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de Souza + Débora a Fantini « Cristiane Pereira + ct Maria Amélia Garcia de Alencar + Anderson Rocha + a Rosa Figueira Queiroz + Maria Abil Ido Linhares Rosa + Be62, Editora Intermeios Rua Luis Murat, 40 - Vila Madalena CEP 0543-050 — Séo Paulo - SP ~ Brasil Fone: 2338-8851 — www.intermeioscultural.com.br SINFONIA EM PROSA: DIALOGOS DAHISTORIA COMA MUSICA © Eleonora Zicari C. de Brito | Mateus de Andrade Pacheco | Rafael Rosa 1 edigao: setembro de 2013, Editoragéo eletrénica, produgao _Intermeios - Casa de Artes e Livros Reviséo _Intermeios — Casa de Artes e Livros Capa Livia Consentino Lopes Pereira CONSELHO EDITORIAL Vincent M. Colapietro (Penn State University) Daniel Ferrer (ITEICNRS) Lucrécia D'Alessio Ferrara (PUCSP) Jerusa Pires Ferreira (PUCSP) ‘Amalio Pinheiro (PUCSP) Josette Monzani (UFSCar) Rosemeire Aparecida Scopinho (UFSCar) Mana Wainer (USP) Walter Fagundes Morales (UESC/NEPAB) Izabel Ramos de Abreu Kis Jacqueline Ramos (UFS) Celso Cruz (UFS) Alessandra Paola Caramori (UFBA) Claudia Dombusch (USP) Dados int de Catalogagao na Publicagao~ CIP Brito, Eleonora ZicariC. de, Org,; Pacheco, Mateus de Andrade, Org.; Rosa, Rafael, Org. ‘Sinfonia em prosa: dialogos da historia com a musica. / Organizacao de Eleonora ZicariC. de Brito, Mateus de Andrade Pacheco e Rafael Rosa = S40 Paulo: intermeios, 2013, 422 p. ; 16x 23 cm, Grupo de pesquisa "Histéria © Music historias”. ISBN 978-85-64586-80-4 4. Musica, 2. Histéria. 3. Histéria Cultural. 4, Musica Brasileira. 5. Histéria dda Misiea, |. Titulo, I. Dialogos da historia com a musica. Ii Repensando parimetros e perspectivas. IV. No compasso do cotidiano. V. Cronistas de lantos cantos. VI, Identidades em festa. Vil. circuito da mdsica em diferentes suportes. Vill Brito, Eleonora ieari da, Qrganizadara IX Pacheco, Mateus de Andrade, Organizador. X. Rosa, Rafael, Organizador, XI. Intermeios ~ Casa de Artes e Livros. compondo identidades, fazendo cDU 78.03 COD 780 Catalogacao elaborada por Ruth Simao Paulino Ao som do chan, chan. MemOrias de histérias e musicas em Buena Vista Social Club ROBERVALDO LINHARES Rosa’ A partir de imagens filmicas da gravagao de um CD do grupo Buena Vista Social Club, portanto, a gravacao da gravagao, o cineasta Win Wenders tece um universo rico e complexo em que revela como as reminiscéncias sto apropriadas na articulagéo do passado, pois, de acordo com Benjamin, “articular o passado nao significa ‘conhecé-lo como ele de fato foi. Significa apropriar-se de uma reminiscéncia, tal como ela relampeja no momento de um perigo”? © documentirio Buena Vista Social Club, de 1999, escrito e dirigido por Wenders ¢ com a diregao musical de Ry Cooder, tem a mtisica como elo condutor, visto que a matéria que fundamenta e dé sentido ao filme é a trajetoria dos integrantes do grupo musical cubano que dé nome ao documentario e, por isso, a musica funciona como o elemento gerador de coesio ao discurso cinematografico. Logo no inicio do filme, Compay Segundo, andando pelas ruas de Havana procurando saber das pessoas mais velhas onde era 0 Buena Vista Social Club,. tem respostas, na maioria das vezes, evasivas. No entanto, em um determinado momento, consegue uma resposta, ao mesmo tempo peremptoria e pesarosa, de um idoso: ~ 0 Buena Vista j& acabou. ‘Tocarnaferida do esquecimento eda memoria, ja que o clubee, portanto, seus integrantes, estavam praticamente no ostracismo antes da iniciativa de Wenders de filmar 0 documentirio, é, de alguma forma, potencializar possibilidades de 1. Professor da Escola de Musica ¢ Artes Cénicas da Universidade Federal de Goids. Doutor em Historia pela Universidade de Brasilia, com a tese intitulada: “Como é bom poder tocar um instrumento’: Presenga dos pianeiros na cena urbana brasileira - dos anos 50 do Imipério aos 60 da Reptiblica, defendida em 2012, sob a orientagdo da Prof* Dr= Thereza Negrao. 2, BENJAMIN, Walter. “Sobre o conceito de hist6ria’, In: Magia e técnica, arte e politica: ensaios sobre literatura e histéria da cultura. (Obras escolhidas; v. 1), Sa0 Paulo: Brasiliense, 1994, p. 224 358 SINFONIA EM PROSA se pensar um outro futuro, ndo somente para individuos atomizados, mas para uma coletividade. Catroga nos mostra que Ninguém se recorda exclusivamente de si mesmo, e a exigéncia de fidelidade, gue € inerente a recordacao, incita ao testemunho do “outro”; e, muitas vezes, a “anamnesis pessoal” é a recepcao de recordagoes contadas por outros e s6 a sua insergio em narragées colectivas - comumente reavivadas por liturgias de recordagao ~ lhes dé sentido.’ Em si, a filmagem da gravaco do CD do grupo cubano é 0 reavivar por liturgias de recordagdo, do qual nos fala Catroga, pois as misicas sao apresentadas com intercalagées de narrativas de experiéncias vividas pelos préprios misicos. Desta forma, a muisica remete a um lembrar, possivelmente lembrar a propria miisica que deixou de soar, sem, com isso, deixar de levar em considerago a complexa rede tecida na pluralidade de memérias e narrativas suscitadas, muitas vezes, pelo proprio ato de se fazer mtisica. Todavia, 0 que ocorre de interessante é 0 fato de que a mtisica é simultaneamente veiculada com as imagens do filme. Portanto, nao sio somente sons que podem vir a ser presentificados, mas também imagens, ou melhor, o resultado da combinagao de imagens e sons, ocorrendo, assim, uma interagao significativa entre duas linguagens distintas, a sonora ea visual, combinagio esta que tende a potencializar, sem ditvida, 0 ato de lembrar. O carater temporal da musica torna-a uma arte poderosa, visto que ela engendra um universo de opostos complementares, tais como, harmonia e ritmo, timbre e intensidade, entre outros, evitando, dessa forma, o binarismo do isto ou aquilo. Apontando para o cardter holistico da musica, Sekeff informa que “a cada inflexdo expressiva do discursy musical comesponde unia sensibilizagao ativa, afetiva, intelectiva’* E, ainda, que: Ela [a misica] ¢ indutora da atividade motora, afetiva e intelectual em razio de seus elementos constitutivos - ritmo, melodia, harmonia, timbre -, de seus parimetros formadores ~ duragao, altura, intensidade, densidade, textura - ¢ de seus movimentos sintaticos e relacionais, todos com poder de “co-mover” 0 receptor que, na escuta, acaba por responder afetiva, intelectual, e corporalmente a esses elementos de “comunicagao” postos em jogo por ela, miisica.> 3. CATROGA, Fernando, “Memeéria e histéria” In: Sandra J. Pesavento (org,), Fronteiras do milénio. Rio Grande do Sul: Editora Universidade UFRGS, 2001, p. 45. 4, SEKEFE, Maria de Lourdes. Da musica, seus uso e recursos. Sao Paulo: 5. Tbidem, p. 42. jitora Unesp, 2007, p. 43. Dislogos da historia coma misica 359 As imagens, assim como os sons, caracterizam-se por revelar sentidos, visto que engendram ideias, pensamentos. Especificamente acerca da percepgao do mundo através dos sentidos da vista, Novaes entende que significar as imagens através da visio ¢ poder Ver as ideias nas imagens; compieender uv imundy paitindy das imagens, ‘mas permanecendo nelas, eis o que 0 mundo imaginario exige do pensador contempordneo. O que se quer dizer com isso é que nao se compreende a imagem separando-a do pensamento; caso contririo, a propria imagem se perde, ¢ isso ¢ © ciimulo da distracio® Se as imagens estao intimamente relacionadas com o pensamento, por extensao elas também se relacionam com as palavras. Sendo assim, observa-se, ainda de acordo com Novaes, que O esforgo do pensamento consiste, pois, em decifrar imagens, entender o mundo a partir delas. Traduzir o enigma das imagens é uma forma de reconciliagao do espirito com os sentidos. Nesse processo, cada imagem quer tornar-se palavra, ‘logos; e cada palavra, imagem, Estabelecendo relagdes através do olhar, podemos, com os filmes, procurar decifrar 0 mundo e as relacées sociais estabelecidas entre os homens e, com as palavras, expressar o resultado dessas relagdes-reflex6es, pois, gracas ao carter de mitua alimenta¢ao que ha entre imagens e palavras, reconhecemos, assim como Joly, que “as imagens engendram as palavras que engendram as imagens em um movimento sem fim”* E pertinente, entao, discorrer acerca da relagdo existente entre imagem e som, Ou seja, entre cinema e musica, linguagens que atingem setores distintos de nossa percepgao e que sao capazes de dizer o mundo, servindo, dessa forma, como pista para entendermos como Wenders aborda outras questdes, quer explicita ou implicitamente, a exemplo da narrativa, da memoria, dos espagos urbanos, das emogdes/sensibilidades, do sentimento de pertenga ¢ das temporalidades, tendo em vista que, “realizar um documento filmico, de certa forma, é recriar um momento, uma época, personagens, nao apenas passadas, mas presentes também’’ 6. NOVAES, Adauto. ‘A imagem e 0 espeticulo” In: Adauto Novaes (org.). Muito além do espetdculo. Sio Paulo: Editora Senac, 2005, p. 13 7. Idem, 8, JOLY, Martine. Introdugio & anélise da imagem. Campinas: Papirus editora, 1996, p. 121 9. MAGALHAES, Nancy A. & MATSUMOTO, Roberta K. “Olhar e narrativa: sentidas ¢ ressonancias de falas e siléncios na meméria’. In: Cléria B. da Costa e Maria Clara. Machado (orgs.), Historia Literatura: identidades e fronteiras. Uberlindia: EDUFU, 2006, p. 289. 360 SINFONIA EM PROSA ‘A combinagio de duas linguagens diferentes, cinema e mtsica, resulta no surgimento de uma nova poética, em que ambas, em diélogo continuo, estabelecem novos limites significativos. J& nao se trata, pois, das mesmas convengoes que regem uma ou outra de forma separada. Assim, é grandemente ampliado 0 grau de convencimento no caso de imagens e sons andlogos, a exemplo de uma imagem de uma praia acompanhada dos sons das ondas, ou de estranhamento, no caso de nao ocorrer a referida analogia. De toda forma, Burch pontua: “parece-nos evidente que a dialética fundamental do cinema, e que, pelo menos empiricamente, subtende todas as outras, é a que op6e e une som e imagem.” Nao é de se estranhar que, no caso de um filme em que a miisica tem um papel fundamental, a questao da sensibilidade revele-se como um aspecto significativo, Entende-se que a misica, per si, instaura um clima sensivel, visto que ela “tem a forca de ‘manipular’ a resposta emocional do publico’" Todavia, a conjugagao de musica e imagem potencializa e propicia a fruicao das emo¢ées, pois, de acordo com Carrasco, “acima de tudo, a musica possui a capacidade de contextualizar poeticamente tudo o que a ela se relaciona. O texto ou 0 movimento, ao se fundirem com a musica, inserem-se em um contexto poético diferente daquele a que originalmente pertenciam.”? A essa forma de percepgao, caracteristica do cinema, onde os elementos racionais se completam aos intuitivos, e, por que nao, os visuais aos sonoros, Névoa e Silva chamam de razao-poética, onde “trata-se de entender as obras de arte - inclusive as cinematograficas - como experiéncias que nao se restringem & pura subjetividade, uma vez que realizam, com seus recursos proprios de linguagem, reflexes complexas sobre os temas e os objetos que desenvolvem’." Convém apontar que além do amplo uso da misica, Wenders utiliza as narrativas dos misicos com o objetivo de contar a propria histéria do Buena Vista Social Club, intercalando-as com cangées significativas do repertrio do grupo. As narrativas que sao intercaladas antes das cangées revelam as percep¢des eas impresses de mundo (assim como os siléncios), tanto do passado como do presente, além das formas de sentir e compreender 0 proprio tempo dos integrantes do grupo. Dito de outra forma, sio imagens do passado que ainda 10, BURCH, Noel. “Praxis do Cinema’, Trad. Marcelle Pithon & Regina Machado. Sio Paulo: Editora Perspectiva, 2006, p. 115. 11. BERCHMAS, Tony Berchmans. A nuiisica do filme: tudo 0 que voct gostaria de saber sobre nuisica de cinema, Sao Paulo: Escrituras, 2006, p. 26. 12. CARRASCO, Ney. Sygkhronos: a formagao da poética musical do cinema. Sio Paulo: Via lettera editora & Fapesp, 2003, p. 26. 13, NOVOA, Jorge & SILVA, Marcos. “Cinema-Histéria e Razio-poética: o que fazem os profissionais de Historia com os filmes?” In: Sandra J. Pesavento (org,). Sensibilidades e sociabilidades: perspectivas de pesquisa. Goidnia: Ed. UCG, 2008, p. 15. Didlogos da historia com a misica 361 permanecem no presente e que, gracas as narrativas, podem ter vida no presente dos narradores. Assim, o relato de experiéncias que esses miisicos fazem, no ato deliberado de rememorar, permite que 0 passado vivido, uma experiéncia temporal, torne-se ativado no presente, pois, conforme Magalhies, “a memdéria 6, entao, crucial como meio e processo para provocar, (re)construir as articulagées entre presente e passado, entre 0 individuo e o social’. Referindo-se & questdo da experiéncia temporal, Ricoeur sinaliza que “(...) desafio ultimo, tanto da identidade estrutural da fungdo narrativa quanto da exigéncia de verdade de toda obra narrativa, ¢ o cardter temporal da existéncia humana. O mundo exibido por qualquer obra narrativa é sempre um mundo temporal”!> Com isso, “(...) 0 tempo torna-se tempo humano na medida em que esta articulado de modo narrativo; em compensagao, a narrativa é significativa na medida em que esboga os tragos da experiéncia temporal”* As histérias contadas pelos miisicos-narradores, adicionadas uma a uma no decorrer do filme, dao, no final do filme, um perfil geral do grupo, lembrando que “cada hist6ria é 0 ensejo de uma nova histria, que desencadeia uma outra, que traz uma quarta etc.; essa dinamica ilimitada da memoria é a da constituigado do relato, com cada texto chamando e suscitando outros textos”” E pertinente observar que somente apés os relatos individuais, em que sio fartas as referéncias ao cotidiano, ¢ que o grupo apresenta-se como um todo, no concerto do Carnegie Hall de Nova York. Fatos do cotidiano, como 0s relacionamentos familiares, as crengas (é significativa a crenca de Ibrahim Ferrer em Sao Lazaro, gracas a reveréncia que demonstra pelo seu protetor), as indicagdes quanto 4 maneira de se preparar determinadas iguarias, alimentam as falas dos narradores e revelam-se como experiéncias, pois, convém ressaltar que “a experiéncia que anda de boca em boca é a fonte onde beberam todos os narradores’,"* e que “a orientacio para o interesse pratico é um trago caracteristico de muitos narradores”.” A soma dos relatos individuais colaborou para que viesse & tona o proprio sentimento de pertenca do grupo, sentimento este materializado, entre outros, na propria misica, na danga, no vestudrio, na lingua, no simbolo da bandeira cubana que é exibida no final do espetaculo, tudo em clima de apotestica celebracao. Possivelmente esse carater de comemoracao tenha acontecido, entre outros fatores, pelo fato de que “ha uma transformacéo da meméria quando ela 14, MAGALHAES, Nancy A. “ da Costa e Nancy A. Magalhic Brasflia: Paralelo 15, 2001, p. 95. 15, RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa (Tomo 1). Campinas: Papirus editora, 1983, p. 15. 16. Idem. 17. GAGNEBIN, Jeanne M. Apud Walter Benjamin, Op cit, p. 13. 18. BENJAMIN, Walter. “O narrador’ In: Os pensadores. Sao Paulo: Abril cultural, 1983, p. 58. 19. Tbidem, p. 59. farradores: vozes e poderes de diferentes pensadores” In: Cléria B. (Orgs.). Contar histéria, fazer histéria (histéria, cultura e meméria): 362 SINFONIA EM PROSA é fixada em algum suporte, Torna-se mais evidente sua dimensio de poder, no caso, quando se constréi uma documentagao, seja ela escrita, visual ou sonora’? Catroga aponta que De fato, as reminiscéncias comuns ¢ as repetigdes rituais (festas familiares), a conservacio de saberes e de simbolos (fotografias e respectivos buns, a casa dos pais ou dos avés, as campas e mausoléus, os papéis de familia, os odores, as cangGes, as receitas de cozinha, os nomes), a par da responsabilidade da ‘transmissi’ e do contetido das ‘herancas’ (espirituais ou materiais), sio condigdes necessérias para a criagao de um ‘sentimento de pertenga, em que cada subjetividade se auto-reconhece filiada em totalidades genealdgicas que, vindas do passado, se projectam no futuro.” Narrativa e linguagem estao estreitamente vinculadas, visto que 0 narrador para expressar sua (s) imagem (ns) do passado necessita da linguagem, “porque essa imagem € uma impressio deixada pelos acontecimentos e que permanece fixada no espirito”? Ser anamnésico em demasia, como © personagem central do conto Funes, 0 memorioso, de Jorge Luis Borges, ou completamente amnésico, sema capacidade de relacionar, para aquele, ou sequer reconhecer, para este, suas memérias, ou seja, sem “(...) igar 0 que nés fomos, o que nds somos e aquilo que seremos” capacidade atribuida a Mnemosine, divindade da meméria, equivale anao ter memoria. Talvez por isso, Wenders questione-se: “quais sao as imagens dignas de serem recordadas?””* Assim, ainda que se narrem os acontecimentos veridicos ja passados, a meméria relata, nao os préprios acontecimentos que j4 decorreram, mas sim as palavras concebidas pelas imagens daqueles fatos, os quais, a passarem pelos sentidos, gravaram no espirito uma espécie de vestigio.”* Em um mundo no qual as pessoas esto cada vez mais isoladas e, com isso, privadas de experiéncias que podem ser compartilhadas, as narrativas eclodem como um grito diante do que foi silenciado. Se, por um lado, quase nao se contam mais historias é porque as experiéncias estao cada vez mais precarias e 0 individualismo exacerbado e, por outro, nao se tem mais interesse 20. MAGALHAES, Nancy A. & MATSUMOTO, Roberta K. Op cit, p. 306. 21, CATROGA, Fernando, Op. cit, p. 50/1 22, RICOEUR, Paul. Op. cit, p.27. 23, CATROGA, Fernando, Op. cit. p. 67. 24, WENDERS, Win Apud GUIMARAES, César G. Imagens da meméria: entre o legivel e 0 invistvel. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1997, p. 17. 25, AGOSTINHO, Santo Apud GAGNEBIN, Jeanne M. Sete aulas sobre linguagem, memdria e historia ‘aio Paulo: Imago, 1997, p. 75. Didlogos da histéia com a musica 363 em ouvir experiéncias, que advém de uma ampla gama de motivos. Benjamin questiona: Que foi feito de tudo isso? Quem encontra ainda pessoas que saibam contar histérias como elas devem ser contadas? Que moribundos dizem hoje palavras tio duraveis que pussain ser Lransimitidas como um anel, de geragdo em geragao? Quem é ajudado, hoje, por um provérbio oportuno? Quem tentard, sequer, lidar com a juventude invocando sua experiéncia?* Interessante observar que em muitos momentos do filme os narradores parecem dar conselhos. Um exemplo marcante é aquele em que Compay Segundo, no inicio do filme, ensina alguém como se preparar um consomé de galinha para curar ressaca. Ora, Benjamin aponta que (..) em qualquer caso o narrador é um homem que da conselhos ao ouvinte, ‘Mas se hoje “dar conselhos” comeca a soar nos ouvidos como algo fora de moda, a culpa ¢ da circunstincia de estar diminuindo a imediatez da experiéncia, Por causa disso nao sabemos dar conselhos nem a nds, nem aos outros. O conselho € de fato menos resposta a uma pergunta do que uma proposta que diz respeito & continuidade de uma historia que se desenvolve agora. Para recebé-lo seria necessério, primeiro de tudo, saber narré-la.”” No filme, as narrativas dos personagens nos remetem a uma pluralidade de significados, pois nao se leva em consideracio somente suas falas, mas também outros fatores que esto diretamente relacionados aos discursos pronunciados. Analisar somente as falas dos personagens seria um disparate em se tratando de uma obra cinematogrifica, pois “a fala, no caso de uma entrevista em video, traz consigo a imagem de quem falou, 0 que foi dito e como foi dito. Este ‘como’ traduz uma outra linguagem, a que podemos chamar de corporal: o olhar, 0 gesto, a inflexdo verbal. Tais elementos expressam sentimentos, como tristeza,” alegria, esperanga, indigna¢ao, coragem etc? * Magalhaes observa que ‘A presenga dos entrevistados nao se da, dessa forma, apenas por seus testemunhos orais, por siléncios e por serem materializados pela imagem visual, mas também por tragos estéticos que tentam se aproximar, em principio, da maneira como 26. BENJAMIM, Walter. “Experiéncia e pobreza’. In: Magia ¢ técnica, arte ¢ politica: ensaios sobre literatura e histéria da cultura, (Obras escolhidass ¥. 1). Sao Paulo: Brasiliense, 1994, p. 114. 27. BENJAMIM, Walter. "O narrador”. In: Os pensadores. Sio Paulo: Abril cultural, 1983, p. 59. 28. NUNES, José Walter & MAGALHAES, Nancy A. “Imagem e fala como meméria e histéria: notas metodolégicas’ In: Antonio T. Montenegro & Tania M. Fernandes. (Orgs.). Historia oral: un espago ‘plural. Recife: UBPE, 2001, p. 83. 364 SINFONIA EM PROSA eles percebem e relacionam-se com 0 mundo, com o presente, passado e futuro, maneira bastante peculiar a cada um.” Wenders valoriza esses elementos que fraduzem uma outra linguagem e, talvez por isso mesmo, o filme é fluido como uma conversa, ou melhor, conversas intercaladas de cangGes que esto relacionadas, de alguma forma, com o préprio contetido das conversas. Tal estado de descontracao é fundamental para que as narrativas sejam assimiladas, pois, conforme Benjamin: Nio hi nada que de forma mais duradoura recomende histérias a memoria de que aquela casta concisao que as subtrai a andlise psicoldgica. E quanto mais naturalo modo pelo qual se dé, para 0 narrador, a rentincia a0 matizamento psicolégico, tanto maior se torna sua candidatura a um lugar na meméria do ouvinte, tio mais plenamente as historias se conformam a experiéncia pessoal dele, tanto maior é a sua satisfagdo em, mais dia menos dia, voltar afinal a conté-las. Esse processo de assimilagio, que se desenrola em camadas profundas, precisa de um estado de descontragio cada vez mais raro.” ‘A questdo da sensibilidade e das emogées perpassa todo o filme. Pesavento observa que “as sensibilidades corresponderiam a este nticleo primério de percepcao e traducao da experiéncia humana no mundo” e, também, que seriam “gs formas pelas quais individuos e grupos se dio a perceber, comparecendo como reduto de tradugao da realidade por meio das emogées e dos sentidos”” Com o duo de Omara Portuondo e Ibrahim Ferrer, considerado 0 Nat King Cole cubano, tem-se um exemplo significativo de como a organizagao da cena pode valorizar o aspecto emocional. Alguns fatores contribuem para isto: a tematica do poema/cangio que retrata doramorosa; a camera girando ao redor dos dois, como uma coreografia que abarca os cantores por todos os Angulos; a passagem da imagem do estiidio para a do concerto em Amsterda, em que o movimento giratério da camera é substituido pela danga de Portuondo e Ferrer, continuando, assim, 0 giro; e, por fim, o final emocionado em que a cantora, completamente envolvida com o pathos musical, com os olhos cheios de lagrimas, agradece aos aplausos do publico. ‘Aspecto importante do documentério Buena Vista Social Club & que os misicos-narradores, personagens do filme, relacionam-se com trés cidades: ‘Amsterda, Havana e Nova York. Trata-se, portanto, de um filme realizado em 29. MAGALHAES, Nancy A. Entre limiares. Ressondncias locais e universais em Buena Vista Social Club, Brasilia: Ed. Unioeste, s/¢, p. 07, (no prelo). 30, BENJAMIM, Walter. O narrador. Op cit,p. 62 31. PESAVENTO, Sandra J. Histéria éhistéria cultural, Belo Horizonte:Auténtica, 2003, p. 56. 32. Ibidem, p. 57. Didlogos da historia com a misica 365 diferentes paisagens e ambiéncias urbanas. Wenders comenta que suas “ histérias comecam sempre com imagens, lugares, cidades, paisagens ou ruas”* Assim, essas trés cidades esto interligadas e servem como eixo para o discurso cinematografico. A cidade compreendida como um discurso a ser decifrado fala de seu tempo, de suas representagées, simbolos, identidades imagiadriv. Bartus revela que A seus habitantes, e por extensao a seus analistas, uma cidade fala cloquentemente dos critérios de segregagio presentes em sua sociedade através dos muiltiplos compartimento sem que se di do preconceito da hierarquia social em espago. Sua paisagem fala de sua tecnologia, de sua produgdo material; seus monumentos e seus pontos simbélicos falam da vida mental dos que nela habitam e daqueles que a visitam; seus caminhos ¢ seu transito falam das mais diversas atividades que no seu interior se produzem; seus mendigos falam da distribuigdo de sua riqueza ao estender a mio em busca de esmolas. Cada um destes indices remete as letras de um alfabeto que pode ser pacientemente decifrado pelos socidlogos, pelos historiadores, pelos urbanitas. A cidade, sem duivida, pode ser “lida’,e & nesta perspectiva que se tém colocado alguns estudiosos do urbanismo a partir de meados do século XX." ide, dos seus acessos e interditos, da materializacio Bolle, em reflexdo acerca do pensamento benjaminiano, comenta como a leitura de simbolos pode revelar a visdo de mundo, assim como os paradigmas de uma época: Por meio de imagens - no limiar entre a consciéncia e o inconsciente - é possivel ler a mentalidade de uma época. f essa leitura que propée Benjamin enquanto historiégrafo. Partindo da superficie, da epiderme de sua época, cle atribui a fisiognomia das cidades, & cultura do cotidiano, 4s imagens do desejo fantasmagorias, aos residuos e materiais aparentemente insignificantes a mesma Importéncia que as “grandes ideias” e as obras de arte consagradas. Decifrar” todas aquelas imagens e expressé-las em imagens “dialéticas” coincide, para ele, com a produgao de conhecimento da histéria."* Ainda no que concerne & leitura da cidade e de seus espacos e suas inter- relagdes, Maffesoli lembra que “a cidade é sensivel, e & nessa condicao que ela essencialmente relacional. Seus locais de encontro, seus odores e seus ruidos sio 33, WENDERS, Wim. A légica das imagens. Trad, Maria Alexandra A, Lopes. Lisboa: Ed. 70, 1990, p. 3. 34. BARROS, José D/Assungio. Cidade e histéria, PetrSpolis: Vozes, 2007, p. 40/41. 35. BOLLE, Willi Fisiognomia da metrépole moderna. Representagao da histéria em Walter Benjamin. Sao Paulo: Edusp, 2000, p. 43. 366 SINFONIA EM PROSA constitutivos da teatralidade que faz dela, no sentido forte do termo, um objeto animado, uma materialidade dotada de vida.” No filme Buena Vista Social Club, Wenders utiliza imagens de Amsterda, Havana e Nova York com diferentes conotagdes. As de Amsterd se resumem & apresentacdo musical do grupo no ‘Teatro Lé Carré, nos dias 11 e 12 de abril de 1998. Ja as de Havana apresentam a cidade na multiplicidade de seus espacos, a exemplo de ruas e avenidas, pracas, academias de gindstica e danca, feiras publicas, residéncias, praias. As de Nova York, por sua vez, revelam o estranhamento e a admiracao vividos pelos misicos, além do proprio carater de celebracio que é mostrado no final. ‘Nas imagens de Havana, é recorrente as do estudio onde estava sendo gravado o CD, portanto, um espago de trabalho dos miusicos cubanos. Essa imagem, reveladora de um aspecto importante da cotidianidade, o trabalho, estabelece uma relacio interessante com os demais espagos de Havana. As imagens do concerto de Amsterda sao intercaladas com as imagens de Havana, ora com funcao de complemento, ora de oposicao. Importante observar que as imagens de Amsterda sdo mais opacas que as de Havana, além do tratamento do som ser diferente, visto que o audio do concerto acima referido parece estar mais presente. Gragas a essas diferengas de tratamento, tanto do Audio como da imagem, fica claro se tratar de duas temporalidades distintas. Dessa forma, dois momentos diferentes, 0 do concerto, em Amsterda, e © dos ensaios e efetiva gravagio do CD, em Havana, sao enfatizados no filme. O concerto é 0 dpice de todo o processo da performance musical, enquanto no esttidio, momento de ensaios, ajustes, experimentagées, objetiva a materializacao do corpus sonoro em um suporte, neste caso, 0 CD. Estabelecer esses dois momentos do proceso musical, um com caracteristica de celebracio, 0 Concerto, ¢ vulLv que se refere ao trabalho cotidiano, estiidio, através de imagens com tratamento visual distinto, contribui para que a distingao fique ainda mais perceptivel. Dessa forma, entendemos que as imagens relacionadas aos ensaios e gravacao do CD em Havana, acontecem em um momento anterior ds imagens do concerto, portanto relacionadas ao passado, enquanto as de Amsterda se referem ao futuro. O uso desses dois momentos temporais, através dessas duas imagens que so intercaladas durante grande parte do filme, principalmente na primeira metade, ao mesmo tempo que estabelece esse caréter de complementaridade entre eles, visto que nao é posstvel haver performance sem ensaio, ou divulgagao do trabalho sem a sua materializagio sonora em algum suporte, deixa claro 0 percurso dos misicos envolvidos até a realizagao final, isto é, a apresentagio no teatro holandés. 36. MAFFESOLI, Michel. Notas sobre a pés-modernidade: o lugar faz 0 elo, Rio de Janeiro:Atlantica, 2004, p. 73 Dialogos da histéria com a misica 367 Paralelamente as imagens de esttidio, os miisicos narram suas histérias em ambientes distintos daquele, a exemplo de suas residéncias, pragas, estagdes de trem. Suas narrativas séo marcadas pela rememoracao de um passado distante, mas feitas no presente. Trata-se, entao, de uma temporalidade distinta da do esttidio e do concerto ja referidos. Uma parte significativa do filme é voltada para esse momento em que os miisicos contam suas histérias, mostram seus relacionamentos com a cidade, suas familias, enfim, revelam, no agora deles, como se relacionam com o proprio presente, passado e futuro. Wenders nos mostra que “na medida em que estabelecem contextos, as histérias tornam a vida suportével e ajudam a vencer o medo. As criangas gostam, por isso, de ouvir histérias antes de adormecer. A biblia ¢, também por isso, um livro de historias unico e as histérias deverao, assim, acabar sempre bem.” Os personagens sao apresentados em ambientes relacionados com as suas vidas. Por exemplo, Rubén Gonzalez, na academia de gindstica e danga, com as crian¢as em volta do piano; Ibrahim Ferrer, em sua casa com a sua esposa Eliades Ochoa, na esta¢do de trem. Temos uma relacao forte entre as imagens e as historias que eles contam, como se as imagens falassem das historias narradas e estas falassem daquelas. Nas palavras de Wenders, Aprendi que cada imagem sé 6 verossimil em relagéo a um personagem no interior de uma histéria, Descobri que, quando as imagens se levam muito a sério, elas reduzem e enfraquecem o personagem. E uma histéria com personagens fracos nao tem em si mesma, nenhuma forga, Somente a histéria dos personagens da a cada imagem uma credibilidade, “instaura uma moral”, - Como se diz no jargio dos criadores de imagens." No momento final do filme, surge uma nova cidade: Nova York. £ o momento de grande celebragao do filme onde os misicos se apresentam na maior sala de concertos daquela cidade: 0 Carnegie Hall. Ao contrario das imagens de Amsterda, que privilegiam as ambiéncias internas do teatro, as dé Nova York mostram a interagio dos musicos com a cidade, desde a chegada deles no aeroporto, o estranhamento sentido nas ruas, 0 tour pela cidade, onde eles admiram 0s edificios altos, dao entrevistas e ensaiam no Carnegie Hall, até a apresentacao final, no dia 1° de julho de 1998. Aqui, ao contrario das imagens de Amsterda, as cores so fortes e vibrantes, contribuindo, ainda mais, para o cardter de celebragéo. A ultima misica do espetaculo, Chan, Chan, de Francisco Repilado, é a mesma que serviu de 37. WENDERS, Wim. Op. cit, p.77. 38. WENDERS, Wim. “A paisagem urbana’. Revista do Patrimdnio Historico e Artistico Nacional. Rio de Janeiro: IPHAN, n. 23, 1994, p. 184. 368 SINFONIA EM PROSA abertura ao show de Amsterda. Dessa forma, é estabelecido um elo entre esses dois concertos, ambos fora de Havana, como se a propria meméria musical trouxesse 0 concerto do Lé Carré para o do Carnegie Hall, fechando, assim, um ciclo. Enquanto os miisicos agradecem a honrosa ovacao, alguém da plateia surge coma bandeira de Cuba e entrega aos musicos no palco, que a seguram enquanto o holofote a focaliza, o que, por si s6, é uma cena carregada de simbolismo: uma grande celebracao cubana no templo maior da misica norte-americana. Logo em seguida, aparecem imagens de Havana, as tltimas a aparecerem no filme, por isso, num carater epilogal, possivelmente devido a nao fixaco em alguma cena em particular: andarilho, pessoas em dnibus, carros, bicicleta, placa com os dizeres “esta revolucion es eterna” e letreiros escrito “Karl Max’, em que falta or de Marx, enfim, uma ampla gama de imagens de Havana, que somadas & musica Chan, Chan, une as trés cidades. Depois as imagens ficam somente no concerto de Nova York, onde no momento dos agradecimentos sao unidas tanto imagens de Amsterda quanto de Nova York. Aparece a imagem de Nova York quando Ry Cooder se levanta para agradecer os aplausos, porém, ao se sentar, j sdo as imagens de Amsterda que aparecem, tudo isto em uma sincronia precisa. Detalhes preciosos como estes nos remetem ao comentario de Burch: E por que 0 olho nao seria treinado? Por que os cineastas nao se dirigiriam a uma elite como os misicos sempre o fizeram? Entendemos por elite as pessoas que querem se dar ao trabalho de ver e rever os filmes (muitos filmes), como se deve ouvir e ouvir de novo muita miisica para poder apreciar os tiltimos quartetos de Beethoven ou a obra de Webern.” Assim, a partir do cotejo de trés cidades e trés temporalidades gravadas em imagens filmicas com musicas e narrativas do grupo cubano Buena Vista Social Club, deixo o convite para reflexao que nos leva a comungar 0 fato de “como a ‘meméria é ‘activa, a recordacao (e a necessdria comemoragao) nunca resultard da oposicao ou da separagio entre o passado, o presente e o futuro” 39. BURCH, Noel. Op. cit, p. 46. 40. CATROGA, Fernando, Op. cit, p. 52.

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