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CADERNOS DE LITERATURA COMPARADA DEZ. 2000 INSTITUTO DE LITERATURA FCT] XX ows Editores e Livreiros Ficha téeniea: tate: CADERNOS DE LITERATURA COMPARADA ~ 1 Publicagiio do INSTITUTO DE LITERATURA COMPARADA MARGARIDA LOSA DA FACULDADE DE LETRAS DO PORTO ‘Greaniadoras do presente wer: Mariade Patina Ouerinto Row Maria Maelo apa: Nezard Aare Baor Grant, Bdtorese Livros, tide ono Depo Lap 0° T6SORGOT ISSN: 165-1112 ‘Composigao e impressao: Riagréfica, Estarreja REPRESENTACAO DO OUTRO E IDENTIDADE: UM ESTUDO DE IMAGENS NA NARRATIVA DE VIAGEM -I Imagologia literdria: contomos hist6ricos e principios metodolégicos Ana Paula Coutinho Mendes Vacaldade de Letras do Porto Tal como a identidade do sujeito ~ que no pode ser encarada como uma forma de ser plena ¢ apriorisiea, mas antes como uma realidade fundamentalmente dinimica ou relacional — também aquilo a que se podera chamar a identidade literisia, onde se cruzam, questdes de identidade pessoal ¢ social, (embora sem pretender assimili-la a uma cultura nacional, como aconteceu no século XIX), acaba sempre por revelar uma dimensio estrangeira, que € wma das manifestacoes do Outro. Not propdsito, que em algumas das Tinguas europeias ‘mediterrinicas, esta realidade de uma alteridade constituinte ou de um set intrinsecamente heterogéneo encontra-se, desde logo, anunciada ¢ sintetizada em sintagmas nominais como oi att (italiano), vous andres (Francés) ou nosoiray (espanhol). Num ensaio dedicado a0 assunto, Armando Gnisei parte dessa simples constatagio de ordem linguistica (Gnisci: 1992, p.215) para defender a tese de que a Duropa - na pluralidade das suas nagdes constituintes ~ foi construida, ¢ continua a construir-se, sob a imagem dupla de identidade/alteridade. Mas, anos antes, jé Julia Kristeva tinha também percorrido o destino do estiangeiro na civilizacio curopeia — desde as tradigdes greg © judaico-ctista, pasando pelos cosmopolitismos renascentistas e ilusninistas, bem como pelo universalismo romintico © a culminar na “inguietante estranheva” associada 4 descoberia freudiana do inconseiente ~ a fim de mostrar como a alteridade, simultaneamente biologica € 93 simblica, esti. definitivamente instalada em nds (Julia Kristeva: 988) 1. Na medida em que na constante b ‘com © Outro supde sempre uma compar identitaria @ confronte 40, esplicita ou implicita, © se integra naguilo que, numa terminologia backthiniana, se apelidari de dinlogismo cultural, a imagologia literiria — enquanto estudo das representacies do estrangeiro (do Outto) na Literatura, .¢ afirmando como um dos dominios mais antigos da Literatura contexto, ¢ desde o inicio, foram privilegiados como opus de anélise as nartativas de viagem, os romances de exilio, ou foutras obras de fiegio incluindo estrangeiros ow imagens mais ou ‘menos estereotipadas de um territdrio estrangeito, Contudo, apesar de terem granjeado uma fortuna eonsideravel’, sobretudo no ambito da chamada “escola francesa da Literatura Comparada™, muitos desses estudos, elaborados sob a égide ou a pretexto da imagologia, incortiam tanto dos vicios epistemologicos de uma Siellgescbichtr positivista, como dos estratagemas de um nacionalismo mascarado da evocagao do estrangeito © apoiado numa pretensa “psicologia dos povos”. Apontava-sethes ainda o desvio do ambiro proptiamente literério, em direcgio a textos © anilises mais enquadsiveis em dominios como os da historia ou da antropologia, No auge de uma das mais conhecidas crises endémicas da Literatura Compatada — despoletada, por arrastamento de uma mudanga geral de praradigma nos estudlos literétios, em finais da década de 50 — eta altamente improvavel niio ser sensivel as eritieas desferidas contra os excessos desertivistas, citacionais e de uma interdisciplinaridade casual ou pouco rigorosa, patentendos por muitos trabalhos designados como imagoligicos. Nio obstante, € por forca também daquilo que, sobretudo a partir da década de 80, veio a ser de novo reivindicado como fundamental para a abordagem literitia, ou seja, 0 contexto histérico-cultural, que fora entretanto estrateyicamente subestimado 1 favor de anilises imanentistas ¢ sinerinieas, tem vindo a assist 1 uma recupergio do contributo da_perspectiva imagologista ~ fssente agora em alguns prineipios de auto-validagio ~ para a abordagcm da complexidade de todo 0 campo litersrio (Bourdieu) que concebe ¢ integra a Literatura como fenémeno poliédrico, ou 94 como polissisiema — rermo que a0 longo desta década se torow nuin verdadeito. catalizador teérico, visando a desetigio de Uiferentes niveis estruturais dos fendmenos estéticos, em estreita relacio coma historia cultural ‘Actualmente, para além das Tigacdes interdisciplinares que sempre foi estabelecenda com a Antropologia, a Sociologia ou a Hist6ria, a Tmagologia encontra-se intimamente ligada a outros dominios emergentes no Ambito dos Ustudos Literitios © da Literatura Comparada (Moura: 1999, p.188-191), tais como os “Cultural studies”, a Critica pés-colonial ou ainda a Mitocritica (Brunel: 1998, 1p.225-234), os Esmdos de Recepgio ¢ ‘Tiadugio (Chevrek 1992, p.152) 2. A imagologia literaria propde-se, em sintese, o estudo de “um conjunto de ideias sobre 0 estrangeiro tomadas num proceso de literarizacio mas também de socializacio” (Pageaus: 1994, p.60). O conceito de imagem, que esti na base desta perspeetiva de anil em ver de privilegiar uma dimensio gnoseoligies, no pressuposto de que a imagem seria a forma de {re)conhecimento do estrangeiro, © seu anal, evidencia o entrecruzamento de plinos perceptivos, ‘memoriais e interpretativos, pelos quais a imagem — ou melhor seria dizet_miragem — funciona sobretudo como “indicio de um fantasma, de uma ideologia, de uma utopia proprios de um consciéncia que imagina a alteridade” (Moura: 1998: pa). Assim sendo, quando aqui se fala de imagem ou de representacio do estrangeiro, estamos no Ambito do “efeito do real” ligadlo a uma temissividade cm triplo sentido, ou soja, qualquer imagem estudada em imagologia € sempre: a) imagem de um referente estrangeiro; b) imagem proveniente de uma nagio (Gociedade ou cultura); ec) imagem criada pela sensibilidade particular de um autor (Mourn: 1999, p.184). A abordagem em separado de cada um destes aspectos, com pressupostos e:tGneos porque limitados ou deformadores, tender a resultados distintos. Daé que os estudos imagolégicos devam elaborar uma aniilise das fads vertentes, articuladas entre si, de modo a nio esquecer a dimensio simbélica das imagens liresirias — que aio devem ser avaliadas pelo seu gran de realismo ou de adequacio com uma dada realidade histérica ou social, mas antes pela sua funcionalidade valor estéticos -, nem a extcerbar a componente do mito pessoal do 95 escritor, subestimando @ importincia do imaginatio social, no seie do qual 0 proprio escritor urdiu tais imagens. De resto, se hii um aspecto interessante que a imagologia pode ajudar a equacionar no. mbito da eriagio litersriaé justamente o de obrigar a repensar quet 1s leis matetialistas ca arte como reflexo, quer os discursos idealistas tem torno da liberdade criativa Por conseguinte, se por um ldo interessa clucidar até que ponto a apreensio da realidade cstrangeim pelo escritor (€ consequentemente pelos leitores} nico é directa, mas mediatizada pelns representaces imaginarias do grupo ou da sociedade a que pertencem — donde a necessidade de estudar o imaginario social que rodein © plano da produgio e da recepgio das obras —, por outro lado, importa também evidenciar © papel inovador da imaginagio, a sua componente jd ado reprodutora mas produtora (Ricocur: 1986, 1p.214-215), realgando as imagens que reagem, pela diferentea, a € representagdes colectivas ou convencionais, sempre no enten dimento de que 0 discurso literério nao é directamente referencial, procedendo antes pela “refiguracio”, 3. Seguindo ainda a leitura hermengutiea de Panl Ricoeur selativa As, praticas ou discursos enquadriveis no imaginaio social, Jean Marc- -Moura props uma distingio tipolégica das imagens do estrangeiro, considerando, por um ldo, as imagens ideotigicas e, por outro, as imagens ut6picas ~ polos extremados entre os quais balancam, fe tendencialmente se situam, as imagens sobre o estrangeito ppassiveis de serem encontradas em obras literirias ou paraliterarias, No primeiso caso, a ideologia, enquanto horizonte de referéncia que delimita © universo mental a pattie do qual o escritor vai construir as suas representagdes & produvir sentido, fi, com que as imagens do estrangeico apresentem essencialmente uma fungio integradora, confirmando os pré-conceitos que a comunidade onde surgem as imagens possui relativamente & realidade estrangeira seas representacdes ideologicas tenderao a ser arquetipicas ¢/ou hierarquizadoras e/ou redutoras, tal como os planos de anilise inventariados pelo referide autor de Essair d’eménentiqne para 0 conecito de ideologia. im termos de anilise narrativa, uma tal Ulistribuigio de funcoes da representacio do estrangeiro remete-nos ‘nos dois primeicos casos para o simbolo ou mesmo para o mito, cenguanto o terceito eorresponde ao esterestipo ou cliché, Por sua vez, as imagens essencinimente utdpiens exercem uma fungio subversiva, na medida em que questionam e se distanciam do imaginatio social em que se integram, apresentando o estrangeito em termos fundamentalmente excéntricos , portanto, como uma realidade alternativa. Mas também estas representagdes poderio ser analisadas segundo trés niveis de sentido: desde o par em questio da identidade do grupo a idealizacto da alteridade, pasando pela critica das relagdes de antoridade que ligam © grupo ao estrangeito, epresentado. omo sintese deste espectrograma do imaginirio neferente ao Outzo estrangeito, Jean Mare-Moura avancon com a proposta de dois termos cotrespondentes aos pronomes latinos “alter” ¢ “; Assim, ALTER — cnquanto “o outro de um pat” ~ & 0 reflexo da cultura de um grupo; ALTIUS ~ enquanto “o outro indefinid uma recusa radical dessa mesma cultura (Moura: 1998, p.53) Embora nio estejam aqui necessatiamente em causa relacées de supesioridade ou de inferiosidade entse as culturas em andlise ~ a ‘que representa e a que é representada ~ , convém nio esquecer, tal como 0 citado comparatista assinala, o facto de se estar perante nicleos de representagio que se implicam dialecticamente, Com cefcito, nem a subversio deixa de estar completamente sujeita Aquilo que pretende subverter, nem a reproducio ideolégien impede que, por vezes, se erga a diferenga no seio daguilo que parecia sex uma mera exaltagio dos valores pré-existentes do grupo. 4. O earpas de anilise dos estudos imagoligicos continua a ser constituido preferencialmente por textos narrativos, pela ficsio em gesal e pelas crdnicas de viagem, uma ver que sio diseursos que se prestam mais facilmente as diferentes vertentes da anélise semiolégica, do proceso narrativo, da construgio das personagens da sua relacio com os componentes espacio-tempotnis Nao obstante, & possivel ~ e nalguns casos até mesmo fundamental como processo propedéutico — ter em conta a perspectiva imagoldgiea para textos ctiticos ou poéticos, quando neles esta de alguma forma em causa a tecepcio de uma realidade ‘ou cultura estrangeiras', Nao s6 a recepgio de um autor ou de uma dada obra pode ser crucial para o estudo da(s) imagem(s) de um pais 7 noma dada cultura, como essa(s) imagens) pode(m) ter consequéneias estruturantes no cfnone literitio de um autor ou de ‘uma comunidade litera. Em qualquer dos casos, verifiear-se-f que o imaginario. em tomo do estrangeiro apresenta uma lgica de investimento simbélico que Daniel-Henri Pageaus divide em quatro atitudes fundamentais (Pageauns: 1994, p.71-72): A mania (0 estrangeito € tide como superior); A\ fobia (0 esteangeiro é visto como inferior); A filia (tanto a cultura receptora como a realidade estrangetta fo consideradas positivas ¢ complementares entre si); (© cosmopolitismo ou internacionalismo ( as relagdes cculturas tendem a transformar-se em movimentos de unificacio). Deste modo se pode entender o estudo da representacio do ‘Outro estrangeito como integrado num conjunto de relagoes de forca entre sistemas cultusais, cuja orginica mio pode ficar pela simples inventariagio das imagens, pois merece uma anil interdisciplinar mais sistemética e articulada para nfo ficar resumida (feduzida) a0 termo demasiado genético c até banalizado de diflogo de culturas. Actesee ainda que a abordagem imagolégica pode ajudar a reformular ou a apurar outros aspectos daquilo que esté cefectivamente em jogo na Literatura Comparada, em especial no ‘campo dos Tistudos de Recepcio. Pot exemplo, gragas a um enguadramento imagolégico das relagdes literatias internacionais, a analise dos discussos criticos sobre literaturas estrangeiras recebidas por via de tndugdes ou de adaptagies, torna-se sobretudo. num. estudo dos processos de avalingio, de representagio ¢ de legitimacio, em funcio de ctitérios e de normas que esto na base das continuidades © rupturas no processo histérico © cultural da cringio literisia (Pageauss, 1992, p.305). entre 5. Voltando Aiquele que foi o nosso ponto de partida, cumpte-nos reiterar a pestinéncia do estudo da representacio do Outro estrangeiro no Ambito do tema aglutinador do nosso projecto de investigacio ~ Literatura ¢ Identidades ~ na exacta medida em que as diferentes modalidades, pressupostos ¢ estratégias de especulacio em toro do estrangeiro constituem outros tantos espelhos da Literatura/Cultura representante, que interessa _dilucidar interpretar do ponto de vista quer de posticas individuais, quer de 98 discursos es éticos ow imaginétios colectivos, por forma a fazer cruzar as dinimicas identirérias da representacio © da auto- presenta NOTAS " Destague'se, 2 tnlo de esermplo, o teabalho pioneiro de Jean-Marie Carré, Ler inais Franpas of & Mirage Allomate, 1500-1940 (Pass, Boia, 147), bem como © de alguns dos seus mais conhecidos seguidores: Matis Francois Guyard, tag a Crane Brtage dane Rorwan Frans, 1914-1940 (Pati, Dicies, 1954) Michel Calo, La Rus dans lene itelltel france (1839-1856), (Pass, Fayaed, 1967) ¢ Daniel Hlensi Pagenos, L Ege dent fe somone agave an NUL sk, Pati, 1975). 2 imbors importe no esquecer o imprescindivel contibuta alemao, desde o Alccalque sla poopie palwven ~ inuagolagin — até i tevtieaio subincene oe cestudos, em particular de Hugo Dyserinek (“Zum Problem dr simigess uad seniege>) und ieee Untersuchung im Rahmen der Vergleichenden Literaturwissenschal) do suigo Mantied Fischer, > 4 este propésito, veinse © estudo de Jean-Maze Mousa (1992), bem como a stimulant reflesio de Manfred Schmelig(1999:195.207), ' Assim scomteceu com a investigagio que dedieiimos as solagdes da poesia ¢ critica de Anténio Ramos Rosa com a elas francdfona (Ana Pasa Comtinko Mendes, Das Relais Liters PrtagatPranga. Anti Ramos Rose — Medio Catia + Chiaip Linn, Tese de Dowtoramento apresentida & FLUP, 1998}, bem como 4 anilise da antologin de poemas francescs trdurides por Manucl cgre (na Paula Coutinho Mendes, “1 Franea de Manuel Megee: do aio lugar ao ligae posico”, 1999 a pubear em ets) OBRAS TADAS Brunel, Pierre (1998) _ “Littérature comparée: les théories de Vimaginaire et Fexégése des mythes littéraires”, Iniradnation arc smithodologies de Fmeginaire, sous Ia dicection de Joel ‘Thomas, Patis, EEllipses. Chevrel, Yves (1992) ~ “La Littérature en traduction constitue-telle tun champ littéraite?”, Le Champ Littémire ~ Etudes réunies et présentées par P. Citti et M. Detrie, Paris, Vrin, 99 Gnisci, Armando (1992) - “ Le jeu de Paltérité comme identité caropéenne”, larypa Provinia Mina ~ Psa ofr fo Hugo Dyseriik, edited by Joep Leerssen and Karl Ultich Syndram, Amsterdam- Adanta, Rodopi. Keisteva, Julia (1988) ~ Eines d tonsomines, Pais, Moura, Jean-Marc (1992) — Lihnage di Tiers Monde dans de roman franguis contenpardin, Pasis, PUL Moura, Jean-Mare (1998) - Lume Littrare et lAillurs, Patis, PUP. Moura, Jean-Mare (1999) — “L’imagologie Littéraire: ‘Tendances Actuelles”, Perspeainer Comparaistes — Eudes réunies par Jean Bessiére et Danicl-Henti Pageaus, Patis, Honoré Champion, Pageaux, Danicl-Hensi (1994) ~ La Litténatore Générale ef Compare Paris, Armand Colin, 1994, Pageaux, Daniel-Henri (1996) - Le bicher d'Herale — Histor, ertiqne et ‘éore lstrares, Patis, Hlonoré Champion, Ricoeur, Paul (1986) ~ Da texte Faction — Fistais a'hernénentiqne I, Paris, Seuil Schmeling, Manfred (1999) - “Point de vue narratif et altérité caleurelle” in Comparatine Literate Now Theories And Practice ~ La Listératnre Companie @ !'Heure Actuclle Thiories ot Réalisations - Seleited Papers / Contsibutions choisies du Congrés de PAILC teau i PUniversité d’Alberta en 1994, Paris, Honoré Champion,195-207. 100

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