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vf a BRASHRD | BRASILEIRO Processo de um Racismo Mascarado um Racismo Mascarado 4 Mt ihe “a #30) .4510981 PB N}3g “0 primeiro revolucionirio sera o anunciae dor di alma negra Com ext Tre shri Abdiag do. Nasenento seu "Prd Ae ramos para negros. Neste vo de agora. © Glonal bras, A hipocisa, bis, dos sist fnas bragos do Ocdet,espectlmente aque Tes que se inconporiram na maldigto dere Store dis lagrimas do negro, O sang. em to Sov ck eanidos, o satger proprnmonie die erramado no copistulo-e na mort, © bide gular © abomindvel de rsdenglo descus pro to, para a invesigagdo Gontfica eo julgamen- to dh conseineia moral, tapar com a pencira de Fealidade do genociio dos neros no Brasil E 4 paler gonoetdio va agut empregad com tod su carga de horr ‘Genooiio. A-palavra nao’ antiga, € n fis. Parece que foi sunhada durante a Sez mdi Guerra Mundial, para deine he tombe do povo judes sob nazismo. Fat res Prestigio mundial do poxo de Isa, pata {12004400 mies, astidgs durante see | ss01000748 WO Il “0 primeira revaluct dos os sentidas, 0 sar erramado no espist. hts veias da raga bra Ama conseitneis se Lomasse conheci do impunemente « ras religides, out gros, especialment ‘de 200 3 400 mills como as irvores d destban ilo hut eados de O GENOCIDIO DO NEGRO BRASILEIRO PROCESSO DE UM RACISMO MASCARADO a Copyright © by Abdias do Nascimento, 1978 Capa: Jayme Leo | Supervisio grifica: Luiz Carlos Rodrigues Calazans fT He CLASS, 294 Livros do mesmo autor: gro-brasileiro, Teatro Experimental do Negro: Rio de Janei- Racial Democracy” in Brazil: Myth or Reality? edig&o em inglés Rua André Cavalcanti, 86, A primera edigio da versio em inglés dese livro, “Racial Democracy” in tri: Myth or Reality. eita por Elisa Larkin do Nascimento, & do Departamento de Hie, 1977-A segunda ed | Llinguas e Literaturas Africanas da Universidade de Ty je —___ ‘low inglés, revista eaumentads, ol publicada por Sketch Publishing Co, Ibadan, Impresso no Brasil 1977. Esta € 4 primeira edigdo do original em lingua brasileica, Copyright © 1978 Printed i Brazil | by Anais do Riseimento, Proximas publicagdes ‘Third World Press: Soritlege (Black Mystery) ~ edi Chicago, 1978 Afro-Brazitian Theater (An Anthology of Seven Plays) ~ edigao em inglés de Dramas para negros e prélogo para brancas Mixture or Massacre? Essays in the Genocide of Black Brazil ~ uma colegio de discursos e ensaios em inglés, traduzidos por Elisa Larkin do Nascimento, 1978, IN MEMORIAM PIO ZIRIMU, diretor do Coléquio do Festae 77, esere- veu uma carta ao autor deste livro, datada em 15 de de- zembro de 1976, da qual transcrevemos abaixo os se- guintes excertos: Lamento que vocé nao tenha recebido antes noti- cias minhas. Eu s6 tenho de confessar que falhei. Nao fui capaz de conseguir que seu trabalho fos se aceito pelo Estabelecimento. (...) Estou con- vencido que o material deve ser publicado. (...) Espero que as forgas da historia ainda trabalha- ro, continuardo a trabalhar, para trazer & luz 0 que vocé téo claramente disse em seu trabalho. Até o instante de sua morte a 30 de dezembro de 1976, Pio Zirimu dedicou-se completamente ao esforgo de transformar 0 Coléquio num evento cultural de ver- dadeira significagao histdrica para Africa e para os ne- gros de todo o mundo. A realizagao de tal objetivo éle sacrificou sua vida. Nos deixou um legado de trabalho corajoso e honesto, um raro modelo de integridade pes- soal. O professor Zirimu merece nosso respeito € pro- funda gratidao, AN. para Florestan Fernandes exemplo de integridade cientifica € coragem humana GENOCIDIO ~ geno-cidio © uso de medidas deliberadas ¢ sistemiticas (como mor- le, injiria corporal ¢ mental, impossiveis condigdes de vida, prevengiio de nascimentos), calculadas para a ex- lerminagao de um grupo racial, politico ou cultural, ou para destruir a lingua, a religito ou a cultura de um gru- po. (Webster's Third New Ine ternational Dictionary of the English Language, Mas- sachussetts, 1967,) GENOCIDIO - geno-cidio Genocidio s.m. (neol,) Recusa do direito de existéncia a grupos hu- ‘manos inteiros, pela exterminagio de seus individuos, desintegra- cio de suas instituigdes politicas, sociais, culturais, inguisticas e de seus sentimentos nacionais ¢ religiosos, Ex.: perseguigio hitlerista aos judeus, segregagao racial, ete Dicionario Escolar do Professor Organizado por Francisco da Silveira Bueno Ministério da Educagdo e Cultura, Brasilia, 1963, p. $80. SUMARIO Prefiicio: Florestan Fernandes... Prefiicio & edigdo nigeriana: Wole Soyinka Prdlogo: a historia de uma rejeigio 1. Introdugio ....... a 11, Escravidio: o mito do senhor benevolent IIL, Exploragao sexual da mulher afticana IV. O mito do “afticano livre oa ocsuarecsisecs VO embranquecimento da raga: uma estraiégia de penocidio | VI. Discussio racial: proibida VII. Diseriminacao: realidude racial. VIII. Imagem racial internacional IX. © embranquecimento da cultura: uma outra estratégia de BeMOCIMIO seen Tis 93 X. A perseguida persisténcia da cultura alticana no ior XI. Sincretismo ou folclorizacdo?..... 108 XII. A bastardizacdo da cultura alto-brasleira sia XII. A estética da brancura nos artistas negros acuiturados.. 123 XIV, Uma reagio contra o embranquecimento: © Teatro Experimental do Negro 129 XY. Conelusio . . 3 2136 Referéncias é 142 Pocumento |: Relatorio Minoritirio: Colquio Festac 77... 149. Docamento Il. Teatro negro-brasileiro: uma auséncia conspicia 159 Pocumento It: Arte afro-brasileira: um espirito libertador Tl Prefacio So tantos e téo profindos os lacos que me prenden a Abdias do Nascimento, que enfrenio um compreensivel acanhamento em apre- sentar esta obra ao piblico brasileiro. Estanos no mesmo barco e dando 0 mesmo cambate ~ néo de hoje, mias hd anos. Persistimos por tuna quesida de carver e dle formagdo politica. Ese algo nos separa, & 0 wulto de sua contribuicdo, comparada coma minha. Eu fui acusado de idenuificacdo morale psicolégica com o negro. Ele é 6 negro mili- tante que no pode ser acusado por ninguém, e, por ventura, 0 que ndo ddesistiv depois que todas as bandeiras se arriaram. Portanto, 0 que nos distingue &a qualidade de sua contribuicéo ¢ 0 valor de sua attvi- dade. Nesses dois pontos, hé que tomar em conta una pedagogia e uma politica, A pedagogia se consubstancia no Teatro Experimental do ‘Negro, que ele nventou como wn expediente revoluctondrio, que aba- fasve a estruturas nrentais da negro, destruindo uma auto-inagemt re- eva desiruidora, ¢ que expusesse a hipocrisia racial do brance a uma ‘rise irreversivel. A politica aparece a guerritha a descoberto e per- ‘manente: fustigar as eausas ¢ 0s efeitos do "preconceito de cor” sem ‘qualquer concessito, enire os brancos e entre as negros ~ & contra am- dos, quando eles se revelassem indignos da licdo. En: consegitencia, a ddentincia da propatada democracia racial se convertia em fato poltico © passa @-contar como fator de eroséo da ideologia racial oficial Este livro repde, de nova, todo o significado da presenca de Ab: dias do Nascimento na agitacdo do problema africano no Brasil (eno inais do “problema racial brasileiro”). Ele ndo pede “as migathas do dhanguete" © tampouco perde tempo com a" questo da justica d gente 19 negra”. Isso ficou para o passado, para as agitardes e os movimentos das décadas de 30 ¢ de 40. Como no é branco e liberal, como Nabuco, indo toma as vestes do paladino da“ causa do negro”; e como ndo acre- dita que se possa fazer qualquer coisa antes de unta auténtica revolt edo democrética, também ndo se apega ao fomento de uma contra- ideologia racial de awtodefesa e de contra-ataque. Limpa e claramente reioma a agéo direta dos quilombolas, centrando suas baterias na luta pela liberacdo do negro e do mulato de tantas e ido variadas servidées vistets & dnvistvets, Vejo neste fivro trés contribuicdes novas, para as quais convém chamar a atengdo do leitor. Primeiro, a mais importante de todas: a configuracdo do protesto negro no contexto histdrico do tiltimo quar- tel do sécido XX. Depots de algunas arrancadas audaciosas e incom- preendidas, principalmente nas décadas de 20, 30 ¢ 40, 0 negro aceitou ‘a tdtica do que parece ser 0" caminko vidvel” e "mats facil”: 0 da in- fittracdo individual, das compensagées pessoais, que simplifica as coi- sas e revela que “o negro de alma branca” € to competente quanto (qualquer outro, nacional ou estrangeiro, Por que ndo? Abriram-se no- tas vias de ascensdo econdmica, social, cultural e politica, Nao sao inuitas mas aparecem em vérias nivels, Por que ndo aproveitélas no inethor estilo convencional, posto em prética pelos brancos? So vias que levam, com freqiiéncia, 4 proletarizacdo (a transformacao real em trabalhador livre e a integracto as classes trabalhadoras) e, algunas vezes, @ posicies cobicadas (para alguns, nas chamadas "classes mé- dias" para poucos, nas "classes altas"). Essa udtica é suicida, no pla- no coletivo: ela pressupae a acefalizacao da populacdo negra. Seu ta- lento ¢ transjeride para os estratos socials da raca” dominante e pas- saa ser utilizado na mais estrita defesa da ordem. Todavia, esse é 0 preco a ser pago pela conguista de “wn lugar ao sol”, Todavia, de ‘modo indiveto ela & constrativa, pois ria, aos poucos, wn Rov NeBrO, que forca a reeducacao do branco na avatiagdo do negro e do mulato ¢ pe em cheque of estereotipos ou as estigmas raciais, Estamos, poi ‘ent wn clima pouco propicio ao reenceramento do protesto negro, Ab- dias nao sé-0 retoma; ele 0 reequaciona politica e socialmente. Nao Jala mais em uma “Segunda Abolicdo" ¢ situa os segmentos negras & imudaios da populacio brasileira como estoques africanos com tradi- ies culturais eum destino histérico peculiares. Em suma, pela pri- neira vez surge a idéta do que deve ser uma sociedade pluri-racial como democracia: ou ela é democrética para todas ax racas e thes confere igualdade econimica, social ¢ cultural, ow ndo existe una so- ciedade pluri-racial democrdvica. A hegemonia da “‘raca’’ branca se conirapde una associacdo livre e igualitaria de todos os estoques ra- 20 eee SS 4 segunda coniribuigéo se vincula ao uso sem resirigdes do conceito de genocidio aplicado ao negro brasileiro. Trata-se de wma palavra terrivel e chocante para a hipocrisia conservadora. Contudo, 0 que se fez € se continua a fazer com 0 negro e com seus descendentes merece outro qualificativo? Da eseraviddo, no inicio do periodo colo- nial, até os dias que correm, as populacdes negras ¢ mnuatas tém sof do wn genocidio institucionalizado, sistemético, embora silencioso: Ai indo entra nem wma figura de retdrica nem un jogo politico. Quanto é excravidio, o genocidio esté amplamente documentado e explicado pe- os melhores ¢ mais insuspeitos historiadores. A Aboligdo, por si mes- ‘ma, nao pis fim, mas agravou o genocidio; ela propria intensificowo nas dreas de vitalidade econdmica, onde a mao-de-obra escrava ainda possuia wilidade. E posterionmente, o negro fol condenado d periferia dda saciedade de classex, conto se no pertencesse & ordem legal. O que o expds a um exterminio moral e cultural, que teve sequelas econdmi- cas ¢ demogrificas. Contra abdias se pode dizer que essa realidade do foi, ainda, suficientemente estudada pelos cientistas sociais, Mas, cla & conhecida ¢ suas proporcies nao sao ignaradas, pelo conheci- mento de senso comum, pela experiéncia direta de negras e nudatos pobres ¢ por evidéncias de investigacdes parciais, que apanham uma (ou outra faita da soviedade brasileira. Portanto, o genocidio ocorreu ¢ estd ocorrendo: e é um grande mérito de Abdias do Nascimento susci- “amo tema concreto. Com isso, ele concorre para que se dé me- nos éufase d desmistificacdo da democracia racial, para se comecar a cuidar do problema real, que vem a ser wn genocidia insioso, que se processa dentro das muros do mundo dos brancos e sob a completa in sensibilidade das forcas politicas que se mobilizaram para combater outras formas de genocidio, A tiltima contribuicdo esté toda ela concentrada no capitulo 15, de conclusio. Hé uma passagem construtiva do diagndstico e da con. dentacao para sugestaes préticas. Fugindo & hipocrisia e & tolerdncia calculada dos opressores ¢ d impoténcia dos oprimidos, Abdias do Nascimento propibe una série de medidas que poderiam configurar a consirucdo de wm novo fruro no presente. Essas sugestées demarcam 4 diferenca essencial que existe entre wna pseudademocracia racial 4 que deveria ser wna sociedade pluricracial demacrética. Muitos di- ro que ele se apega a wma utopia e que. sob 0 capitalismo, nada se conseguind. AT estd uma diseussdo académica. Sob o capitalismo é possivel fazer algumas transformacées e urge partir da ordem existen- te para Jomentar uma democratizacdo profunda de todas as esferas de vida, Sabemos que o Brasil ainda néo forma uma conunidade politica verdadeiramente nacional (pois a maioria ainda estd excluida da par- ticipacéo efetiva e eficiente dos direitos civs e politicos) e que também ainda ndo é uma sociedade demoeratica (pois 0 poder esta institucto- 21 —_—_—_—_—_—_— EEE ainente concentrado no tope das classes possuidoras e de seus seto= res dirigentes), Nada disso impede que as retvindicagaes democrdti- cas, igualitérias ¢ libertérias sejam proclamadas e, 0 que é mats int. fortante, que se lute por sua implantacio nas condiches exivtentes Vistas desse prismna, as proposicdes de Abdias so congruentes ¢ deet sivas. Elas mudam a qualidade das exigéncias do negro ¢ do mulato, saciedade brasileira, ee ‘ So pretend exer pret ed foto noo Lint sme a estreitar as miéos de won companheiro de luta ea soldartagn oie 4 com ele. Acredito que estamos certasecreto,firmemente gnecn bea, relic xe o-signficado histbrico da missdo que Abdias do Nascinente ve ine & edigiio nigeriana 1s serd reconhecida e receberd forte apoto de todos aucles que lec tam pela causa dit deniocracta ho Bratt i Sio Paulo, 10 de Julho de 1978 Florestan Fernandes 0 refrio favorito de um meu colega é: n6s, 0s africanos, somos i uma raga descuidada. Este suspiro elogiente me ocorreu durante viirios trechos de “Racial Democracy” in Brazit, de Nascimento. O talvez, © mais forte argumento a favor de uma constante, aliagiio da posicio do negro em qualquer situagio social na quill ele se encontre ~ em seu préprio solo, governado por seu préprio povo, ou, transplantado para outras tezras, e entre ou- tras racas. De que outra forma, por exemplo~ a nao ser como uma | generosidade mental descuidada que linda com a autonegagio de si mesmo podemos descrever a accitagéo, durante o FESTAC "77, de tum delegado das afro-amérieas que, a propésito do Primeiro Fest val Mundial de Artes Negras, Dakar, 1966, declarou: “se NO que se refere & dimensdo histérica, parece que existe tum certo sentimento de inferioridade que é africano. Assim nao ¢ possivel apresentar um texto historico eorrendo pare- lelo aquele dos pafses ocidentais.” Porém, isto € 0 que os organizadores do FESTAC fizeram Nio s6 admitiram 0 autor daquela afirmagio, um branco, como um delegido oficial do Brasil, mas ainda excluiram a participagdo do Professor Abdias do Nascimento, um negro que vem persistente © apaixonadamente propondo e demonstrando uma contra-opiniio | i respeito do negro, sua criatividade e sua historia Beste fato, um s6 entre um milhdo de exemplos anilogos, for- ‘neve seu proprio suporte para a tese justificativa dos argumentos de Nascimento, isto & que existe uma censura que vai de sutil- aberta, na discussio da anomalia racial que & 0 Brasil; que a casui tica que reforca esta censura € a causa ea excusa da inatividade 23 2 uma sittagdo que requer ago corretora; ainda mais, qu cesso encoraja e perpetua # anomalia, assim tornando pos exemplo, para uma nagio africana, numa reunido negro-afticana, aceitar como porta-vor. de povos negros uma antipatica, até mesmo hostil testemunha da histéria do negro: e permitir a tal estrangeiro participar em deliberagdes que crucialmente afetam a auto- definicio do negro e o planejamento do seu futuro, Conforme Nascimento declara em sua introducao, ele no esté “interessado em exercer qualquer tipo de gindstica académica, im- parcial e descomprometida.” O ensaio que segue esti, de qualquer maneira, apoiado em selecionada referéncia cujo propésito central & prover um hackground da formulagao intelectual do Brasil bran- 0, para explicar uma realidade negra atual que ele estabelece como sua preocupagio principal e urgente, Naturalmente haverd desacor- do sobre a anilise que Nascimento faz da realidade racial brasileira, tanto histéricamente, quanto em suas operagdes contemporaneas. A expresso genocidio chocard, sua aplicagio, particularmente a0 fendmeno do desaparecimento da “mancha negrs” no Brasil, talvez parecer demasiadamente sutil e emotiva. Ainda o formidavel con junto de estatisticas narra sua propria historia inguietante, e as leis imigratérias citadas, de selegao racial e ainda nao revogadas, sto clamorosas em sua dcusagdo, Mas no final das contas a considera- Gio mais imediata e pertinente para nés, neste momento, indubita- mente permanece: quem sio as testemunhas auténticas da condi- 10 do negro nesta etapa da sua historia? Serd o transcrito observa- dor do Festival de 1966, ninda uma vez mais delegado da zona afro- americana? Ou sio 0s artistas e analistas negros como Nascimento, cuja contribuigsio a0 debate, a despeito de ser ele adicionalmente lum sisiting scholar numa universidade nigeriana, foi manipulada para fora do seu caminho natural pelos homens-fortes da politica dat sua nagio? Wole Soyinka University of Ife e-lfe 4 PROLOGO: . A HISTORIA DE UMA REJEICAO Basicamente este Volume reproduz o ensaio que redigi para o Colsquio do Segundo Festival Mundial de Artes ¢ Cultura Negras, realizado em Lagos, entre 15 de janeiro e 2 de fevereiro de 1977, a pedido do entéo diretor do Coloquio, Professor Pio Zirimu. O tra- balho deveria ser apresentado como conferéneia piblica na série que constituiu um dos pontos altos no desenrolar do Coléquio. Este projeto nao se coneretizou porque o documento foi rejeitado pelo “establishment”, segundo a expressio do proprio Professor Zirirou em carta que me esereveu a 15 de dezembro de 1976, apenas Guinze dias antes de sua morte. Alguns excertos desta carta foram transevitos & pagina /n Memoriam, onde rendo homenagens a este sehotar'e irmao falecido antes que pudesse assistir A abertura do Co- lbquio cuja organizagio The consumiu anos de trabalho incansével Gostaria de relatar, ainda que resumidamente, a historia da re- cusa do nici trabalho ~ evento que eerlamente permanesera como tum capitulo escuso suspenso sobre a eabeca dos responsaveis, espe- cialmente porque os motives da rejeigio continuam ceultos pelo véu do segredo oficial e do mistério A imprensa de Nigéria permaneceu solidiria com meu protes- foe com minha iniuil tentativa em desvelar o “mistério”. O Sunday Times, edigio dominical do Daily Times, um dos mais importantes didrios do pais, iniciou a divulgagio da ocorréncia publicando am- pla reportagem de primeira pagina a 23 de janeiro de 1977, sob o \itulo-manchete “Professor Explode’, assinado por Achike Chuks Okafo. Na mesma edicdo, & pagina treze, aparece ainda breve en frevista com o autor intitulada: “The Blackman’s Burden in Brazil” (A carga do negro no Brasil) 25 Ao fim d6 artigo sobre & rejeigio de “Racial Democracy” in Brasil: Myth or Realits?, © Sunday Tones publicou breve tesposia do Coronel Ahmadu Ali, Ministro da Educagio da Nigéria e Presi- dente do Coloquio, quando o repérter tentou conseguir uma expli- eagio ao acontecido. Inicialmente, 0 Coronel Ali advertiu ainda no se encontrar a frente do Coléquio quando se fez a selegao dos trabalhos: s6 fora nomeado para a funeao no fim de dezembro: En- tretanto, o Coronel Ali mencionou as 8s fazdes que poderiam cau= sar a recusa de qualquer contribuigdo, nenhuma das quais se aplica- va ao caso, conforme se verificari mais adiamte ‘Nesta altura dos acontecimentos 0 assunto se havia tornado de dominio piiblico e me encontrei assim obrigado a insistir numa res- posta que explicasse e/ou justificasse a exclustio do meu paper. Es- colhi o caminho de un: Carta Aberta a 8. Excia, Coronel Ahmadu Ali, Presidente do Comité do Coléquio Senhor Presidente: Ontem, 23 de janeiro de 1977, 0 Sunday Times publicou uma reportagem relacioniada & rejeicio do meu trabalho “Racial Demo- racy” in Brazil: Myth or Reality?, © qual foi escrito a pedido do diretor do Coléquio, 0 falecido Professor Pio Zirimu, No fim do ar- tigo, respondendo 0 repérter. 8. Excia, Coronel Aamadu Ali, Chairman do Comité do Coldquio e Ministro da Educagio da Nigé- ria, apresentou trés razdes para a rejei¢do de qualquer trabalho pelo Comité. Transereverei da reportagem: Coronel Ali “nao estava consciente da rejeicdo de ne- nhum trabalho exceto aqueles que se atrasaram no prazo exigido para a submissao. “Coronel Ali disse ser provavel que alguns trabalhos pu- dessem ter sido recusados por ndo serem estritamente académicos, ou 3. Procurarem usar o férum de discussio para propagar crengas ideolégicas.” (Sunday Times, 23 de janeiro de 1977, p. 11.) E ébvio que a rejeigo do meu trabalho nao se incluiu na pri meira razio, desde que ensaio foi escrito dentro do estrito prazo estabelecide pelo Diretor do Coléquio, fato que esti claramente manifesto na carta que o falecido Professor Zirimu escreveu ao au- tor em 15 de dezembro de 1976. 26 Quanto ao segundo item citado por S. Excia. © Coronel Ali, eu estou plenamente convencido que o trabalho cumpre cabalmente as rnormas aeudémicas e as exigéncias do rigor cientifico; entretanto, 0 estudo no se imerge naquele vazio jogo escolistico que S. Excia. 0 General Obasanjo, Chefe de Estado da Nigéria e Grande Patrono do FESTAC, tao sabidamente condenou no discurso inaugural do Coldquig. Transcrevo 0 General Obasanjo: Eu deixo voeés na esperanca de que o escolasticismo estéril que freqentemente afoga a criatividade ser mantido sob reserva, © que um esforgo positivo sera feito para relacionar sua investigagio as nossas condigdes sociopoliticas e econd- Esta adverténcia contra o “escolasticismo estéril" foi, além do mais, uma das razOes que me levaram a propor, na sessdo plendria do Coléquio, de sibado, 22 de janeiro de 1977, que esta bela mens: gem de S, Excia. o General Obasanjo fosse considerada como docu- mento basico de trabalho, norma na preparagio dos Relatérios dos varios Grupos em que se dividiram os trabalhos do Coléquio." 0 tereeiro ponto a ser considerado se refere a “propagacio de rena ideologicas”. A pagina 72 do meu trabalho, ja distribuido a virios membros do Coléquio, inclusive ao Presidente Coronel Ali, podemos ler que: Hoje, nds, 05 negros, rejeitamos qualquer tipo ou forma de “mandato” apresentado pelo homem branco em nosso nome ~ nem o mandato dos representantes do capitalismo nem de qualquer ideologia politico-social, doutrina ou siste- ima que nao seja uma auténtica expresso da experigneia ne- gra, assim eonio dos objetivos culturais, politicos, econdmi- cos, € humanisticos da Revolugio Africana. Pensamento ¢ afticanos baseados sobre os valores especificos negra, criticamente atualizados e/ou acrescidos de valores de outras origens, corrctamente adatados as nevessi- Gades e interesses africanos devem tomar uma parte agre ‘va na configuragdo da eivilizagdo ecuméniea do futuro, Uma civilizagio aberta a todos os acontecimentos da existéne humana, sem exploradores e explorados, € completamente livre de opressores ¢ oprimidos de qualquer raga ou e6r epi- érmica, Nos ndo desejamos transterir para outros a respon subilidade que a Histéria colocou sobre os nossos ombros. __ Nao hd, por isso, lugar para nenkuma divida quanto ao co teiido ideolégico mencionado enfaticamente no meu trabalho; ele se encontra em pleno ¢ limpido acordo com a ideologia advogada pot S. Cxcis. o General Obasanjo em seu discurso de abertura deste old quio n Eu deixo voces com um apelo: encontrem os caminhos € 08 meios de abrir os impulsos eriativos que habilitem os negros individualmente, as nagdes negras, e as organizagdes de tais nagdes, a reconquistar © controle de seus destinos. Somente assim poderd nosso povo contribuir novamente com sua quota ao progresso humano € sémente assim poderdo cles obter sua justa parte dos recursos do mundo, Ainda mais: « “ideologia” do meu documento esté em comple- to e claro acordo com outro orador da mesma cerim@nia de abertu- ra, $. Excia, o Presidente do Coldquio Coronel Ahmadu Ali, quan- do diss Nés ndo podemos decepcionar 0s afticanos ¢ os povos ne- gros... OS povos alricanos © negros tém de ser reconhecidos como uma forga com a qual 0 mundo tem que lidar. Em virtude do que acabamos de expor nao vislumbramos uma razIo validy que possa justficar a arbitréria exelusdo do meu traba- Iho, exceto se existirem “razdes de Estado” ou “razdes ocultas”, restringindo a liberdade de eriagio académica bem como a pesquisa © a discussio, 0 que, em caso afirmativo, constituiria inadmissivel censura se chocando frontalmente com os abjetivos basicos deste Coldquio. Lagos, Nigéria 24 de janeiro de 1977 Como iiniea © sintomética resposta a Jeitura dessa Carta- Abert no pleniirio do Coléquio, o Coronel Ali afirmou mais uma vez ndo se achar ainda no cargo quando ocorreu a selegio. E ne- nhuma outra resposta foi jamais conseguida das autoridades do FESTAC. Nenhuma justificativa, explicagdo ou esclarecimento se io dla Coldquio, ou ao povo da Nigéria dos jornais, oferecew aa autor, a0 plen: aque seeuia os lances do caso atta O titulo de algumas noticias nos fornece uma idéia do clima que rodeava a questi: Daily Sketch, outro importante diirio nigeriano, a 26/1/77: “The Black Pro's Paper’ (O trabalho do professor negeo), pagina 5, assinado por Segun Adelugba; Nigerian Observer de 28/1/77: “The Plight of Blacks in Bra- 2il” (A desgraca dos negros no Brasil), por Mike Ogbeide: Nigerian Punch, em 29/1/77. "Why was my paper Rejected? = Nascimento asks Colonel Ali” (Por que meu trabalho foi rejeitada? = Nascimento pergunta so Coronel Ali), pagina 3, por Nduka A Onum; 28 SS Daily Times, em 29/1/77: “Ideology that can Suit Our Cau * (Ideologia que se conforma & nossa causa), dltima pa por Bisi Adebiyi; Sunday Tide, 30/1/77: “Nascimento Blasts Colloquium” (Nascimento arrass 0 Coléquio), por Fubara David-West. Naturalmente © comportamento da imprensa, revelando o in leresse tdo vivo, ultrapassava os limites da mera curiosidade jor- nalistica @ respeito do meu trabalho: considera o fato mais como demonsiragio de interesse profundo pelo Brasil - 0 segundo maior pais negro do mundo, superado em importincia demogrifica ape- nas pela propria Nigéria. Ou talvez tal interesse emergiu da cons- tante evidéncia da interacdo econdmica com o Brasil que os nigeria nos constatam permeando sua vida de todos os dias; talvez por cau- sa dos numerosos nigerianos que retornaram do cativeiro no Brasil e formaram um bem conhecido bairro brasileiro, em Lagos. Nio importa qual a razio ou razdes; o fato é que o interesse no tema das. condigdes do negro no Brasil foi de tal natureza que os nigerianos ¢ sua imprenst permaneceram atentos até mesmo apés 0 encerra- mento do Festival, Por exemplo, o Daily Sketch em seu editorial de 14/2/77 comentou sob o titulo “FESTAC was Grand, But (FESTAC foi grande, mas...) 0 Coldquio, peea central do FESTAC, rejeitou o trabalho Racial Demoeraey” in Brazil: Myth or Reality? do Profes- sor Nascimento, tim negro brasileiro, sem dar razes validas pura fuzer isso, © fulecido Professor Pio Zirimu, o ugandia~ no diretor do Coldquio, foi transerito dizendo que o “trab: Iho do Professor Nascimento tinha sido rejeitado pelo E: tablishment™: aparentemente porque ele foi considerado ofensivo para alguns governos ou interesses, Se isto foi ver~ dadeiro, enido um grande ponto sobre o FESTAC tem sido ignorado: isto é, ele € mais um acontecimento de povos- para-povos que de governos-para-governos, mesmo que os contingentes nacionais possam ter sido patrocinados por seus respectivos governos. (Pigina 3) A 18/2/71, 0 Daily Times publicou uma carta assinada por Olalekan Ajia (Kuti Hall, University of Ibadan), sob o titulo de “Shadow-Boxing at Colloquium” (Boxeando fantasmas no Cold- quio) (pagina 13), na qual 0 missivista condena a rejeigio do estudo © 4 maneira sigilosa sob a qual os responsiveis esconderam as ri 250s da decisio. Pelas razdes salientadas pelo Daily Sketch em seu editorial, isto & de que a conferéncia deveria ser um encontro de povos e in dividuos antes que de governos, este mesmo didrio tomou a decisio de transmitir na integra, diretamente 20 povo da Nigéria, 2 mensa- 29 gem dos negros brasileiros eontida no trabalho. Assim o Sketch publicou o ensaio, dividido em cinco capitulos, nos dias 11, 12, (4, 15, 16 de fevereiro de 1977, sob o titulo geral de “The do Nase. mento Paper” (O ensuio de Nascimento). © interesse em torno do “caso” atingiu nivel internacional, sntravessando as fronteiras da Nigéria. Um exemplo temos no jornas lista portugués Antonio de Figueiredo, que desde Lagos escreveu longo artigo intitulado “Brasil FESTAC "77", publicado no Diario Popular, de Lisboa, em 23/2/77. Depois de se referir 4 minha entre. Mista 20 Sunday Times como um “olho negro na imagem do Brasil", © cronisia prossexue colacando © dedo na ferida nifieativamente, € com certo escdndalo, a comuni do professor Nascimento “Democracia racial” no. Brasil: Mito ow Realidade? nao foi uprovada Prosseguiigdo seu raciocinio o eseritor comeca a levantar a ponta do véu encobrindo o segredo que envolvia a questi: Allos interesses diplomaticos, diretamente ligados as eres- centes relagdes brasileiro-nigerianas, levantaram-se ¢ pro- fessor Nascimento reeebeu uma resposta de recusa, Figueiredo ajuda a iluminar as defesas encobertas da ideologia bra- siltra a lingua portuguésa ¢ a longa tradigao de censura sobre quest6es raciais 1ém contribuido para manter o Brasil “res- guardado” da atengdo das correntes principais do pan- alricanismo ¢ negritude, E entdo sabiamente adverte 0 eseritor: Mas que 08 nossos amigos brasileiros no se equivoquem acerea da validade da tese do professor Nascimento e apren- dam com a experiéncia portuguésa. (...) E embora o racismo centre portuguéses e brasileiros tenha a condigio de pecado, © que € fato € que se peca a todo o momento, Em forma de livro mimeografado, o trabalho foi editado pelo Departamento de Linguas ¢ Literaturas Africanas da Universidade de Ifé, © foi distribuido aos participantes do Coléquio. Esta edigio de duzentos exemplares provocou muita discussdo e curiosidade, Uma manifestagio do ativo interesse inspirado pelo volume se en- contra na proposta de um delegado de Zambia a0 Grupo 1: Civili- zacdo Negra e Consciéneia Historica. (Os participantes do Coléquio se dividiram em cinco Grupos de Trabalho a fim de facilitar a dis cussio tépica das teses apresentadas sob a riibrica de um dos dez subtemas; entretanto durante # primeira semana, todos os colo- quianos se reuniram diariamente, pela manhi, em sesso plenaria para a série de Conferéncias Pablicas, dedicando a parte da tarde 30 ‘tos trabalhos de grupo. Na segunda semana quase todo o dia houve sessdes plendrias para discutir os Relatorios de Grupo e suas reco- mendagdes.) Assim foi que o delegado de Zambia, a 26 de janciro, propds na reunido do Grupo IV que se tomasse em consideragao, em suas recomendagoes, as sugestdes e a deniincia que eu havia fei to através de varias intervengSes nos debates do Coldquio. Foi também neste Grupo que o Professor Fernando A. A. Mourio, delegado oficial do Brasil, apresentou seu trabalho The Cultural Presence of Africa and the’ Dynamics of the Sociocultural Process in Brazil' (A presenga cultural da Africa e a Dindmica do Processo Sociocultural no Brasil), o qual comentarei mais tarde no texto deste volume. O Relatorio do Grupo IV, preparado pelo Rap- porieur (relator) Dr. Aleme Eshete, da Etiopia, contém 0 seguinte somentario « propésito dessa contribuigao do’ Brasil: O orador brasileiro disse que a cultura africana tanto ten) Penetrado nu sociedade brasileira que hoje é dificil com!) preender a cultura brasileira sem compreender a cultura aft. cana, Os participantes souberam pelo mesmo autor que Brasil era uma sociedade multiracial e multicultural. Entre tanto, esta afirmagdo foi fortemente desafiada por outr Professor brasileiro, Nascimento, o qual disse que no Brasil cOr negra era considerada inferior e que os brasileiros cor sangue africano sofriam diseriminagao. Entre as Recomendagdes aprovadas por esse Grupo de Traba- Iho ¢ inserita no mesmo relatério havia a seguinte: ' Contribuiedo cultural Africana no Brasil, Suriname, ¢ fndia Dravidiana: Os membros deste Colbguio recomendam que em vista do forte protesto do professor Nascimento, uma investiga- {do seja feita sobre as condigdes dos negros no Brasil, para se verificar se hii ow ndo discriminago contra os negros e a cultura afrieana, Que outras pesquisas sejam realizadas sobre a posiggo éa assimilagio e da contribuiggo dos africanos no Brasil. No plendrio do Coldquio do dia 29 de janeiro se discutiu 0 Re- latorig e as Recomendagdes do Grupo IV. Tal sesso constituiu um evento verdadeiramente histdrico nos anais da imagem internacio- nal do Brasil Devo primeiramente mencionar que os delegados oficiais do Brasil ~cerea de cinco ou seis - durante o decorrer de todas as ses. Ses plenarias do Coléquio nem por uma tinica vez se dignaram abrir a boca para articular qualquer comentario, sugestao, critica 31 ‘ow emenda ao que se discutia, Eles optaram pela absolute ¢ total ‘omissio: até mesmo quando a discussdo afetava diretamente 0 Bra- sil, Em uma das sess6es plendrias propus que o portugués fosse con- siderado como uma das linguas oficiais em todos os futuros Festi- vais, Coléquios ou qualquer outro encontro do mundo negro- afticano. Esta proposta se baseava no fato de existir enorme popu lagdo africana, no continente e fora dele, usando a lingua portugué- st; ndo apenas os sessenia ou mais milhdes de descendentes africa- nos no Brasil, como também os africanos de Angola, Mogambique € Guiné-Bissau. Parece Sbvio que to grande parcela da familia africana no devesse ser obrigads a se submeter nao s6 a imposigio colonial de uma lingua ~ a portuguésa ~ mas por acréscimo ser re- colonizada por seus irmaos africanos através do uso compulsério, do francés e do inglés exigido, por exemplo, pelos dois Festivais, camo 0s inieos idiomas permitidos, Esta proposta foi aprovada na sessio plenaria do dia 29 de j neito. Aprovacao esta obtida sem nenhum apoio da delegagao ofi- cial do Brasil, a despeito da conseqincia imediata que tal medida teria sobre a populagdo negra do pais, A proposta teve, nao obstan- tc, o suporte e a defesa do Dr. Maulana Ron Karenga, jlustre com- batente da luta libertiria dos irmaos negros dos Estados Unidos. ‘A recomendagio n® 5, do Grupo IV, citada anteriormente, foi ‘© tinico ¢ singular item entre todos discutidos nas sessdes plenacias, ‘que mereceu a atencio e resposta dos delegados oficiais brasileiros. A discussio deste topico fol iniciada pelo Dr. George Alakija, que leu umas poucas palavras dizendo mais ou menos o seguinte Eu sou representante permanente do governo brasileiro jun- to. a0 FESTAC. Eu sou meio brasileiro e meio nigeriano. A proposta em discussio € de natureza politica. O professor Nascimento do é um delegado oficial neste Coléquio, por esta razio nao pode fazer nenhuma proposta. Se esta recomendagdo, de sentido politico, fdr aprova- da, ela eriard complicacdes e dificuldades nas relagdes entre © Brasil ¢ Nigéria. ia nas palavras do Dr, Alakija provocow in- tensa expectativa no plensrio. Foi quando o Coronel Ali, Presiden- do Coléquio, proferiu calmamente e com dignidade exemplar & fulminante resposta: = Nao, para Nigéria nao haverd nenhuma dificuldade ¢ ne- hum embarago, Em verdade, estava 6bvio para o plendio a falta de fundamen- to na tentativa do delegado oficial brasileiro de afogar a recomen- 2 ‘40 de que o membro ndo-oficial nao tinha auto- ridade para fazé-la. O autor da recomendagio havia sido um dele- gado oficial africano (de Zambia) e fora aprovada por todo 0 Gru. po IV. Nao obstante, o debate prosseguiu no seu curso. Varios dele- gados se manifestaram antes que @ palavra me fosse concedida, Quando enfim pude falar, lamentei de inicio, o fate de que em lugar de argumentos contrariando minhas afirmagoes, o delegado oficial do governo brasileiro tivesse simplesmente focalizado, aliés imper- inentemente, questio de natureza burocratica no conhecido tom brasileiro de repressio policial, O comportamento do Dr. Alakija - como também idéntico comportamento do Professor Mourio no Grupo IV exibiram para quem ainda necessitasse de “provas” obje- tivas do carter da nossa “democracia racial”, o respectivo auténti- £0 € grosseiro strip-tease. Pois diante da assembléia de todo o mun- do negro-africano, através desses delegados, o Brasil reiterou uma vez mais sua habitual insensibilidade & voz de um descendente afti- ano, tentando silencii-la. Ainda mais chocante; o Brasil ndo trepi- dou em publicamente confirmar sua arroganeia face aos paises $0- beranos da Africa, ameagando abertamente a Nigéria em seu pré- prio solo! Voltando a recomendagio em debate; nao era eu 0 seu Proponente e a considerei desnecessiria por jl existirem varias pes- uisas a respeito, inclusive trabalhos patrocinados pela UNESCO e feitos por Florestan Fernandes, Roger Bastide e varios outros. Na casio, ofereci ao Presidente do Coléquio uma lista, feita de me- moria, com cerca de trints indicagdes entre autores e titulos de obras, todas revelando de uma forma ou de outra o racismo subja- cente na sociedade brasileira: entre os nomes incluidos se contavam es do ganaiense Anani Dzidzienyo, dos norte-americanos Thomas E. Skidmore, Angela Gillian, Doris Turner, Carl Degler, da cubana Flora Mancuse Edwards, dos brasileiros Guerreiro Ramos, Alva= Fo Bomilear, A. Silva Mello, Thales de Azevedo, Sebustido Rodri- gues Alves, Arthur Ramos, Octivio Lanni, Vioti da Costa, Fernan- do Henrique Cardoso, Romeu Crusoé, etc. Com este fundamento, © como substitutive 4 recomendagdio em aprego, propus 0 seguinte: 5. O Coléquio recomenda: i que o Governo Brasileiro, no espirito de preservar e ampliar | consencia Wstrica nos descendents aficanos da popu] Iago do Brasil, tome as seguintes medidas: 4) permita ¢ promova a livre pesquisa e aberta discussio das Felagdes raciais entre negros e brancos em todos 05 niveis econdmico, social, religioso, politico, cultural, ¢ artistico, 3 b) promova ensino compulsério da Historia e da Cultura da Africa ¢ dos africanos na diéspora em todos os niveis da ‘educagio: elementar, secundiria e superior; ©) inclua informagdes vilidas com referéncia aos brasileiros de rigem africana em todos os censos demograficos, assim como em outros censos tais como: natalidade e morte, casa- mento, crime, educagdo, participagdo na renda, emprego, mobilidade social, desemprego, saiide, emigragio e imigra- d) demostre seu muito autoproclamado interesse e amizade & Afriea independente, concedendo ativo apoio material, politico ¢ diplomatico aos legitimos movimentos de libera- Gio de Zimbabwe, Namibia e Africa do Sul Esta proposta nao Toi aprovada, No entanto, restrito ao meu status de observador, tentei colaborar para que 0 Coléquio atingis- se 0 objetivo para o qual foi estabelecido: a busca de um futuro de melhor qualidade para os africanos e os negros do mundo. A as- sembléia geral discutia 0 Relatério do Grupo I ~ Civilizagiio Negra © Pedagogia numa outra sesso do Coléquio, Basicamente, 0 relaté- rio, conforme seu predmbulo, tratava da grande necessidade de redefinir nossos objetivos ¢ propési- Tos educacionais para refletir os permanentes e estiveis valo- res sociais, culturais e econémicos da Africa. * Notando que 0 relatério nio mencionava os africanos fora do continente, propuz ao Plendirio a seguinte recomendagio G. Educagiio dos africanos na Diéspora 26. Que os governos dos paises onde exista significativa po- pulagio de descendéncia africana incluam nos curriet Tos educativos de todos os niveis (elementar, secundario, € superior) cursos compulsérios que incluam Histéria Africana, Swahili, e Historia dos Povos Alricanos na Diispora, Outra proposta detrotada aparentemente sob 0 pretexto de que 0 Rekatorio se referia unicamente aos africanos no continente © seus respectivos governos. De qualquer maneita, os delegados ao Coléquio fiearum sabendo que no Brasil nao existe, em qualquer etapa do ensino ~ elementar, médio e superior ~ cursos sistemticos de Historia da Africa, seus povos e suas culturas, Nem os afto- brasileros, nem os “brancos” brasileiros, estdo informados dos problemas emergentes da vida africana continental ou na diéspora, sob © ponto de vista da escolaridade. A inclusdo do Swahili enfati- zou o apoio dos povos negros na diispora ao projeto da Uniao dos Escritores Alricanos (4frican Writers’ Union), to convincentemen- te defendido por Wole Soyinka em conferéneia pibliea no Col 4 eee ene Es quio intitulada “The Scholar in African Society” (O scholar na so- ciedade africana), O projeto de selecionar e ensinar uma lingua - 0 Swahili ~ entre todos os Abibiman (povos airicanos ¢ negros) do mundo € nevessidade urgente. S6 assim nfo continuaremos depen- dendo das elaboragdes conceituais da Europa para nossa interna- cional e entre-irmaos comunicagao. Como imediatamente afirmou © Dr. Maulana Ron Karenga, a comunidade negra dos Estados Unidos estava ja ativamente engajada na promogio, e no ensino, do Swahili, endo ha razdes para que o Brasil nio possa fazer 0 mes- mo, Uma das grandes desvantagens do afro-brasileiro em sua co- municagdo internacional tem sido a marginalidade da lingua portu- guésu; com a adocdo do Swahili entre os negros do Brasil, nossa i teragio com nossos irmaos africanos melhoraria consideravelmen- te, dirios aspectos da realidade, em matéria de relagdes de raga brasileiras, contidas tanto no meu trabalho "Rar cial Democracy” in Brazil: Myth or Reality? como inclusive nas in- tervengdes ¥: s pelo autor no desenrolar do Coléquio, hal ‘ram a comissao redatora do Relatério das Minorias do Coléquio 2 incluir uma segio sobre 0 Brasil. O Relatério das Minorias est publicado integralmente no fim deste volume como Docunento n° I Quanto as contribuicdes dos delegados oficiais do Brasil, elas foram mera repeticdo da linha tradicional do pais: Fernando A. A. Mourio ¢ Clarival do Prado Valladares *, cada um & sua maneira ¢ ‘em seu campo especifico de interesses, deram a bendigéo ao status quo desirutado pelos afro-brasileiros; René Ribeiro ‘, Yéda Pessoa c Castroe seu marido ’, eo Dr, Alakija ', produairam monografias, deseritivas, de pretenso cardter cientifico; trabalhos de cun'o aca- démico naquela orientagdo que 0 Teatro Experimental do Negro, desde 1944, ver denunciando como totalmente iniiteis as necessi- dades da populacdo negra brasileira. Tal “ciéneia” em geral usa 0 ‘ro-brasileiro ¢ 0 africano como mero material de pesquisa, disso- ciado de sua humanidade, omitindo sua dindmica historica, ¢ as as- piragdes de sentido politico ¢ cultural do negro brasileiro. Sao estu- dos de vista curta, em geral considerando os povos afticanos e ne- 870s como “interessantes” ¢/ou “curiosos”; tais “estudos” véem 0 hegro apenas na dimensdo imobilizada de objero, verdadeira mimia de laboratério, oO, fepresentante permanente do governo brasileiro junto a0 FESTAC, gue ¢ também um desses cientistas, merece atengio espe- cial como expressivo exemplo de pesquisa estéril, Estudando oesta- o de transe ni religido afro-brasileira, o Dr. George Alakija insiste no uso de rotulos ¢ expressdes pejorativas, cunhadas pelo eurocen- 35 trismo pura descrever essas religides, tais como “cultos primitivos” (p. 8), “religiio animista” (p. 8), ou “aparéncia magico-primitiva” (. 9). © Dr. Alakija, um psiquiatra, preocupa-se primariamente com © cavalo, o sacerdote afro-brasileiro que entra no estado de transe religioso para receber 0 Orixa, Seguindo critério de verdadeira cién- cia européia quando se defronta com uma cultura que ela no com- preende, Dr. Alakija esquematiza sua interrogagio central: (© que podemos dizer sobre os “cavalos™? Sio eles sujeitos & histeria ou a similares formas de desequilibrio, cujo estado patologico é solo fértil para germinagio do complexo feno- menal? Estdo eles engajados em mistficagao? Estas questoes jd foram tratadase respondidas muito antes por Roger Bastide, especialista da Sorbonne e simultaneamente com responsubilidade no culto de Xango. Bastide expde o valor da tese sociologica, oposta A tese patoldgica: o que torna a crise violenta nao € 0 terreno neuropaitico constituido pelo indivi- duo no qual ela explode, mas 0 modelo mitoligico fornecide pela sociedade ao individuo. * (enfase no original) Nosso Dr. Alakija, nfo convencido com tais refutagdes, prefe- re se enireter no terreno patoldgico. Suas conclusdes classificam 0 transe espiritual como um estado sofrdnico que “ni pode ser clas sificadlo nem como ordindrio nem como patolégico.” (p. 4) © autor tenta aproximar-se da questo central por ele levanta- da através da aplicagio dos conceitos da safrologia, segundo cle, “uma nova disciplina cientifica originada em Madrid em 1960." (p. 3) Com estes instrumentos © Dr. Alakija analisa 0 estado de posse sio mistica. Uma vez mais, a patente aplicagdo de perspectivas eu- ropéias para fendmeno puramente africano e/ou afro-brasileiro, ea mondtona repetigdo do comportamento cientifico domesticador que Mloresceu na Europa e nos Estados Unidos desde o século pas- sado. Nese aspecto o Dr. Alakija dé continuidade a uma verdadei- ramente curiosa linha da “‘ciéncia” brasileira: o interesse de quase um século demonstrado pelos psiquiatras no estudo das religides afro-brasileiras. Foi Nina Rodrigues 0 ponto inicial do estudo psi- quiatrico classificador do éxtase mistico ao nivel da histeria, ou ma nifestacio patolégica. Arthur Ramos, outro psiquiatra, foi discipu- lo de Nina € 0 seu continuador. Presentemente René Ribeiro ¢ George Alakija corporificam essa tendéncia que, parece, vai-se tor- nando uma tradiclo na psiquiatria brasileira, Deixo ao leitor tirar sua propria conclusio do fato, repleto de implicacdes, de que no Brasil, uma das qualificagdes para o estudo do negro ¢ das religides afro-brasileiras, & ser um especialista em psiquiatria 36 A tse de Nina Rodrigues, classificando 0 éxtase religioso como patoldgico, segundo Alakija (p. 10), baseia-se na Escola Sal- petriére, de Paris, famosa na passagem do século XIX para 0 XX, ¢ inclui a influéneia dos trabalhos de Pierre Janet e Charcot. O Dr. Alakija, trocando Paris por Madrid, tem certamente dado um salto radical a partir das santificadas ligdes de Rodrigues. Entretanto, ele toma precaugdes para nao cair em superentusiasmos de avaliagdo, Ele conclui assim Hoje em dia ndo pode haver dividas de que as pessoas que Fevebam tais possessdes so mentalmente saudaveis, ‘mas rapidamente acresventa na mesma frase, cuidando-se de exage- ros: embora isto nio impossibilite que num ou noutro grupo possa haver individuos que apresentem evidentes anomalias patoldgicas. (p. 10) Entretanto, no devemos temer 0 pior. © Dr. Alakija fez 0 exa- mental em quinze pessoas, dez “cavalos” de Candomblé e cinco médiuns do espiritismo cardecista, Os resultados quanto a “nivel de inteligéncia” e “conhecimento geral” nao sio terrivelmente desfa- voriveis & linha de pensamento estabelecida e sucralizada por Nina Rodrigues: EXAME MENTAL * Norma Ab = Anormal P= Presente Ausente P~ Pobre L = Baixo R= Rico iW Ako S = Satifutdrio Mimero 1234567 8910n02 13 IIS Sexo FMFFEFRFPPRFPEP EME Geral NNNNNNNNNNNNNNS Comportamento NNNNNNNNNNNNNNN Fila NNNNNNNNNNNNNNN Humor NNNNNNNNNNNNNNN Hester AAAAAAAAAAAAAAA ‘alsas interpretagies AANAANAAAAAAAAAA Disiurbios de Peteepeto RRA AAAAARAAAAAA Fendmeno compulbivo AAA AAAAAAAAAAAA Srientigio NNNNNNNNNNNNNNN Memiria no NNNNNNNNNNNNNNN Atencio « Concentraedo $5 $5 SSSSSSSSS Niele intebgéncia ELL LLL LEC LELL LL hesimento eral PPPPPPPPPPP PPD D * Tabelstomada dretamente da pigina 11 da monografa Simbolos pars Awsentee Sorta lo, respestivamente, Abs Ab mo argh. Els foram mudados gud sumpesmente part faclidade datlogriea Ko Desta breve mostra podemos coneluir da inequivocs identida- dle do Dr. Alakija com a do pesquisador de visio distoreida reviven- do nos dias de hoje aquéla “perspectiva cientifica” adotada por Nina Rodrigues, no eomego do século, Por coincidéncia sio ambos rmulatos, baianos ¢ psiquiatras, Coincidéncia que se nos afigura as- saz curiosa e interessante... Anda um outro delegado oficial do Brasil: AntOnio Vieira. Seu trabalho, intitulado Camino Vivencial de wn sdutor Afro: Brasileiro, no foi distribuido no ColBquio, assim no podemos co- menticlo agui. Porém assistimos ao pronunciamento que fez no Grupo de Trabalho I: um répido comentario sobre sua propria poe sia. Quem Ié-as poesias de Vieira fiea impressionado com a nenhu- ma referéncia e engajamento do autor com a cultura, o espirito, ¢ os problemas dos descendentes africanos no Brasil, Enquanto ouvia Vieira falar, interiormente eu lamentava a auséncia de poetas ne- 8108 brasileiros do porte, por exemple, de um Osvaldo Camargo, tum Eduardo de Oliveira, vozes fortes da cultura afro-brasileira ¢ das aspiragdes negras, vozes vitais nfo domesticadas pelo Estabele- cimento, Vozes evocadoras do espirito rebelde de um Solano Trin- dade ou da eritieasutil de um Lino Guedes, todos estes autenticos wates dos negros: de sua vida e da sua morte, das suas esperancus, das suas hutas por liberdade e dignidade Agora devo ser indulgente comigo mesmo e abrir um parénte- ses para evocar e celebrar vertas imagens nostilgicas do FESTAC. (0 Coldquio revelou-se acontecimento excitante e significative. Es- peremos a pronta divulgagio dos trabalhos apresentados ¢ das Re- solugies tomadas para o conhecimento geral de toda a familia ne gro-africana, Devemios aguardar, principalmente, resultados con- cretos. Eniretanto, o que no Colbquio se pensou, se discuti, se es- crevei e se decidiu no deveri, esperemos, ficar eneerrado nos ar- ‘quivos mais ou menos inacessiveis desse histérico encontro da inte- ligéncia africana © negra de todas as partes do mundo. Desde dingulo muito pessoal, ¢, confessemos, emocional, di cilmente poderia esquecer certas imagens que durante os trabalhos foram captadas por minha sensibilidade, gravadas na meméria, Oh meus irmaos e minhas irmas! Como esquecer aquela comunicabili- dade explosiva do Dr. Maulana Ron Karenga, ¢a segura e discreta competéneia do Dr, Ron Walters, ambos da comunidade negra dos Estados Unidos? E o primeito encontro, « tanto tempo desejado, 38 com poeta Mario de Andrade, atualmente no Consetho Nacional de Cultura de Guiné-Bissau? E rever o artista © Sous Clington, sempre sorrindo a prépriainguietag ria esquecer a palavra brilhante do Dr. Hussein M. Adam, da So- inilia ow 9 Feeneontro om Kofi Awoonor, ineseratavel novelista de Gana, E Keorapetse Kgosisle, empunhando a poesia bélica da libertagdio do seu pus: Africa do Sul. Foram todos estes momen- tos de intenso valor esprituale humano, Porém houve mais: houve 1 comovente solidariedade de Leo W. Bertley, do Cunadd, houve 0 hhomem do jase Ted Joans, cberto com o poy a poesia e o conhes mento histérico de Timbukty,. E-0 Dr, Molefi K. Asante, aquele due derrete a invulnerdvel neve de Buffalo com o calor do seu esp tito Fraterno ni lit Proclamo c eelebro agora a dnica personalidade que realmente sgalvanizou a assembléia: a dramaturga de Quénia, Dea. Mugo. Sua palaura bela e vibrante ecoard pura sempre na lembranca de todos jaqueles que a ouviram s0b 08 aplausos tempestuosos dos delepados no Coldquio. E outros encontros aconteceram, outras alegsias emergiram dos corredores, dos salbes, dos restaurantes, do imenso Teatro Na- sional E-entao chegou a ver de acontecer Ernest Ctichlow, 0 exee. lente pintor norte-americano, deslumbrado com a sabedoria de cer. to Babalad de Abeocuti; ¢ aconteceu Ola Balogun earregando no calmo olhar inguisto todos os sontios do cinema nigeriano: ¢ hou vee 9s brasileiros, o sax extraordindrio de Paulo ransado em ritmo sutil-irdnico de Gilberto Gil e Caetano Veloso; sia trancada na seriedade de Rubem Confete. Ea irmi Tereza Santos! Sua presenga me devolveu a emoedo de lugares e tempos que se foram: o Rio de Janeiro do teatro negro. Pogas e ensaios, a existenca fecida em dancas, pocsia; e no canto ¢ natldyrimta,e na esperanga forjavanmos um lugar para a nossa gente nos paleos brasileiros. Agora voee, Tereza Santos, orgulhosamente Tesgatou sua cidadania original; se tornou cidada de Angola, ¢ cola- bora na edifieacto do teatro revolucionirio de sua nova e antiga patrianmie. Antes da abertura do Coléquio, revistas nigerianas me pe ram para escrever dois artigos relacionados a contribuigio do Bra- sil ao FESTAC ‘77. Ambos estio incluidos neste volume. So: Tea- tro Negro do Brasil: wma auséncia ostensiva (Documento n° 11), que foi publicado em AYriscope. revista de Lagos, edi¢lo especial dedi- 9 —————— ve cada a0 FESTAC, janeiro de 1977; ¢ Arte afto-brasileina: um espi 10 libertador (Documento n° 111), escrita para Chindaba (antigamen. te Transicdo) editada por Wole Soyinka. A edigao especial sobre 0 FESTAC. para a qual o artigo se destinava, nio foi publicada por questdes téenicas de impressio. O texto original deste volume, apresentado e rejeitado pelo Co- \quio, sofreu pequenas alteragdes: foi revisto, e acrescentadas no. vas informagdes, fates e comentarios Gostaria de expressar minha gratidto aos autores citados no texto deste livro, especialmente a Thomas E. Skidmore, Florestan Fernandes, ¢ Anani Dzidzienyo, pela fundamental contribuigao de seus trabalhos, Também agradego ao Departamento de Linguas ¢ Literaturas Africanas da Universidade de Ie, pelo apoio que me dew e pelo convite como Professor Visitante: isto me ensejou prod: zit © presente ensaio e participar no Coloquio. Minha profunda gratidio a0 Daily Sketch por seu inequivoco e decisivo apoio du- ante todo o processo que resultou neste volume. Também estou em débito com Olabiyi Babalola Yai, meu coléga, pelas Fontes de inlor, magio que me forneceu. Meu reconhecimento fraterno a, Wole Soyinka, inteligéncia criativa da cultura revolucioniiria da Africa, pela enérgica solidariedade demonstrada em todo o desdabramento do caso. Finalmente meu profundo e emocionado agradecimento & ‘minha mulher Elisa, no s6 pela tradugzo da edigao em inglés, ¢ a datilografia dos textos, mas, sobretudo, por sua total e estimulante Participacdo nesta peripécia nada democriitica de demolir mitos anti = Em certo momento nessembléia geral do Coléquio, quando os delegados oficiais do Brasil tentavam me silenciar, levantei mi- aha voz € me-identifiquei ndo como representante do Brasil mas como um sobrevivente da Republica dos Palmares. € nesta qualida, de que me reconhego e me confirmo neste trabalho, AN. (um quilombola dos Palmares) 6-118, 14 de marco, de 1977 40 I INTRODUCAO O ensaio que desenvolverei nas paginas a seguir no se molda has frmulas convencionalmente prescritas para trabalhos acadé- micos ¢/ou contribuigdes cientificas, Nem esté o autor deste inte- ressado no exercicio de qualquer tipo de gindstica tedrica, imparcial ¢ descomprometida. Nao posso © ndo me interessa transcender a mim mesmo, como habitualmente os cientistas sociais declaram su. postamente fazer em relagio as suas investigagdes. Quanto a mim, considero-me parte da matéria invest . Sita ¢do que me envolve qual um cinturdo histérico de onde nao posso escapur conseientemente sem praticar a mentira, a trai¢ao, ou dis. torcio da minha personalidade. © que o leitor encontrarit nestas paginas se insere no contexto de um mero testemunho cruzado de reflexes, comentarios, criticas © conclusdes pertinentes as respectivas etapas do trabalho. O que logo sobressat nu consideragio do tema basica deste ensaio é 0 fato de que, & base de especulagdes intelectuais, freqdentemente com 0 apoio das cf A existéncia dessa pretendida igualdade racial constitui mesmo, nas pulavras do professor Thales de Azevedo, “o maior at motivo de orgulho nacional”, (..) “a mais senstvel nota do ideirio ioral no Bras cutivade som inate ecom incansiegnage Na mesma diego luudat6ria, © Jornal do Brasil do Rio de lane 10, lira maior contribuigao que nds temos dado 10 mundo ¢ preci samente esta da nossa “Demoeracia Racial”. Este Coloquio, cujo escopo fundamental, de acordo com seu ditetor, Professor Pio Zirimu, “abrange uma visdo total da expe, rigncia coletiva do homem negro e african” *,'tem a obrigagio Sencial de questionar em que extensio este tipo de relagdes saviots no Brasil constitui uma realicade histériea eficaz a ponto de insp rar ou sugerir modelos educacionais apropriados 26 futuro decor, volvimento dos povos negro-alricanos e suas culturas. Como norma metadoldgica a ser observada neste trabalho de- Sejamios inicialmente recusar discutir as classiffeagoes comumente muantidas pelas eigneias sociais quando tentam detinir 0 negro no Brasil esas definiedes designam os brasileiros ora por sus tures (aparéneia) ora por sua vrigen (raga e/ou etnia). Gvorte que ne tuhum cientista ou qualquer cigncia, manipulando conceitos como Jendtipo ou genétipo pode negar o fato conereto de que no Brasil 2 ‘marca & determinada pelo fator éinico e/ou racial Nao vamos perder tempo com es supérfluas. Mi alguns “cientistas” que de fato ajudam a construir toda uma carreiru com a fabricagio de novos eufemismos deste porte Um dos exemplos mais convincentes se encontra no internactonal, mente fumoso historiador Gilberto Freyre, fundador do chamado {uso-tropicalismo, a ideologia que to efetivos servicos presiou a0 colonialismo portugués. A teoria luso-tropicalista de Freyre, par. lindo da suposicio de que a historia registrava uma definitiva incas Paciclade dos seres humanos em erigi eivilizagdes importantes nos opicos (os “selvagens” da Africa, os indios do Brasil seriam dos cumentos viventes deste fato), Significativamente, um dos liveos de auto. ria de Freyre intitula-se O mundo que 0 portugués criou, Sua entus slistica glorificagio da civilizagio tropical portuguesa depende em grande parte da teoria de miscigenagao, cultural e fisica, entre ne. 2 gros, indios ¢ brancos, cuja pritica revelaria uma sabedoria Gnica, espécie de vocagio especifiea do portugués. Miirio de Andrade, 0 poeta angolano, foi um dos primeiros a efetivamente refutar este ar- dil colonizador. Mais recentemente, 0 eseritor ¢ jornalista portugués Antonio de Figueiredo, eserevendo desde Lagos, Nigéria, expde uma vez mais a real natureza do luso-tropicalismo gilbertofreyreano: suis concepedes e priticas de tolerdncia luso-tropicalista fo- ram ultrapassadas © tornaram-se_ irrisorias, Freyre cunha eufemismos raciais tendo em vista racionalizar as relagdes de raga no pais, como exemplifica sua énfase e insisténcia no term E-curioso notar que tal sofisticada espécie de racismo é uma perver- sho to intrinseca go Brasil a ponto de se tornar uma qualidade, iriamos, natural, do “branco” brasileiro. Como sempre, Freyre cle considera CliMEieI Viana) Contos “maior mistico do arianismo que ainda surgiv entre n6s”; * entre tanto Freyre nao imagina, conforme observa o critico Agripino Grieco, que Casa grande e senzala, 0 livro que 0 tornou famoso, foi diretamente influenciado pelo pensamento de Oliveira Viana e Al- berto Torres. ® Este fértil criador de miragens nao se contentou com a moreni- dade, Sua mais recente facanha esta na tentativa de atrelar os aftica- nos uo bareo perdido das ilusées colonialistas: Dai justificar-se aquele neologismo eriado por sécio- antropdlogo brasileiro: co-coloizagfo, Coneito que cor responderia & caracterizagao do negro afticano, a despeito de sua condigao de escravo, como co-colonizador do Brasil com consideravel Segundo esse julgamento, os africanos seriam também respon: siveis, junto com os europeus, colonizadores do Brasil, pela siste~ matic erradicagio das populagdes indigenas ~ ato de genocfdio cuja responsabilidade é exclusiva das classes dirigentes, que na sua composigio total so de origem branco-européia. As populagdes indigenas no comego da colonizagio, conforme as estimativas mais 43 uutorizadas, somavam cerea de dois milhées de seres humanos, Atualmente, como resultado ou da extinedo direta, com ou sem vio- léneia, ou dos métodos de liquidagiio sutis e indiretos, aqueles ni meros reduziram-se consideravelmente: nfo excedem a duzentos mil nos cileulos mais otimistas, Este exterminio das populagdes indigenas do Brasil, constituil ainda hoje um explicito objetivo do Governo Brasileiro. A 28 de de- zembro de 1976, 0 allamente respeitado Jornal do Brasil, do Rio de Janeiro, publicou uma entrevista com o Ministro do Interior, Ran- gel Reis. Seu ministério preside os assuntos indigenas através da Fundagio Nacional do Indio (Funai), e na entrevista Reis afirma: Vamos procurar cumprir as metas fixadas pelo Presidente Geisel para que, através de um trabalho concentrado entre varios Ministérios, daqui 2 10 anos possamos reduzir para 20 mil os 220 mil indios existemtes no Brasil, e dagui a 30 ‘anos, todos eles estarem devidamente integrados na socieda- de nacional. Um sucerdote jesuita, Egydio Schwade, langa seu grite patéti- co: Poucos povos do mundo possivelmente teriio conseguido re- sistir tanto tempo e com tdo poucos recursos a uma socieda- de tio barbara e tio covarde que os invade, como 0 tém con- seguido os bravos Waimiri-Atroari..* Enquanto isto ocorre a fertilidade ideologica de Freyre, no contente em simplesmente implicar os africanos nesse genoci dos indios, continua sua euforia autodeslumbrada, agora cunhando © proprio “mestre” um novo neologismo: o.iltimo, as- sim parece, produto da sua fantasia Gilberto Freyre,” Eoportuno a tuma frase do sea lor Skidmore comentando a total inutilidade, aos interesses do negro brasileiro, dos trabalhos de Freyre: O valor pritico da sua anilise nfo estava, todavia em pro- ‘mover o igualitarismo racial. A andlise servia, principalmen- te, para rforcar o ideal do branqueamento, s sofismas gilbertofreyreanos trazem ainda ii mente certa pase sagem de Frantz Fanon: ‘Nesta etapa o racismo no se atreve mais a aparecer sem dis- farce. Ele esté inseguro de si mesmo. Em niimero sempre cerescente de circunstancias, 0 racista se esconde. (...) © pro- 44 posit do racista tem se tornado um propésito assombrado pela ma consciéncia De fato, tanto 0 paternatismo, quanto 0 neocolonialismo eo racismo que permeiam a obra de Gilberto Freyre so mais pernicio- S05 que todo seu elenco de eufemismos. Batizados de morenidade, metarracit ou quitlquer outro nome que sua imaginacao possa fan- lasiar, a farsa de Gilberto Preyre se desarticula na contradigdo de seu prdprio racioeinio e de suas préprias palaveas: pois o paladino das mesticagens éino-culturais afirma que estas ocorrem entre os brasileiros sem que signifique repidio & predomindncia de valores cultu- rais europeus na formagdo brasileira, ® (minha énfase) Destacudo socidlogo brasileiro Florestan Fernandes escreveu © seguinte a respeito do trabalho de Freyre: ‘odos os que leram Gilberto Freyre sabem qual foi a dupla interacio, [entre senhores ¢ eseravos) , que se estabeleceu nas duas diregdes, Todavia, em nenhum momento essas influén- ius reciprocas mudaram o sentido do sa social ie Deva observar de saida que este assunto de “democr cial” esta dotado, para o oficialismo brasileiro, das caracteristicas intociveis de verdadeiro tabu. Estamos tratando com uma questo fechada, terreno proibido sumamente perigoso acordo com um estudo-pesquisa do scholar ganés Anani D: yo, publicado pelo Minority Rights Group, de Londres, intitulado The Position of Blacks in Brazilian Society (A posigao do negro na sociedade brasileira), qual permeia a sociedade que faz dela uma pratica consuetudinar Esta etiqueta dita fortemente contra qualquer discussao, es- pecialmente em forma controvertida, da situagdo racial, assim ela efetivamente ajuda perpetuar 0 modelo de relagdes ‘que tem existido desde os dias da escravidio. Tradicional- mente se espera que os negros sejam gratos aos brancos por generosidudes que Ihes foram concedidas, ¢ que continuem dependendo dos brancos que agem como patronos ¢ benfei- tores deles; também se espera que os negros continuem acei- tando os brancos como os porta-vozes aficiais da nagio, ex- 45 plicando aos estrangeiros a natureza ‘“inica"* das relaydes raciais brasileiras, A etiqueta decreta também que 0s solis- mas oficiais usados para descrever a situagio brasileira ‘como uma “democracia racial” sejam aceitos sem discussio, enquanto & analise critica ou a discussio aberta deste delica: do assunto sio fortemente desencorajadas, * Se omitissemos certas palavras ou expresses como “relagdes rackais brasileiras” “democracia racial”, ete. seria dificil distinguir, ho retrato social de Dzidzienyo, se ele se refere ao Brasil ou ao sul dos Estados Unidos, tal a semelhanga de caracteristicas de ambos. Essa aniilise, no que se refere ao Brasil, tem sua confirmagao em Thales de Azevedo: a democracia [racial] & subtraida a discussio cientifica como ideologia ¢ racionalizagdo que é de uma realidade pos- sivelmente ilusoria No mesmo livro desse antropélogo encontramos mais tarde sua conelusio: Podemos encontrar exemplos des- sa coragem intelectual tanto no passado com Luis Gama, Jose do Patrocinio, os irmaos Rebougas, Alvaro Bomilear, como contem- porancamente com Guerreiro Ramos, Florestan Fernandes, Roger Bastide, Dzidzienyo e Skidmore. Estes e uns poucos mais trouxe- ram & luz da analise cientifica ¢ da critica 0 exotérico organismo dessa “democracia racial” tao compulséria quanto dogmiitica. En- tretanto, a investigagao dos cientistas ¢ intelectuais citados, en- quanto nao possuindo a virtude de transformar as estruturas da so- ciedade que dio suporte as relagdes de raga, permanecerao como importantes contribuigdes & equagdo e solugo dessa grave situagio patologica. imei lemocracia” cuja artificiosidade se expde para quem quiser ver: s6 um dos elementos que a constituiriam deiém todo 0 poder em todos os niveis politico-econémico-sociais: 0 branco. Os bran- £08 controlam os meios de disseminar as informagdes; o aparelho ‘educacional; eles formulam os conceitos, as armas € 0s valores do pais. Nao esti patente que neste exclusivismo se radiea o dominio quase absoluto desfrutado por algo to falso quanto essa espécie de “democracia racial?” 46 fa zero, por exemplo, nos oferece um exemplo limite; na mais proeminentemente auto: aada traduedo Portugués-Ingles: 0 New Appleton Dictionary of the English and Portuguese Languages, deparamos: ‘lack (blak). 1, s, pr8to, negro (cor, raca): mancha; luto. ~in bl. (com.) com saldo credor, do lado do haver, sem dividas, II. a. préto, neBro, escuro: sombrio; ligubre; tétrico: te- nnebroso; sinistro; mau; perverso; hostil; calumitoso; desas- troso; mortal; maligno. IIL, vi. evi. enegrecer: pintar de pré- to; engranar (sapatos, ete.) de préto; desenhiar em negro; manetar; difamar. (..) negro, -gra Cnegr, -gra). 1. a. black (also fig.); dark; (anthropol.) Negro; somber, gloomy, funeral; shadowy, te. nebrous; sinister, threatening: cloudy, obscure, stormy; omi- nous, portentous; horrible, frightening: adverse, hostile, wretched, odious, detestable, (..) * Numa ripida comparagdo entre ambas definigSes, um aspecto ressalta impressivo: a IL. ESCRAVIDAO: O MITO DO SENHOR BENEVOLENTE Certa vez um etnologista disse que “o caminho do progresso é cheio de aventuras, ruturas, ¢ escdndalos.”” Devemos, assim, co- megar examinando 0 maior de todos os eseandalos, aquele que ul- trapassou qualquer outro na histéria da humanidade: a escraviza- do dos povos negro-africanos. No Brasil, é a eseravidiio que define a qualidade, a extensiio, € a intensid: le da relagio fisica ¢ espiritual dos filhos de trés conti- \é se encontraram: confrontando um ao outro no esfor- 0 épico de edificar um novo pais, com suas caracteristicas pré- Prius, tanto na composigao étnica do seu povo quanto na especifici- dade do seu espirito ~ quer dizer, uma cultura e uma eivilizagao com seu proprio ritmo e identidade. © ponto de partida nos assinala a chamada “descoberta” do Hrasil pelos portugueses, em 1300, A imediata exploragio da nova terra se iniciou com o simultaneo aparecimento da raga negra ferti- lizando o solo brasileiro com suas lagrimas, seu sangue, seu suor € seu martirio na escravidiio. Por volta de 1530, 0s africanos, trazidos sob correntes, jd aparecem exercendo scu papel de “forga de traba- ‘0 comércio escravo para o Brasil estava regularmente constituido e organizado, e rapidamente aumentaria em proporgoes enormes. Como primeira atividide significativa da colénia portu- guesa, as plantagdes de cana-de-aclicar se espalhavam pelas costas do nordeste, especialmente nos estados da Bahia ¢ Pernambuco, Sé ‘a Bahia, li por 1587, tinha cerca de 47 engenhos de cana-de-agiicar, Fato que bem ilustra velocidude expansionista da indUstria agua Feira desenvolvida com o uso da forga muscular africana, Uma 48 cangdo de trabalho incluida no artigo de Zora Seljan, 4 poesia ne- £74 popular no Brasil, nos fornece 0 sentido do ritmo dos engenhos de agiicar: * Solo; Engenho novo esti p'ra moer! Coro: Trabalhar até morrer! Oh trabalhar, Sh trabalhar, olé! Trabathar até morrer! Por quase dus centirias, « plantagdo de cana-de-agicar e seu Processamemio requerem a concentragdo de escravos na regio nor- destina do Brasil, embora os afticanos estivessem espalhados por todo © territério nacional. As descobertas de ouro ¢ diamantes no séeulo XVIII no estado de Minas Gerais deslocam 0 ponto focal dos eseravos africanios mais para o sul. O mesmo fendmeno se repe- Liria quando, na primeira metade do século XIX. a queda da produe lividade das minas ¢ o inicio do chamado ciclo do café, cujas plan- tages se localizavam prineipalmente nos estados do Rio de Janeiro ¢ Sio Paulo, outra vez dirigiu a migragio eserava mais para o sul. E quase impossivel estimar 0 niimero de escravas entrados no pats. Isto nao s6 por causa da auséncia de estatisticas merecedoras de crédito, mas, principalmente, conseqiiéncia da kamentivel Circu- lar Nw 29, de 13 de Maio de 1891, assinada pelo Ministro das Fi hangas, Rui Barbosa, a qual ordenou a destruigdo pelo fogo de to- dos os documentos histdricos arquivos relacionados com 0 co- mércio de escravos ¢ a eseravido em geral. As estimativas S80, por isso, de eredibilidade duvidosa, Ha uma estimativa cujos mimeros me parecem abaixo do que seria razoavel, dando 4.000.000 de afti- cinos importados e distribuidos conforme as seguintes proporcdes, aproximadamente: 38°,, para o porto do Rio de Janeiro, de onde eles foram redistribufdos para os estados do Rio de Janeiro, Minas Gerais e Goitis; 25°, para o estado da Bahia: 13%, para o estado de Pernambuco; 12", para o estado de Sio Paulo: 7, para o estado do Maranhiio, ¢ 5°, "para o estado do Para, © papel do negro eseravo Foi decisivo para os comegos da hi {Gria econdmica de um pais fundado, como era o caso do Brasil, sob o signo do parasitismo imperialista, Sem o escravo a estrutura econdmica do pais jamais teria existido. O africano escravizado construiu as fundagdes. da nova sociedad com a flexio e a quebra da sua espinha dorsal, quando ao mesmo tempo seu trabalho signi- ficava w propria espinha dorsal daquela coldnial Ele plantou, ali- mentow e colheu @ riqueza material do pais para o desfrute exclusi- aristocracia branca. Tanto nas plantagdes de cana-de-agiicar © café e na mineracdo, quanto nas cidades, o africana incorporava 8 ¢ os pés das classes dirigentes que nfo se autodegradavam 49 em ocupacées vis como aquelas do trabalho bragal. A nobilitante ocupagio das classes ditigentes ~ 0s latifundiarios, os comerciantes, 195 sacerdotes catdlicos ~ consistia no exercicio da indoléncia, 0 cul- tivo da ignordncia, do preconeeito, e na pritica da mais licenciosa luxéria, Durante séeulos, por mais incrivel que parega, esse duro ¢ ig- nobil sistema escravocrata desfrutou a fama, sobretudo no estran- geiro, de ser uma instituiglo benigna, de cardter humano. Isto gra gas ao colonialismo portugués que permanentemente adotou for- mas de comportamento muito espectficas para disfarcar sua funda- mental violéncia e erueldade. Um dos recursos utilizados nesse sen- tido foram a mentira ¢ a dissimulagio. A consciéneia do mundo guarda ber: viva a lembranga do colonialista Portugal encobrindo sua natureza racista e espoliadora através de estratagemas como designacio de “Provincias de Ultramar para Angola, Mogambi- que © Guiné-Bissau; como as leis do chamado indigenato, proscre- vendo, entre outras indignidades, a assimilagio das populagdes africanas & cuttura e identidade portuguesas. Essa rabulice coloni- zadora pretendia imprimir o selo de legalidade, benevoléncia © ge- nerosidade civilizadora a sua atuado no territorio afticano, Porém todas essas e outras dissimulagdes oficiais nao dissimularam.a reali dade, que consistia no sague de terras € povos, © na repressio e ne- gagio de suas culturas ~ ambos sustentados ¢ realizados, nfo pelo artticio juridico, mais sim pela forea militar imperialista, Semethantes distorgdes da realidade so comuns no “mundo que o portugues criou”, sempre na tentativa de erigir uma fachada mascarando a idcologia imperialista. Nao so fatos apenas do pas- sado, Nos dias de hoje, no Brasil, herdeiro das tradigdes eseravagis. tas de Portugal, pratica-se impunemente falsificagdes dos fatos his toricos. Dante Laytano, por exemplo, em publicacio oficial do M nistério da Educacdo e Cultura - Campanha de Defesa do Folelore, afirma que A entrada do negro no Brasil foi simultinea com a descober- tw do pais. Ele conhecia a escravidao, cultivava-a, e pratiea: va-a como um sistema politico. A escravidio era praticada na propria Attica. Os prdprios africanos transplantaram-na para a América. ” (énfase minha) Aqui temos reunidos a agressio, o desrespeito humano e histé= Fico, como um evento normal, jé que se pratica tudo isto com fre- ‘ligncia e extensamente. Dir-se-ia que a forga da repetigdo mutilou a cupacidade de percepgdo e compreensio de certas pessoas. Consi- deremos outra amostra, 0 critico Clarival do Prado Valladares, ex membro do Conselho Federal de Cultura, Foi ele membro do juiri 50 de premiagio do I Festival Mundial de Artes Negras, em Dacar, 1966, ¢ atualmente € 0 coordenador-geral da representagdo gover namental brasileira ao I Festival Mundial de Artes e Cultura Ne- gras © Africanas, Lagos, realizado entre 15 de janeiro a 12 de feve- reiro de 1977. Apés retornar ao Brasil do Festival de Dacar, em 1966, Valladares publicou o seguinte julgamento em artigo sinto- mitico intitulado 4 defasagem africana ou Crénica do I Festival de Antes Negras (Os brancos no cagavam os negros na Africa, mas os com- pravam pacificamente dos tiranos negros. Acrescenta depois que ‘Assim nao é surpresa que a melhor compreensio e aniilise da Africa nao € encontrada entre os africanos porque: no que diz respeito a dimensio hist6rica, parece existic um certo sentimento de inferioridade que é africano. Por isso nio € possivel apresentar um texto histérico correndo paralelo queles dos paises ocidentais. * (énfase minha) Uma observagdo que nos ocorre imediatamente & leitura deste trocho ¢ aquela referencia a uma suposta inferioridade africana: no seria também verdadeira a reciproca, isto é, que Valladares exibe, sem nenhum pudor, seu sentimento de superioridade que é euro- peu? Por essus ¢ outras razdes inconfessaveis, tem-se distorcido 0 ppassado ulticano: por motivos e interésses andlogos, intelectuais esse tipo teeeram tm véu de silencio a respeito das circunstancias que envolveram a sorte de cerca de cem milhdes de africanos (esi mativat do falecido eseritor Richard Wright), os quais foram erimi nosamente escravizados ou assassinados pelas armas dos coliniza- dores ocidentais: forea armada utilizada também para proteger 0 roubo das terras africanas, a ocupagdo do seu territério através da ameaca ¢ da corrupcdo dos chefes tribais; ainda a forea armada ga- Fanti a apropriagto indébita da riqueza mineral da Africa e dos seus tesouros artisticos que ainda hoje se exibem como pegas per tencentes a famosos museus europeus. Ndo mencionam, esses escri- tores de to ligeiros julgamentos do continente negro, as fortalezas das poténcias imperialistas edificadas ao longo das costas africanas como apoio logistico ao permanente estado de terror em que eram Mmantidas suas populagdes, Tais jutzes da Africa fingem ignorar a ‘muralhi de silencio erguida pelos opressores em torno da historia afvicana para que pudessem manipular sua prépria e conveniente versio do continente “escuro, misterioso e selvagem™ Outro dos mitos de conveniéncia inventados para mitigar conscigneia de culpa do opressor e minimizar acusacdes contra ele, €0 mito que apregoa um alto grau de bondade ¢ humanidade na es. st cruvidio praticada na eatética América Latina: as coldnias espa- nholas ¢ portuguesas: nestas, o eardter do regime eseravocrata seria © oposto daguele existente nas coldnias inglesas na América, espe- cialmente nos Estados Unidos. Este mito, Lio propagado nos sécu- Jos passados, ainda hoje tem seus adeptos, Entre os seus varios pro- pagadores atuais, consta 0 nome de Hortensia Ruiz del Vizo, que 1 introdugio a sua antologia, ineluindo o Brasil, Black Poetry of the Americas (Poesia negra das Américas), afirma: A escravidio na América Espanhola colonial néo foi tio dura como a mesma instituigdo na América Inglesa. (..) V rias influénei ram a dureza da instituigdo, Uma destas foi a influéncia da Igreja Catolica, Este mito constitui mais uma entre as incontveis manipula «des que tém contribuido a0 sucesso da propagagio de outro mito: a “democracia ra Em verdade, o papel exercido pela igreja catdliea tem sido aquele de principal idedtogo e pedra angular para a instituigio da escravidio em toda sua brutalidade. © papel ative desempenhado pelos missionirios eristaos na colonizagao da Africa nio se satisfez com a conversao dos “infigis", mas prosseguiu, efetivo e entusisti- ‘co, dando apoio até mesmo A crueldade, a0 terror do desumano tri- fico negreito, Um famoso jesuita, 0 Padre Anténio Vieira, célebre orador sacro, na Bahia de 1633 pregava aos escravos nestes termos: Escravos, estais sujeitos e obedientes em tudo a vossos se- nhores, ndo 36 aos bons © modestos, senio também aos maui e injustos... porque nesse estado em que Deus vos pés, €2 vossi vocagio semelhante d de seu Filho, 0 qual padeceu por nds, deixando-vos o exemplo que haveis de imitar. Vieira, tido € havido como exemplo da piedade e caridade cris- ts entre 08 catdlicos, aconselhava aos cativos: Deveis dar infinitas gragas a Deus por vos ter dado conheci mento de si, € por vos ter tirado de vossas terras, onde vos- 0s pais ¢ vs vivieis como gentios, e vos ter trazido a esta, onde, instruidos na fe, vivais como cristdios e vos salveis. Se 0 desejo maior dos cristdos & a salvacdo pela imitacdo de Cristo, sou estranho que o pio sacerdote ndo tenha pregado o rmartirio da eseraviddo para 0s brancos europeus. Segundo sua I6gi- a, este seria 0 caminho direto para 0 c&u... Mas 0 raciocinio de Vieira niio passava de mera ideologia & servigo do opressor, ese ele cra um sacerdote catélico, 0 outro ramo do cristianismo ~ 0 ramo protestante ~ atuou na mesma diregdo. Com quase idénticas pala- ‘ras, 0 pastor inglés Morgan Goldwin dogmatizava aquela época: © Cristianismo estabeleceu a autoridade dos senhores sobre seus Servos € escravos em tio grande medida como a que os 2 proprios senhores poderiam havé-la prescrito... exigindo a mais estrita fidelidade... exigindo que se os sirva com 0 cora- io puro como se servissem a Deus ¢ nio a homens... E esti tio longe de fomentar a resisténcia que nio permite aos es- avos a liberdade de contradizer ou a de replicar de forma indevida a seus senhores, E-lhes promete a recompensa futu- ra no eéu, pelos leais servigos que tenham prestado na ter- Tais sio os exemplos da “mitigacdo” dispensada pelas igrejas catdlica e protestante aos eseravizados. Fica evidente que a ideolo- ‘gia expressa por Vieira, da aceltagéo humilde pelo escravo de toda orte de abusos, mesmo os “maus e injustos™, ndo faz mais conces- ses & desgraguda vida didria do cativo do que aquela assumida pelo sacerdote protestante. Cristianismo, em qualquer das suas for- nas, nfo constituiu outra coisa que aceitagdo, justificacao e elogio i instituicao eseravocrata, com toda sua inerente brutalidade e de- sumanizacio dos africanos. © mito da influéncia humanizadora da igreja eatdlica procura exoneri-la de suas implicagdes na ideologia do racismo sobre a qual a escravido se baseava. A atitude da igreja relativamente ao negro- africano pode ser iluminada por outro sermio do mesmo padre Vieira, este pregado em Lisboa em 1662: Um etiope que se lava nas aguas do Zaire, fica limpo, mas (0 fica branco: porém na do batismo sim, uma coisa © ou- tra." Segundo a oratéria de Vieira, as aguas do batismo cristo pos- suiam as diversas virtudes justificativas do escravizamento do afti= ano e, mais ainda, tinham 0 poder migico de erradicar sua propria raca ~"um desracado limpo € branco! O racismo dbvio implicito € explicito no conceito dessas éguas misticas que tornariam 0 africa- sig num branco-curopeu, estado considerado pela igreja como lim- po ¢ patentemente superior a0 negro-africano, imediatamente des- {roi certas alenagdes de que o cristianismo e, especificamente, 0 ca- tolocismo, eran’ inocentes neste assumts ue racismo. Os defensores da tese da escravidio “*menos dura” no Brasil do ue em outras partes das Américas, freqiientemente citam como apoio ao seu ponto de vista, a formagao e © encorajamento das “nagdes” Einicas e das fraternidades religiosas As nagées, organizagdes de escravos baseadas frouxamente sobre lacos étnicos, eram espécies de cooperativas de socorro mui= two ou sociedades de ajuda, com implicagdes de cunho social.e cul- tural. Instituidas pelas autoridades oficiais, as vezes provocavam Feagdes de desapreco em certa classe de pessoas. Na Bahia, hé o 33 ee cxemplo de vigorosos protestos contra “negras e negeas vestidos de Pens, rosnando toadas aficanas fazendo bitbaro tumor com sore gisttumentos rudes. ” A cena descrita por esse brasileiro indignade Ea de um baruque: uma das freqientes, ou 20 menos periddiees a lcbracdes promovidas pelas “nacdes” Sob a aprovagto das autor dades governamentais; o festival tinha sua énfase na musica, mo canto, na danca, afticanos, O fato desses folguedos terem sida nao 86 permitidos, mas, encorajados, pelos ditigentes da colonis tee sido enfatizado pelos erentes no mito da escravidio benevolente como mais um ponto de reforco & sua f. Isto provaria a tolesancly dos senhores para com seus escravos. Muito diferente crenga a ove Os bannques vistos pelos olhos dos funcionérios governa ‘mentais sio uma coisa; para os individuos particulares so utra completamente diferente. A diferenca ¢ profunda, Es tes véem o barugue apenas como uma pritica que vai conten © respeito dominical... Para o governo, porém, o batuque € lum ato que, uma vez. por semana, forga todos os estos — automaticamente e sem conhecimento consciente ~ 2 reno- vat aqueles sentimentos de aversio mitua que eles t&m por Concedido desde o nascimento, mas que, tendem gradual. mente a desaparecer na atmosfera geral de degradagao que é Sua carga em comium, Esses sentimentos de hostilidade mic tua podem ser vistos como a mais poderosa garantia que as maiores cidades do Brasil desfrutam, Suponha que um dia as varias nacoes africanas esquecessem sua tradigio de ddio, inculeado de uma para outra. Suponha que os daomeanos ¢ os nagds, os geges (ewes) ¢ os haussas, os tapas e os congos, fe lornassem amigos e irmius: o resultado seria uma espan, {osa ¢ inelutavel ameaca ao Brasil, que terminaria com a de. solagio do pais inteiro, * Outra instituigio também arrolada para fundamentar a supos- {1 benignidade da nossa escravidio ndo-racista sio as fraternidedes religiosas mantidas pelo cristianismo, Diégues Jr., membro do Con, selho Federal de Cultura, em trabalho oficial apresentado pelo Bra sila FESTAC "77, em Lagos, reitera a opinido tradicional a0 foo lizar essas corporagies religiosas: Cada Igreja que se fundava, logo surgiam uma irmandade dos brancos, em geral a do Santissimo Sacramento, ¢ uma ir, mandade dos negros, quase sempre a de Nossa Senhora do Rosirio, Esta divisio nfo constitufa a rigor uma diserimin- s ioc antes sail ee sag do eo como ser vo. Era, portanto, uma forma de estratficagio, menos pela tor proprament, anes pela osiglo soca devorrente do regime eseravagista,” : Exe tpo de raconalizago constitu um modelo ds igeteia das classes governantes tentando o impossivel: provar a auséncia do ic sage er § to aoe go re meni, apresetando #eratieseo socal com oposta 3 ra no resi ms superfine, que oa aa de de ao determina povie soc Os anno pr) ocx peus (brancos),& que foram escravizados; este 0 fato hisrico q fonta verda ccardter e fungio das fraternidades rel receuu compreeno ds Roger Bastde gue oexplicou ae sopunte MADEN sabeciot (uk OvaaNTOpeUR NUMA SOP eseravos detin- giientes para esses governadores |das organizagies fries rnas| a fim de serem julgados, setenciados, ¢ punidos. Dessa maneira desviavam 0 ressentimento que o eseravo, de outa maneita, sentria contra o seu sephor, enquanto este poderia Contar com a manutencio da boa ordem ene seu "reba- nho™.. Nos palses catdicos esta fungio disciplinar era mo- nopéiio das fraternidades religiosa. cial” no Brasil ela se loculiza na mistifieagdo da sobrevivencia cul tural arcana, Este fundamental argumento se revese de eave pe Hg pins plo tm id seu, cenkr de apa spl em lusidstico suporte, Postula o mito que a sobrevivencla de wacos da r sociedade brasileira teria sido 0 resultado de re- legs reads © amie ere seme ¢eeraos, Cand tes con elemaslaintagal de culars bres Perla OUT tee tos comprovuntes di aunénci de preconcsitoe dserim naglo racial Jos brasieiros “orancos", Os beitos desta tese sia muitos” eles Conan tiny ad ao pensamento ettene ease da corrente prineipia com Gilberto Freyre na décuda de 30c tem hoje suit continuidude no pais e até na prépria Africa com a pregacto de Pere Verger oa Unveridad def” Wege se revel uh ret ‘oso acélito dos porta-vozes da tradicdo naguilo que se convencio- ‘Gm lugar eelevante os ja citados Freyre, Luls Viana Filho e outros. Apoiando seu raciosinia,tpico da tendéncia consersadora, Piette Verger reitera essa mistificagao das sobrevivéncias culturais da se- cultura africana 35 Especialmente dur: eri Especilment csurint® © petiodo da escravidto, raramente Sid eriada pag tat uma crianga branca que indo tvesse 2 para donna ama negra, que amamentava-acninaves prime rit em seus bracos ou na rede, eensinavia a elas mente orpeaat#s &m_portugués estropiado. Indubitavel, Tama ou com emrendlt a falar, mas fegientemente, com See on le-quarto, do que com os préprios depois, auando os afticanos extavam seo lore negroseroulose mulats se juntaran ns eee darcavam da mesma manic, o git levou| Kose ones tar que estas dangas eran ido’ representations go ee ino q lo 0 eram da Africa. (p. i) ms Apés demonstiar que wise 6 verdade que os escravos foram into senor pong eae quay STEEL sero Brasil un amdpanre ed ee 3) trancos connie, preconceito ou discriminagio demonstrad: Read is lescendentes africanos: nem culturalmente ne mee i cements yrem sovialmente. Ele afirma enn eco- | Os bros tem oraulho dos sean tragos nacional fanados a, vigoroso cruzamento de Sane | ualguer maneira esta 6 visio deen inte f peizados através © igualmente verdade que o I harmonioso no hes pelos representantes do governo em conferéncia: aernae pale, mente nega toda possivel credibilidade & “democracia racial”, Thas|/~ | | les de Azevedo cita as scauintes ocorréncias publicadas no vespert no O Globo do Rio de Janeiro: 0 Globo, Rio, 12.2.1969, “Portela vé Imprensa a Servigo da Discriminagao Racial para Conturbar.” Publicando telegra ma procedente de Brasilia, 0 jornal informa que o General Jaime Portela, em exposi¢do de motivos ao Presidente da Repiiblica sugerindo a criacdo da Comissio Geral de Inqué- rito Policial-Militar, datada de 10,2.1969, refere-se a conclu- sdes do Conselho de Seguranga Nacional sobre ages sub- versivas e afirma: “No contexto das atividades desenvolvi- das pelos esquerdistas, ressaltamos as seguintes: (item 9) ~ Campanha conduzida através da imprensa e da televisio em ligagdo com érgdos estrangeiros de imprensa e de estudos in- ternacionais sobre diseriminacao racial, visando a criar no- vvas dreas de atritos ¢ insatisfacao com o regime ¢ as autori- dades constituidas.”” * A proposta Comissio Geral de Inquérito Policial-Militar evi- dencia o jt mencionado propésito e objetivo de intimidar e silenciar 4 discussio publica do racismo e da discriminagio racial. Uma es- 9 tranha “democracia racial” que e i, como as conclusdes do Conselho de Seguranga Nacional reco- nhece, “reas de atrito ¢ insatisfagio com o regime e as autoridades constituidas”, tanto estas, como qualquer outra area nova que se silo da exclusiva responsabilidade dos militares que impuseram uma “revolugdo” contra os desejos do povo. Isto nada tem a ver com os Orgdos de estudos internacionais ¢ da imprensa esteangeira interes- sada nesses estudos. Lima vez mais nos soeorremos do estudo public cado em Londres pelo grupo de pesquisas: O crescimento da consciéneia negra é desencorajado pela re- usa da sociedade em conceder ao cidadio negro a oportuni- dade de realizar sua integra identidade ~ inclusive seu eu ne- gro ~ negando o significado que o desenvolvimento do negro (politico, social, ¢ cultural), tem para ele em particular e para o Brasil, em eral.” A. Silva Mello nota com toda razio: Até 0s dias de hoje ele| o negro| tem sido julgado pelo bran- co, um juiz completamente tendencioso em seu proprio ines fesse, certamente mais que parcial injusto, quando no fla. grantemente criminoso. * F. Tal €0 caso, por exemplo, de ‘igueiredo, o escrix tor portugués mencionado paginas atris. Suas palavras sin exem. plares ¢ oportuna: E significativo que no Brasil, tal como na Africa do Sul, se tenha preferido o recurso a legislagio repressiva para classi- ficar a discusso da questo racial como subversiva e tema proibido. Foi este também o erro que cometeu o sistema Sa- lazar-Cactano, que, depois de décadas de titica hipocrisia, tardiamente se langou no expediente do inter-racialismo fi. gurativo. Mas a realidade brutal que os brasilciros tém de aceitar & que o racismo & em toda a parte diferente, e em toda a parte © mesmo ~ varia em estilo, mas ndo em esséncia. As Forgas do progressivismo ideolégico est4o agora ocupadas com a 80 Rodésia ¢ Africa do Sul, mas cedo ou tarde se voltario para © Brasil ¢ porao a descoberto a nudez forte da verdade social {que se esconde sob 0 manto difano da fantasia e da propa- ganda.” 81 Vu. DISCRIMINACAO: REALIDADE RACIAL ‘Até 1950, a discriminagao em empregos ‘era uma pritica corrente, sancionada pela lei consuetudindria, Em geral 03 anincios procurando empregados-se-purblieavam com a explicita adverténcia: “no se aceitam pessoas de cor.” Mesmo apés a lei Afonso Arinos, de 1951, proibindo categoricamente a dis- ctiminacdo racial, tudo continuou na mesma. Trata-se de uma lei ‘que ndo € cumprida nem executada. Ela tem um valor puramente simbdlico. Depois da le, os antincios se tornaram mais sofisticados ‘que antes: requerem agora “pessoas de boa aparéncia™, Basta subs- Lituir “boa aparéncia” por “branco” para se obter a verdadeira sig- nificagio do eufemismo, lenciona-se ainda que mesmo esta lei antidiscriminatéria alei- jada, sem execu, niio resultou de nenhum gesto espontaneo de parte dos legisladores. Eia foi reivindicada, ao lado de outras medi- das de amparo ao afro-brasileiro, pela Comengio Nacional do Ne- s/o, realizada em Sao Paulo, em 1945, da qual fui o presidente. No ano seguinte o Scnador Hamilton Nogueira (U DN) propds essa le- gislagio & Assembléia Nacional Constituinte, que a rejeitou sob pretexto de “auséncia de fatos concretos”. Em 1951 0 congresso aprovou a Tei novamente apresentada, desta vez pelo deputado Alonso Arinos. © mito da “democracia racial”, to corajosamente analisado por Florestan Fernandes, orgulha-se com a proclamacao de que © 82 “Brasil tem atingido um alto grau de assimilagao da populagao de || cor dentro do standard de uma sociedade prospera™. Muito pelo sO estado da Bahia exibe dramaticamente esta tuacio do afro-brasileiro despossuido. Conforme o censo de 1950 a populacio daquele estado, de 4.822.024, se distribuia da seguinte ‘maneira: Brancos ~ 1.428.685 ....... Negros @ mulatos ~ 3.393.183 .. Ocupacionalmente a distribuigdo era: Empregados: Brancos . Negros © mulatos Empregadares Brancos . Negros ¢ mulatos . (de quase nenhuma significagio econdmica) Os pequenos “negdcios”, os quais regra geral nfo vdo além de modestos vendedores de rua, nos quais 05 negros participam como “empregadores”, nao tém virtualmente nenhuma signilicago eco- némica; enquanto a categoria dos brancos empregadores tém 0 co- mando dos meios de produgio, do mercado, dos recursos financei- ros, enfim detém nas mios & economia do estado em todo seu peso © extensio. ‘A participagio do negro no sistema educativo da Bahia, em porcemtagem, € a que segue: sossesssneeesssss5190% A811, Elementar — Secundéria Universidade Brancos 54.46% 82.56% 88.21% Negros ¢ mulatos 45.52% 17.43 “pais, No nordeste ~ Recife e outras cidades da area ~ a mor negro & © mocambo, geralmente infestado de germes © mosquitos das iguas poluidas e estagnadas em cujo meio ou vizinhangas se lo- calizam, Em Sio Paulo a moradia mais comum era 0 pordo e, recen- temente, as zonas chamadas de favela; 0 retrato de corpo inteiro da Favela paulista esti no livro de Carolina Maria de Jesus, Quarto de 8 ¥ despejo, um terrivel testemunho da vida da auitora na Favela, Tradu- vido pura varias linguas, Quarto de despeja & um dos raros livros brasileiros de circulacio em varios paises: Carolina Maria de Jesus, apesur do éxito internacional do seu livro, aeaba de falecer em Si Paulo nas mesmas condigdes de favelada, A Folha de So Paulo, em editorial de 16 de fevereiro de 1977, intitulado “A Catadora de Pa- . se refere a Carolina de Jesus nos seguintes térmos: foi ao mesmo tempo protagonista e eronista de um dos mais dolorosos dramas desta cidade: o de um submundo ha- bitade por homens e mulheres aos quais falta 0 minimo ‘que (én direito ~ pela sua simples condigdo humana, Mais adiante 0 editorial desvanece qualquer esperanga de uma mu- danga para melhor: +» 0 TelFato Sem retoques exposto por essa escritora iletrada permanece sem maiores modificagdes até hoje, Ao contré- rio, & até mais pungente, em nossos dias, o quadro que Quar- 10 de despefo nos aponiava, No Rio de Janeiro, solre a populagdo negra a humilhagao-e a simultiinea degradagio - das favelas, que se dependuram nas encos- Las dos morros,e por esse motivo se tomnaram famosas pelo pitores- co de seus barracos e do seu ambiente. Nao foi por outra ruzio que fizeram num morro earioca o filme Orfew Negro lo. Uma representativa amos- tra da referidu “integragdo do negro na prosperidade nacional” pode ser tomuda na situagdo apresentada pelo Rio de Janeiro. O iradicional didrio O Estado de S. Paulo, em suplemento especial de 13 de abril de 1960, publicou os seguintes niimeros de uma pesquisa realizada em 1950: Populagio do Rio: Brancos 1.060.834 Negros ¢ mulates 708.459 Populacdo das faselas: Brancos 55.436 Negros e mulatos -113.218 Estes algurismo revelam que, para quase cada dois © meio ha- bitantes do Rio, um € negro; porém para cada habitante branco das favelas, quase dois ¢ meio so negras. Em outrus palavras: 05 ne- gros compéem menos da metade da populagae total da cidade, mas proporcio que ocupam nas favelas aleanga mais do dobro da eifta apresentada pelos brancos. Assim se caracteriza uma indiscutivel habitacional, Ji os mal-intenciofiados ou ingénuos estario dizendo, - “Ora, os negros vivem nas favelas porque querem, porque escolheram as: ; Ou entiio porque nao 1ém dinheiro, mas nunca por questdes de Se os negros vivem nas favelas porque no possuem meios para lugar ou comprar residéneia nas dreas habitiveis, por sua vez a fal- ta de dinheiro resulta da discriminagdo no emprego. Se a falta de emprego & por causa de caréncia de preparo técnica e de instrugao adequada, a falta desta aptiddo se deve & austneia de recurso finan- ceiro, Nesta teia 0 afro-brasileiro se v8 tolhido de todos os lados, prisionciro de um circulo vicioso de discriminacdo - no emprego. na escola ~ ¢ trancadas as oportunidades que permitiriam a ele me- Ihorar suas condigdes de vida, sua moradia inclusive. Em 1959, quase uma década apés a promulgacdo da lei anti- discriminatoria “Afonso Arinos”, 0 preconceito racial fora mencio- nado pelo O.Jomnal do Rio de Janeiro ~ 6 de junho - como o pri pal fator de desemprego. O resultado de uma pesquisa conduzida nna entdo capital do pais pela diretoria da Secao de Colocagdes do Ministério do Trabalho revelou Com efeito, candidato de cdr, mesmo com habilitagéo, para o comércio, escritérios, cinemas, consultérios, portarias, ba- res, hospitais, firmas estrangeiras e outros estabelecimentos ue exigem pessoas de “boa aparéncia’”, ndo conseguem tra- Galho. (2) Bo preconcsito de cor que se encontea em pri meiro higar como fator de desemprego, em seguida vérm a lade € a nacionalidade, Idéntica situagdo ocorre em todos estados com significative populagio negra. O London Fines (transcrito em O Jornal de 25 de abril de 1960) publica que a “... discriminagdo racial realmente exis- 85 te no Brasil, apesar de que muitossbrasileiros negam este fato.” O artigo conti De um modo geral os negros ndo conseguem promogdes fi- ceis, nfo 86 nas atividades eivis, mas dentro dus forcas arma- das. Assegura-se que a razdo disso esta no seu nivel de edu- cagto inferior. Mas um gargdo negro & coisa rara num hotel ou restaurante de qualidade, e as grandes lojas nunca os tém a seu servigo como baleonista, Nao estamos no momento interessados na apresentagdo de uma aniilise pormenorizada dos aspectos recém-mencionados do rucismo, Os nimeros, eniretanto, so eloglentes ¢ falam por si mesmos. Ea despeito das limitagdes do presente trabalho, acredito haver tocado, ainda que brevemente, a superficie dessa teratologia social. Ainda no plano estatistico, queremos loealizar alguns dados referentes ao nivel nacional. Segundo o censo de 1950, a populagao do pais somava 1.944.397, com a seguinte distribuigdo: "” Brancos .....2----++1.32.027.661 -... cones 61.6% Negros © mulatos ....... 19.479,399 ce 37.6% istribuicao ocupacional Enypregadores Brancos .. . cee 82.66%, Negros © mulatos ... 15.58% (de quase nenhuma significagdo econémica) Distribuigdo educacional: Elementar — Secundéria — Universitdria Brgncos 90.2", 96.3% 97.8% Negros ¢ mulatos 6.1% Lay 0.6% Estes algarismos esto sujeitos 4s mesmas qualificagdes ¢ limi tagdes daquelas relativas as estatisticas mencionadas anteriormen- te. O primeiro tropeco est na auséneia de informagdo sobre raga ¢¢/0u etnia nos censos realizados depois de 1950, prejudicando 0 exame € a configuragio real da situagio corrente; entretanto, para estas reflexdes, usaremos os dados pesquisados naquele ano como uma espécie de parimetro jd que desde aquela data a estrutura so- ciorracial continua inalterada. Segund. negra, usando-se o critério da classificagio fenotipica, ou seja aque- la baseads na uparéncia, Se nossa perspectiva, entretanto, observas- se uma link rigorosamente racial, classificaria todos os brasileiros com sangue de origem alricana como negros, ¢ chegariamos a con- clusio de que o Brasil € de fato um pais negro. De fato e nao de con- ccitos tedricos, jé que perto de oitenta por cento da sua atual pop lago de 110.000.000 de habitantes estio definitivamente “contami nnados” com o sangue de origem africana; © Brasil se erige como 0 segundo maior pats negro do mundo. $6 excedido, em populagdo de ascendéncia africana, pela Nigéria. E 0 que sugere imediatamen- te tal verificagao? Simplesmente isto i I, Separadas na geografia ¢ nos respectivos métodos, porém iguais em seus efeitos funestos. Como Thales de Azevedo mostra: Verificam-se discriminagdes indisfurgiveis em seus efeitos coletivos através ds histdria nacional, no casamento, na ad- isso aos elubes ¢ associagdes recreativas, nas irmandades, nas escolas privadas, nas ordens religiosas, em cargos e car- reiras que tém sido privilégio das classes altas ou, pelo me- nos, dos socialmente brancos como a diplomacia, ¢ as eama- das mais clevadas da representagio politica, da governanca, Gas forgas armadas, do clero, do comércio, dos bancos, da indaistria Anani Dzidzienyo em seu estudo diz o seguinte a respeito da posigio oficial dos negros brasileiros relativamente a0 controle de sua propria circunstaneia: 87 VIL. IMAGEM RACIAL INTERNACIONAL A imagem racial internacionaimente projetada pelo Brasil ofi= cial, entretanto, € outra bem diferente desta que acabamos de ex- por. Em 1968, para exemplificar, um delegado do Brasil nas Nacdes Unidas, durante a discussiio da doutrina apartheista da Africa do Sul, afirmou o anti-racismo do pais, declarando o seauinte: Essa posigdo € conhecida € € invaridvel. Ela representa a es- séncia mesma do povo brasileiro, que nasceu da ustio har- moniosa de virias ragas, que aprenderam a viver juntas e 8 trabalhar juntas, numa exemplar comunidade. ' Esclaregamos de inicio que essa delegacdo se compunha exclu- sivamente de brancos; um dos setores tradicionalmente mais dis minadores contra negro é precisamente o Ministério de Relagdes Exteriores. Nao temos embaixadores de cor negra e nem qualquer negro na funcao de representante dipiomatico, enquanto até os Es- tados Unidos, pais notoriamente racista, delega a algumas dezenus de negros a chefia de suas missGes diplomaticas em diversos paises do mundo. A prépria missio dos Estados Unidos junto as Nagdes Unidas esti, no momento, encabegada por um negro: o embaixador Andrew Young. A declaracdio do representante brasileiro nfo ultra- passa o significado de mondtona reiteragio de principios, de card- ter puramente formal; seu conteiido demagégico ¢ aquele mesmo ‘que Joaquim Nabuco ja denunciara no século pasado. Declaragdes desse teor soariam como um insulto a inteligéncia da comunidade negra, se jf nZo fossem, em si mesmas, um sintoma de insensibilidae de moral e desprezo pelos direitos humanos dos afro-brasileiros, 0 ue Ihes tira significagao ou valor diante da opinizo progressista do mundo, 88 Interessante diagnéstico, no ziza que o Brasil se vé foreado na tentativa de mascarar a situagio racial do pais, se encontra no de- poimento de Charles Wagley, professor da Columbia University Ele foi um dos pesquisadores credenciados pela UNESCO para di- rigir no Brasil uma investigacdo de relagdes raciais. Apés 0 término de pesquisa 0 Professor Wagley contou o seguinte E curioso que, embora esses estudos da UNESCO tivessem sido motivados pelo desejo de mostrar uma visio positiva das relacbes raciais numa parte do mundo (i. ¢., no Brasil), de que se esperava pudesse 0 resto do mundo aprender algu- ‘ma coisa, acabaram por modifiear a opiniaio que o mundo ti ha até enti das relagdes raciais no Brasil. Sucessos dessa natureza nao surpreendem, se no perdemos de ‘a imagem que o Brasil tao euidadosamente (e inescrupulosa- mente) desde sempre tenta erigir para consumo dos cireulos inter- nacionais. Evoquemos um acontecimento de 1972. No Conselho Econdmico e Social das Nagdes Unidas se apreciava relatorio da UNESCO, no qual o Brasil e os Estados Unidos eram mencionados quando focalizava 0 apartheid. A reagio da representacdo brasile ra, como de costume, foi de enfitica indignagio. O Estado de S. Paulo reproduriu o seguinte telegrama de New York: breve relatério da UNESCO ao Consetho Econdmico ¢ Social baseou-se em dados do Centro Brasileiro de Pesquisas Edueacionais do Rio de Janeiro, colhidos em 16 de abril de 1966 a 19 de dezembro de 1967, O relatério menciona que a Lei 1.390, em vigor desde 3 de julho de 1951, considera deli- {os penais os atos motivados por preconceitos de cor ou ra- a, ¢ proibe a discriminagao na matricula de estudantes ba- seada em preconceito racial ou de cor. Gontudo, o relatério alega que a Iei no conscgue impedir que os usos ¢ costumes sociais ~ herdados da época da escravatura ~ provoquem uma disereta forma de discriminagdo racial, retletida espe- cialmente no Sul do pais, onde nao hd integragao do negro na vida social brasileira © despacho telegritico acrescemta que o delegado brasileiro as Nagdes Unidas esereveu uma carta de protesto ao Secretario-Geral, na qual © embaixador Frazio disse que 0 Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais é uma organizagio de pesquisas cu- Jas conclusdes nao podem ser aceitas como definitivas em to- ‘das as matérias. Frazio declarou que o governo brasileiro nd endossa o ponto de vista segundo o qual o Brasil man- tém us0s e costumes sociais eapazes de levar a concluir que 89 “existe no pais alguma forma de diseriminagao racial." O re: Dresentante brasileiro disse ainda em sua carta: “A opinigo contraria, de que 0 Brasil pode ser considerado unt bore exemplo de integragdo racial e harmonia racial, parece vee, tir bem mais acentuadamente a realidade social do pais" Prineira observacdo: a carta do delegado brasileiro repete os chavSes conhecidos, sem apresentar nenhum argumento wade ene Seu apoio: segunda: tenta desmoralizar 0 trabalho de pesquisa de uma agéncia se nao oficial, pelo menos oficializada emeresciern de todo respeito ¢ crédito: rerceira: a pesquisa revelou fatos e reads des, 08 quais 0 delegado procura refutar com “pont de ving’ e Pinido contriria”: quanta: tudo se resume na velha dlendrnele do dr plomati Joaquim Nabuco, uo afirmar que a mentira difundide so sstrangeiro permite ao governo nada fazer no plano interwe do ais, Basta a solucdo do avestruz: enteerrar a cabega na area mone diga’ dos sofismas.. No entanto, os sofismas outras dos riobranquenses do ltamarat, n trutura aticas da “magia branca” tém 0 poder de alterar a es- cist magistralmente descrita por Alvaro Bomilear: Os Grgios ¢instituicdes do poder piblico no Brasil, gover- io; 0s lezisladores, 0 sistema de justica eriminal, a policie, os intelectuais, « imprensa, ete., langam uma guerra contra 08 negros sem nenhuma piedade ou compaixde, uma guerra nuned de direta confrontagdo mas sutil e indireta, persegui- Gio persistente e sem pressa dessas vitimas do destino, pers vertendo ou negando a eles seus direitos civis, subvertendo Seu direito a educagdo, negando-thes assisténcia publica ou aualquer tipo de apoio oficial para custeio de educagio ou subsisténeia, F oportuno aqui recordar o cardier das declaragSes de princte Bio do Brasil nas Nagdes Unidas com respeito a0 colonialiome, Suas “posigdes”, “opinides” e “pontos de vista” foram invaring: mente contra © colonialismo; quando, porém, da abstracdo ¢ de \eoria, se passava a votaciio de medidas coneretas, particularmente durante 0 processo da descolonizagia da Africa, os registros dag Nagdes Unidas mostram que a atitude do Brasil se apresenton con Sistentemente vacilante, Ou o Brasil votava contra ou se abstinha de Trae. 9 que na pritica se traduzia em apoio ao stavus quo, Dos go. ternos brasileiros dificilmente se poderia esperar outra coisa, decde Gu eles tinham com Portugal salazarista até um acordo de consulta reciproca em assunto de politica internacional. O pais se achava aurelado is poténcias colonialistas. Nio & facil esquecer, entior verdade contida na sentenga de Octavio anni: “O Brasil é uma ine vengio do capitulismo europeu,”'"" 90 e o historiador José Ho- oi considrando esas values que 0 historaor Joe H nénig Rourgues,qustionando suas vantagens, suger Una pl i coneebida pura — vor , ecuperar o tempo perdido com o alinhamento com iugalsalazarista, desfaver imagem colonialist que cons. ruimos na Africa, "* “neste te Quando se considera a duplicidade do compotamen bas lio fice as nossa lage de rage qe vos caracterizardo nes figinas, surge com toda a naturalidade a pergunta: até que ex Tatars repserta um Kesto de aumizadare se telates postvas rreconizada politica brasileira em diregio& Africa? Tudo nao seia Soma today a nccngbensugerem mera femaiva de substituira influencia de Portugal colonatista, ulso da Africa pels stmae crag, por outa influgncia, desta verde um neo satenialinee brtalcia? Neo tignieatia'y sonsende dette pollden S contlnaicude dos terse exontinicay, pelficos-scohveas Guelas mesmas classes que tem tradicionalmente se enefcado com ‘opressdo e a exploracio dos alricunos e seus descendent: oro participants ofciis do Brasil no Coloquo do Segundo Festival de Artes & Cultra Negras em Lagos, Janeiro de 197, sus tear propa des imagem internacional do pa Se motives? Os de sempre e os de agora, quando o Brasil realiza {Quando companhias brasileiras de telecomunicagao aumentam sua Penetragdo nesse pas, ¢ mas brasileiras coneorrem para o ito Uisputido soniato de ediieagio da nova capital nigerian mo jan momento guando os nteesesbasiros nA modo gore jcular na Nigéria estio se tornando sempre mms cident © mls dessivoe yoru’ a promenade ds aes trancas dominantes do Brasil, seus representantes vém a Lagos pare rclorer ¢ oreienga econthicn Grasirae cberar netos ara reforgar presenga econdmi Jragom racial 80 pal Nas palavras de Antonio de Figueiredo, observador do FES- tigo ja citado - . . TAG pretennbrairacorrespondel,portanto, de axpiraSen da sua diplomacia, atualmente langadd em aumentar a pro- jecdo do Brasil na Africa moderna e principalmente na Nig Para a consecusio desta politica de aproximacto econdmica influgncia cultural, o Brasil tem indmeras vantagens sobre 1 maioria dos paises em processo de expansio, Nao tem, por fenquanto, um passado de implicagSes imperialistas como as poiencias europ. ias ¢ os Estados Unidos e, portanto, parece a oferecer possibilidades de um envolvimento menos peri 8 sua eondigio tropical permite he manter um enorme cendente técnico em varios ramos vitais, desde a medicina & agricultura © engenharia civil, arquitetura © empreitada de Gonstrucio de casas ar-condicionadas; a comunidad técnica irigente brasileira, em Lagos jd atinge as centenas; mas igualmente importante, claro, & a sua teputagao de ser “a Inalor democracia racial do mundo" ~ um fato que alguns brasileros (omam como sendo to incontestivel como ater ta ser redonda © que muitos estrangeiros, ¢ principalmente africanos, nunca viram contestado. (minha enfase) Ix. O EMBRANQUECIMENTO CULTURAL: OUTRA ESTRATEGIA DE GENOCIDIO Da clussifieacdo grosseira dos negros como selvagens ¢ infe- riores, ao enaltecimento das virtudes da mistura de sangue como tentativa de erradicagio da “manchta negra”; da operatividade do “sineretismo” religioso: ‘aboligio legal da questio negra através da Lei de Seguranga Nacional e da omissio censitiria - manipulan- do todos esses métodos € recursos, 7 Em adigio aos drgios do poder - 0 governo, as leis, 0 capital, as forcas armadas, a policia ~ as classes dominantes brancas tém & sui disposigio poderosos implementos de contrdle social ¢ cultural O sistema educativo, as virias formas de comunicagio de massas ~a imprensa, o radio, a televisio ~ a produgio literdria; todos ésses ins- 93 a mea lagdo ou/ e acultu- Fagio nao se relaciona apenas 4 concessio aos negros, individual- mente, de stanus social, mas restringe sua mobilidade vertical na so- ciedade como um grupo: invade o negro ¢ mukato até & intimidade mesma do ser negro e do seu modo de auto-avaliar-se ~ capaz de provocar em Florestan Fernandes esta dram aqui uma das razdes por que, nas palavras de Anani Dzidzie- nyo: _ A assimilagdo cultural & to efetiva que a heranca da cultura afticana existe em estado de permanente confrontagio com o siste- ma dominante, concebido precisamente para negar suas fundagoes ¢ fundamentos, destruir ou degradar suas estruturas, Examinare mos mais de perto os mecanismos desse desenvolvimento em capi tulos posteriores. Tanto os obsticulos tedricas quanto 0s priticos tem prevenido os descendents africanos de se afirmarem como integros, vilidos, auto-identificados elementos da vida cultural e social brasileira. Pois realmente a manifestagao cultural de origem africana, na integridade dos seus valores, na digifidade de suas for- ‘mas e expresses, nunca tiveram reconhecimento no Brasil, desde a Fundacio colonia, quando os afficanos c suas culturas chegaram 20 solo americano, Silvio Romero, notando as implicacdes de uma identidade cultural africana para 0 Brasil, registrou uma expresso que « um tempo explicava ¢ prevenia o pais oficial do seu tempo: “Nés temos a Africa em nossas cozinhas, América em nossas sel- vas, ¢ Europa em nossas salas de visitas”. 4Ja tive oportunidade, em minha Carta Aberta ao I Festival Mundial de Artes Negras, 1966", de manifestar repulsa aos pro- ‘Seer O que coincide ‘com 0 que observou Amilcar Cabral, herbi da libertaglo de Guing- Bissau, 20 dizer: il So soma 94 HO sistema educacional € usado como aparelhamento de con- trdle nesta estrutura de diseriminagdo cultural, Em todos os niveis do ensino brasileiro - elementar, secundario, universitario ~ 0 elen- cco das materias ensinados, como se se executasse o que havia predi- to a frase de Silvio Romero, constitui um ritual da formalidade eda ostentacio da Europa, e, mais recentemente, dos Estados Unidos. tS Tampouco na universalidade da Universidade brasileira o mundo negro-africano tem acesso. O modélo europeu ou norte- americano se repete, ¢ as populagées afro-brasileiras stio tangidas para longe do chio universitério como gado leproso. Falar em identidade negra numa universidade do pais €0 mesmo que provo- car todas as iras do inferno, e constitui um dificil desafio aos raros universitérios afto-brasileiros, Hit toda uma encenagle montada cujo escopo ¢ dissimular a realidude conereta do ensino universitério. A Universidade da Bahia, por exemplo, mantém um Centro de Estudos Afro-Orientais ‘6 qui se integra nat parafernaliautilizada no desaparecimento dos descendentes africanos sob a égide da miscegenacio. Em artigo Publicado na revista ofieial do Centro, Afro-dsia, scu entio diretor Waldir Freitas Oliveira redige a ideologia da instituigdo sob o titulo de Consideragies sobre o preconceito racial no Brasil". Aqui temos um indisputiivel testemunho daquilo a que 9 Centro se propde “es- tudar” e 0 que intenta combater: as poucas tentativas de auto- afirmagio dos alto-brasileiros. Acompanhando as sinuosidades da exposigio de Waldir Oliveira, deparamos que ap6s focalizar aspec- tos da nossa histéria, o autor chegi a conclusio de que o preconeci- to racial existe entre os brasileiros "com profundas raizes dificil de ser entirpado” (p. 17). Qual o remédio e a solugdo que Oliveira pro- poe? Nenhuma: isto Seria ir contra o0$ mandamentos de um “branco da Balhia™. Para éstes, todos 05 esos ¢ problemas de agressio no negro, 0 caminho é a evasio ¢ 0 endosso paternalista do ato agres- Sor. Oliveira nio peca contra os mandamentos, ¢ s¢ atira contra as vitimas ~ os negros, Calunia as poueas organizagdes que tentam se 95 opér ao preconceito ¢ a diseriminagdo, ¢ que se preacupam com a econquista da identidade © dignidade do negro, taxando-as de jendéncias desintegracionistas”, as quais poderio evoluir no sentido da formagio no Brasil de grux Pos raciais convivendo lado a lado, sem que venhiam a inte- rar-se definitivamente, © que poderé, num futuro longin- quo, conduzi parecida com aguela na qual hoje se encontram os Estados Unides ou a Africa do Sul. (p. 17) E profundarente lamentével que o Centro ainda ignore que as populagdes negra e branea estejam ha quatracentos anos “vivendo Jado a lado"; € uma pens que um centro dito de estudos nao saiba gue 0 negro € sua cultura sempre tém permanecido um estranho dentro da sociedade brasileira vigente, cujo jinico propésito, como © do proprio Oliveira, & que as populagdes afto-brasileiras desapa- recam, sem deixar rastro, do mapa demografico do pais. Por causa de diversos fatores, inclusive a caréncia de poder, os negros tem sido obrigados a accitar as imposigdes autoritirias da sociedade do- tminante, a ponto de permitir que a seu respeito se fagam definigdes do tipo daguelas feitas por Oliveira. a Uma técnica genocida de fazer inveja ao Salazar, Vorster, e Smith... Como um fanitico zelador da nossa “democracia racial”, Oli- io economiza munigdo em sua ofensiva geral contra 0 pequcno grupo de intelectuais negros no Brasil, que agi- tando a bandeira de defesa do negro, ainda ocupando na nos- sa sociedade os postas mais baixos e constituindo o grasso do nosso proletariado, passa & uma posigéo de combate ostens vo ao branco, opondo-se inclusive & miscegenagio, segundo cles, « mais eficiente arma dos brancos para anulilos e man- {er a sua pretendida superioridade. Tal atitude reveladora de uum nitido conteddo racista, nfo pode deixar de constituir motivo de preocupagdo para todos aquéles que estudam ¢ acompanham a evolugdo da nossa sociedade. (minha énfase) (p. 17-18) A “nossa sociedade” evocada por Oliveira nada tem a ver com 4 “nossa sociedade” formada de afro-brasileiros. Anteriormente ja 96 | lemonstramos, até com estatisticas, a espéeie de tratamento que 0 Gfxcendenteaticano rvsbe na escura Bahia que alguny esprit sar Cintico cognominow de “o estado africano” do Brasil Pois até mes mo ayui a sociedade vigente escolhew negar seu destino “afte emantet na periferia a maioria absoluta de negros e mul " Por todos ésses fatos tXo ostensivos, conhecides ¢ analisados por virios estudiosos brasileiros ¢ estrangeitos, soa estranho que © iretor de uma instituigio de “estudos afrieanos” tenha o despudor de afirmar, no mesmo estudo, E neste lanee vemos configurado, na aniilise do proprio tuma situagao idéntiea a da Africa do Sul: a minoria branca mono- polizands todo 0 poder ¢ dominando a maioria de descendéncia “ricana. A despeito da conelusio a que chegara, Oliveira insiste em hegar ao airo-brasileira a menor reivindicagao de direitos. E nesta Uiregto o Centro de Estudos A fro-Orientais se autodefine de utili dade sumamente preciria: no passa de mais uma ferramenta de domesticagio do negro. Seus estudos, anilises ou pesquisas estdo destituidos de qualquer sentido construtivo e vilido, Alias, para sermos exatos, devemos realgar no « inutilidade de tal agéncia, mas sua existéncia parasitiria, nociva aos verdadeiros ideais de tama sociedade multiracial e multicultural que o Brasil pretende ser. Nao € procurando Tugir da solugio dos problemas que se resol- verde conflito de ragas latente entre nds. O Centro, na palayra desi= hibida do seu diretor, assume em nossos dias aquelas fungdes de tu- telagem paternalista deseritos anteriormente em relagdo ao padre Antonio Vil Outro tanto se pode dizer do Centro de Estudos Africanos da Universidade de Stio Paulo, Seu viee-diretor, Fernando A. A. Mou- Hio, apresentou wo Coléquio do Festac “77 um trabalho The Culti- ral Presence of Africa and the Dynamics of the Socio-Cultural Pro- cess in Brasil (A. presenga cultural da Africa ¢ a dindmica do proces- so sociocultural no Brasil), Com titulo tao ambicioso ¢ extenso, 0 autor comega seu trabalho se referindo a certos “autores estrangei- ros que focilizam 0 tema racial e alguns destes esto consideravel- mente abertos a divida desde o ponto de vista cientifico." O profes- 7 sor Mourio niio fornece os nomes dos autores ineriminados e nem se apdia em transcrigdes de trechos das obras impugnadas. Assim procedendo Mourio langa a sua suspeita sobre todos os “autores estrangeiros”, ato earacterizador do exereicio de uma cigncia bem pouco cientifica de sua parte. Entretanto é facil pereeber que os au- tores de duvidosa cigncia, para Mourdo, deverao ser aqueles que no se ajoelham aos pés dos idolos cientilicos do conservadorismo retrdgrado de certos scholars e cientistas sociais do pais. Mourio & um porta-vor entusiistico dessa tendéncia académica, embora pro- cure se disfarear com o recurso de uma linguagem confusa rebar- bativa, Ele se debate através do proprio labirinto de palavras esca- pistas, e no instante da decisio final, entre a cruz ¢ Xangé ~ as ideo- logias raciais do Brasil a posicao africana ~ Mourio apenas conse- gue gesticular sobre 0 abismo. No caos “cientifico™ que armou es- Wo todas us afirmacdes. negacdes, € contradigdes imaginéveis. Num determinado parigrafo a cultura africana resistiu as perspec- livas da ocidentalizagio dominante, ¢ jd no seguinte, Nao € um assunto de permanéncia de cultura meramente em seus aspectos formais, permanéneia de formas em si, mas sem nenhuma grande significagao aparte da fungi nova de tempo e assim tendo uma funcdo puramente artificial. E a ceriugdio de uma cultura hibrida, sineronizada com um ritmo Propriamente seu, 0 ritmo brasileiro, ¢ dentro de uma por- Gio de espaco que € caracterizado pelo desenvolvimento de uma sociedade nova, multirracial. (p. 15) leitor entendew? Toda a tese estd vasada nos moldes desta linguagem do mais transparente esoterismo ~ com que propésito? Seria exigéncia requerida pela terminologia “cientifica”, decorrén= cia de suas profundas elucubragdes tedricas? Ou seria, noutra paula de raciocinio, o initil esforco de usar a linguagem como um véu ccultando a inutilidade e 0 vazio? Uma ilustragdo modelar daquilo que o chefe de estado nigeriano, General Olusegun Obasanjo, qua ficou como “scholasticismo estéril”. "* agora nossa intengio demonstrar, através de uma andlise do processo sociocultural brasileiro, independente do crité- rio da origem étnica, a presenca ea contribuigtio dindmica 98 plastica feita pelas culturas da Africa para o desenvolvimen- to de uma cultura tropical em curso de formagao, estabele- cendo 0 formato para um comportamento diferencial. (p.4) 0 que além do mais parece bastante extraordindrio € que elas ucabaram se impondo e fazendo sua marca na sociedade global, criando uma nova sociedade global que nao era des particulares adotadas mas Enguanto, em ouiras partes do continente americano, ha uma permanéncia caracteristica de um grupo especifico de raizes africanas, vivendo lado a lado com outros grupos ou através da integragio dentro do grupo sociologicamente do- minante, no Brasil 0 elemento afficano jogou um papel- chave no processo de integragto plural. (p. 16) . Mourio parte da presuncao inicial de que “cultura brasileira & de certo modo, uma entidade a parte da cultura afticana, € que esta se imps sobre uma que the era anterior; isto supde que a cultu- fa alicana no constiuia uma parte integral do Brasil desde sua i (0, Temos aqui uma presungio que revela no ape- fas'um presoneetocologico como, prinsipalmente, wma dStor- ‘Gio do fato historico, A “sociedade global”, sobre u qual as cultu- Fas africanas teriam se imposto, no inelui, no coneeito de Mourao, 1s africanos do pais ~ coneeito estranho quando consideramos que em 1600 o Brasil tinha duas vezes mais africanos do que portugue- cs, Ess “sociedade como um todo”, onde as culturas africans ‘marcariam”. aparentemente se constilui, exclusivamente, de por- uguises, que'no inicio da colonizacio Formavam 1/6 da populagio total (ver cap. V) eriaram “batuques", “nagdes", “fraternidades", ¢ outras entidades capazes de fornecer gontrole social 40 prego du “contaminacio” da cultutra dominante, Maliciosamente, ele esquece a predomindncia Ga Iereja Catdlica ¢ sua intolerdncia ais religises alricanas: 0 batis- mo forcado dos excravos ¢ 0 saque policial dos terreitos. Contudo, Mourdo omite, na sua alega tegragio plural”, a realic axle historica de que onde as culturas afticanas se “impuseram”” foi nna conquista do lugar, dentro do contexto brasileiro, de cultura perseguida de um povo marginalizado. Além dese preconceito inicial, a mais evidente caracteristica do trabalho de Mourio ¢ sua consistente e angustiosa Tuga da ques- tio racial. Tenta confirmar a persisténcia no Brasil de tragos cultu- rais pertencentes & Africa, os quais “vieram a se destacar aparte de qualquer caracteristica racial.” (p. 14) Nouteas palavras, esta cultu- ra fol trazida para o Brasil nao pelos negros africanos, mas por um ser abstrato, talver aquele desragado da mecarraca inventada por Gilberto Freyre, Repetidamente Mourio fala em sintese * dente de linha de edt”. ow “independente de origem étnica”. Nio explica, porém, como um provesso de interagio cultural enire et- nias diferentes pode ter lugar deixando de lado as prOprias etnias € suit imperativa interagao social. No sentido de evitar a raga ou a “lie itha de cor”, todo 0 processo é elevado a um nivel to abstrato e in- langivel a ponto de perder qualquer relacio com a vida real dos, afro-brasileiros. Evadindo-se Mourdo do problema das relagdes humanas enire os portadores daquelas culturas, implica que o pro- cesso de sintese do qual ele reiterativamente Fala deve ter ocorrido nao numa Sociedade de seres humanos, mas num mundo de espiti- tos localizado muito distante desta nossa terra humilde. Situa-se nessa persistente evasio, como se raga fosse um tabu, da questo das relagdes humanas entre pretos e brancos, entre afti- canos © europeus, 0 aparente objetivo de tais centros impropria- mente chamados de estudos africanos. A consirugdo intelectual ela- borada tanto no centro da Bahia quanto no de Sao Paulo, das quais acabamos de examinar rapidamente, no passam de auto- lorificadas evasdes dos problemas reais e imediatos de cerca de sessenta milhdes de afra-brasileiros. Enquanto tais centros nao ofe- recerem justificacao objetiva para qualquer alegacdo de que as rela- gbes de raga no Brasil so as ideais (alids Waldir Oliveira forneceu ampla evidéncia de preconceito racial ¢ discriminagio), eles estdo ‘apenas mantendo um jogo artificial de raciocinio e de palavras na tentativa feustra de obnubilar o dilema racial do pats, dirigindo a atengao de estudantes ¢ scholars para outras questdes mais exotéri- cas & menos controversas, 100 x. A PERSEGUIDA PERSISTENCIA DA CULTURA AFRICANA NO BRASIL Sempre que vemos estudado o tema das culturas africanas no Brasil, a impressdo emanada de tais estudos & de que essas culturas cexistem porque receberam franquias e consideragio num pais livre de preconeeito étnico e cultural, verdade histérica, porém, € bem loposta, Nao @ exigero afirmar-se que desde 08 inicios da coloniza- jo, as culturas alricanas, chegadas nos navios negreiros, foram mantidas num verdadeiro estado de sitig. Ha um indiscutivel card- ter mais ou menos violento nas formas, as vezes sutis, da agressio espiritual a que era submetida a populacdo africana, a comegar pelo batismo ao qual o escravo estava sujeito nos portos africanos de ‘embarque ou nos portos brasileiros de desembarque. As pressdes ceuliurais da sociedade dominante, embora seus propdsitos ¢ esfor- 0s, no conseguiram, entretanto, suprimir a heranca espiritual do eseravo, como acorreli nos Estados Unidos onde apenas sobrevive- ram alguns elementos culturais. Mas essa ineapacidade de aniquilar definiivamente a vitaidade cultural africana que se expandiu por iirios setores da vida nacional no pode ser interpretada como concessies, respeito ou reconhecimento por parte da sociedade do- minante, Entre os instrumentos usados pelo poder escravizador es- lita Igreja Catdlica que, absolutamente, no € responsavel pela per- sisténeia das religides de origem africana na chamada América La- Tina: Haiti, Cuba ¢ Brasil, entre outros. (Essa Igreja possuits escravos com fins lucrativos, e constantemente perseguiu ¢ atacou as erengas religiosus africanas durante séculos, até o§ dias atuais. Apesar, ¢ nao devido & Igreja Catdlica, algumas religides africanas puderam persistir em sua estrutura completa, enquanto outras sobreviveram através de certo elemento ritual e de uma ou outra divindade cujo Jor ceulto se manteve, Entretanto, a manifestagio espiritual africana iio se circunserevia ao dominio religioso, mas também abrangia outras formas de celebracdes e festejos populares. E 0 caso, por exemplo, dos autos populares dos Congos, da Bumba-Meu-Boi, dos Quilombos, ete., através dos quais 0s negros reproduzem for. mas Uradicionais afrieanas adaptadas ao novo ambiente, ou entdo infundem a formas culturais estrangeiras um espitito afrieano, adaptando-as ou reduzindo-as ao seu pardmetro cultural, ) Bastante diversificadas, variando em graus de desenvolvimen- to, caracteristicas e aparéncias, as culturas alrieanas possuem, no entunto, um fundamento bisico comum que as identifica como cul- luras irmas, inconfundiveis quando interagem com as culturas de origem européia ou indigena. Vamos recorrer a uma classifieagao de Artur Ramos'™ das eulturas que permaneceram a) Culturas Sudunesas: represemtadas primariamente pelos po- vos Yoruba da Nigétia, 0s Géges do Daomé (Benin), 08 Fanti ¢ Ashanti da Costa do Ouro (Gana) e alguns grupos menos relevantes: by Culturas. Guineo-sudanesas, islamisadas, principalmente originadas dos Peuhl, Mandingas, © Haussas da Nigéria nortista ©) Culturas Bantu, representadas pelo grupo éinico Angola- Congo, e por aqueles vindos da chamada Contracosta, Nem todos 08 africanos condutores dessas culturas e seus des- cendentes estavam em condigdes de manter vivas e desenvolver suas respectivas contribuigdes & cultura do novo pais, na medida em que eles proprios se achavam sob terriveis condigdes, Vitimas perma nentes da violencia, suas instituigdes culturais se desintegraram no estado de chogue 3 que foram submetidas. As linguas alricanas ~ expressio fundamental da visio-de-mundo de suas respectivis eul- turas ~ foram desirufdas, com raras excegdes para fins rituais. O ra- cismo, exatamente como classifiea as ragas em “superior” ¢ “infe- rior”, emprega idéntico critério para rotular as Kinguas em “infe- rior” e “superior”. Nesta linha de razdes Gilberto Freyre conside- E evidente que a colonizacio europtia dew a esse novo tipo ddecultura um instrumente de intercomunieagao, que 38 uma a 8 unificada e ji literariamente desenvolvida ter dado: a lingua. [0 Candomblé &o nome que recedeu a regio dos povos ¥ oru- bas, trazida de Nigéria para o Brasil. Porém o candomble inelul va. riagbes de outros grupos culturais vindos da Africa, tais como os Ewe (Géges) do Benin, Angola-Congo e outros ramos Bantu, Culto 102 ddos Orixis, o candomblé resistiu ¢ conservou intato seu corpo de doutrina, sua cosmogonia e teogonia, 0 testemunho dos seus mitos vivos e presentes,|Na coneepeio do meu colega Olabiyi Babalola Yai, da Universidade de Ifé, o candomblé, euja mensagem no Brasil cialmente a mesma como na Africa, significa cligido na qual nem o inferno nem o diabo tém lugar © {que no aflige a vida do homem com um pecado original do {qual se deve purificar, mas que convida o homem 2 sobrepu- jar suas imperfeigBes gragas ao seu esTorgo, aos esforgos da Comunidade ¢ aos orixés. Constituindo a fonte ¢ a principal trincheira da resisténcia cul- tural do africano, ¢ o ventre gerador da arte afro-brasileira, 0 can- domblé teve de procurar refidgio em lugares ocultos, de dificil aces- so, a fim de suavisur sua longa histdria de sofrimentos as mos da policia. Seus /erreiros (templos) localizados no interior das matas ou distareados nas encostas de morros distantes, nas freqentes in- yasdes da policia, tinham confiscados esculturas rituais, objetos do culto, vestimentas litrgicas, assim como eram encarcerados sacer- dotes, sacerdotisas e praticantes do culto, Uma andmima poesia popular de negros nos informa o tratamento que a policia dispensa- va aos sacerdotes da religido africana: " Dé livenca Pai Antonio, Eu nio vim te visi eu estou muito doente, © que quero é me cur Sea doenca far feitiga me cura no seu Con Se a doenga for de Deus, Ah! Pai Ant6nio vai cura! Coitado de Pai Antonio Préto velho rezadd, Foi purar numa pristo, Ah! por nao ter um defensord. Pai Antonio na Quibanda E curadé! E pai de mesa, € rezadat E pai de mesa, & rezado! Pai Anténio da Quibanda Povo de Umbandat Povo valente! Rei de Congot Meu pai chegout 103 Como resultado direto da perseguigio policial wos candomblés se criou até uma nova categoria na hierarquia sacerdotal dos terrei- ros: 0 ogan. Os ogans funcionam como espécie de patronos honord- rios do candomblé, em geral pessoas com prestigio bastante para proteger o terreiro, seu corpo sacerdotal, © seus freqilentadores- frentes, da violencia costumeira das autoridades publicas. E co- mum também que os ogats defendam 0 condomblé da tradicional inimizade da Igreja Catdlica; eles socorreriam ainda o terreiro em suas dificuldades financeiras. Usualmente, sendo 0 0 ogamt uma pes- soas influente na comunidade dominante, teria que ser em sua maioria pessoas brancas. Seja qual fOr a boa intengio desses “pa- {ronos”, a origem e existéncia dos mesmos como um fendmeno so- cial implicitamente documentam as dificuldades que se erguem no aminho das religides afro-brasileitas, A interferéncia atemorizadora e confusionista das autoridades puiblicas, tem ainda imposto o deslocamento freqiente de sacerdo- {ese sacerdotisas a fim de evitar prisdes e perseguigdes. Roger Bas- tide reconta o seguinte resultado das suas pesquisas afro-brasileiras: ‘Com « persegui¢io da policia muitos pais-de-santo ou mui- tas maes-de-sanlo rumam para regides mais hospitaleiras, encontrei na Bahia pernambucanos que haviam preferido femigrar a abandonar sua f&; Don a P. foi para Alagoas. Anti gamente era o contririo que acontecia: fugia-se de Alagoas, donde a perseguigio alcangava 0 auge, para o Recife, onde por essa época os terreiros desfrutavam da protegiio médico- policial. * © indicador final ¢ sintomitico do status das religides afro- brasileiras na sociedade do pais esti na exigéncia que dura séculos, de serem os seus templos as tinicas instituigdes religiosas no Brasil com registro obrigatorio na policia, Esta medida de carter com- pulsério continua vigorando atualmente em todos estados da Re- publica exceto na Bahia, cujo Governador, um ano atrds, revogou quela exigéncia pelo decreio 25.095, de 15 de janeiro de 1976. O proprio texto do decreto é amplamente informative sobre a nature- ‘rs desta exigncia ainda em vigor na grande maioria dos estados brasileiros. Transcrevemos na integra o texto, publicado no Didrio Oficial de 16 de janeiro de 1976: ‘O GOVERNADOR DO ESTADO DA BAHIA no uso de suas atribuigdes e CONSIDERANDO que, na expressio “sociedades afro-brasileiras para atos folcléricos™, a que se refere a Tabela I, anexa 4 Lei N? 3,097, de 29 de dezembro de 1972, se tem identificado para fins de registro e controle nela previstos, as entidades que exercitam o culto afro-brasileiro, Como forma exterior da religidéo que professam; CONSIDERANDO que semelhante entendiment jimento se ‘do ajusta no sentido ¢ alcance da lei, sendo antes antagoni- co ao principio constitucional que assegura a liberdade do exercicio do culto; CONSIDERANDO QUE £ DEVER do poder piblico gurantir aos integrantes da comunhio politica que dirge, 0 livre exercicio do culto de cada um, abstando quaisquet em- bbaragos que o dificultam ou impegam; CONSIDERANDO AFINAL que, se assim the incum- be proveder para com todas as crencas e confissGes religio- Sas, justo nfo seria que também nao fizesse em relagio is so- ciedades do culto afro-brasileiro, que de idéntico modo ta a liberdade de regerem-se de acordo com sua Te DECRETA: Art. [® = Nao se incluem, na previsio do item 27 da Ta- bela n? 1, anexa a Let 3.097, de 29 de dezembro de 1972, as sociedades que pratiquem o culto afro-brasileiro, como for- ma exterior da religifo que professam, que assim podem exercitar © seu culto independentemente de registro, paga- mento de taxa ou obtengio de licenga junto @ autoridades policiais Art 2° ~ Bste decreto entrar entrar em vigor na data da sua publicagio, revogadas as disposigdes em contrdrio, PALACIO DO GOVERNO DO E: BAHIA, 15 de janciro de 1976. ESTADO DA ROBERTO FIGUEIRA SANTOS LUIZ ARTHUR DE CARVALHO Através desse texto somos informados que durante séculos, até mesmo na Bahia, onde « populacko afro-braileira consttui Thais de sctenta por cent da populaio total do estado, areligio dest «steve sujeita ao registra na policia e 20 pass le tae mente, di sujigdo ao controle das autoridades. Note-se ainda que wis exigéncias, ainda vigentes no resto do Brasil, sio de fato antic constiicona, conform asin eonstderand do govenador. A “sobrevivéncia” de tragos culturais africanos, segundo nossa tere deussto no Capit them sido pergosomerte manips da por estudiosos para sevir vomo “demonsiragio” da esencia acista e “harmoniosa” da civlizagio brasileira. Esta seria su- Postamente aberta a “todas contribuigdes, sem qualquer distingao, los sejam elas européias, amerindias ou africana Pierre Verger. *, nas palavras de Estes defensores do processo cultural do Brasil estdo unidos por uma forte aparéncia comum: sua énfase na palavra € na condi- clo subrepricia, na clandestina natureza do processo de “sobrevi- Véncia” dos tragos da cultura africana no Brasil. Gilberto Freyre serve como exemplo. Ele considera a “infiltragao” africana na reli= piosidade brasileira "* como excepcional valor da sociedade © da cultura dominantes, Seu racismo velado reitera ¢ insiste no conceito de infiltracéo: As infitracdes africanas, na religio como na culinaria, na miisica, na escultura, na pintura de origem européia, repre- sentam nao uma degradacdo desses valores mas um seu enti- quecimento, " (énfase minha) Por debaixo da abundante generosidade concedida aos valores, africanos, as implicagSes do conceito de infiltragio emergem, tam- bbém abundantemente, Sbvias: elas denunciam a natureza subterri- nea € a condigio marginal, fora-da-lei, do que inflira. Temos aqui simultneas a melhor ironia e a pior hipoerisia, pois do mesmo mo- mento que (ais estudiosos esto tentando demonstrar a completa accitacdo € os bragos abertos da sociedade brasileira, que suposta- mente nio consideraria vergonha nem estigma as suas raizes africa- nas, ao mesmo tempo diziamos, ees ticita ou abertamente demons- tram o contrario, isto é: que a civilizagio brasileira nunca aceitaria a contribuigio africana caso a mesma ndo se tornasse sutil, disfar~ «ead, atuando no wederground. Pierre Verger nos fornece outro ilus- tre raciocinio quando cita Luis Viana Filho e diz que ‘A sociedade brasileira, sem perceber, assimilou 0 que Ihe ti- nha sido ensinado pelo escravo negro. Como um corpo alta mente organizado abragando as normas portuguesas, ela permaneceu inconsciente deste contégio. Ela nem mesmo admitiria para si propria que esta qualidade de influéncia, originaria de criaturas de tio baixa posigio€ de uma tao es- ‘tranha ¢ distante origem, estivesse no reino das possibilida- des. Apesar disso, a influéncia africana se fez sentir vagoro- samente, inperceptivelmente, t@0 mais eficaz quando Ihe fal- tava o cardter de um planejado e deliberado esforgo, o qual sem divida teria suscitado forte oposiclo. " (Enfase minha) Estes testemunhos dificilmente poderiam ser considerados a cde uma cultura aberta a todas influéncias sem distincao. so da porosidade e abertura da cultura brasileira, para as quais no economiza elogios. Olabiyi Babalola Yai muito perceptivamen- te agarra 0 preconceito fundamental desses estudos: 106 E grande a tentugdo, como a de Brasil, de uma cultura se erigir em cultura domi- nanie ¢ procurar assimilar as outras. Antropdlogos positivs- tus, vitimas e/ ou edmpliees da ideologia oficial e da tradi- assimilacionista lusa herdada dos latinos, gostam de fa lar da contribuigio africana para o enriquecimento da cultu- ra nacional brasileira, como se esta fosse anterior & chegada Ge elementos culturais afticanos adventicios. Depara-se. ai com uma atitude que Robert Janlin tio bem denominou de “o direito de vida concedido a outrem, sod a condigao de aque se torne 6 que somos.” ' Alii, esta é a questo que Se apresenta: 0 que € exatamente esta “culttica brasileira” tio porosa a todas influéncias? As culturas africanas chegaram ao Brasil com a prdpria fundagio da col6nia, e pela forga dos némeros ~ 0s africanos eram majoritérios ~ elas eram as culturas dominantes. A “sociedade brasileira” referida por Via- na Filho é um grupo pequenissimo de portugueses, cujas “normas' dominavam apenas pela forga das armas. Uma “sociedade brasiei ra que nfo ineluia 85%, da populagio do pais. Assim fica claro que © conecito da benevolente cultura branco-curopéia “aceitando sem distingiio” as “infiltracdes” afticanas estd historicamente falando de uma construgdo extremamente artificial. A sociedade dominante no Brasil praticamente destruiu as po- pulagdes indigenas que um dia foram majoritarias no pais, essa ade est iis vésperas de completar o esmagamento dos escendentes alticanos, As téenicas usadas tém sido diversas, con- forme us circunstancias, variando desde o mero uso das armas, &s manipulagdes indiretas e sutis que uma hora se chama assinuilacdo, foutra hora aculturacdo ou miscigenagdo; outras vezes € 0 apelo a unidade nacional, & ago civilizadora, etc, etc., ete*Com todo ésse cortejo genocida aos olhos de quem quiser ver, ainda hé quem se in- titule de cientista social ¢ passe a sociedade brasileira atestados de “tolerdncia’”, “benevoléncia”, “democracia racial” e outras qualii- ‘cages virtuosas dignas de clogios. Certo: que os servicais da ideo- logia dominante continuem exercendo sua perversio da realidade. Cumpre a nés, os negros, que em virios estados somos a maioria da populacdo (Bahia: 70.19%, Sergipe: 60.19%, Maranhao: 66.03% conceder a essa qualidade de estudos e estudiosos 0 que eles mere- cem: 0 nosso desprezo. 107 xl SINCRETISMO OU FOLCLORIZACAO? A fentilidade racionalizadora do racismo brasileiro no tem lie mites: 6 dinimica, polifacética e capaz das manipulagdes mais sur- preendentes, No rol destas dltimas figura 0 chamado “sinerestismo religioso”. Segundo a imagem que este mito pretende transmitir, as religides africanas, ao se encontrarem no Brasil com a religido cat lica, ter-se-iam amalgamado ou se fundido naturalmente, inteream- biando influéneias de igual para igual, num elima de fraierna com- preensio reciproca. Enire outros, Roger Bastide demonstrow exaustivamente 0 eontrério: que longe de resultar de troca livre e de opcio aberta, 0 sincretismo eatélico-africano decorre da necessida- de que o africano e seu descendente teve de proteger suas erengas religiosas contra as investidas destruidoras da sociedade dominan- te. As religides africanas efetivamente pastas fora da lei pelo Brasil oficial, 36 puderam ser preservadas através do recurso da sineretiza- ‘gio, O eatolicismo, como a religiao oficial do Estado, mantinhia 0 monopélio da pratica religiosa. Os escravos se viram assim forgae dos a cultuar, aparentemente, os deuses estranhos, mas sob o nome dos santos catélicos guardaram, no coragao aquecido pelo fogo de Xango, suas verdadeiras divindades: os Orixas. Bastide nos diz que “sincretismo é simplesmente uma mascara posta sobre os deuses negros para beneficio dos brancos”. "” Os negros fizeram uma in- versio na formula e sacaram dela resultado positivo a preservacioe continuidade da sua religiao, Tem sido o sincretismo mais outra téenica de resisténcia cultural afro-brasileira do que qualquer das mificas” propagadas com fito domesticador. Estas ignoram a exigéncia prévia, para a ocorréncia de um efetivo sinere- tismo, das condigdes que assegurem a espontaneidade e liberdade 108 daqueles que fazem intercimbio, Como & que poderia uma religiio oficial, locupletada no poder, misturar-se num mesino plano de igualdade, com a religiio do escravo negro que se achava nao s6 marginalizada © perseguida, mas até destituida da sua qualidade Fundamental de religiao? Somente na base Magrantemente violenta de imposigio forgada poderia ter sucesso o sincrelismo das reigid africanas com @ catolizismo, Isto foi o que realmente aconteceu, © bs testemunhos documentando este [ato sio muitos, Para manter tama completa submissio do africano o sistema escravista necessita- vt aeorrentar nao apenas corpo fisico do escravo, mas acorrentar {ambém seu espirito. Para atingir este objetivo se batizava compul- soriamente 0 escravo, e a lgreja Catélica exercia sua catequese © prosclitismo a sombra do poder armado. Mudam-se os tempos mas io © tralumento dispensado a0 negro pela sociedade brasileira: hoje, em vez do batismo compulsério, temos a “democracia racial” compuls6ria cujos mandamentos sio impostos pela ameaca poli cial, pelt Lei de Seguranga Nacional, ¢ todo um cortejo de inst imentos legis e ilegais para amedrontar e dissuadir aqueles que nio querem rezur pelo catecismo oficial 36 merece u nome de sincretismro o fendmeno que envolveu a cculturas afficanas entre si, ¢ entre elas e a religidto dos indios brasi leiros. Nu Bahia, hd candomblé de virias origens; o eandomblé de origem angolana ¢ congolesa usa, por empréstimo, elementos ri- luitis ¢ de organizagia sacerdotal do culto yoruba, Entretanto, com Bastide observamos que os espiritos bantus ainda continuam pre servados, em correspondéncia direta com as deidades Yorul igualmente como se houvesse algum diciondrio que sancio- nase uma reciproca transferéncia entre uma ¢ outra re gido, Assim, Xango, o deus-trovao Yoruba, ¢ identificado pelos angolanos com Zaze, Kibuko-Kiassuhanga: e pelos congoleses como Kanbaranguanye. Identicamente o deus Y o- Fubi du medicina ¢ da cura é identilicado pelos angolanos como Camungo, Cajanja, e pelos congoleses como Quingon- go. Entre os bantus Oshunmaré, 0 areo-iris, torna-se Ango- 76, ¢ Oxali, 0 deus-cu, Casswnbeca, enquanto Exu reapare- ce como 0 angolano Aluvia ¢ 0 congolés Bombonjira. Embora a religiio Yoruba claramente predomine nesse con- exto alto-brasileiro, a importiincia das religides de outras proce- éncias africanas no deve ser substimada, O encontro das religides afficanas com 2 religiio nativa dos indigenas manifesta-se ngs reiros de caboetos, onde 0 eulto mistura 05 dois sistemas ¢ Roger Bastide minuciosamente estabeleceu um quadro, as deidades correspondentes entre oito grupos no Brasil: Yoruba, Fon, Ketu, Angola, Congo, Tapa, Caboclo e Cabinda. Presente- mente pelo menos cinco grupos esto representados no culto afro- brasileiro: Bantu, Ketu, Ijesha, Ewe © Yoruba, As diferengas que se notam nas expressdes das religides afro- brasileiras e em sua sincretizacio obedecem exigéncias culturais es- pecificas oriundas das diferentes areas geogrdficas: 0 culto afro- brasileiro prevalescente nos estados de Sao Paulo, Rio de Janeiro ¢ adjacéncias denomina-se macuntha. Embora progressivamente & macumba assimile a religio indigena, yoruba, elementos do catoli- cismo e do espiritismo eardecista, a influéncia bantu permanece a mais ponderdvel. No estado do Rio Grande do Sul, a religido afro- brasileira préxima & macumba é 0 batugue. Enquanto no estado de Pernambuco, mais ligado ao candomblé, o culto denomina-se Xan- 25, no estado do Maranhio, com prepoderante influéncia dos Fon (Daomé, hoje Benin) € conhecide como tamborsde-ntinas. Outra variagdo que ultimamente vern se expandindo com velo- cidade, sobretudo nos estados do sul, é a Umbanda. A influéncia predominante € a bantu, porém a composicao inclui elementos de origem indigena, espiritismo cardecista, hindu, chinesa, € outras menos significativas. Seu erescimento rapido € notado nao s6 no Brasil, como também noutros paises da América. As raizes aftica- nas dat Umbanda sio profundas e bisicas, Sineretismo entre diferentes religides africanas e cultos dos indios brasileiros vem se constituindo um proceso de natureza in- teiramente diferente daquele ocorrido com o catolicismo ~ a despei- to da usual e artificial idemtificagio de ambos processos cometida por varios estudiosos. O professor Wande Abimbola, da Universi- dade de Ifé, bem conhecido internacionalmente como um expositor do corpo literario de Ifa, assinala a diferenga fundamental entre aquelas Uuas relagdes, em seu relatbrio apés visitar o Brasil ‘A religido tradicional africana ndo se considera, opostamen- te ao cristianismo, como 0 tinico caminho conduzindo a sal- vag. Os tradicionalistas africanos respeitam a fé dos ou- tros como iguaimente auténticas, como uma experiéncia na ‘qual eles mesmos podem tomar parte. A Iereja Catélica, entretanto, no comete esse pecado, prati- cando tal tipo de coexisténcia pacifica, Citemos um exempio para ilustrae: 0 bispo do estado do Espirito Santo certa vez, apds assistir 2 uma cerimOnia bantu chamada, na época, Cabula, pronunciou uma sentengs de andtema contra ela, °” Noutras ocasides 0 catoli- cismo se manifestou fortemente contra o fendmeno do sineretismo, taxando-o de uma forma herética ou manifestacdo de barbaro pa: Lo ganismo, Assim considerada,a cerimdnia da lavagem da Tgreja do Bonfim, esteve proibida durante longo tempo: os negros da Bahia estavum talvez reatando a continuidade de misticas celebragoes & Obatuli, mas para as autoridades eclesiisticas tudo nfo passava de ritual pagio, E a lavagem s6 voltou @ ser feita novamente quando os proibidores perceberam a inutilidade da medida que absoluta- mente ndo ebfraquecia a f% dos crentes em seus Orixds.) Uma recente amostra da “abertura” catéliea ao sineretismo teve lugar em Sao Paulo, ba cerea de dois anos, quando a secretaria de Turismo instituiu o Dia de Oxosse e 0 Dia de Ogum. O arcebispo tle Sio Paulo, em coro com O Estado de S. Paulo, denunciaram 2 iniciativa como profiundamente atentatoria ao espirito cristo, ndo poupando palavras de desprezo as religides afrieanas, Mesmo em se Tratsindo, como era o.cas0, de uma apropriagio indébita dos deuses ulricanos pela industria ofieial do turismo... ‘Queremos registrar um derradeiro fato documentado pela Fo- tna de Sao Paulo a 13 de fevereiro de 1977, em reportagem intitula- is: "Padre nido quis ver Xango”. "* Resumindo os acontecimentos tr reportagem relata as providéncias tomadas pelos membros de um Candomblé para a realizagdo de uma missa, na Igreja do Rosario, tificuda pelos escravos e seus descendentes no século passado. Per- tenciam i Inmandade de Nossa Senhora do Rosario, instituigao Sobre cuja natureza fizemos referéncia no capitulo 11. Um templo mais do que apropriado para a cerimOnia projetada. Mas, apesar de Sua antiga e prolunda relagio com @ comunidade negra, 0 templo ho estava disponivel para aguelt celebracio, conforme divulgou a Teporlagem, que trazia 0 expressivo subtitulo “Probida na igreja, a misst foi rezada no terreiro" Missa com i€-i8-1@ pode, com candomblé nao". Assim 0 gan do terreiro do Ache He Oba, José da Silva, comentou ntem it decisto do pidre Rubens de Azevedo, da igreja do Rosirio, no largo do Paissandu, de nfo oficiar a missa em comemora inauguragio do maior terreiro de can- domblé do. Brasil. Um pouco antes, ele havia recebido de Volta os 190 eruzciros pagos pela missa, que seria acompa- hada por drgao e violinos. Imediatamente apds a celebragio da missa matinal, 0 padre Rubens se retirou da lgreja, preocupado provavelmente com tadverténeia du Ciiria Metropolitana de que ele terin que farcar com as conseqiiéncias, caso a missa Tosse realizada © cancelamento da missa. entretanto, no impediu que os seeuidores do candomblé se dirigissem para o largo do Pais- sand, e, junto ao monumento da Mae Preta, depositassem uw um ramalhete de rosas. Por adverténcia de um tenenie do DSY, as filhas-de-santo, trajadas 4 maneira baiana, desisti= ram de entoar os cAnticos da seita. E a ceriménia ter-se-ia mitado @ um discurso do vice-presidente da Confederagio de Umbanda ¢ Candombié e ao repicar de alguns Tojdes, seo bispo da Igreja Catélica Reunida no tivesse concordado em celebra uma missa no terreiro que iia ser inaugurado 4 noi. te, na Vila Fachini Nao s6 se negow a propria igreje da comunidade para o que se- ria_uma pritiea “sinerética” como, alm do mais, as pessoas que so dirigiram ao templo foram pela policia proibidas de, ainda nas Fuus, entoarem seus ednticnsrituais~ proibigao que nunca & impos. tw aos eelebrantes e participantes das missas ao af livre e das procis. ses catSlicas qu freqilentemente se espalham em longos e cantan- es desfiles polas ruas das cidades de S40 Paulo e de tado 0 pais © falso eurater deste chamado “sineretismo” pode ser também cluramente pereebido no tratamento desdenlioso dispensado a rll, es aieanas por seus supastos parceiros de sincretsmo: os cate licos brancos, ¢ os esiudiosos. As concepedes metafisicas da Africa, seus sistemas filosdficos, a estrutura de seus rituaise liturgins reli giosos, nunca merecem devido respeito e consideracio como va lores constitutivos da identidade do espiito nacional. E desprezan. do i cultura que os africanos trouxeram, os europeus reforgaram a leoria © a pratica da rejcigao étniea, Todos os objetivos do pensa. mento, da cigneia, das instituigées piiblicas © privadas, exibem-se ‘como provas desta conelusio, Nada melhor para isso que invoea © pioneito dos estudos afro-brasileiros, Nina Rodrigues, por aust do prestigio que ainda desfrata ~a despeito da objegaio de Guerrei- ro Ramos, ~ que afirma: ‘Nina Rodrigues & no plano da eiéncia social, uma nulidude, mesmo considerando-se « época em que vi vou, Nao hd exemplo, no seu tempo, de tanta basbaquiee e ingenui dade, (u) sua obra, neste particular, © um monumento de anne. fas.” "Em seu livro Os Africanos no Brasil, Nina Rodrigues usa tworias do cientista europeu Lang a fim de caracterizar o aticano como um selvagem. Desde o ponto-de-vista psicologico,afirma Ro. drigues, “ele mosira uma conscigneia obscura’: de uma perspeciva social, ele preservou concepedes baseadas no “totemismo™ "A tor feréncia ds leis “ogmicas” € 56 uma na miriade de expressbes de desprezo vigentes no dicionario da cigneia de cardter imperielista Ha tendéncia enire eerios scholars e “cientistas” de rotular o cam. domblé como ™ ia negra, superstigao, animismo, € outtas pejoratividades idénticas Aquelas que mencionamos rapida- mente ei piginas anteriores dedicadas ao estudo do Dr. George Alakija, E« linguagem de quem no compreende e desdenha. Inea- 12 paz de penetrar no sistema de pensamento atras dos rituais, tentam destruir tudo. Isto com a ajuda do sistema de pensemento europeu ‘ou ocidental que se tem imposto através da coeredo, As vezes até ‘com o emprego da forga armada, entre outros recursos, o que signi- fica um verdadeiramente subversivo elemento dentro do chamado processo de assimilagio, aculturagdo € do sineretismo. 113 XI. A BASTARDIZACAO DA CULTURA AFRO-BRASILEIRA status das religides afto-brasileiras joga um papel de fator primordial no desenvolvimento da arte negra do pais. Conforme apontamos anteriormente, 0 candomblé se localiza como 0 foco inspirador e dinamizador da criatividade artistica afro-brasieira exercendo também papel relevante nas atividades puramente liidi- cas €/0u tecreativas. Os fendmenos jai expostos referentes as pres- ses culturais e o decorrente sincretismo imposto, levou escravo a criar, escondido da fiscalizagao do branco, suas obras artisticas ~ talhas, esculiuras, principalmente ~ destinadas a preencher uma fungao ritual; outras vezes eram concebidas com a finalidade de de- corar os templos (terreiros e pegis). Apesar da limitagio que a so- ciedade dominante, no passado, impunha a essa atividade, a expan- sto espiritual do afticano extravasou as fronteiras do seu proprio cio, ¢ influenciou varios setores da vida brasileira, prineipalmente 0 nivel da cultura popular. Os ex-votos, as toscas figuras talhadas ‘em madeira por nordestinos, foram analisadas e classificedas com filiagio direta da arte africana. No entanto o ex-voto se destina a0 pagamento de promessa que 0 devoto catélico fez por graca recebi- da de algum santo da sua devogio. Ha longo tempo os objetos do culto afto-brasileiro tém sido frequentemente confiscados por agentes da policia, mas isso ndo Ihes destitui do seu intrinseco carster de genuino produto artistico Entretanto, o fato € por si mesmo um elogiente comentétio a res- peito da alitude oficial do pais relativamente a ago de eriar do afro-brasileiro. Varios desses trabalhos tém sido arbitrariamente colecionados eexibidos como pegas do Museu da Policia, no Rio de ng Janeiro, ou do Instituto Nina Rodrigues na Bahia, Srpio de pesqui- Sa psiquidtrica e documentagio etnogratica, Lim procedimento = encontravel em outros estados como Alagoas, Pernambuco, Rio Grande do Norte, ete. ~ revelador da profundi- dade atingida pelas idéias que consideram o afrieano um criminoso, ou demente nato, possuidor de uma mente patoldgica. As “provas™ se acurmulam naquelas ¢ noutras insttuigdes “cientficas”” ou folel6- reas. 0 proprio Nina Rodrigues, em seu principal livro Os africanos no Brasil, nos fornece bom documentario do tipo de “andlise cienti ci" que a obra artistica do africano era merecedora. Examinando escultura representando Xang6, o deus do trovao ¢ da tempes- tude da religido Yoruba, Nina Rodrigues afirma que 0 autor da ppeca em madeira possui uma ‘“consciéncia obscura”; prossegue ne- gando ao mesmo qualquer habilidade técnica, primariamente por- que 0 escultor nfo fazia uso da proporgdo “adequada” entre os bracos € as pernas. A peca, tao lamentavelmente deformads, nao poderia satisfazer os requisitos fundamentais que se exige de uma ‘riagio artistica, “ Nina Rodrigues morreu em 1906, e nunca viu as pinturas de um Modigliani ou um quadro como as Mademoiselles d'Avignon, de Picasso. Se tivesse visto um desses trabalhos, desco- nhecendo 0 nome do autor, Nina certamente o classificaria como mais outra pega do barbarismo africano. O “rigor cientifico” de Rodrigues radicalmente mudaria se visse a assinatura de um daque- les importantes nomes europeus, aos quais sua mente colonizada imporia um elogio automitico e compulséri. Critica dessa qualidade aos trabalhos de arte afro-brasileira, de uma perspectiva aristocritica e racista, olhando de cima para bai- x0, nfo é coisa do passado. Embora a influéncia de Nina Rodrigues Permaneca sensivel apés décadas do seu desaparecimento, a linha de su andlise se modifieou, apenas em sua forma e em certos aspec- tos da aparéncia que a caracterizava, Agora a anélise se mascara num didfano véu paternalista - ent&o nos deparamos com a versio atual daguela critica em Clarival do Prado Valladares. Este devota tum longo estudo eritico para classificar a arte afro-brasileira como representativa do “comportamento arcaico”, 0 qual, obviamente, S14 no outro lado, “o oposto da légica racional, premissa inevité~ vel do comportanrento eldssico.” “ E este ~ quem ndo sabe? ~ con- iste das normas e valores da arte européia inspirados naquilo que a estética grega cristalizou como o excelso ¢ 0 absoluto. Tais criticos ‘operam em geral atentos & definicdo elitista de “belas-artes” cujo mbito abrange, singular ¢ exclusivamente, as expressdes que 0 oci- dente braneo reconhece como Arte. Nao importa que &s vezes esse 1s critica procure valorizar algum artista afro-brasileiro através do exame ¢ julgamento da sua obra, pois seguramente a real motivagio do seu interesse € de outra natureza, O paternalismo costuma estar subjacente na critica de intengao promocional, eo artista negro de- vera recusar esse tipo de tutela e domesticacdo, mesmo que Ihe cus~ le as evasivas chances de penetrar no pequeno grupo dos artistas que tém mercado. Nem deve o artista negro endossar as classifica- ges hipoteticamente elogiosas (comumente para estimular os possiveis compradores) que os rotula de foleléricas ou pitorescos: este critico nos primitivisa, aquele nos acha interessante pela curiosi- dade ¢ exotismio do nosso trabalho. E numa recente classificagao s0- mos, 0s artistas afto-brasileiros, os ultimos arcaizados! Esta é a cerebragio de Valladares, critico ¢ historiador da arte, que suimeten ao Coldquio do FESTAC'T7 o trabalho intitulado Da ascendéncia da Africa nas artes brasileiras, Valladares presta ho- menagem aos confiseos policiais de matéria-prima para os estudos criticos de arte alro-brasileira. Anota que mais importante colegao € aquela preservada no Institu- io de Historia e Geografia de Alagoas, derivada dos seqiies- tros efetuados pelos agentes policiais no ano 1910, os quais, pertenciam aos cultos regionais das tltimas décadas do Sé culo XIX. (..) 0 seqiiestro em Maceid em 1910 ndo teve co- nexio com aqueles dos periodos seguintes, na segunda déca- dda, os quais tiveram lugar na Bahia, Recife, Rio de Janeiro € ‘outros lugares, objetivando o esmagamento dos cultos africa- 1nos no Brasil, Por causa disso aqueles objetos foram zeloza- mente stlvaguardados da destruigdo e agora abrem caminho para quaisquer estudos. “ (minha énfase) Aos olhtos da cultura dominante os produtos da criatividade religiosa afro-brasileira e dos alricanos de modo geral nao passa- vam de curiosidade etnogrifica ~ destituido de significagao arti ou ritual. Para se aproximar da “categoria” da “arte sagrada” do ocidente, 0 artista negro teria de esvaziar sua arte do seu contetido africano'¢ seguir os modelos branco-europeus. Por sua vez, no sentido de “compreender” o trabalho eriativo do africano ou afto-brasileiro, os criticos formados sob os critérios estranhos da sociedade branca dominante, necessitam preliminar- mente esvazii-los de seu valor intrinseco, conseguindo perceber ne- les somente aquelas caracteristicas recomendadas pelo etnocentris- mo original que os inspira e guia na classificagiio do que seria “pri- mitivo”, “cru”, “tosco” ou “aredico”. Emersos de um contexto es- piritual, social ¢ religioso ~ além de uma heranga formal especifica ~ (05 quais se conjugam para compor uma perspectiva seno oposta, 116 pelo menos radicalmente diferindo daquela de esséncia ocidental ou ocidentalizada, 0 produto artistico do negro, por tudo isto, tem sido marginalizado, banalizado ou recebido uma forma de “valori- zacio" que mais se confunde com o desprezo ¢ 0 desdém. Esse pro- esso de esvaziamento da cultura africana e/ou afro-brasileira do seu valor intrinseco e da sua integridade mereceu de Roger Bastide uma observacio perfeita: Essas obras [de Nina Rodrigues, Arthur Ramos, Edison Carneiro ete], a0 deixarem de basear as descrigdes em ali- cerces metalisicos, fizeram com que os eandomblés surgis- sem como um conjunto de sobrevivéncias desenraizadas, privadas de sua propria seiva, em suma, um emaranhado de superstigdes (mais folclore do que religido.) “* Desta escamoteagio do esaziamento chegamos a0 ponto mé- ximo da técnica de inferiorizar a cultura afro-brasileira: a sua fol- clorizagio. Técnica insidiosa, ¢ tdo entranhada nos métodos ¢ no raciocinio de certos estudiosos que até aquele “analista” bem inten- cionado revela, consciente ou inconscientemente, sua adesio x tal clenco de erengas negativas. Internacionalmente conhecido, Jorge ‘Amado € 0 escritor que tem a seu crédito a promocdo e a suposta valorizagao da cultura africana na Bahia. Varios personagens dos seus livros so negros, alguns no papel de protagonistas. Para qual- ‘quer um interessado'no conhecimento da cultura afro-brasileira, seus romances ¢ novelas sio referencias obrigatérias. Ha 0 romance Jubiabd, entre os mais famosos na sua extensa obra, que nos forne= ce valiosos elementos para entender 0 mecanismo do tratamento que se dispensa as religides de origem africana no estado africano da Bahia Vejamos alguns trechos: '* Foi quando Joana, que ja dangava como se estivesse em transe, foi possuida por Omolu, a deusa da bexiga. (..) Eo tronce de Joana era perfeito de beleza, os seios duros e pon- tiagudos furando © pano. Oxaluff, que era Oxald velho, s6 reverenciou Jubiabi, E dangou entre as feitas até que Maria dos Reis caiu estremu- nhando no chao, assim mesmo sacudindo 0 corpo no jeito da danga, espumando pela boca e pelo sexo. Se estamos realmente considerando os rituais descritos nessas linhas como expresses do sagrado afro-brasileiro e dos seus ritos religiosos, mesmo levando em conta a liberdade concedida a recria- Glo artistica, a descrigiio de Amado nao passa de um sacrilégio. Mas o livro de onde vieram as transcrigSes € citado freqiientemente como sendo uma afirmativa "visio desde dentro” dos rituais do candomblé. Em outra passagem ~ e 0 romance esti cheio delas 0 17

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