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TRES MODELOS NORMATIVOS DE DEMOCRACIA JORGEN HABERMAS Reportando-me aos trabalhos de Frank Michelman, professor de teoria do Estado da Universidade de Harvard (do qual so todas as citagdes no texto) vou comparar duas concepgées de politica. Trata-se da concepgio liberal e da concepgao republicana, na terminologia simplifi- cadora consagrada no debate norte-americano. E, partindo de uma critica ao tipo de renovacao do "republicanismo" que Michelman representa, de- senvolverei uma concepgio procedimental de politica deliberativa. REPUBLICANISMO E LIBERALISMO A diferenga decisiva entre essas duas concepgdes consiste no papel do processo democrdtico. Segundo a concepgdo liberal 0 processo democrético cumpre a tarefa de programar 0 Estado no interesse da socie- dade, entendendo-se o Estado como o aparato de administragdo publica e a sociedade como o sistema, estruturado em termos de uma economia de mercado, de relagdes entre pessoas privadas e do seu trabalho social. A politica (no sentido da formagao politica da vontade dos cidadaos) tem a fungao de agregar ¢ impor os interesses sociais privados perante um apara- to estatal especializado no emprego administrativo do poder politico para garantir fins coletivos. Segundo a concepgdo republicana a politica no se esgota nessa fungdo de mediag&o. Ela € um elemento constitutivo do * "Trés modelos de democracia. Sobre el concepto de una politica deliberativa”. El ojo del Hu- racan 4, 14/15, 1993, Texto da apresentagio de Habermas no seminério "Teoria da democra- cia", na Universidade de Valencia, 15/10/1991. Tradug6es de Gabriel Cohn ¢ Alvaro de Vita. 40 LUA NOVAN°36—95 processo de formagio da sociedade como um todo. A politica é entendida como uma forma de reflexdo de um complexo de vida ético (no sentido de Hegel). Ela constitui o meio em que os membros de comunidades so- lidarias, de cardter mais ou menos natural, se dio conta de sua dependén- cia recfproca, e, com vontade e consciéncia, levam adiante essas relagdes de reconhecimento reciproco em que se encontram, transformando-as em uma associagdo de portadores de direitos livres e iguais. Com isso, a arqui- tet6nica liberal do Estado e da sociedade sofre uma mudanga importante: junto & instancia de regulacio hierdrquica representada pela jurisdigao do Estado, e junto & instancia de regulacdo descentralizada representada pelo mercado (junto, portanto, ao poder administrativo e ao interesse proprio individual) surge a solidariedade e a orientag3o pelo bem comum como uma terceira fonte de integragdo social. Essa formagao horizontal da von- tade politica, orientada para o entendimento ou para um consenso al- cangado argumentativamente, deve mesmo gozar de primazia, seja gene- ticamente, seja de um ponto de vista normativo. Para a prdética da autodeterminagdo cidada supde-se uma base de sociedade civil autonoma, independente tanto da administragao publica como do interc4mbio priva- do, que protegeria a comunicagdo politica da absorgao pelo aparato estatal ‘ou da assimilagdo & estrutura do mercado. Na concepgio republicana o espaco puiblico e politico e a sociedade civil como sua infraestrutura assu- mem um significado estratégico. Eles tém a fungiio de garantir a forga in- tegradora e a autonomia da prdtica de entendimento entre os cidadaos. A esse desacoplamento entre comunicagao politica e sociedade econdmica corresponde um reacoplamento entre 0 poder administrativo e 0 poder co- municativo que emana da formagao da opiniao e da vontade politica. Assinalarei, tendo em vista a avaliagao do processo politico, al- gumas das conseqiiéncias desses enfoques rivais. 4a) Conceito de cidadao Em primeiro lugar, distinguem-se os respectivos conceitos de ci- dadio. De acordo com a concepgao liberal, status dos cidadiios define-se pelos direitos subjetivos que eles tém diante do Estado e dos demais ci- dadiios. Na condigdo de portadores de direitos subjetivos os cidadaos gozam da protegdo do Estado na medida em que se empenham em prol de seus inte- resses privados dentro dos limites estabelecidos pelas leis. Os direitos subje- tivos so direitos negativos que garantem um Ambito de escolha) dentro do qual os cidadaos estio livres de coagdes externas. Os direitos politicos tém a mesma estrutura. Eles dao aos cidadaos a possibilidade de fazer valer seus in- teresses privados, ao permitir que esses interesses possam agregar-se (por TRES MODELOS NORMATIVOS DE DEMOCRACIA 41 meio de eleiges e da composigao do parlamento e do governo) com outros interesses privados até que se forme uma vontade politica capaz de exercer uma efetiva influéncia sobre a administragdo. Dessa forma os cidadaos, em seu papel de integrantes da vida politica, podem controlar em que medida o poder do Estado se exerce no interesse deles préprios como pessoas privadas. Conforme a concepgio republicana, 0 status de cidadio nao é definido por esse critério de liberdades negativas das quais s6 se pode fa- zer uso como pessoa privada. Os direitos de cidadania, entre os quais se sobressaem os direitos de participagdo e de comunicagao polfticas, so melhor entendidos como liberdades positivas. Eles no garantem a liber- dade de coagées externas, mas sim a participago em uma prética comum, cujo exercicio & 0 que permite aos cidadaos se converterem no que querem ser: autores politicos responsdveis de uma comunidade de pessoas livres e iguais, Nessa medida o processo politico ndo serve somente para 0 con- trole da atividade do Estado por cidadaos que, no exercfcio de seus direi- tos privados e de suas liberdades pré-politicas, j4 alcangaram uma prévia au- tonomia. Também ndo cumpre uma fungdo de articulago entre o Estado ea sociedade, j4 que o poder administrativo nao representa poder originério al- gum, nao é um poder autéctone ou um dado. Esse poder na realidade pro- vém do poder comunicativamente gerado na prética da autodeterminagao dos cidadaos e se legitima na medida em que protege essa pratica por meio da institucionalizagao da liberdade publica. A justificagao da existéncia do Estado ndo se encontra primariamente na protegio de direitos subjetivos privados iguais, mas sim na garantia de um proceso inclusivo de formagao da opiniao e da vontade politicas em que cidadiios livres ¢ iguais se enten- dem acerca de que fins e normas correspondem ao interesse comum de to- dos. Dessa forma espera-se dos cidadaos republicans muito mais do que meramente orientarem-se por seus interesses privados. b) Conceito de direito ‘A polémica que tem por objeto 0 conceito cléssico de personali- dade juridica como portadora de direitos subjetivos encerra, no fundo, uma controvérsia sobre 0 préprio conceito de direito. Ao passo que para a con- cepcio liberal o sentido de uma ordem juridica estd em que essa ordem permite decidir em cada caso particular que direitos cabem aos individuos, esses direitos subjetivos, de acordo com a concep¢ao republicana, devem- se a uma ordem juridica objetiva que ao mesmo tempo possibilita e ga- rante a integridade de uma convivéncia com igualdade de direitos e auto- nomia, fundada no respeito miituo. No primeiro caso, a ordem jurfdica se constr6i a partir dos direitos subjetivos; no segundo, concede-se 0 primado 2 LUA NOVA N°36 —95 ao contetido objetivo que essa ordem juridica tem. E verdade que esses conceitos dicotomizados nao dio conta do conterido intersubjetivo de di- reitos que exigem.o respeito recfproco de direitos e deveres mediante relagées de reconhecimento de cardter simétrico. Mas é a concepgo repu- blicana que revela afinidade com um conceito de direito que outorga a in- tegridade do individuo e as suas liberdades subjetivas 0 mesmo peso atri- buido & integridade da comunidade cujos membros singulares tm como reconhecer-se reciprocamente, tanto como individuos quanto como inte- grantes dessa comunidade. Pois a concepgao republicana vincula a legiti- midade da lei ao procedimento democratico da génese dessa lei, estabele- cendo assim uma conexo interna entre a prética da autodeterminagao do Povo ¢ 0 império impessoal da lei. "Para os republicanos os direitos nao passam em tiltima instdncia de determinagdes da vontade politica prevale- cente, enquanto que para os liberais certos direitos esto sempre fundados numa 'lei superior’ de uma razdo ou revelacao transpolitica ... De um ponto de vista republicano, o objetivo de uma comunidade, o bem comum, subs- tancialmente consiste no sucesso de seu empenho politico por definir, es- tabelecer, efetivar e sustentar 0 conjunto de direitos (ou, menos tendencio- samente, leis) melhor ajustados as condigdes e costumes daquela comunidade, ao passo que num ponto de vista contrastantemente liberal os direitos baseados na lei superior ministram as estruturas transcendentais e ‘os limites ao poder indispensdveis para a operagdo mais satisfatéria possivel da busca pluralista de interesses diferentes e conflitantes”. Na tradigdo republicana, o direito de voto interpretado como liber- dade positiva converte-se em paradigma dos direitos em geral, ndo somente porque esse direito é condigao indispensdvel da autodeterminagao politica mas também porque nele tona-se explicito como a inclusdo em uma comuni- dade de portadores de direitos iguais vincula-se a capacidade dos individuos de realizar contribuigdes aut6nomase de assumir posicdes proprias. c) Processo politico Essas conceituagdes distintas do papel do cidadao e do direito exprimem um desacordo muito mais profundo sobre a natureza do proces- so politico. De acordo com o ponto de vista liberal a politica é essencial- mente uma luta por posigdes que assegurem a capacidade de dispor de poder administrative. O processo de formagdo da opinido e da vontade politicas na esfera ptiblica e no parlamento é determinado pela concorrén- cia entre atores coletivos, que agem estrategicamente com 0 objetivo de conservar ou adquirir posigées de poder. O éxito é medido pelo assenti- mento dos cidaddos a pessoas e programas, quantificado pelo numero de ‘TRES MODELOS NORMATIVOS DE DEMOCRACIA 4B votos obtidos em eleigdes. Por meio de seus votos os eleitores expressam suas preferéncias. Suas decis6es de voto tm a mesma estrutura que as es- colhas orientadas para 0 éxito dos participantes de um mercado. Esses vo- tos permitem a busca de posigdes de poder, que os partidos politicos dis- putam entre si adotando uma atitude semelhante de orientagio para o @xito. O input de votos e 0 output de poder respondem ao mesmo modelo de agdo estratégica: "Diversamente da deliberaco, a interagaio estratégica tem por fim a coordenagtio mais do que a cooperagdio. Em tiltima andlise, © que se exige das pessoas € que nao levem em conta nada que nao seja 0 interesse prprio. Seu meio é a barganha, no o argumento. Seus instru- mentos de persuasio ndo siio reivindicagdes ou razSes mas ofertas condi- cionais de servigos e abstencdo. Seja formalmente incorporado num voto ou num contrato ou simplesmente efetivado de modo informal em condu- tas sociais, um resultado estratégico nao representa um juizo coletivo da azo mas uma soma vetorial num campo de forgas”. Conforme a concepgao republicana a formagdo da opiniao e da vontade politicas no espago publico e no parlamento no obedece &s estru- turas dos processos de mercado mas tem suas estruturas especificas. Sio elas as estruturas de uma comunicagdo piiblica orientada para o entendi- mento. O paradigma da politica no sentido de uma autodeterminagao ci- dada nao € 0 do mercado e sim o do didlogo: "Uma concep¢io dialégica vé — ou talvez fosse 0 caso de dizer que idealiza — a politica como uma atividade normativa. Ela concebe a politica como uma contestagdo sobre questées de valores e nio meramente questées de preferéncias. Ela en- tende a politica como um processo de argumentaciio racional e nao exclu- sivamente de vontade, de persuasdo e nao exclusivamente de poder, orien- tado para a consecugdo de um acordo acerca de uma forma boa e justa, ou pelo menos aceit4vel, de ordenar aqueles aspectos da vida que se referem As relagdes sociais e A natureza social das pessoas". Desse ponto de vista estabelece-se uma diferenga estrutural entre 0 poder comunicativo, que surge da comunicagdo politica na forma de opinides majoritarias discursi- vamente formadas, ¢ 0 poder administrativo, préprio do aparato estatal. Também os partidos, que lutam por conquistas as posigdes estatais de po- der, se véem obrigados a submeter-se ao estilo deliberativo e ao sentido especifico dos discursos politicos. Precisamente por isso o embate de opi- nides sustentado no terreno da politica tem uma forga legitimadora, nao somente no sentido de uma autorizagao para perseguir posigdes de poder mas também no sentido de que 0 exercicio continuado do discurso politico tem forga vinculatéria sobre a forma de exercer o poder politico. O poder administrativo somente pode ser empregado com base nas politicas e nos limites das leis que surgem do processo democratico. 44 LUA NOVA N°36—95 UMA ALTERNATIVA Até aqui a comparagio restringiu-se aos dois modelos de demo- cracia que hoje, sobretudo nos Estados Unidos, dominam o debate entre os chamados "comunitaristas" e os "liberais". O modelo republicano tem van- tagens e desvantagens, A vantagem, vejo-a em que se atém ao sentido de- mocrata radical de uma auto-organizagio da sociedade por cidadaos uni- dos comunicativamente, e em nao fazer com que os fins coletivos sejam derivados somente de um arranjo entre interesses privados conflitantes. Vejo sua desvantagem no idealismo excessivo que hé em tornar o proces- so democratico dependente das virtudes de cidadaos orientados para o bem comum. Mas a politica ndo sé constitui somente, e nem mesmo pri- mariamente, de questdes relativas 4 autocompreensao ética dos grupos so- ciais. O erro consiste em um estreitamento ético dos discursos politicos. Certamente os discursos de autocompreensdo , aqueles em que Seus participantes tentam esclarecer-se acerca de como devem entender a si mesmos como membros de uma determinada nagdo, como membros de um municfpio ou de um Estado ou como habitantes de uma determinada regido, acerca de que tradigdes devem ter continuidade, acerca de como devem tratar-se mutuamente, de como tratar as minorias e os grupos mar- ginais, acerca do tipo de sociedade em que querem viver, também consti- tuem uma parte importante da politica. Mas, em situagdes de pluralismo cultural e social, por trés das metas politicamente relevantes muitas vezes escondem-se interesses e orientagdes valorativas que de modo algum po- dem-se Considerar constitutivos da identidade da comunidade em seu con- junto, isto €, de uma inteira forma de vida compartilhada intersubjetiva- mente. Esses interesses e orientagGes valorativas, que entram em conflito sem perspectiva de consenso, necessitam de um equilibrio ou de um com- promisso que nao é possfvel alcancar-se mediante discursos éticos, ainda que os resultados se sujeitassem & condigdo de ndo transgredir os valores basicos consensuais de uma cultura. Esse equilibrio de interesses se efetua em forma de compromis- sos entre partidos estribados em potenciais de poder e em potenciais de sango. As negociagées desse tipo pressupdem, certamente, a disponibili- dade para a cooperacdo; a saber, a disposi¢So de, respeitando as regras do jogo, chegar a resultados que possam ser aceitos por todas as partes, ainda que por razdes distintas. Mas essa obtengdo de compromissos ndo se efe- tua na forma de um discursos racional que neutralize o poder e exclua a ago estratégica. A despeito disso, a equidade dos compromissos € medida por condigSes e procedimentos que, por sua vez, necessitam de uma justi- ficagdo racional (normativa) com respeito a se so justos ou nao. Diferen- ‘TRES MODELOS NORMATIVOS DE DEMOCRACTA. 45 temente das questdes éticas, as questdes de justiga ndo esto por si mes- mas referidas a uma determinada coletividade. Pois, para ser legitimo, 0 direito politicamente estabelecido tem pelo menos de guardar conformi- dade com prinefpios morais que pretendem ter validade geral para além de uma comunidade juridica concreta. Oconceito de politica deliberativa somente exige uma referéncia empirica quando levamos em conta a pluralidade de formas de comuni- cago nas quais uma vontade comum pode se formar, nao somente pela via de uma autocompreensdo ética mas também mediante 0 equilfbrio de inte- resses e compromissos, mediante a escolha racional de meios com respeito um fim, mediante justificagdes morais e exames de coeréncia jurfdicos. Assim, esses dois tipos de politica que Michelman contrapée em termos tpico-ideais podem entrelagar-se de forma racional. A politica dialégica e a politica instrumental podem entrelagar-se no campo das deliberagdes, quando as correspondentes formas de comunicagao estao suficientemente institucionalizadas. Portanto, tudo gira em torno das condigdes de comuni- cago e dos procedimentos que outorgam & formacao institucionalizada da opinido e da vontade politicas sua forga legitimadora. terceiro modelo de democracia, que eu gostaria de defender, apia-se precisamente nas condigdes de comunicagdo sob as quais 0 processo politico pode ter a seu favor a presungao de gerar resultados ra- cionais, porque nele o modo ¢ 0 estilo da politica deliberativa realizam-se em toda a sua amplitude. OS MODELOS COMPARADOS Se convertemos o modelo procedimental de politica deliberativa no niicleo normativo de uma teoria da democracia produzem-se diferencas tanto com respeito & concepgao republicana do Estado como uma comuni- dade ética quanto com respeito & concepgao liberal do Estado como prote- tor de uma sociedade centrada na economia. Inicio a comparagao dos trés modelos pela dimensio da politica de que nos ocupamos até agora, a sa- ber: 0 processo de formagdo democratica da opinio e da vontade comum, que se traduz em eleigdes gerais e em decisdes parlamentares. Conforme a concepgo liberal esse processo se dé na forma de compromissos entre interesses. De acordo com a concepgao republicana, a formagio democrética da vontade comum realiza-se na forma de uma au- tocompreensiio ética. Conforme esse modelo a deliberagdo, no que se re- fere ao seu contetido, pode apoiar-se num consenso de fundo baseado no fato de que os cidaddos partilham de uma mesma cultura. Esse consenso 46 LUA NOVA N° 3695 Tenova-se na rememoragio ritual do ato de fundagao republicana. A teoria do discurso toma elementos de ambas as partes e os integra no conceito de um procedimento ideal de deliberagao e de tomada de decisdes. Esse pro- cedimento democrtico estabelece uma conexio interna entre conside- rages pragméticas, compromissos, discursos de autocompreensio e dis- cursos relativos a questées de justiga, e fundamenta a suposi¢&io de que sob tais condigdes obtém-se resultados racionais e eqilitativos. Conforme essa concepgdo a razio pratica se afastaria dos direitos universais do ho- mem (liberalismo) ou da eticidade concreta de uma determinada comuni. dade (comunitarismo) para se situar naquelas normas de discurso e de for- mas de argumentag4o que retiram seu contetido normativo do fundamento de validade da ago orientada para o entendimento, e, em ultima instncia, portanto, da propria estrutura da comunicagiio lingiifstica. Com essas descrigdes do processo democratico estabelecem-se os marcos de uma concepgao normativa do Estado e da sociedade. Pressupoe- se téio-somente uma administragdo ptiblica, do tipo que se formou nos inicios do mundo moderno com 0 sistema de Estados europeu e que se desenvolveu ‘mediante um entrelagamento funcional com a economia capitalista. Segundo a concepgao republicana, a formagao da opiniao e da vontade politicas dos cidadaos consiste no meio pelo qual se constitui a so- ciedade como um todo politicamente organizado. A sociedade centra-se no Estado; pois na pratica da autodeterminagao politica dos cidadaos a comuni- dade torna-se consciente de si como totalidade e, mediante a vontade coleti- va dos cidaddos, age sobre si mesma. A democracia é sin6nimo de auto- organizaco politica da sociedade. Disso resulta uma compreensdo da politica que se volta polemicamente contra o aparato estatal. Nos escritos politicos de Hannah Arendt pode-se ver bem a investida da argumentacao republicana contra a cidadania privatista de uma populagao despolitizada e contra a criagdo de legitimagio por parte de partidos cuja referéncia priméria é o Estado. Seria preciso revitalizar a esfera da opiniao publica até © ponto em que uma cidadania regenerada pudesse (re)apropriar-se, na for- ma da autogestdo descentralizada, do poder burocraticamente autonomiza- do do Estado. Segundo a concepgao liberal, essa separagdo do aparato estatal com respeito a sociedade nao pode ser eliminada, mas no m4ximo trans- posta pelo processo democratic. As débeis conotacées normativas com- portadas pela idéia de um equilfbrio de poder e de interesses necessitam, em todo caso, do, complemento representado pelo Estado de direito. A for- magao democratica da vontade comum doe cidadao s preocupados somente com seu préprio interesse, que 0 modelo liberal concebe em termos minima- listas, somente pode ser um elemento dentro de uma constituigao que deve ‘TRES MODELOS NORMATIVOS DE DEMOCRACIA 47 disciplinar o poder do Estado mediante dispositivos normativos como os di- reitos fundamentais, a separagdo de poderes e a vinculagdo da adminis- tragdo a lei, Por meio da competicao entre os partidos politicos, de uma parte, e entre o governo e a oposigao, de outra, essa constituigao deve fazer o Estado levar adequadamente em conta os interesses sociais e as orien- tages valorativas da sociedade. Essa visio da politica centrada no Estado pode dispensar uma suposigdo pouco realista, a saber: a de que os cidadaos em conjunto sao capazes de ago coletiva. Ela nao se orienta por um input de uma formagao racional da vontade politica mas sim por um output fa- voravel no balango da atividade estatal. A énfase da argumentacdo liberal tem por alvo o potencial perturbador de um poder do Estado que pode estor- var e desarticular o intercambio social aut6nomo entre pessoas privadas. O eixo do modelo liberal ndo é a autodeterminagao democratica dos cidaddos deliberantes mas sim a normatizagao (em termos de Estado de Direito) de uma sociedade centrada na economia que, mediante a satisfagdo das expec- tativas de felicidade de pessoas privadas empreendedoras, deve garantir um bem comum entendido, no fundo, de modo apolitico. A teoria do discurso, que associa ao processo democratico cono- tages normativas mais fortes do que o modelo liberal, porém mais fracas do que o modelo republicano, toma elementos de ambos e os articula de uma forma nova e distinta. Coincidindo com 0 modelo republicano, ela concede um lugar central ao processo politico de formagao da opinido e da vontade comum, mas sem entender como algo secundério a estruturagdo em termos de Estado de Direito. Em vez disso, a teoria do discurso en- tende os direitos fundamentais e os princfpios do Estado de Direito como uma resposta conseqiiente a questo de como institucionalizar os exigentes pressupostos comunicativos do processo democratico. A teoria do discurso nfo faz a realizagdo de uma politica deliberativa depender de uma cidada- nia coletivamente capaz de agdio, mas sim da institucionalizago dos cor- respondentes procedimentos e pressupostos comunicativos. Essa teoria j4 nao opera com 0 conceito de um todo social centrado no Estado, que pu- déssemos representar como um sujeito em grande escala com ago voltada para metas. Ela tampouco localiza esse todo em um sistema de normas constitucionais que regulem o equilibrio de poder e 0 compromisso de in- teresses de modo inconsciente e mais ou menos automético, conforme o modelo da troca mercantil. Ela dispensa inteiramente as figuras de pensa- mento da filosofia da consciéncia, inclinadas a atribuir a pratica da autode- terminagao dos cidadaos a um sujeito social global ou entao a referir 0 im- pério impessoal das leis a sujeitos particulares competidores entre si. No primeiro caso a cidadania € considerada como um ator coletivo, que reflete © todo e age por ele; no segundo caso, os atores privados agem como 48 LUA NOVA N°36—95 varidveis independentes em processos de poder que se desenvolvem de forma cega, porque para além dos atos de escolha individual nao podem existir decis6es coletivas tomadas de forma consciente, exceto em um sen- tido meramente metaférico. A teoria do discurso, diferentemente, conta com a intersubjetivi- dade de ordem superior de processos de entendimento que se realizam na forma institucionalizada das deliberagdes, nas instituigdes parlamentares ou na rede de comunicag&io dos espagos piblicos polfticos. Essas comuni- cages desprovidas de sujeito, ou que no cabe atribuir a nenhum sujeito global, constituem Ambitos nos quais pode dar-se uma formagdo mais ou menos racional da opiniéo e da vontade acerca de temas relevantes para a sociedade como um todo e acerca das matérias que precisam de regulacio. A geracdo informal da opinidio desemboca em decisdes eleitorais institucio- nalizadas e em decis6es legislativas por meio das quais o poder gerado co- municativamente se transforma em poder passivel de ser empregado em termos administrativos. Assim como no modelo liberal, também na teoria do discurso os limites entre o Estado e a sociedade sao respeitados; mas aqui a sociedade civil, como a base social de espagos ptiblicos auténomos, distingue-se tanto do sistema de ago econémica quanto da administragio piiblica, E dessa visio da democracia segue-se normativamente a exigéncia de um deslocamento do centro de gravidade da relagao entre os recursos representados pelo dinheiro, pelo poder administrativo e pela solidariedade, dos quais as sociedades modernas se valem para satisfazer sua necessidade de integracdo e de regulacdo. As implicagGes normativas saltam A vista: a forga da integraco social que tem a solidariedade social, nao obstante nao mais poder ser extrafda somente das fontes da aco comunicativa, deve poder desenvolver-se com base em amplamente diversificados espagos publicos auténomos e em procedimentos de formagao democratica da opi nido e da vontade politicas, institucionalizadas em termos de Estado de D: reito; e, com base no meio do Direito, deve ser capaz de afirmar-se também contra os outros dois poderes —o dinheiro e 0 poder administrativo. ADENDO EDITORIAL Ao publicar o texto da conferéncia feita por Habermas em 1991 em seminério sobre a teoria da democracia na Espanha (que traduzimos da excelente revista venezuelana El Ojo del Huracdn, com revisdo e peque- nas adaptagdes no confronto com as passagens em que 0 texto foi incorpo- rado no livro Faktizitait und Geltung) trazemos ao debate uma pega impor- tante da fase mais recente do programa de pesquisa habermasiano. “TRES MODELOS NORMATIVOS DE DEMOCRACTA 49 Esta fase mais recente tem como expressdo mais acabada 0 seu livro de 1992 sobre a efetividade e a validade (ou a positividade e a nor- matividade) do Direito. Trata-se de Faktizitdét und Geltung, que se apresen- ta no subtitulo como "contribuigées & teoria do discurso aplicada ao Direi- to e ao Estado de direito democrdtico". Demonstrando a profunda consisténcia de seu programa, Habermas enlaga nesse livro a questdo que 0 levou a produzir a teoria da ago comunicativa — a da constituigdo e, so- bretudo, das condigdes de desempenho de agentes comunicativamente competentes — com a do seu primeiro tema de pesquisa, em que, bem vis- tas as coisas, tudo jd estava contido — 0 da constituigao e das condigdes de operagdo da esfera publica. Isso 0 leva, para além dos agentes comunicati- vamente competentes, a tratar dos agentes portadores de direitos e capazes de aciond-los no espaco publico, como cidad4os — politicamente, portanto. A reflexdo sobre a fundamentagio discursiva de quaisquer reivindicagdes de validade concentra-se agora no que realmente importa a Habermas: a ar- ticulacdo entre a autonomia privada, baseada em direitos racionalmente fun- dados.e portanto universalizveis, e a autonomia publica, apoiada em pro- cedimentos democraticos. Sobre a democracia, sustenta Habermas, repousa toda a carga da legitimagao. E ela que se volta ao mesmo tempo para as ga- rantias das liberdades dos cidadaos privados e para as condigGes nas quais eles se associam nos processos discursivos orientadores de agdes do sistema politico e legitimadores dos seus resultados, sempre que racionais (ou seja, sustentaveis no debate publico). Para além dos seus temas centrais da ra- cionalizagio e da legitimagdo, Habermas é levado nesta sua fase a enfrentar, pela via do exame da tensdo entre efetividade e validade no Direito, a questo da institucionalizagdo. Para ele a instancia geradora de poder legitimo € a esfera publica, a dimensado da sociedade onde se dé o in- tercambio discursivo. E esse poder comunicativamente gerado tem prima- zia sobre o poder administrativamente gerado do Estado, nao s6 normativa- mente mas também porque o segundo deriva do primeiro (dificil nao lembrar, aqui, a relago do mesmo tipo entre a ago comunicativa, voltada para 0 entendimento, e a aciio estratégica, voltada para 0 éxito). Vé-se, as- sim, o dificil problema que ele enfrenta. Primeiro, porque o poder adminis- trativo no sistema politico, ainda que em condig6es democraticas derive do poder comunicativo na sociedade civil, é 0 unico capaz de se traduzir em agées efetivas; 0 poder comunicativo nao pode ir além de detectar proble- mas, influir, estabelecer diretrizes (daf a necessidade de vincular ambos si). Depois, porque se trata de arraigar as leis em procedimentos de vali- dagdo racional ¢, ao mesmo tempo, consider4-las como suportes institucio- nais (¢ portanto jé dispontveis) das liberdades sem as quais essa validacio, que depende da comunicagao aberta entre cidadaos livres e iguais, nao tem 50 LUA NOVA N°36— 95 como se efetivar. Ao enfrentar © complexo de questes assim suscitados Habermas tem oportunidade de evidenciar dois tragos do seu enfoque centrado na ago comunicativa que no seu entender nem sempre foram adequadamente percebidos: a sua capacidade de dar conta da dimensfo institucional e a sua impregnagdo pluralista. Estdo em jogo as condigées de garantia das liberdades em so- ciedades em que um subsistema especializado — 0 sistema politico — produz decisées com poder obrigatério para todos. A questo passa a ser, portanto, a da validag%o racional dos atos do sistema politico. Pois a operagao do sistema politico, centrado no Estado, traduz-se em atos com efeitos de fato, mediante decis6es, enquanto a esfera publica da socie- dade civil produz opinides com efeitos normativos (vontades) mediante argumentos (mais precisamente, discursos). De acordo com a teoria do discurso que propée, escreve Habermas (em Faktizitat und Geltung, p. 364) "os procedimentos e pressupostos comunicativos da formagao de- mocritica da opinido e da vontade politica funcionam como reservatérios importantes para a racionalizagdo discursiva de decisées de um governo e de uma administragao vinculados ao direito e & lei. Racionalizagdo sig- nifica mais que mera legitimagao, porém menos do que constituigéo do poder. O poder administrativamente disponfvel modifica sua configu ragéo na medida em que se mantenha interativamente vinculado a for- magdo democrética da opinifio e da vontade, que no somente controla retrospectivamente o desempenho do poder politico como em certa medi- da também 0 programa. Nao obstante isso, s6 0 sistema politico pode ‘agir’. Trata-se de um subsistema especializado em decisdes coletiva- mente obrigatérias, enquanto as estruturas comunicativas da esfera pUblica formam uma extensa rede de sensores, que reagem a pressées na sociedade global e estimulam opinides influentes. A opinido publica con- vertida em poder comunicativo por procedimentos democréticos nao pode ‘reinar' ela propria, mas apenas dirigir 0 uso do poder administrati- vo em certas diregdes". Para que a positividade nfo se autonomize em face da norma, nem o Estado da sociedade, 0 elo a ser procurado € 0 do Direito, como esfera institucional singular, a meio caminho entra a moral e a politica, que produz a sintese das garantias e das obrigagdes na forma das leis. E este portanto o objeto que naturalmente se apresenta a0 exame de Habermas, na seqiiéncia do seu programa de pesquisa. Quando da segunda edigiio de Faktizitdt und Geltung Habermas aduziu um posfécio, no qual busca esclarecer melhor alguns pontos capitais da obra. Algumas passagens desse texto podem ser de valia para a leitura da conferéncia que estamos publicando (especialmente se considerarmos que ela se compée de material que seria incorporado ao livro, na terceira sego ‘TRES MODELOS NORMATIVOS DE DEMOCRACTA 51 do capitulo 6). A seguir, portanto, excertos desse escrito mais recente de Habermas. (G.C.) EFETIVIDADE E VALIDADE “O argumento desenvolvido em Faktizitdit und Geltung visa es- sencialmente demonstrar que h4 uma relacio conceitual intrinseca e nfo simplesmente uma associagao historicamente contingente entre o império da lei e a democracia. (...) Essa relagéo € também evidente na dialética en- tre a igualdade legal e de fato, dialética essa que primeiro suscitou o para- digma do bem-estar social em resposta A concepgdo liberal da lei e que hoje recomenda uma autoconcep¢ao procedimental da democracia consti- tucional. Sobre 0 processo democrdtico pesa toda a carga da legitimagio. Cabe a ele assegurar simultaneamente a autonomia privada e publica dos sujeitos jurfdicos. Pois direitos privados individuais nao podem nem mes- mo ser formulados adequadamente, e muito menos implementados politi- camente, quando aqueles por eles afetados nfo se envolveram previamente em discussées ptiblicas para esclarecer quais tracos sfo relevantes para tra- tar casos tipicos como semelhantes ou diferentes, e em seguida tenham mobilizado 0 poder comunicativo para a consideraco da suas necessi- dades recém-interpretadas. Dessa forma a autoconcepgio procedimental da lei privilegia os pressupostos comunicativos e as condic6es procedi- mentais da formagao democrdtica da opinido e da vontade como a tnica fonte de legitimagio. A concep¢do procedimental € tao incompativel com a idéia platénica de que a lei positiva pode retirar sua legitimidade de uma lei mais elevada quanto com a negagao positivista de qualquer legitimi- dade para além da contingéncia das decisées legislativas".(...) "Uma prética fundadora de constituigio requer mais do que um princfpio discursivo pelo qual os cidadaos possam julgar se a lei que produ- zem € legitima. As formas de comunicagao das quais se espera que ensejem a formacao de uma vontade polftica racional mediante o discurso precisam elas préprias ser legalmente institucionalizadas. Ao assumir uma forma le- gal o principio do discurso transforma-se numa principio de democracia. Para tanto, contudo, o cddigo legal como tal precisa estar disponivel, ¢ 0 es- tabelecimento desse c6digo requer a criagio do status de possfveis persona- lidades jurfdicas, isto é, de pessoas pertencentes a uma associagdo vo- luntéria de portadores de direitos individuais acion4veis. Sem essa garantia de autonomia privada algo como a lei positiva no tem como existir. Con- seqiientemente, sem 0s direitos cléssicos de liberdade que asseguram a au- 52 LUA NOVA N°36—95 tonomia privada das personalidades juridicas tampouco existe o meio para institucionalizar legalmente aquelas condigGes sob as quais os cidadaos pri- meiro podem fazer uso da sua autonomia cfvica". (...) “Fazer justiga tanto A autodeterminagdo democratica quanto ao impétio da lei requer uma reconstrugdo em duas etapas. Comega-se com a sociabilidade horizontal de cidados que, reconhecendo-se uns aos outros como iguais, concedem-se mutuamente direitos. Somente nesse ponto che- ga-se ao disciplinamento constitucional do poder pressuposto pelo meio da lei. Ao proceder em dois passos vé-se que os direitos liberais que protegem 0 individuo contra 0 aparato do Estado com o seu monopélio da violéncia no sfio de modo algum origindrios, mas emergem de uma transformagao de liberdades individuais que de inicio eram reciprocamente concedidas" . (...) "O direito positivo nao mais pode derivar sua legimidade de uma lei moral mais elevada, mas apenas de uma procedimento presumivelmente racional de formagao de opinido e vontade. Usando um enfoque baseado na teoria do discurso, analisei mais de perto esse procedimento democrético que confere forga legitimadora A produgio de leis sob condigdes de pluralis- mo social e ideolégico. Ao fazé-lo parti de um principio (...) segundo 0 qual as tinicas regulagdes e modos de agir que podem reivindicar legitimidade so aquelas as quais todos aqueles suscetiveis de ser afetados poderiam as- sentir como participantes de discursos racionais. A luz desse 'Princfpio do Discurso’ os cidadaos testam quais direitos deveriam conceder-se mutua- mente. Enuanto sujeitos legais eles tém que basear essa pratica de autole- gislagdo no prdprio meio da lei; eles precisam institucionalizar legalmente aqueles pressupostos e procedimentos comunicativos de formagao de opi- nido e vontade politicas nos quais se aplica 0 principio do discurso. Assim 0 estabelecimento do cédigo legal, que se dé amparado no direito universal a liberdades individuais iguais, tem que ser completado mediante direitos co- municativos e participativos que garantam oportunidades iguais para o uso ptiblico de liberdades comunicativas. Dessa forma o Principio do Discurso adquire a forma legal de um principio democratico”. (...) "A meu juizo o Principio do Discurso deve ser situado num nivel de abstragdo que € neutro relativamente 2 distingao entre moralidade e direi- to. Por um lado supde-se que ele tenha suficiente conteddo normativo para avaliar imparcialmente normas de agiio como tais; por outro lado, ele néo pode coincidir com o principio moral, porque s6 subseqilentemente se 4 sua diferenciagao no principio moral e no principio democratico. E impor- tante notar que os dois conceitos-chave na f6rmula proposta para o “TRES MODELOS NORMATIVOS DE DEMOCRACIA 3 Principio do Discurso permanecem indeterminados: 'Sdo vélidas somente aquelas normas de agdo as quais todas as pessoas possivelmente afetadas poderiam assentir como participantes de discursos racionais’. O principio moral ndo especifica o tipo de norma, enquanto o princfpio democratico nao especifica as formas de argumentagdo (e de negociacao). Isso explica duas assimetrias. Ao passo que os discursos morais so especializados para um nico tipo de razo, e as normas morais s4o dotadas de um correspondente modo de normatividade que € nitidamente focalizado, a legitimidade de normas legais estriba numa ampla gama de raz6es, incluindo raz6es morais. Em segundo lugar, enquanto o princfpio moral, como uma regra de argu- mentacio, serve exclusivamente & formagao de jufzos, o principio da demo- cracia estrutura nfo apenas o conhecimento mas, a0 mesmo tempo, a pratica institucional dos cidadaos." (...) "O direito nao é um sistema narcisisticamente fechado sobre si proprio, mas é alimentado pela vida ética democratica de cidaddos emanci- pados e por uma cultura politica liberal que Ihe € afim. Isso torna-se claro quando tentamos explicar o fato paradoxal de que o direito legitimo pode provir da mera legalidade. O procedimento democratico de elaboragio le- gal apoia-se no uso por cidadios de seus direitos comunicativos e partici- pativos também com vistas ao bem comum — uma atitude que pode ser reclamada politicamente mas no pode ser compelida legalmente. Como todos os direitos individuais, a forma dos direitos politicos também é de tal ordem é que eles meramente propiciam esferas de livre escolha e ape- nas fazem do comportamento legal um dever. A despeito dessa estrutura, contudo, eles somente podem dar acesso as fontes de legitimagio na for- macio discursiva da opinido e da vontade quando os cidadaos nao usam suas liberdades comunicativas exclusivamente como liberdades indivi- duais na busca de interesses pessoais mas, ao invés, as usam como liber- dades comunicativas para a propésito de um ‘uso piiblico da razo’." (...) "A paradoxal conquista do direito consiste ento no fato de que ele reduz o conflito potencial entre liberdades individuais mediante normas que apenas so coercitivas na medida em que sejam reconhecidas como legitimas sobre a frdgil base de liberdades comunicativas. Uma forga que quanto ao mais se opde & forga da comunicagdo, com seu carter social- mente integrador, converte-se assim no préprio meio da integracao social. Desse modo a integragdo social assume uma feigdo peculiarmente reflexiva: ao enfrentar sua necessidade de legitimagdo com a ajuda da forga produtiva da comunicagao, o direito tira vantagem de um risco permanente de dissen- so para fomentar discursos piblicos legalmente institucionalizados.” (...) 198 LUA NOVA N°36— 95 TRES MODELOS NORMATIVOS DE DEMOCRACIA JORGEN HABERMAS Os modelos de democracia propostos pelo liberalismo e pelo re- publicanismo comunitarista sto criticados a partir da perspectiva da politica deliberativa tal como concebida pela teoria do discurso. Associan- do ao processo democrético conotagdes normativas mais fortes do que 0 modelo liberal, porém mais fracas do que o modelo republicano, a teoria do discurso articula elementos de ambas numa forma nova. THREE NORMATIVE MODELS OF DEMOCRACY JURGEN HABERMAS The liberal and republican models of democracy are criticized ‘from the standpoint of deliberative politics as conceived by the discourse theory. The normative implications of this model of deliberative politics are sironger than in the liberal model but weaker than in the republican one. Elements of both are articulated by it into anew form.

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