao formulada do carater desarmonioso de sua unio, as formas mais secretas desse desentendimento nao sao menos perniciosas. Nenhuma conjuntura ¢, com efeito, mais favora- vel a identificagdo acima invocada como neurotizante do que a percepg4o, muito certa na crianga, nas relagdes dos pais, do sentido neurdético das barreiras que os separam, e muito es- pecialmente no pai, em virtude da funcao reveladora de sua imagem no processo de sublimacio sexual, E, portanto, 4 desarmonia sexual entre os pais que se deve relacionar a prevaléncia que o complexo do desmame mantera num desenvolvimento que ele poderd marcar de diversos mo- dos neurdéticos, Os complexas familiares em patologia 91 O sujeito serd condenado a repetir indefinidamente o esforco de desligamento da mae — e € af que se encontra o sentido de todos os tipos de condutas forgadas, indo de determinadas fugas da infancia aos impulsos vagabundos e As rupturas cadticas que singularizam a conduta de uma idade mais avancada; ou entao, o sujeito permanece prisio- neiro das. imagens do complexo e submetido canto a sua instancia letal quanto a sua forma narcisica — é 0 caso da consumpc4o mais ou menos intencionalizada na qual, sob o termo de suicidio nao violento, assinalamos o sentido de certas neuroses orais ou digestivas; ¢ igualmente o caso desse investimento libidinal que, na hipocondria, as endoscopias mais singulares revelam, como a preocupacgdo, mais com- preensivel mas no menos curiosa, do equilibrio imagindrio dos ganhos alimentares e das perdas excretérias. Do mesmo modo, essa estagnagao psiquica pode manifestar seu corold- rio social numa estagnag4o dos liames domésticos, perma- necendo os membros do grupo familiar aglucinados por suas “doengas imagindrias” em um nucleo isolado na sociedade, isto é, co estéri] para seu comércio quanto inttil para sua arquitetura. E preciso distinguir, finalmente, uma cerceira atipia da situagZo familiar que, interessando também a sublimagdo se- xual, atinge cletivamente sua func’o mais delicada, que é de assepurar a sexualizagao psiquica, ou seja, uma certa relagdo de conformidade entre a personalidade imaginaria do sujeito e seu sexo bioldgico: essa relagio se acha invertida em niveis diversos da estrutura ps{quica, inclusive a determinacao psi- calégica de uma homossexualidade patente. Os analistas nao tiveram necessidade de cavar muito fundo os dados evidentes da clinica para incriminar ainda 92 Os complexes familiares _aqui o papel da mae, a saber, tanto os excessos de sua cernura, em telacao a seu filho quanto os tragos de virilidade de seu pré- _ prio carter. E por um triplo mecanismo que, ao menos para o individuo do sexo masculino, se realiza a invers&o: as vezes, a flor da consciéncia, quase sempre passivel de observacao, uma fixagao afetiva 4 me, fixagao que se acredita acarretar a exclu- sao de uma outra mulher; mais profunda, mas ainda penetra- vel, nem que seja apenas pela intuigao poética, a ambivaléncia narcfsica segundo a qual o sujeito se identifica com sua mae e identifica o objeto do amor com sua prépria imagem especular, a relagdo de sua m&e com ele mesmo dando a forma na qual se engrazam para sempre o modo de seu desejo e a escolha de seu objeto, desejo motivado de ternura e de educagio, objeto que reproduz um momento de scu duplo; por fim, no fundo do psiquismo, a intervencgao muito propriamente castradora pela qual a mae deu vazfo a sua prépria reivindicacéo viril. _Agui se revela bem mais claramente o papel essencial da relacdo entre os pais; ¢ os analistas ressaltam como 9 card- ter da mae também se exprume no plano conjugal através de. uma tirania domésrica, cujas formas larvares ou patentes, da reivindicagao sentimental a confiscagao da autoridade fami- liar, manifestam todas seu sentido fundamental de protesto viril, este encontrando uma expressao eminente, ao mesmo tempo simbélica, moral e material, na satisfagao de “cuidar das despesas”. As disposicdes que, no marido, asseguram re- gularmente uma espécie de harmonia a esse casa] nao fazem senao tornar manifestas as harmonias mais obscuras que fa- zem da carreira do casamento o lugar eleito da cultura das neuroses, apés ter guiado um dos cénjuges ou os dois numa escolha adivinhatéria de seu complementat, as adverténcias do inconsciente num sujeito correspondendo sem reveza- Os complexos familiares em patologia 3 mento aos sinais pelos quais se manifesta o inconsciente do ouno. Ainda aqui uma consideragdo suplementar nos parece impor-se, a qual relaciona desta vez o processo familiar a suas condicg6es culturais. Pode-se ver no fato do protesto viril da mulher a conseqiiéncia ultima do complexo de Edipo. Na hie- rarquia dos valores que, integrados as prdprias formas da reali- dade, constituem uma cultura, a harmonia que ele define entre os principios masculino ¢ feminine da vida é uma das mais caracteristicas. As origens de nossa cultura estao demasiado ligadas aquilo que chamariamos, de bom grado, de a aventura _da familia paternalista, para que ela nao imponha, em todas as formas com que enriqueceu o desenvolvimento psiquico, uma _prevaléncia do principio masculine, cuja parcialidade pode set_ medida pela forga moral conferida ao termo virilidade. Compreende-se que, em fungao do equilfbrio, funda- mento de toda pensamento, essa preferéncia tenha um avesso: fundamencalmente é a ocultagao do principio feminino sob o ideal masculino, do qual a virgem, por seu mistério, atra- vés das épocas dessa cultura, é 0 signo vive. Mas € prdprio do espirito que ele desenvolva em mistificagao as antinomias do scr gue © constitucm, ¢ o préprio peso dessas superestruturas pode vir a derrubar sua base. Nao hd liame mais claro para o mo- ralista do que aguele que une o progresso social da inversao psiquica a uma virada utdépica dos ideais de uma cultura. O analista aprecnde a determinagdo desse liame nas formas de sublimidade moral, sob as quais a mac do invertido cxerce sua acaolmais categoricamcnte emascylante. | Nao é por acaso que conclufmos com a inversae psi- quica esta rentativa de sistematizacao das neuroses familia- res. Se, com efeito, a psicandlise partiu das formas patentes 94 Os complexus familiares da homossexualidade para reconhecer as discordancias psi- quicas mais sutis da inversdo, € em funcao de uma antinomia social que € preciso compreender esse impasse imagindrio da polarizagao sexual, quando ai se comprometem, de modo in- visfvel, as formas de uma cultura, os costumes e as artes, a fuca € © pensamento. Campo FREUDIANO No BrasiL O que Quer uma Mulher? Serge André Os Poderes da Palavra Associacgdo Mundial de Psicandlise Para Ler o Seminario 11 da Lacan Os quatro conceites Fundamentals Ga psicanalise Richard Feldstein, Gruce Fink @ Maire Jaanus (args.] Estratégias na Neurose Obsessiva Luiz Renato Gazzola Os Complexos Familiares na formagao do individuo Escritos Meu Ensino {série especial © mito individual do neurdtico (sare especial) Nomes-do-Pai (série especial) Outros Escritos 0 Seminario, livro 1 Os escritos tecnicos de Freud 0 Seminario, livro 2 © eu na teoria de Freud ena técnica da psicandlise O Seminario, livro 3 As psicoses O Seminario, livro 4 A relagao de objeto O Seminario, livra 5 As formagées do inconsciente O Seminario, livro 7 A ética da psicanalise O Seminario, livro 8 A transferéncia O Seminario, livra 10 A angustia O Seminario, livro 11 Os quatro conceitos fundamentais da psicandalise O Seminario, livro 16 De um Outre ac outra O Seminario, fivro 17 O avesso da psicandlise O Seminario, livro 20 Mais; ainda O Seminario, livro 23 O sinthoma Televisao O Triunfo da Retigiao (série especial) Jacques Lacan A Querela dos Diagndsticos Jacques Lacan e autros Lacan Elucidada Palestras no Brasil Matemas i Percurso de Lacan Uma intradueao Silet Os paradoxes da pulsao, de Freud a Lacan Jacques -Alain Miller Ornicar? De Jacques Lacan a Lewis Carroll Jacques-Afain Miffer (org.) A Droga do Toxic6mano Uma parceria cinica na era da ciéncia Jésus Santiago A Inibicdo intelectual na Psicandlise Ana Lydia Santiago Freud ¢ a Perversao Patrick Valas A Etica da Paixdo Uma teoria psicanalitica do afeto Marcus André Vieira Psicessomatica e Psicanalise Roger Wartel e outros

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