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CICLO DE CONFERENCIAS 2003 Carla Alexandra Santo: Carmen Ballesteros Jodo Cosme Fernanda Olival ARTIGOS Herman Prins Salon eid Maric Rigor e interesses: os estatutos de limpeza de sangue em Portugal Fernanda Olival (Universidade de Evora - Dept. de Histéria; CIDEHUS) Na Peninsula [bérica, a exclusio de alguém - com cardcter fortemente pejorative - de cargos e offcios, em fungao do sangue crist&o-novo, ter-se-4 divulgado em Castela, a partir de meados do século XV. Um famoso essatuto de Toledo datou de 1449 e obrigava a afastar os conversos dos cargos municipais; tera tido um horizonte meramente local, e no gozava da sang4o régia. No entanto, o mesmo ptincipio foi depois aplicado a varias instituigdes e com outros ambitos. As polémicas sobre a matéria foram frequentes na Coroa Castelhano-aragonesa desde 0 século XV. Em Portugal, a insticucionalizagio da limpeza de sangue correspondeu a um processo diferente. Os estarutos foram adoptados tatdiamente. Depois de expulsos os judeus ¢ os mouros, consolidou-se 0 rétulo de cristdos-novos para designar os de ascendéncia judaica, mas isso nfo impediu diversos casamentos mistos ao longo de boa parte da cenciiria quinhentista, feitos muitas vezes a troco de dotes elevados. ‘Alids, apesar de ter vingado claramente o contrério, leis publicadas entre 1497 e 1499 proibiam os casamentos entre cristHos-novos, como mecanismo de controlo social e de integracio teligiosa dos nedfitos', Esperaya-se que 0 cOnjuge cristio-velho ajudasse o recém convertido a ser bom praticante do catolicismo romano. CE. Maria José Fereo Tavaces, Judatinte ¢ Inquisigdo: estudes, Lisboa, Presenga, 1989, p76. Cadernos de Estudos Sefarditas, 0° 4, 2004, pp. 151-182, Pénanda Olival Em bom rigor, é dificil saber com grande precisio desde quando os estatutos de limpeza de sangue foram estabelecidos em Portugal, pois nao se tratou nunca de uma lei geral, embora a certa altura o pudesse parecer. Por outro lado, a alusio a tais cldusulas numa determinada instituigdo nao era, por si sé, sin6nimo de empenhamento na observancia das mesmas. E o modo como esta era apurada também vatiava muito de entidade para entidade. Fazer habilitacdes nfo significava necessariamente afastar descendentes de judews, mouros, gentios, mulatos e negros. As duas tealidades no podem ser confundidas ou feitas coincidir de forma linear. Um ponto, todavia, é inequivoco em toda a Peninsula da Epoca Moderna: com este tipo de requisitos ndo se visava a puteza biolégica da raga pelas suas qualidades genéticas’; tratava-se, ao invés, de um problema de natureza ideolégico-religiosa, com forte impacto na estruturagao social ¢ politica. Além disso, e como se fez notar, nao se limitava a segregar a ascendéncia judaica, embora esta fosse a mais temida. Por essa razAo, serd a analisada nestas linhas. Relativamente a Portugal, apesar de se poder dispor de alguns trabalhos, a questo da limpeza de sangue permanece insuficientemente estudada. Durante muito tempo pensou-se que era um problema que afectara quase s6 a Coroa castelhana e nada é menos verdade. Tera sido no mercado matrimonial onde com mais intensidade se fizeram sentir estas exclusdes. Quando a ariscocracia casaya os seus filhos, algumas casas chegariam ao ponto de consulear genealogisras para avaliar os riscos em matéria de pureza, E nao se pense que uma mistura nociva era apenas um receio partilhado pela Alea Nobreza, Excluidos os escravos, em todos os niveis da piriimide social era sentida a mesma inquietagéo. Uma Como jé bem fez notar Jaime de Salazar Acha, "La limpieza de sangre", Rovitta de (a Inguisicién, Madeid, 0°L, 1991, p.293 152 Rigor ¢ interesses: os estatutos de limpena de sangue em Portugal alianca de sangue impuro era muitas vezes motivo que suscitava o corte de relagGes nos grupos de parentesco, mesmo entre pais € filhos nas camadas populares. Tentemos, pois, uma aproximagao aos estatutos de limpeza de sangue em Portugal: de que modos alastraram nas instituicdes: de forma foram cumpridos nalgumas delas; com que objectivos se mantiveram em termos oficiais até ao século XVIII e, na realidade, oficiosamente, até ao principio de Oitocentos, pois no chegou a machadada legislativa de 1773 para os derrubar?. Que gran de rigor existiria de facto nesta matéria? Que significado teria ele? 1. Em 1546, ja 0s cristdos-novos se queixavam a D. Joao III de disctiminagZo nas miseticérdias, nos colégios, nas corporagbes de offcios € no alistamento de soldados para a [ndia‘. Com a investigacao disponivel, terao sido os colégios maiores de §. Miguel ¢ de Todos-os-Santos, em Coimbra, os primeitos a repudiar quem apresentasse ascendéncia judaica, moura ou gentia, até ao 4° grau. Os regimentos destes institutos crizios assim o prescreviam, desde meados dos anos de 1540 (desconhece-se, com preciso, 0 ano no qual receberam estatutos). Aplicavam-se, apesar de tudo, a um ntimero restrito de pessoas, pois cada colégio albergava apenas nove colegiais. Além disso, ambas as instituigdes tiveram uma vida muito breve, tendo desaparecido com a criagao do Colégio das Artes no mesmo decénio?. + Um exemplo entre os muitos que se poderiam dar: na década de 1780, na Provincia franciscana da Soledade, havia j4 novos interrogat6rios impressos para as habilicagoes, tendo em conta legislacio de 1773, que extinguia a diferenca entre cristios-novos ¢ velhos. Nes do Convento de Santo Anténio de Abrantes, por exemplo, actescentava-se sempre A mio, na xerceita pergunca: “Se he Descendente de Judeos, ou de Outra nagdo infecta” - cf ANTT, Onder dos Brades Menores - Provincia da Soledade ~ Santo Antinio de Abrantes, Mg. 1 4 “CR Anténio José Sacaiva, Inquisigdo e cristdes-noves,.5* ec., Lisboa, Estampa, 1985, p13. ¥ Sobre estes colégios, cf. M* Margarida Cruz Brando, 0 Calégio deS. Paulo, Vol. I ~ Paste 1*, Coimbra, Ed. da Autora, 1973, pp, 29, 31 153 Fenanida Olival Parece que, em 1558, tera sido publicado um breve a excluir 0s ctistéos-novos da Ordem de $, Francisco’. Nada se sabe, porém, quanto ao seu cumprimento, no tempo mais imediato. O mesmo se diga do compottamento dos Dominicanos portugueses nesta matéria e de outras ordens de perfil regular. Com a bibliografia disponivel, a Ordem de S. Jeronimo tera sido uma das primeiras em Portugal a incorporar oficialmente o sistema de exclusdo, no capitulo de 1565’. Seria relevante o ntimero de conversos que antes teriam professado neste hdbito. Por esse motivo, no capitulo provincial de 1567, os j4 recebidos foram dispensados e declarados habeis para qualquer ocupagao; o estatuto apenas se aplicatia aos novos pretendentes*. No entanto, ndo se conhecem hoje nos arquiyos portugueses habilitagdes de hieronimitas anteriores a 1584. E bem provavel que tivessem existido, mas ter-se-do perdido. Quanto 4 Companhia de Jesus, antes de 1593 nfo teria perfilhado a pureza, apesar de uma ou outra voz discordante!?. Nas suas hostes porruguesas de Quinhentos, nao faltariam também pessoas com ascendéncia judaical!, inclusive em lugares de destaque, mesmo nas Universidade de Evora e Coimbra, 0 que despertava tensdes. Como se tora notério, os primeitos ensaios de aplicacio dos estatutos em Portugal ocorreram no Ambito das Ordens de cariz ® Cf Francisco Bethencourt, “Rejeigoes e polémicas”, im Hist6nia Religissa de Portugal, dic. Carlos Moreira Azevedo, Vol. II, Lisboa, Circulo de Leitores, [D.L. 2000], p, 53 ? Ch CAndido dos Santos, Os Jerdnimor em Portugal: dat origent ao fins do século XVI, 2 ed., Porto, JNICT, 1996, pp.44-45, 48-49. * CE Idem, lbidem, p. 44 % _ Trata-se das habilicagbes do Convento eborense do Espinheito - cf. BPE, Rivara 1, Céd. CLRVIN/2-5, %© Cf, Dauril Alden, The making of an enterprise: the Society of Jeius in Portugal, its empire, and beyond, 1540-1750, Stanford, California, Scenford University Press, 1996, pp. 257-258. © apuramento do sangue acabou, todavia, por ser limicado até a quinta geragio cm 1608, na VI Congrepagio Geral - cf. Francisco Rodrigues, Histirie de Conpanbia de Jesus na aatsittncia de Portugal, Tl ~ Vol. 1, Porto, Liv. Apastolado da Imprese, 1938, pp. 360-361 4 CE. Anténio Borges Coelho, “Minorias étnicas € religiosas em Portugal no século XVI", in Viggen + vinjantes 1a Atlantica Quinbentista, Lisboa, Colibri, 1996, p. 18) 154 Rigor © interesses: os estatutos de limpena de sangue om Portugal regular. Dataria também de Novembro de 1565 a introducio dos estatutos de limpeza de sangue no Colégio conimbricense de S. Paulo. Inaugurado dois anos antes com chancela régia, diferenciava-se dos restantes por se destinar a seculares pobtes, fossem laicos ou eclesidsticos. Equivalia a um colégio maior, que abriu admitindo 12 colegiais, O seu quadro normativo fundamental foi aprovado cedo, em 1559. Nestes estatutos, redigidos em latim, n&o se apontavam pessoas a excluir por raz6es de sangue. O tdpico s6 foi estabelecido mais tarde, “em capela”, ou seja, pelos préprios colegiais e€ o seu Reitor. Possiyelmente estaria em jogo refrear a procura destes lugares, pois fora grande, mal se abriram as oposicdes. Como a maioria das colegiaturas se destinava a graduados em C4nones e as restantes sé distribufam pelas demais faculdades, incluindo Medicina, $. Paulo constituiria por si sé um chamariz. Gozava, além disso, da filiagdo tégia e quando aparecen era a tinica instituigéo desta natureza dirigida a seculares. Nao sera de surpreender a procura. Acresce que os estatucos deste colégio foram muito inspirados nos dos “seus antecessores” de Todos-os- -Santos e de S. Miguel, dos Cénegos Regrantes. Suspeita-se também de alguma influéncia inicial dos Jerénimos, através de Frei Diogo de Miircia'?. Desta forma, até ao final dos anos de 1560, a pureza de sangue abarcaria apenas alguns colégios maiores conimbricenses ¢ ordens de tipo regular, A disputa entre elas favoreceria a imposi¢éo da mesma, a par das ligagdes de algumaes a Castela, onde os estatutos constitufam um espace aceso de polémica e de identidade, desde o final de Quatrocentos. Com excepgio do Colégio de S. Paulo, no moldariam o recrutamento de outra instituigdo de teor secular. 18 Sobre todas estas questées, vide M* Margatida Cruz Brandio, Opes, Vol. Le Suplemenco ao Vol.J. 155 Finanda Olival A introdugao da limpeza de sangue nas Ordens Militares € um processo relativamente bem conhecido e que tera tido largo impacto na sociedade coeva. Fez-se através da bula de Pio V. Ad Regie Maiesratit, de 18 de Agosto de 1570®, que afastava os descendentes de judeus e mouros. A partir desta data podemos com seguranga falar em estarutos de pureza nas trés Ordens sob a tutela perpétua da Coroa desde 1551: Avis, Cristo e Santiago. © diploma invocado mandava também excluir os mec4nicos (filhos e netos), ou seja, quem trabalhava com as mos para sobreviver nao era considerado limpo de oficios e também ficava de fora. A adopcdo simulrdénea dos dois tipos de limpeza constitufa uma marca muito significava. Nas Ordens Militares castelhanas nao se impusera tudo ao mesmo tempo € os resultados nfo foram os melhores. Evitava-se, assim, que o sangue cristéo-velho se tornasse num motivo de vangléria para os plebeus, pois de outro modo transformar-se-ia na “sua nobreza” é num t6pico de desdém sobre os fidalgos com sangue impuro. Obviava-se, deste modo, 4 subversdo da ordem social. Gragas ao poder atractivo das Ordens Milirares, cujos membros mais importantes eram os cavaleitos, e gracas & chancela de rigor que chegaram a adquirir as suas provangas, em particular desde 0 final de Quinhentos, estes principios passaram a marcar fortemente os cédigos de distingZo existences. Acresce que, teré sido a Coroa a solicitar a Roma a incorpotagio da . Esta questao nao seria despicienda. limpeza nos moldes tragado: Terd dado outro relevo aos estatutos. Por essa época, D. Sebastiao apostava na introdugao dos servigos, como meio para atingir um hébico ou uma comenda nas Ordens Militares. Alids, a mesma bula de 1570, impunha a obrigacao de setvir (a titulo Y Ch. Corpo Diplomatice Portaguen contend ot actos « relagier politicas e diplomaticar de Portugal com as diversas potenciai de mundo deide 0 swalo XVI aué or nosso dias, ed, de José da Silva Mendes Leal, t.XI, Lisboa, Typ. da Academia Real das Sciencias, 1898, pp.650-640, 156 Rigor ¢ intereies: of estatutes de limpeaa de sangue en Portugal individual) no Norte de Africa como outra condicao para chegar as Ordens. Ficariam estas reservadas aos nobres ctistaos-velhos com pelo menos 18 anos de idade e servigos num palco tradicionalmente associado ao combate contra os mouros € a fidalguia guetreira. Porque a Coroa tinha demasiados interesses em configurar as Ordens Militares como espacgo de elite, pela primeira vez langava mao dos estatutos de limpeza de sangue, nos moldes refetidos. Era também a primeira vez que estes se aplicavam, de forma clara, a nobres ou nobilitados com capacidade de reproducio biolégica, pois até af apenas afectavam ordens com vida conventual, A Gnica excepgéo era 0 Colégio de S. Paulo, mas muitos dos seus colegiais viriam a abragar a vida eclesiastica, antes ou depois do seu ingresso em 8. Paulo. Quanto aos cavaleiros dos trés Mestrados, os de Santiago sempre puderam casar e os de Avis € os de Cristo desde 1496 que o podiam fazer; 0 voto de castidade fora comutado em castidade conjugal pelo Papa Alexandre VI. A Ordem de Malta, em Portugal, faria habilicagées desde 1567 ou desde o inicio da década seguinte'’, mas nesta milicia ser cavaleiro professo continuava a implicar voto de castidade efectivo e por essa razao, entre outtas, teria muito poucos elemenitos. No entanto, apesar da citada bula de Pio V relativa 4s Ordens de Avis, Cristo e Santiago, em 1589, quando foi concluida uma junta de reforma da Ordem de Cristo, ainda se propunha que fossem toleradas ressalvas nos “moradores dos Lugares d’ Africa” (de Ceuta, Tanger e Mazagio), com servicos, Eram pragas de pouco rendimento ¢ para as quais comegava a ser dificil atrair moradores: “E os moradores dos Lugares d’Africa, que nelles vivem, E tem suas casas E molheres, E aos quaes estao ordenados CE Maria [nes Versos, Os cavaleiros da Ordem de S.Joio de Multa em Portugal de finsis do Antigo Regime ai Literali:mo, Lisboa, Dissertagio de Mestrado em Sociologia e Economia Histéricas (séc. XV / Sée. XX), apresentada ao Dept. de Sociologia da Universidade Nova de Lisboa, 2003, pp. 257-258... 157 Fenanda Olival per ElRej Dom Manoel trinta habitos, E comendas de dez mil réis, ainda que tenhdo raga de Mouro, ou algum foSse mouro, que novamente se converteo E fez Christao, se per seus servicos nas ditas partes continuos mostrarem que séo merecedores do habito, E comendas a elles ordenadas, pareceo que devem set 20 habito recebidos per dispensacio, na qual se declara Seu defeito, Ea rezio porque com elles se dispensa; 0 que assi avera lugar ainda que Sejéo filhos de macanicos”"* Desta forma, no espaco norteafricano, a troco de servigos, até 0 sangue mouro era ultrapassdvel, mesmo quando afectava o préprio candidato. Nem as comendas do Norte de Africa Ihes ficavam inacessiveis. Apenas a heranca judaica era profundamente repudiada, Relativamente ao Santo Oficio, seré também dificil falar de observancia de estacutos de limpeza de sangue de modo rigoroso antes de 1570. Voltar-se-4 ao problema. Em 1577, entravam os estatutos na Miseric6rdia de Lisboa. Quanto 4 “carreira das Letras” tutelada pela Coroa, a partir de 1602 também passou a contar com habilitagdes a inquirir o ripo de sangue’®, Em sintese, no limiar de Seiscentos, a pureza tendeu a espalhar-se em diversas instituig6es: irmandades, beneficios eclesidsricos, alguns governos dos municipios ¢ diversos cabidos; muitos instituidores de morgadios também a adoptaram. Na Universidade de Coimbra apenas afectou 0 partido médico, pelo menos desde 1604, ou talvez antes'’, e nfo os estudantes de Medicina; cldéusulas expurgatérias tocaram também 0 BN, Céd. 13216, fl. 23-230 16 Cf Gabtiel Pereica de Castto, Tractatus de manu regia, I, Lugduni, Claudi Bourgeet, 1673 (1 ed. 1625), p.3, "7 Por um alvard régio de 1585, 36 08 médicos cristios-velhos podiam inteprar os partidos médicos das cimaras, misericdrdias © hospitais - cf, Jorge Valdemar Guerra, “Judeus e cristos-novos na Madeira, 1461-1650", Arguive Hittérica Regional da Madeira ~ Série transovigtes dacracntais, 1, 2003, pp. 163-164. 158 Rigor v intovesses: os extatutos de limpuaa de samgad om Portugal professorado'’, mas apenas na sequéncia do processo inquisitorial contra Anténio Homem, por volta de 1621". Todavia, nuns apontamentos destinados as Cortes de 1619, pedia-se que os crist@os-novos nao estudassem para nao atingirem postos relevantes, que pudessem ameagar os dos cristdos-velhos: “que ninguem seja admittido as escolas sem tirar estromento de sua limpeza (...) mas que Somente usem officios mechanicos, & fiquem barbarizados, pois elles 0 tem merecido, B nao he bom, que venhdo a ser tao poderosos & ricos, que facao alguma rebelliao’”, Os estatutos de limpeza de sangue eram, com efeito e nalguns contextos, uma forma de eliminar a concorréncia. Um momento significativo no difundir da pureza de sangue correspondeu 4 redacg&o dos estatutos de 1663, da conftaria do Santfssimo Sactamento de Santa Engrécia. A partir daf, para ingressar nesta agremiagao, nao bastava ser crist@o-velho; era indispensavel nunca ter sido afamado do contrdrio, tivesse o rumor fundamento verfdico ou falso. A honra mais do que nunca podia depender dum longinquo avd e da meméria da comunidade. Era um bem assaz frégil, escorado no reconhecimento pleno e permanente como cristao-velho. O ultimo quartel de Seiscentos e os primeiros trinta anos do século XVIII equivaleram aos de maior apego putitano. Este clima foi atingido por um leque muito complexo de razGes: o teforco do poder nobilidtquico possibilitado pela chegada ao trono do Infante D.Pedro em 1667; as reacgdes ao sacrilégio de Odivelas de 1671; os boatos sobre 0 perdiio geral e as tensbes decorrentes da suspenséo do Santo Offcio entre 1674 e 1681. \§ CE Fernando ‘Taveira da Fonseca, A Unroersidade de Cobra (1700-1771): estudo Social e econdmico, Coimbra, Por Ordem da Universidade, 1995, p.251 1 C£. Joaquim Romero Magalhaes, “A Universidade e a Inquisicio”, in Histiria da Universidade on Portugal, Voll, tI, Coimbra, Universidade de Coimbra - Fundagio Galouste Gulbenkian, 1997, p. 986. » BGUC, Céd. 8570, A. 252. 159 Penanda Olivad Mais do que nunca nesta fase, os estatutos de limpeza de sangue eram marcantes. 2. De que formas se fazia, na ptatica, o apuramento da limpeza genealégica? As Ordens Militares constituem um bom exemplo de entidades que jd antes de 1570 faziam interrogatétios para expurgar a qualidade dos seus membros. Os mais antigos que se conhecem datam do tempo de D. Jorge, Mestre das Ordens de Avis e Santiago (F1550). Restam nos arquivos diversos processos a partir da década de 1520"; os anteriores cer-se-~do perdido, Nessa altura, imicar-se-iam os requisitos impostos ao clero secular, Os objectivos essenciais seriam provar honestidade, a posse de determinada fazenda” e a nfo existéncia de crimes pendentes. Nao quer dizer que, num caso ou noutro, nao se alegasse a genealogia religiosa, como fez Francisco Veloso, escrivio dos navios do rei no trato da Guiné, que em 1538 salientava que era “e asi como sam cristam vindo ¢ nd venho de casta de Judeus nem mouros. e sam homem manso e sem brigas e nom tenho omezio nem Sam acusado por feito crime”™. Nos estatutos da Ordem de Santiago de 1542, aumentou-se 0 rigor dos requisitos exigidos. Pela primeira vez, exclufram-se aqueles cuja pessoa, pais e quatro avés eram judeus e mouros praticantes, admitindo-se, contudo, os convertidos: “mas se alguum alumiado da graca de deus se converter a nossa samta fe/ e for tal pessoa de que a ordem seja servida/ ou hdrrada/ em tal caso 6 podera o mestre receber a ella’. Por este texto, 2 GE. Maria Cristina Gomes Pimenca, Ar Ordens de Avis ¢ de Santiago na Baixa Idade Média: 9 governo de D Jorge, Palmela, GESOS - Camara Municipal de Palmela, 2002, p.230. 22 Nos estatutos da Ordem de Santiago de 1542 fixou-se 0 patriménio em 400.000 ceais de fazenda ou 20 mil de renda - Regra et statutes da ordem de Santiage, Lisboa, Germao Galharde, 1542, cap, IV. 2 ANTT, Colespie Especial, Cx. 75, Mg.1. C& também sobre este pretendente 20 habico de Santiago, Maria Cristina Gomes Pimeata, Op. it., p. 433. 4 Regra et statutes da ordom de Santiago, cit., cap. IV. 160 Rigor e intereses: os estatutos de limpeaa de sangue em Portisgal afastavam-se também da Ordem os mec4nicos e os lavradores”. Por essa época, tudo se resumia a um inquérito por testemunhas, sendo estas tiltimas apresentadas pela parte interessada, 0 que era pouco rigoroso. Depois da anexagao das Ordens 4 Coroa ¢ & Mesa da Consciéncia, as habilitagdes foram retomadas a partir de 1564, tendo-se elaborado um regimento para 0 efeito®. Até ao capitulo geral de 1619, pode falar-se numa fase de crescente fTeorganizacao do sistema das provancas e de implantacao. do tigot nas mesmas. Nao teré bastado introduzir os estatutos de limpeza de sangue. Mais importante era 0 modo como era apurada. Normalmente, no seu inicio, as habilitagdes dos cavaleiros faziam-se em Lisboa. Cabia ao Juiz Geral das Ordens Milicares convocar e fazer registar os depoimentos de 2 a 4 testemunhas. No entanto, em 1597, Filipe II obrigou a que as habilitacdes fossem feitas nos locais de natalidade do candidato, dos seus pais e avés”; devia tird-las um freire do respectivo habito, enviado ao lugar; cabia a este escrever na diligéncia e 0 interrogatério ficava a catgo do corregedor da comarca, mas caso este ou a sua mulher nZo reunissem as condigdes de limpeza de sangue necessdrias, o inquérito devia ser conduzido pelo provedor e, em tltimo caso, pelo o juiz de fora”. Mais tarde, na sequéncia dos definitérios saidos do capitulo geral de 1619, introduziram-se os comissdtios, 4 semelhanga do que se praticava em Castela®”. Estes deviam ser cavaleiros da mesma Ordem. O Tribunal acabou por montar uma rede em todo o Reino e Império. Apenas as provancas das pracas do Norte de Africa se faziam em Lisboa, recorrendo as pessoas dos ditos locais, frequentemente aos indivfduos com 0 estacuto de merceeiros de Belém e da Sé. = Cf. Ibidem. % Cf. BN, Cod. 10887, fl. 65, 433-434; BGUC, Cad. 479, f. 19-21 7 Cf. ANTT, Mesa da Cousciéncia - Ordens Militanes - Paptis Diveriot, Mc. 22, doc. 126. 2 CE ANTT, Meta ila Consciéncia, L° 310, f. 62-64. ® CE ANTT, Mesa da Conscifncia ~ Ondens Milisares - Papdis Diversos, Mg. 22, doc. 126. 161 Fenanda Olrwal Nos restantes casos, perante as naturalidades presentes em cada candidatura, a Mesa escrevia a um comissério da localidade, nomeando quase sempre um escrivao para o acompanhar nos autos. Estes tiltimos, salvo poucas excepgSes, eram freires da mesma insignia. Quer um cargo, quer © outro eram muito pretendidos®. Permitiam auferir alguns proventos materiais, pois estas diligéncias eram pagas, mas sobrerudo davam lugat a0 exercicio de um poder nao desprezivel no contexto local. Os comissdrios eram verdadeizos guardides da honra nesses espacos, 0 que Ihes dava, desde logo, estatuto; alguns passariam, inclusive, a’ ser pessoas temidas, pelo conttolo que se receava pudessem exercer. O novo sistema tornou os inquéritos mais dispendiosos, mas Barantia crescente acerbidade. Quando os progenitores eram origindrios do estrangciro ou de regides longinquas do Reino e Império, 0 pretendente podia solicitar a feicura dos mesmos com “patria comum”, em Lisboa. Estes pedidos eram frequentes, mas nem sempre tinham resposta afirmariva. No tempo de D. Joao IV, por exemplo, evitou-se a aquiescéncia’'. As habilitagdes feicas deste modo eram mais faceis de subverter. Como se depreende, fecofria-se aos naturais da zona em causa que estivessem em Lisboa; seriam, apesar de tudo, em niémero reduzido, 0 que podia ocasionar acordos prévios sobre testemunhos. No caso do Santo Offcio, supde-se que as habilitagdes se verdo iniciado por volta de 1570, quando foi dado Regimento ao Conselho Geral. Foi também por essa altura que a insticuigao comecou a esbogar a rede de comissdrios e familiares (existiam ja na década de anterior). Estes tiltimos eram quase sempre laicos, ao contrério dos comissdrios, que geralmente correspondiam a CE Ibidem, Mg.1-2. * Cf. Fernanda Olival, As Ordens Militares ¢'0 Estado Moderna: bonva, moved wenalidade en: Portugal (1641-1789), Lisboa, Estar, {2001}, p.179. 162 Rigor e intersss: os estatutes de Limpeza de sangue em Portagal eclesidsticos. Desta forma, mesmo na propria Inquisicdo os estatutos de limpeza de sangue entraram, de modo formal, muito tarde. E, todavia, plausivel admitir que antes da data apontada haveria algum controlo sobre a genealogia religiosa dos seus ministros e oficiais, mesmo que nao fosse muito rigoroso. Até quase 4 Restautagao, os familiares eram recrutados entre os mecanicos com algumas posses. Numa visita ao Tribunal de Coimbra, em 1592, chegou-se a recomendar que fossem expulsos 0s que 0 nZo eram € que se optasse por “homens de menor condigao, mas de confianga e fazenda’*, que efectivamente servissem € nao almejassem 0 cargo apenas pelos privilégios. Se no inicio o lugar nfo era muito solicitado, depressa passou a sé-lo. Paulatinamente ser familiar transformou-se numa distingao social muito cobigada, designadamente quando 0 puritanismo se enraizou na sociedade portuguesa. O mesmo ocorreu com o posto de comissdrio. Mesmo quando a zona j4 os tinha em ntmero suficiente, havia quem 0 pedisse ad Aonorem, sem ter de o exercitar®. No inicio das provangas do Santo Offcio seriam estas tiradas pelos representantes da Coroa a nfvel local, como seria 0 caso dos corregedores ou até dos jutzes de fora. Acompanhé-los-ia um escrivao da sua confianga. Escrevia-se também frequentemente as autoridades do bispado ou a simples clétigos, quer fossem comissdrios, quer néio. No limiar de Seiscentos ja era esta tiltima a situa¢ao dominante. Na provisao de poderes que enviava o Inquisidor Geral recomendaria grande cuidado e sigilo, como foi 0 caso em 1573, nas de Diogo Nunes, feitas em Mértola, pelo juiz de fora: “e me emvjateis a propia [inquiricio] Sem la ficar treSlado Sserrada e aSellada per peSsoa Segura que a entreguaraa 32 J. Romero Magalhaes, “Em busce dos ‘tempos’ da Inquisigio (1573-1615)" Revista de Histéria das Ideias, Coimbra, n° 9, 1987, pp. 206-7, 219. # CE um exemplo em, ANTT, Habilitapier do Santo Ofcio - Anx6aio, Mg. 15, doc. 523. 163 Fonanda Olival nesta cidade a domingos Simois Secretarjo do comgelho geral da inquiSigio"™. Era dado juramento ao escrivaio para “que bem e fielmente eScreveSse nesta emformacio” e “que em nenhum tempo descobriSse como se tirava ou a que fim ate pello dito Senhor ser manifesto e eu pello dito Juramento aSim ho prometi fazer € comprir””. Ouviam esces entre 4 e 6 testemunhas. Pelo que se conhece das familiaturas do Santo Offcio ainda nao é possfvel saber até quando vigorou este sistema. Provavelmente até se cornar de alguma forma eficaz a rede de comissarios que a Inquisigéo estabeleceu a partir da década de 1560%. Sendo assim, supde-se que $6 no limiar do século XVI as habilitagdes passaram a fazet-se com alteragoes. Na nova modalidade, o tribunal do distrito onde nascera o postulante pedia previamente informacdes sobre 0 mesmo, geralmente ao comissdrio da zona, para ratificar a genealogia € para uma pfimeira averiguacao informal dos riscos. Também se pretendia saber se a pessoa em causa era merecedora do lugar. ‘Até ao infcio dos anos de 1680 raramente ficavam vestigios escritos destes procedimentos mas, a partir de entao, passaram a ser muito minuciosos nos registos’”. Por vezes, 0 Comissdrio chegava a deslocar-se “para fazer esta diligéncia e chegava também a ver os livros paroquiais de baptismo para confirmar a filiagio", Normalmente, no parecer dirigido a0 Conselho Geral, referia-se o tipo de vida, costumes e capacidades, inclusive se -se o tipo de sangue © quase sempte o nivel de riqueza. Se esta primeira apreciacio fosse positiva, era solicitado aos trés tribunais metropolitanos da sabia let ou escrever; apontay: 34 ANTT, Habilitacdes do Sanco Offcio - Diogo, Mg. 1, doc. 24. 2» Tbidem. % Cf, Beancisco Bethencourt, Histiria dar Inguisigis: Portgal, Espanba ¢ lidbia, [Lisboa], Circulo dot Leitores, {D.L.1994], p. 54. 27 "CE. alguns exemplos em ANTT, Habilitesier do Santo Offein - Bento, Mg. 7, doe. Vii, 714. ‘CE bons exemplos, de 1714-1715, em Tbiden, doc,101, 104. 164 Rigor ¢ intereses: os ectatutos de limpeas de sangue ere Portugal inquisigféo que efectuassem dilig@ncias nos seus reportérios de culpados para averiguar se a pessoa em causa, € os seus pais, teriam algum tegisto de crimes. $6 depois disso se mandavam fazer os interrogatérios aos locais de mnaturalidade dos ascendentes e de morada do préprio. Em Julho de 1720, o Cardeal da Cunha, na qualidade de Inquisidor Geral imp6és um conjunto de alteragdes®, tendentes a acentuar o rigor dos inquéritos: 1) a busca a fazer nos reportérios inquisitoriais deviam incidir também sobre os 4 avés, quer do proptio, quer da mulher; 2) nas informagdes prévias, ditas “extrajudiciais", para além do que era usual, devia saber-se se 0 pretendente tinha filhos e se eles, ou os ascendentes, incorreram em alguma infamia; 3) mandava-se anexar ao ptocesso certidées do baptismo dos habilitandos, dos seus pais ¢ avés. “E quando Seno achem os Livros nas freguesias, aonde Se fazem as Deligengias, pelos Prelados os terem mandado Recolher para outta parte, Nella Se procurem, E Sem as ditas Certidées, ou de como sendo acharfo os ditos aSsentos, Senio mandem as Deligencias ao Conselho”*; 4) nos interrogatérios propriamente ditos, porque havia um modelo bem definido de perguntas, mandava-se actescentar tépicos quando se perguntava pelos quatro avés: “E se outro Sy conheCerfo, ou tiverdo noticia de Seus Pays (Bizavos do habelitando) e Se sabe Como Se chamavio, 4; 5) em nenhurna comissao e donde ero, ou foro naturaes” enviada para qualquer local se deviam suprimir perguntas. Os inquéritos deviam seguir inteiros. % CE ANTT, Conselbo Geral do Santo Ofitie, 35, 1. 139-1399 10 Hide, fl, 138a. A. [bidem, 165 Fenarda Olival 3. Ao longo de anos, a historiografia tem sublinhado o rigor das habilitagdes do Santo Oficio®, Na época, particularmente desde os finais de Seiscentos, a prépria Mesa da Consciéncia assinala-o. Normalmente, quando um pretendente a um habito dos trés Mestrados era jd familiar da Inquisigao, tal facto merecia apreco no Tribunal das Ordens. O mesmo se passava na Ordem de Malta®. As testemunhas também vincavam o mesmo principio, pelo menos “na Mesa da Consciéncia. Em 1768, nos intertogatérios de Anténio Rodrigues Giraldes, efectuados em Lisboa, tendo na mira a insignia de Cristo, um dos inquiridos salientava que o justificante “Sempre fora bem reputado no Sangue tanto aSsim que he famelliar do Sancto officio”. Os exemplos deste teor eram muitos. Nao se conhece, por ora, nenhum caso de familiar que tivesse reprovado nas Ordens Militares por questées de sangue. Houve, efectivamente, quem n&o fosse bem sucedido num primeiro momento, mas perante a insiscéncia obtinha aprovagio. Entre 1723 e 1724, corria na Mesa da Consciéncia o processo de Alexandre Anténio da Cunha, estudante, natural ¢ morador no Porto. O pai nascera em Basto e s6 depois se mudara para a cidade da foz do Douro. Comecou por ser carreiro ¢ acabou contratador do Tabaco da comarca do Porto e homem de negocios. Quando decorreram as habilitagdes do filho, era ja familias do Santo Officio. Apesar de no Porto algumas testemunhas terem afirrnado que eram cristéos-novos diante do Comissatio das Ordens Militares, foi considerado puro. Para isso contribuiu © facto de ter safdo crist@o-velho no local de origem do pai e avés paternos e a familiatura do progenitor, cuja carta © CE Joté da Veiga Torres, "Da tepresstio religiosa para a promoszo social: @ Inquisigio como instincia legitimacora da promogao social da burguesia mercantil", Revista Critica de Citnéias Sovicis, Coimbra, n°40, 1994, p.114; Idem, “Um “escusedo’ habilitado”, Revista de Histiria Econdmica ¢ Social, Lisboa, 2* st., 0° 4, p. 66. ® CF. Maria Inés Versos, Op. ci, p. 278. 46 ANTT, Habilitagies da Otden de Crisio, Letra A, Ms. 30, doc. 3 166 Rigor « intereses: 05 estatutos de limpeza de sangue em Portugal foi anexada ao processo. Em Setembro de 1723, a Mesa concluia que para ser cavaleiro sé lhe restava o problema da mecanica do pai e avést ‘Outro exemplo, datével do anos 70 do século XVI € o de Anténio Veloso de Vasconcelos, Fidalgo da Casa Real, alcaide- -mor de Penela, donde era natural. Merece uma longa explanagao, nao obstante se terem perdido muitos documentos importantes e outros testemunhos que, se tivessem deixado vestigios escritos, seriam fundamentais para compreender muitos elos e pontos obscuros deste caso. Por volta de 1672-673, quando, solteiro, Anténio Veloso de Vasconcelos se habilitou para 0 Santo Oficio, era j bacharel formado pela Universidade de Coimbra e vedor do Duque de Aveiro, D. Pedro de Lencastre, Inquisidor Geral (1671-1673). Morava em Lisboa, onde serviria 0 Duque. A sua parentela do lado paterno tinha ligacdes 4 Casa de Aveiro e a AzeitSo, desde pelo menos os avés. O pai de Anténio Veloso de Vasconcelos fora fidalgo da Casa Real, juiz de fora de Santiago do Cacém e de Castelo Branco, serviu de auditor geral da gente de guerra da Provincia da Beira, de ouvidor em Setubal e de provedor da comarca de Santarém, em cujo cargo falecera em 1654%. Era dado como pessoa que teria vivido da sua fazenda. Antes de se efectuarem os interrogatérios, 0 candidato Anténio Veloso de Vasconcelos declarara que os avés paternos ja tinham sido inquiridos pelo Santo Offcio através da habilitacgio feira ao Desembargador Gregorio de Valcacer de Morais, para ser juiz do fisco € que era casado com uma tia sua, irma legftima de seu pai. Jé no infcio de Janeiro de 1673 e ainda antes de se iniciarem quaisquer interrogatérios sobre o candidato, tal informaco foi confirmada pelo Secretdrio do Conselho Geral, que localizou as 1 Cf Thidem, Mg. 41, doc. 5. O processo nao continuou, mas tal facto alo se deveu & cristd-novice 46 CE ANTT, Moreér de Afonso VI, L? 1, fi. 389v-390. 167 Fenzeada Olival provancas do desembargador e da mulher e€ viu que ambas tinham sido aprovadas. Feitos os interrogatérios, em Azeitdo, em Penela e em Lisboa, o processo de Anténio Veloso de Vasconcelos foi aprovado rapidamente ¢ sem dificuldades em Marco de 1673, tendo-se lhe sido passada carta, pela Inquisicaéo de Coimbra”. No més seguinte morria D. Pedro de Lencastre, a 23 de Abril. ‘Até este ponto nenhum problema havia a cegistar. Vitiam depois. Sem que se saiba como e porqué o mesmo Antonio Veloso de Vasconcelos recebeu a mercé de um habito de Cristo, também por volta de 1672. Curiosamente, escassos anos apés a morte do pai, o mesmo Anténio Veloso de Vasconcelos j4 tivera uma hipétese de receber igual distingao, mas viu ser-Ihe dada apenas a administracao de uma capela que rendia 9.000 réis, liquidados os encatgos. Fora em 1658, quando a troco dos servigos “de letras” feitos pelo pai nos cargos acima referidos, entre 1639 ¢ o ano da sua morte, bem como pelo 6bito de um irmao, em 1650, na yiagem a caminho da India, assim foi recompensado como herdeiro destas acgées de servicos. Este irméo quando naufragara j4 tinha a mercé do habito de Cristo, que lhe devia set langado na [ndia, cumprido o primeiro ano de servigo. Como tudo acabou no mar, tal mercé nfo teve efeito nele, mercé que Ihe fora atribuida com a promessa de 30.000 réis de tenga. Em satisfagéo de tudo isto, Anténio Veloso de Vasconcelos conseguiu 60.000 réis de pensio em bispados, com a condigdo de seguir a carreira “das letras”. Enquanto nao fosse assim provido, devia receber 40.000 téis de renda, & conta dos quais 40.000 era-lhe imediatamente concedida a administragao de capela invocada, na Vila de Penela®. Na altura, tet-se-ia evitado atribuir-lhe um 8 CE ANT, Habilstaries de Santo Oficie ~ AntSnio, Mg. 15, dilig: 518. “© CE ANTT, Morcts de Afonse VI, 1? 1, 0, 389v-391 168 Rigor ¢ insereses: os estasutos de limpeca de samgue em Porsegal hébito? Viria este mais tarde, como compensacao pela renda ainda em falta? Como algumas vezes os titulares recebiam a mercé de poder nomear alguns hdbitos, resultaria o dele de uma mercé deste teor, feita pelo Duque de Aveiro? Infelizmente, por ora, no esté localizada documentagao da época ou posterior que permita solucionar este leque de hipéteses, Para efectivar o stu hdbito, em 1672 terdo sido feitas habilitagdes pelo Tribunal das Ordens, mas nao foram bem sucedidas; ter-se-Zo repetida no ano imediato, j4 depois da sua familiatura aprovada, mas o resultado nao se alterou. Volvidos quatro anos, aparentemente cansado de tanta dilacao na Mesa da Consciéncia, Anténio Veloso de Vasconcelos dirigiu uma petigao ao Inquisidor Geral, agora D. Verissimo de Lencastre, onde relatava o problema. Queixava-se que apesar de ter sido sancionado para familiar, a Mesa da Consciéncia nao lhe aprovava a hdbito. Duvidava da limpeza de sangue da sua avé materna, apontando que esta Maria da Silva era irma do Pe. Anténio de Géis de Azambuja e de Fr. Bernardino de $. Bento (capucho de Santo Anxénio), aos quais se havia posto impeédimento sobre a ascendéncia, a um para se ordenar e a outro estando jé no noviciado, A seu favor, alegava Anténio Veloso de Vasconcelos que, para além da habilitagéo de familiar, ainda fizera outras duas: uma, em 1653, para ser porcionista exactamente no Colégio das Ordens Militares na Universidade de Coimbra; outra pelo Desembargo do Pago, em 1663, para cumprir a sua leitura de bacharel*”. Em todas estas fora bem sucedido. No entanto, segundo referia na mesma stiplica, a Mesa da Consciéncia, onde apresentara a sua carta de familiar, ia ao ponto de por em divida que ele efectivamente fosse titular de tal distingao: “por nao 8 Anténio Veloso de Vasconcelos vitia, contudo, a reprovas no exame; feito em Julho esse ano, pelo que nao rer entrado na carreica das Letas - cf. BN, Céd. 10856, fl. 15, Agradeso esta informagio 20 Dt. Nuno Camarinhas. 169 Fenanda Olival verem © registo nella, nem constar se lhe dera o juramento, esforsando maes a ditta duvida com se affirmar, que 0 Supplicante nfo excercitéra acto algum publico dos que ouvera nesta Corte em que pareceSse Familiar; E por estas, e outras Razoes se lhe nao tem differido athe o prezente com notavel danno da sua honra, e ainda do credito deste Tribunal, Aonde se custumfo apurar as Familias com a yerdade que a todos he notoria”’. Continuou a expor as suas razGes aponrando que obtivera carta de familiar pela Inquisicao de Coimbra, por ser natural de Penela, © que por ordem do Conselho Geral se lhe deta juramento em Lisboa: “E por entender que nao neceSsitava de outra diligencia maes, nfio mandou Registar a ditta Carta a Coimbra; he verdade que senfo. achou nos actos publicos, que No ditto tempo ouve nesta Corte, o que s6 fes por seu natural Comedimento, e por esperar cada dia que na Meza da Consciencia se the differisse, ¢ nao por duvida alguma que tivesse”. Face a isto, pedia a incervengao do Inquisidor Geral. Nas suas palavras, ha muito tempo que andava na Corte, atras deste assunto, “em que nao sé se lhe vay gastando a Vida, ¢ a fazenda, mas taobem a honra que he o mais por ser hum homem Fidalgo, e Alcayde mdr de huma Villa, ¢ muito conhecido em toda a parte, e Sobretudo ser credito deste Tribunal sustentar a vetdade, e justiga delle”, Pedia que Inquisigao visse o seu ptoblema e fizesse constar a sua limpeza A Mesa da Consciéncia, sob risco do Tribunal ficar desacreditado. Desta forma, o que em tiltima andlise fazia era tentar transferir “a sua questo”, colocando a guerra entre as duas instituicdes envolvidas (Mesa da Consciéncia / Santo Officio) ¢ nao simplesmente como uma assunto pessoal. Era pelo menos uma postura muito arguta. Para além disso, a petigdo acima referida, feira em tempo de 58 ANTT, Habilitagies do Santo Ofieio - Antinic, Mg. 15, dilig. 918, 0. 43 5 Tle, ABW. 170 Rigor e énsereses: os estatetos ce Limpeza de sangue em Pornugal puritanos, revela aspectos muito interessantes, aos quais no tem sido dada muita atencao: nao bastava ter as habilitagbes de familiar do Santo Officio aprovadas. O juramento, o registo da carta e a exibigao prtblica do estatuto eram fulcrais. Na sociedade do Antigo Regime, as desigualdades ¢ as distingdes nao deviam ser escamoteadas, mas, ao inyés, tornadas patentes aos olhos de todos, até de forma ostensiva. Nao o fazer podia envolver riscos, j4 que a honra também se construfa em larga medida na esfera publica. Afinal nao era s6.a ins{gnia de uma Ordem Militar que tinha essa forte componente pdblica; as familiaturas também a deviam ter, para darem crédito, Para além desta peticgaéo entregou outras, acompanhadas de arvores de familia. Nestas salientava mais trunfos, na expectativa que lhe fossem favordveis: fora muitas vezes provedor da Misericérdia na Vila de Penela; teve dois irm&os que passaram a india, para cujo efeito se lhes tirara inserumentos de limpeza, para além daqueles apurados pelo mordomo-mor para alcangarem o alvardé do foro da Casa Real que lhes era devido pelos seus pais e avés; tinha duas irmas freiras no convento dominicano de Jesus de Aveiro, “onde s6 entrio pessoas Limpas, e quallificadas’*. Passava depois a apontar ascendentes com postas € distingdes significativas, de tal modo que ligava a sua genealogia ao 2° Conde de Penela. Tentava colocar pistas claras sobre a fama de cristi-novice, ou seja, oferecia uma leitura dos pontos criticos para estrategicamente tencar esclarecé-los do modo que lhe eta mais benéfico: um irmao da sua bisavé casara com uma ctistd-nova em Tomar, chamada Guiomar Rodrigues de Paiva, da qual ainda havia descendentes, mas cujo sangue nao afectava o do pretendente; 0 seu tio avé fora expulso da religido de Santo Anténio, mas depois reintegrado € nesta morreu, porque se provou que um avé dele nao viera de Castela por ser 9 fbidem, #4? 171 Fenanda Olsval converso, mas sim por uma bofeeada que dera na Casa do Duque do Infancado”. Tenha-se presente que ser otiundo de Castela era se sempre em fuga, quase sempre gerador de suspeitas: pensav. no Ambito da expulsio geral dos judeus em 1492. Na sequéncia da primeira peticGo analisada, em 28 de Maio de 1677, 0 Conselho Geral optou por mandar que a Inquisigao de Coimbra fizesse novas diligéncias pata apurar a yerdade, que deviam ser financeiramente custeadas pelo interessado, como era normal. Ouvitam-se 20 testemunhas, a partir de 9 de Agosto de 1677. Eneretanto, o candidato também juntara novos materiais, que entregou no Conselho Geral. Num deles relatava como, na Quaresma, estando um religioso a pregar na Igreja de Santa Eufémia de Penela, lera um papel de Felicio de Amorim Leite, “homem muito velo, e dos honrados daquella Vila”, no qual se desdizia e retractava do que contra ele Anténio Veloso de Vasconcelos declarara nas suas habilicagdes destinadas 4 Ordem de Cristo: “porquanto fora muito contra o que entendia, e sabia por sy, seus Pays, e Avés 0s quaes todos avido jurado muitas vezes, e elle mesmo em Varias provancas da dita getaco, que cinha por mui christ velha, ¢ Limpa de todoa a mé raSsa, E que por se ver naquella idade stimulado de sua Consciencia, E aconselhado de seus Confessores fazia a dita declaragio E assy 0 confessou publicamente perante todos”. Anténio Veloso de Vasconcelos também referia que tinha varias outras declaragées, feitas perante um comissério das Ordens, de pessoas que diziam que nao Lhe tinham sido contrdrias e que os registos feitos nos interrogatérios da Mesa da Consciéncia teriam sido diferentes daquilo que fora o testemunho verbal delas. Com isto, solicitava ao Conselho Geral que, caso efectuasse dilig@ncias, também > Tbidem, £1. 48, * Tbidem, Nl 44. 172 Rigor e intereses: os estatutos de limpense de sangue em Portugal mandasse inquirir sobre estes escritos e respectivo contetido. Nos novos interrogatérios, feitos nao por um qualquer comissatio, mas por um deputado da Inquisig&éo de Coimbra e lente da Universidade, apurou-se que Guiomar Rodrigues de Paiva tivera uma irma relaxada A justiga secular, num auto da Inquisi¢ao0 de Lisboa, cerca de 50 amos antes. No entanto, também se apuraram outros pontos relevantes: que a linha genealégica desta Guiomar nao se imiscuia com a do inquirido; que 0 capucho tio-av6 do candidato fora expulso, mas pouco depois reintegrado. Também foram ouvidas testemunhas que teriam deposto na habilitagdo feica pela Mesa da Consciéncia. As que haviam sido desfavoraveis ao pretendente, algumas afirmaram que nao tinham a certeza do boato de crist@-novice, outras que entretanto a fama se esbatera com o desmentido ptblico e pedido de perdao apresentado por Felfcio de Amorim Leite. O deputado de Coimbra relatava ainda razdes para inimizades, na sequéncia das quais fora espalhada a md fama; por fim, duas tesremunhas foram por ele classificadas como incapazes de crédito: uma por ser pessoa velha que pedia esmolas ¢ costumava andar bébeda, outra por ser muito idosa (100 anos) e quase tonta’*. Estas eram, todavia, as duas testemunhas que ainda deixavam alguns laivos de dtivida sobre a pureza de sangue dos ascendentes de Anténio Veloso de Vasconcelos. Era, assim, uma opgio estratégica. Com estes novos interrogatérios, 0 despacho do Conselho Geral foi favordvel ao candidato, a 12 de Outubro de 1677. Tendo-se escrito neste texto o seguinte: “devia ser conservado no foro e honra de familiar de que tem posse e devia o Santo Officio ajudalo” no que lhe {for] possivel afim de conseguir o despacho > Cf Ibiden, A159. 3 Sublinhedo da época 173 Penanda Olival que pretende no Tribunal da Mesa da Consciencia B ordens””. Depois disto, a 4 de Novembro de 1678, foi feita uma apostila na carta de familiar, a corroborar a limpeza do implicado. Como se perdeu a habilitagao da Mesa da Consciéncia, nao é possivel dizer muita coisa sobre esta®. No entanto, a provisao de langamento de habito, registada na Chancelaria da Ordem de Cristo, € muito esclarecedora. No corpo do texto inclui este tegisto: “e antes de lhe fazer merce e o Receber a ordem mandei vit a mim as Inquirigois e mais papeis do ditto Antonio Velozo de Vasconcelos e mandando Ver exaptamente e ponderar tudo Rezolvi Ser de puro e Limpo Sangue Com todas as mais quaLidades necessarias para receber o habito da dita ordem”*. A insignia devia-lhe ser langada em Tomar e a provisao tinha a data de 3 de Novembro de 1678. Quer dizer que, tudo se teria resolvido pela mesma altura, e que quem decidira a habilicacao da Ordem de Cristo fora D. Pedto, na qualidade de regente e administrador da Ordem. Poucos anos antes, teria sido ele a introduzir esta prdtica de trazet habilitagdes muito polémicas e de candidactos muito especiais & Secretaria de Estado. Este nfo era, todavia, 0 primeiro processo a ser pedido, nem era sequer dos mais embaragosos®. De acordo com uma verba posta a margem da Ultima resolugdo nas habilitagdes do Santo Oficio, o Inquisidor Geral ter-se-ia empenhado na aprovagao deste habito e D. Pedro teria anuido em Junho de 1678. Quer isto dizer que, com as segundas provanc¢as, o pretendente nao s6 conseguiu um certificado reforgade da sua pureza, quanto transformou o Santo Officio num adjuvante do seu processo nas Ordens Militares, 3) ANTT, Habilitagies elo Santo Ofioio - Anténie, Mg. 13, dilig. 518, @.157 %8 Resta, todavia, um resumo do depoimento clas testemuchas das dues inquirigdes que sobre este caso fer a Mesa da Consciéncia ~ cf ANTT, Conselbe Geral de Savio Oficio, L° 269, fl. 2v-10v. % ANT, Chancelaria da Ordem de Cristo, 1? 61, 8, 144v-145, % Cf. Pernanda Olival, Op. cit. pp. 311-312; ANTT, Meta oa Conscitncia ~ Ordens Milisares - Paptis Diversos, Mg, 22, doc, 132 174 Rigor e intereies: os estatutes de limpeaa de camgue em Portugal de facto, dois dias depois de aprovadas as segundas habilitagdes do Santo Officio, o préprio D. Verfssimo de Lencasere escreveu ao Secretario de Estado a relatat esta anuéncia e a pedir-lhe que desse conta do ocorrido ao regente D. Pedro: “para que Vossa Senhoria possa dar Conta a S. A. que Deos guarde e com esta noticia mandar que se lhe lange o habito porque sendo familiar do Santo officio, e fazendoce por sua ordem esta aviriguagtio nao he jusco que sé duvide da pureza, e limpeza de sangue”. A Inquisico nao pretendia p6r em risco a sua imagem. Noutra vertente, contudo, este caso seria raro. A Mesa da Consciéncia nfo costumava duvidar das cartas de familiares. Talvez o facto da aprovacdo inquisitorial de Anténio Veloso de Vasconcelos ter ocortido depois de reprovadas as primeiras habilicagdes das Ordens tenha potenciado esta atitude. Em segundo lugar, a relagao do inquirido com a Casa de Aveiro seria também um factor que lhe poderé ter facilicado o amém dos inquisidores e € provavel qué os coetaneos tivessem em linha de conta essa inclinag&o benevolente. No Santo Officio ja nao seria assim: as provancas das Ordens nao suscitavam a mesma credibilidade. Esta postura torma-se a primeira vista dificil de entender, tanto mais que séo abundantes os testemunhos da presenca de cristaos-novos no seio da Inquisigao. Num memorial que terd chegado a Madrid, no tempo do Inquisidor Geral D. Fernao Martins Mascarenhas (1616-1628), era este responsabilizado pela nomeagio de muitos conversos para a instituicgéo. Nao faltavam na lista nomes de inquisidores, como os de Sebastigio de Matos de Noronha, que tomou posse em 1617 para o Tribunal de Coimbra e 0 de Manuel de Lucena, cénego da Sé de Lisboa e inquisidor de Evora, a partir de 1620, “hermano de francisco de Lucena secretario del consejo de Portugal”. Quanto & ANTT, Conselho Geral do Santo Ojficio, L? 269, fl. 12v. S% Julio Cato Basoja, Los judies en la Espaita Moderna y Contemporanes, Vol.UI, Madrid, Ed. Arion, 1962, p. 313, 175 Fenande Olive as familiatutas, dizia-se: “Y porque son infinitos los familiares chritianos nuebos por todo el Reyno no es imposible relatarlos, y solo pata ellos seria menester una muy grande letura’® Chegava-se a apontar a venalidade como culpada por este quadro de familiares. Se este papel, pela sua natureza, poderd merecer menos crédito, o mesmo nao se pode dizer dos resultados das visitas ao Tribunal de Lisboa em 1649/51 ¢ em 1658-9. Na primeira apareciam familiares e um solicitador considetados cristdos-noves; na outra, era mesmo o caso de um Inquisidor de Coimbra“ Nas Ordens Militares, divetsos cristaos-noves, em geral muito conhecidos, conseguiram em diferentes épocas ins(gnias Quando estavam em jogo grandes interesses da Coroa, fossem de natureza financeira, politica ou outra, o rigor era contornavel. Afinal, 0 rei era o governador e perpétuo administrador dos trés Mestrados e tentava habilmente tirar partido desse facto, sem pér em causa o sistema de distingdes e os respectivos cédigos de valor. O ntimero de cristaos-novos nas Ordens Militares nunca foi, porém, elevado. E um assunto j4 suficientemente estudado pata nao ser aqui desenvolvido. 4. Se apesar dos esforgos, quer nas Ordens Militares, quer no Santo Oficio havia elementos de origem cristi-nova, por que motivos se fala em rigor extremo a propésito das habilitagdes do Santo Oficio? Por que razGes seria esta instituigao o modelo do apuramento rigoroso? No que respeita aos procedimentos, 2 Mesa da Consciéncia sé em casos muito esporédicos pedia informagées prévias aos inguérivos, como faziam os cribunais inquisitotiais. Exigia, no ® Idem, lbiden, “ CE Isalas da Rosa Pereira, Visitages @ Inquire de Lisboa mos mtados do sicula XVII, Lisboa, Academia Portuguesa da Historia, 1984 (ep. dos Arai, 2* se, Vol.29), pp. 176, 188, 196, 202-203, 219, 222. 176 Rigor einterasses: 95 estatutes de limpena de sangue em Portugal entanto, depoimentos sobte a limpeza de offcios, um assunto ao qual a Inquisigao nao dava grande relevo. Neste campo, 2 Mesa da Consciéncia chegou a ser muito minuciosa, o que criou dificuldades a muitos pretendentes®. No que respeita 4 admissao de fraternidades para habilitar uum ou mais ascendentes, isto é ao reconhecimento de provangas feitas antes, pela prdpria instituicao ou por outra, o Santo Oficio foi das primeiras entidades a fazé-lo. Ja as aceitava de forma evidente em 1720%, ao passo que as Ordens Militares s6 0 teriio feito. a partir de 1745, sensivelmente®’. No Desembargo do Pago, com a investigagio disponivel, é possivel indicar que se praticavam jd na década de 1730. Pela conotagio de rigor que gozava o Santo Oficio em Portugal, € natural que se tivesse iniciado por esta instituigao este tipo de praticas, De outra forma, n&o teriam grande credibilidade e teria sido mais dificil introduzi-las. Os cuidados na selecgiio das testemunhas e no juramento que davam seriam equivalentes na Inquisigdo e nas Ordens Militares Quer uma, quer outta instituigio procuravam crist&os-velhos. De preferéncia homens, idosos e informados, sem parentesco com o inquirido. Neste particular, 0 rigor no se definia apenas pelo tipo de pessoas, mas também pelo modo como eram seleccionadas, Escolhé-las 0 comissario em segredo era essencial € obrigd-las a jurar como nao divulgariam o ocorrido e como depunham a verdade constitufam pontos fundamentais. Nas habilitagées de genere pata ingressar no clero era frequente serem previamente apontadas pelos pérocos das igrejas dos implicados, embota neste tipo de inquéritos pudessem existir variances de uma diocese para a outra, Era assim um sistema apesar de tudo mais flexivel. © Sobre‘a macéria, ver Fernanda Olival, Op. cit.. pp. 359-400, CE ANTT, Conselbo Geral do Sanio Ofitio, L* 35, fl. 139-1398 © CE Fernanda Olival, Op. cit, pp. 208-209 7 Fenanda Olival © facto de serem concedidas muitas dispensas de defeicos nas Ordens Militares seria um dado socialmente conhecido e influiria negativamente na imagem destas instituigdes. Na década de 1750, teria atingido 55,9% dos novos cavaleiros da Ordem de Ctisto, nao incluindo neste cOmputo as dispensas por “patria comum”, ou séja, a autorizagio para efectuar a habilitagao de alguém em Lisboa, em vez de a fazer na terra de origem, Era uma valor muito elevado, que atingiu o seu maximo no ano de 1754, quando 65,4% dos cavaleiros que entratam na Ordem tomarense tinham beneficiado de uma ou mais dispensas. Entre 1701 € 1777, 0 néimero dos dispensados nunca ficou abaixo dos 43,9% dos ingressos por decénios. Actesce que, 0 niimero de reprovados nas Ordens Militares portuguesas era reduzido. Em geral, optava-se por nao concluir © processo ou por lutar até ao fim pata provar a pureza e por vezes era possivel ser bem sucedido. Entendia-se que uma mercé que se destinava a premiar 0 candidato pelos seus servigos no devia acabar a deslustré-lo. Esta postura, favorecia a negociagio ¢ a Coroa fazia-o com frequéncia, sobretudo nos casos de mecanicas. Para remate, acontecia que em Portugal as dispensas ndo eram muito danosas da honra dos descendentes, com excepgio das dispensas de mdculas de sangue. Por outras palavras, o facto do pai ser dispensado por um defeito de mecinica, nao inviabilizava necessariamente o hdbito que o filho viesse a receber. Apenas nos casos de defeitos de sangue se tormava num meio de prova considerado quase inequivoco. Muito embora as Ordens Militares sob a tutela da Coroa tentassem esconder na esfera ptiblica os efeitos, ou melhor dito, as dispensas dos seus cavaleiros, nao o conseguiam fazer de modo eficaz. Em geral, a dispensa era indicada de modo camuflado na provisio de lancamento de hdbito, mas tais cldusulas tapidamente se tofmaram conhecidas, pelo que eram descodificadas pot muitos. Esta ilusio da aparéncia nio Rigor ¢interases: os estates de limpeca de sangue em Portugal resultava. Consistia no seguinte: depois da anexagdo perpétua das Ordens 4 Coroa (1551), s6 em 1592 se reservou & Santa Sé a dispensa dos problemas de sangue. No entanto, na Pratica, os reis continuaram a dispensar esse defeito, usando para isso a clausula “de minha certa ciéncia e poder absoluto”. Quando tal referencia aparece numa carta de habito até 1597, em geral estamos petante um cristao-novo. Entre a tiltima data apontada € a Restauragdo, mencionava-se apenas “vista a dispensa de Sua Santidade” nos documentos ptiblicos deste tipo de pretendentes. Com a chegada dos Bragangas ao poder, acabou-se com este tipo cléusulas ¢ indicava-se o defeito com todas as letras. A partir de 1680-1681, foi decidido acabar com este sistema. Quem tivesse fama de cristdo-novo devia provar ou nfo a sua limpeza. Se o conseguisse, obtinha uma ptovisio de verdadeira pureza. Contudo, a partir de 1680-1681, reintroduziram-se cldusulas para defeitos de mecAnica e ilegitimidade, o que fez com que se tornassem muito conhecidas. Tudo indica que no Santo Offcio também haveria um grande cuidado com a imagem veiculada, nomeadamente em aparentar rigor. E certo que h4 muita investigacio a fazer neste pelouro, mas podem desde ja apontar-se alguns indicios desse cultivo intencional do aperto. Em geral, optava-se quase sempre por efectuar segundas habilicagdes, quando alguma murmuragdo era levantada a algun familias. Deste forma, era posto em prética 0 principio que vigorou em Portugal durante muito tempo, segundo o qual a limpeza nunca passava a ter o estatuto de “matéria julgada”, de dado adquirido. Se necessério, 2 Inquisigao Parecia optar por expulsar elementos quando a pureza era posta em causa. Por volta de 1642, por exemplo, o Conselho Geral suprimiu o intérprete (tradutor, dit-se-ia hoje) da visita das naus estrangeiras de Settibal por ter casado com uma cristi-nova®, j4 % ANTT, ConselboxGeral, 1° 270, 41, 89. 179 Penanda Olival que familiares e oficiais do tribunal nao deviam contrair matriménio com gente de sangue repudiado. Além disso, haveria uma forte apropriacéo social deste rigor, implicito num conjunto de préticas que sio ainda mal conhecidas e que importaria estudar melhor. Eis alguns exemplos: por volta de 1757, Manuel Soates Aparicio, natural da Vila de Alegrete e morador em Portalegre, enviou uma peticio ao Conselho Geral do Santo Oficio®. Relatava como estando ele a ordenar-se de'clérigo, lhe fora posto impedimento. Consistia 0 problema numa bisavé, de nome Guiomar Gomes, filha legitima de Manuel Gomes e de Isabel Fernandes, baptizada na Vila de Campo Maior, onde veio a enviuvar de Joao Soares Aparicio. Dizia-se que fora presa pela Inquisigéo de Evora por ser crista- -nova, contudo, o que diligenciava Manuel Soares Aparicio era desfazer 0 equivoco. De acordo com as suas palavras, existira uma homénima, nascida na mesma Vila, mas filha de pais diferentes que, essa sim, fora penitenciada pelo Santo Oficio e do a sua avé. Para esta circunstancia, pretendia que lhe fosse passada uma certidao a esclarecer a homonimia e apontando qual delas fora efectivamente encarcerada. Nestes casos, cabia ao Conselho Geral pedir informagées aos trés tribunais do Reino e consoante os resultados mandava a Mesa implicada emitir o documento. Manuel Soares Aparicio té-lo-d recebido da Inquisigo de Evora, pois o promotor deste tribunal encontrara mos seus reportérios uma Guiomat Gomes, mas com outra filiacdo, pelo que podia atestar que a referida bisavé ndo constava dos ficheiros inquisitoriais. Seria um texto com este contetido de teot negativo que a parte interessada recebia. Neste caso, nao se apurou se tal homonimia fora real, ou se fora fabricada para resolver 0 impasse. Estas coincidéncias de nomes eram sempre muito éxploradas. No entanto, o que se pretende aqui realgar é CE ANT, Ingnisipao de Evora, LY46, 0, 279-284 180 Rigor e intoresses: os escatntas de linpeca de sangue em Portugal outro aspecto: esta nao era a unica petigao deste teor que pela mesma altura recebeu o Conselho Geral. Seriam pedidos relativamente comuns”. Outro exemplo afim: em 18 de Novembro de 1757, a Inquisic#o de Evora opinava sobre uma peti¢ao feita ao Conselho Getal por Lourengo Garcia, morador naquela cidade. Era esce Lourenco Garcia meio irm&o, pela via marerna, de Anténia Josefa Moreira, da Vila de Sousel, a qual saira penitenciada no Auto ptiblico da Fé realizado em Evora, pouco tempo antes, a 25 de Setembro desse ano. Segundo a peticio de Lourenco Garcia, o seu problema consistia no seguinte: Anténia Josefa Moreira surgira na lista impressa do Auto em apreco como tendo patte de crista-nova, mas sem que se indicasse por qual dos lados, se pelo paterno ou se pelo outto. Como esta ambiguidade da lista lhe era prejudicial, pedia que lhe fosse emitida certidio a indicar que a mie dele ¢ da meia irma era crista-velha. © tribunal de Evora confirmou ao Conselho Geral como a referida Anténia Josefa, presa a 22 de Abril de 1755 por culpas de judafsmo, declarara na sua genealogia que a sua mae casara duas vezes, nascendo do primeiro matriménio 0 peticiondrio; por diligéncias feitas durante este processo provara-se que Anténia Josefa era crista-nove apenas pelo lado paterno. Desta forma, a Inquisicio de Evora aceitava fazer a declara¢ao que o pretendente solicitava. Ao que tudo indica, neste caso, o pedido nfo teria em vista uma certiddéo para ser imediatamente entregue em qualquer diligéncia sobre pureza que estivesse a decorrer, mas sim uma actuagaéo preventiva. Solicitara~a pouco depois de ter visto as listas do auto da fé, para evitar dissabores fururos. As listas eram um poderoso instrumento de controlo social e um meio de 70 Cf. pata o mesmo ano, Ibidem, fl. 226-229, 261-265. 181 Penanda Otel prova, pelo que seria bom estar preparado para o desse e viesse. Em resumo, quando os estatutos de limpeza de sangue foram oficialmente abolidos, em 1773, j& pouco distinguiam pelas muitas excepgoes abertas. No entanto, até essa altura, e mesmo depois, terao perturbado o dia a dia ea honra de muitas pessoas. Como se fez notar, a limpeza nas Ordens Militares fora uma introdugio feita pela realeza com o intuico de valorizar as insignias. Daf que interessasse 4 Coroa controlar e¢ ter a possibilidade de abrir excepgdes. Quando assim acontecia, era um grande privilégio. No Santo Offcio, a realidade era muito outra. Fazer familiares e sessalvar defeitos estava nas mos de um_ particular (inquisider-mor), nomeado pela Coroa, ¢ do Conselho Geral, uma instituigéo que urge estudat. No caso portugués, a Inquisig2o era uma entidade que até meados do século XVIII estivera claramente vocacionada para perseguir cristdos-novos, dai que também nao os pudesse facilmente admitir no seio da rede que mantinha. Quando os deixava entrar, era mais cautelosa nas aparéncias do que as Ordens Militares. Acresce que a sociedade, por recear o Santo Officio e por considerar esta instituicgéo uma entidade que produzia frequentemente provas inequivocas de pertenga ao grupo dos cristdos-novos ou de outros envolvimentos desonrosas, facilmente a conotava com rigor. Bra quase uma atitude defensiva, A imagem referida seria também potenciada pela escassa contestago que se produzia em Portugal, quer contra este tribunal, quer contra os proprios estatutos. Quando se tenta comparar esta realidade com a da Coroa vizinha, as diferengas eram notdrias. Em suma, no Santo Officio, as quebras de rigor também existiram, mas tofnatam-se, provavelmente, menos evidentes porque complexos intetesses sociais, historicamente construidos, os camuflavam,

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