Você está na página 1de 17
SINDROME DA ALIENAGAO PARENTAL: UM DESAFIO MULTIDISCIPLINAR PARENTAL ALIENATION SYNDROMI A MULTIDISCIPLINAR Y CHALLENGE Deise Nicola Tanger Jardim* Resumo: Nos relacionamentos familiares, especialmente em momentos de rompimento das relacdes conjugais, reforcado pelo fato de hoje ser bastante comum 0 pai pleitear a guarda do filho tanto quanto a mae em um processo de divércio, surge 0 fendmeno da Sindrome da Alienagao Parental. Este consiste no desejo de um dos genitores ro filho do relacionamento e do afeto relativo ao alienado, confundindo a mente da crianga a ponto desta acreditar nas declaragdes de um do alienador, desenvolvendo memérias, lembrangas e até mesmo detalhes a respeito das supostas, mas, na realidade, falsas percepgées. As dreas do conhecimento, como filosofia € psicologia, poderao auxiliar os operadores do direito na identificacao de ferramentas, na busca da verdade acerca dos fatos imputados ao genitor alienado. Palavras-chav« s Memérias - Psicologia - Sindrome da Alienagao Parental - F ‘ilosofia - Direito. Abstract: In family relationships, especially when a marriage is broken, since it is common the fathers’ claim for their children’s guard as well mothers in a divorce process, it is veritied the phenomenon called “Parental alienation syndrome’. It happens when one of the genitor wants to make the child tar away trom the other genitor as well as to affect affective relationship between the two, making the child confused and believes in the false declarations of the alienating, developing memories, and details of false perceptions. Some areas of knowledge, such as philosophy and psychology, can help the ones who work in the law field to identify the tools in order to search for the imputed tacts of the genitor who is alienated. Keywords: Parental Alienation Syndrome - False Memories - Philosophy - Psychology - Law. * Psicéloga, Professora do Curso de Graduagao em Filosofia do IDC, consultora em Gestao de Pessoas. CULTURA E FE | 125 | Abril - Junho | ano 32 | p. 273-89 273 Diurno O olhar do espelho desatia 0 cotidiano A hora primeira do dia é de batalha O reflexo do sol anuncia a vida Meia volta e, de novo, O olhar do espelho insiste em questionar: “Espelho, espelho meu’, Onde esté aquele eu tao mais forte do que o meu?! A psicologia cognitiva se propde a estudar a maneira como as pessoas percebem, pensam aprendem e se lembram de informagées, utilizando varias outras areas do conhecimento, como a filosofia, a antropologia, a neurociéncia, a linguistica e entre outras, bem como alguns campos dentro da prépria psicologia, como a psicologia social, clirica, do desenvolvimento e psicobiologia. A psicologia cognitiva tem como premissas, conforme referido por Linda L. Davidoff , a concentracao dos profissionais da area em processos, estruturas e fun¢Ges mentais, pois a distincdo do carater humano dos individuos € fornecido pela mente, assim como a valorizagao da aplicagao pratica, que deve ser a meta do trabalho nesta area, cujo método de investigagao, precisa pautar-se pela maior objetividade possivel. O estudo da psicologia cognitiva tem a sua origem na filosofia e fisiologia, sendo que, na primeira, como reflexdo sobre o conhecimento disponivel, questiona a respeito do que se sabe, buscando a verdade e, na segumla, aprofunda-se no funcionamento do corpo, por métodos essencialmente baseados na observacao. Platao e Aristételes tiveram mtada influéncia no pensamento da psicologia moderna. Ambos divergiam na maneira de investigar as idéias, sendo que Platao, do alto de seu racionalismo cientifico, considerava ser 0 caminho para o conhecimento a busca da verdade, afastando 0 que se aprende através dos 6rgaos dos sentidos. O mundo das idéias, da razao e ndo o mundo, percebido através das sensacoes, seria a possibilidade de se chegar ao verdadeiro conhecimento, ‘ GERLING, Gilia. Legado de Amor Del Nero. Virtual Bookstore. Editorial Business On Web. Copyright, 2007 2 DAVIDOFF, Linda L. Introducao 4 psicologia. 3. ed. 2001. p. 14. ‘0 Paulo: Makron Books, 274 CULTURA E FE | 125 | Abril - Junho | ano 32 | p. 273-89 anunciando a ciéncia a importancia da utilizacdo do raciocinio. Aristételes, no entanto, era um empirista, ou seja, acreditava que o conhecimento somente poderia ser adquirido através da experiéncia e observacao, legando A psicologia as investigagdes empiricas. No século XVII, Descartes, em O Discurso do Método, seguia a logica de Platao, valorizando 0 método introspectivo e reflexivo em detrimento dos métodos empiricos inicialmente propostos por Arist6teles. A este ultimo une-se John Locke, para compartilhar com ele o seguinte: os homens nascem sem nenhuma inscrig4o em sua mente, sendo, em sua origem, uma tabula rasa, cujo conhecimento deve ser buscado por meio da experiéncia, considerando, desta forma, o estudo da aprendizagem fundamental para a compreensao da mente humana, uma vez que tudo se aprende, nao existindo idéias inatas. Chega-se, entdo, ao século XVII e, com ele, as contribuigdes do filésofo, Imamuel Kant, sintetizando o pensamento de Descartes e Locke, ao considerar importantes tanto uma forma de pensar o conhecimento quanto a outra, isto é, © racionalismo e 0 empirisno nao sao excludentes, aproximando, mais uma vez, filosofia e psicologia, que vale-se da combinagao de todas estas contribuigGes e de outras que se seguiram na historia da ciéncia. Desta forma, 0 cérebro é estudado por cientistas ha muitos anos, sabendo-se que © cortex cerebral é responsavel pela camada mais externa das duas metades, nas quais é dividido em hemisfério direito e esquerdo. Ambos tém fung6es bastantes diferentes um do outro, como os receptores, localizados no lado esquerdo do cérebro que, em geral, transmitem informagdes ao hemisfério direito; e 0 hemisfério esquerto que, por sua vez, dirige as respostas motoras do lado direito do corpo, conforme referido por Robert J. Sternberg? Nos anos 70, surge, com muita forca, na psicologia cognitiva, o interesse pelo estudo da memoria, especialmente aspectos relativos 4 recordagao e sugestionabilidade de criangas. Atualmente, 0 avanco dos estudos, nesta area, traz consideragGes titeis em relagdo ao fendmeno, conceituado por Gardner, nos anos 80, fazendo referéncia ao SAP — Sindrome da Alienagao Parental, sendo sindnimo, para outros autores, de imputacao de falsas memorias * STERNBERG, Robert J. Psicologia cognitiva. 4. ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 2008, CULTURA E FE | 125 | Abril - Junho | ano 32 | p. 273-89 275 Nos relacionamentos familiares) especialmente em momentos de rompimento das relacdes conjugais, reforcado pelo fato de hoje ser bastante usual o pai pleitear a guarda do filho tanto quanto a mae em um processo de divorcio, intensifica-se o desejo de um dos genitores de afastar, ou seja, alienar o filho do relacionamento e afeto relativo ao outro genitor. Imputa a este um falso comportamento hostil e perigoso quanto ao filho, por vezes, de tal gravidade que pode chegar & programacao para que a crianca acredite em falsas acusacgdes de abuso sexual, sofrido pelo infante por parte do ex-cénjuge alienado. Tal programacao se da, confundindo a mente da crianca a ponto desta acreditar nas declaragdes do alienador, desenvolvendo memérias, lembrangas e, até mesmo, detalhes a respeito do suposto, mas, paradoxalmente, falso abuso. Ao genitor que nao detém a guarda do filho, cabe 0 direito de visitas, nado devendo ser dificultado pelo outro cuidador, exceto em situagGes de extrema gravidade, nas quais possa haver risco para a crianga. Ocorre que, com muita frequéncia, o detentor da guarda opée intimeros obstaculos, a fim de impedir 0 cumprimento do direito a visita, valendo-se de inimeros subterftigios, desde a criagao de argumentos, cujos fatos inexistem, como o filho estar doente, a viagem de Ultima hora, 0 esquecimento e tudo 0 mais que possa afastar o filho do relacionamento com o genitor que, por ocasiao do divércio, nao se encontra com a guarda. Tratam- se de técnicas utilizadas que podem ser conscientes ou nao. Para este tipo de conduta, da-se o nome de alienagao parental, podendo trazer efeitos bastante nefastos. Passa a constituir a sindrome conceituada por R. Gadner* na qual a criancga desenvolve um apego excessivo ao genitor guardiao, comprometendo-se a um dever de lealdade para com este e afastando-se do convivio com o outro genitor, acarretando na resisténcia absoluta a qualquer contato com o pai ou a mae com © qual ele nao reside. Manifesta hostilidade, rejeicdo, revolta e 6dio, muitas vezes, em relacdo aquele, podendo evoluir para um prejuizo no vinculo que podera se tornar irreversivel, resultando em graves danos no psiquismo da crianca e do préprio genitor alienado. E uma conduta patolégica da parte do alienante que traz efeitos dramaticos a todos os envolvidos. * GARDNER, R. A. Recent trends in divorce and custody litigation. The Academy Forum, v. 29, 3-7, 1985. 276. CULTURA E FE | 125 | Abril - Junho | ano 32 | p. 273-89 A esse fenémeno R. A. Gardner deu 0 nome de Sindrome da Alienagao Parental (SAP), conceituando-a da seguinte forma: A sindrome da alienagao parental (SAP) é um disttirbio que surge primeiramente no contexto das disputas em torno da guarda da crianga. Sua primeira manifestacdo verifi numa campanha que visa a denegrir a figura parental perante a crianga, uma campanha que nao tem justific sindrome resulta da combinagao de um programa de doutrinagao dos pais (brainwashing - lavagem cerebral) juntamente com a contribuigao da prépria crianga para vilipéndio da figura parental que esta na mira desse se Criangas com mais idade tendem a opor maior resisténcia a tentativa de afastamento do genitor alienante, devido ao fato de ter um pouco mais de independéncia, podendo discernir entre a realidade e a pressio do genitor alienante. Busca fazer valer sua vontade de relacionar-se com 0 outro responsavel . Torna-se, portanto, nestes casos de alienagao parental, imperiosa a busca da verdade dos fatos e, para tanto, a psicologia vale-se dos estudos desenvolvidos nesta area. Transpondo 0 tema para o ambito do Direito, a Declaragao dos Direitos do Homem e do Cidadao, como fruto da Revolu Francesa, legou ao mundo como direitos universais, imprescritiveis, naturais e inaliendveis — a liberdade, a seguranca, a propriedade e a resisténcia contra a opressao — e representa 0 pedido de socorro dos povos oprimidos pela tirania do Estado. Na ultima metade do século XX, houve a consolidagao da valorizagao dos Direitos Humanos no ambito internacional. A Constituigao da Reptiblica Federativa do Brasil, em seu art. 1°, inciso III, confere ao cidadao 0 manto da protecao de sua dignidade, como pessoa humana. Em seu art. 5°, III, prevé que “ninguém sera submetido 4 tortura, nem a tratamento cruel, desumano ou degradante”. No tocante a familia, a Carta Magna considera-a base da sociedade e determina que 0 Estado deve- lhe especial protegao (art. 226, caput), assegurando “assisténcia °GARDNER, R. A. Recent trends in divorce and custody litigation. The Academy Forum, v. 29, 4, 1985. ® DARNALL, D. Parental alienation: not in the best interest of the children. LD Law Rev, v. 75, p. 323-64,1999. CULTURA E FE | 125 | Abril - Junho | ano 32 | p. 273-89 277 A familia na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violéncia no Ambito de suas relagdes” (art. 226, § 8°). Como nao poderia deixar de ser, o infante e 0 jovem também sao destinatarios da especial protegao legal. Nosso Cédigo Civil, no caput de seu art. 227, impoe a familia, 8 sociedade € ao Estado 0 dever de assegurarem, Art. 227. [...] a crianca e ao adolescente, com ab: prioridade, 0 direito A vida, A satide, a alimentacdo, a educagao, ao lazer, a profissionalizacao, cultura, dignidade, ao respeito, a liberdade e convivéncia familiar e comunitaria, além de colocé-los a salvo de toda forma de negligéncia, discriminagao, exploracao, violéncia, crueldade e opress Quanto a guarda do filho menor por ocasiéo da separacado dos pais, é permitida a guarda de um deles ou de ambos, sob a modalidade da guarda compartilhada (art. 1.583 do Cédigo Civil). Nesta ultima alternativa, para estabelecer as atribuigdes do pai e da mae, assim os periodos de convivéncia compartilhada, 0 Cédigo faculta ao juiz valer-se de orientagdo técnico-profissional ou de equipe interdisciplinar. Em principio, os préprios pais, por acordo, poderao disciplinar a guarda, porém, havendo “motivos graves, poderd 0 juiz, em qualquer caso, a bem dos filhos, regular de maneira diferente” (art. 1.586). Cabe, ainda, referir a tramitagao na Camara dos Deputados do Projeto-de-lei_ n° 4.053/087 de autoria do Deputado Régis de Oliveira, juiz paulista aposentado, que procura disciplinar as relagdes entre os progenitores a fim de evitar a ocorréncia da alienacao parental. Espera-se que nossos legisladores ougam psicdlogos e juristas para que venha a lume norma legal que proteja eficazmente a crianga de eventuais condutas indesejadas de seus pais. Por outro lado, mas ainda no enfoque juridico, agora sob prisma criminal, nossa Constituigdo assegura, no art. 5°, inciso LVII, que “ninguém ser4 considerado culpado até o transito em julgado de sentenga penal condenatéria”. De tal positivagao, deriva-se 0 Principio da Presungdo de Inocéncia, a partir do qual o direito penal passa a ser um instrumento na tutela da liberdade, ao invés de apenas ter como foco a pretensao punitiva. 278 CULTURA E FE | 125 | Abril - Junho | ano 32 | p. 273-89 Nesta esteira, a prova testemmbhal possui grande importancia no processo judicial e as técnicas para inquirigao de testemunhas podem se constituir numa valiosa contribuigao da psicologia A Area juridica. Assim, 0 conhecimento, por parte do juiz, de critérios relativos a psicologia do testemunho, potencializa- se como um diferencial na busca de um julgamento baseado no conhecimento abrangente do testemunho ocular, diminuindo 0 risco de condenag6es injustas. De acordo com Aury Lopes Jiinior®, 0 meio de prova, mais utilizado no processo penal brasileiro e paradoxalmente a menos confidvel, é a prova testemunhal. Entre as diversas hipdteses a respeito do comprometimento da confiabilidade da prova testemunhal, estao as falsas memorias, produzidas diferentemente da mentira que é consciente e dolosa, pois, nas primeiras, 0 agente acredita no que relata, uma vez que a sugestao se da de maneira inconsciente. Elisabeth Loftus citada por Aury Lopes Jtinior , trouxe grande contribuigao a essa area do conhecimento, ao demonstrar a implantagao deste tipo de memoria. Uma informacgao equivocada pode criar uma memd@ia falsa a respeito de determinado evento, podendo acontecer quando se é interrogado a partir de sugest6es ou quando se lé ou ouve noticias a respeito de fatos de que se tenha expeimentado. Se é possivel a implantagao de uma meméria absolutamente falsa, a respeito de algo que nunca aconteceu, imagina-se que menos complexo seria 0 processo de distorgao de fatos ocorridos, Foi feito um estudo, denominado “perdido no shopping”, no qual ha evidéncia de nao haver dificuldade em se implantar uma falsa meméria a respeito de estar perdido, podendo-se chegar a situagOes extremas. No caso dos “perdidos no shopping’, um grupo de 24 pessoas, de variadas faixas etarias, alternando entre 18 € 53 anos, participou da pesquisa, com o objetivo de buscar recordagGes da infancia que teriam sido contadas por seus pais, irmaos e outros parentes, aos pesquisadores. A partir disto, foi elaborado um material que consistia em um falso evento relacionado a um. possivel passeio ao shopping que, na realidade, jamais ocorreu, * LOPES JUNIOR, Aury. Em direito processual penal e sua conformidade constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 614 ° LOFTUS, Elisabeth apud LOPES JUNIOR, Aury. Em direito processual penal e sua conformidade constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 615. CULTURA E FE | 125 | Abril - Junho | ano 32 | p. 273-89 279 mas cujo relato afirmava que o participante teria ficado perdido durante um longo perfodo. No relato, estavam incluidas emogdes vividas, auxilio de terceiro até que, finalmente, a familia teria sido reencontrada. Apos a leitura de tal material, os individuos foram submetidos a uma série de entrevistas que tinham por objetivo, identificar 0 que cada um recordava. Ao final do experimento, 29% dos individuos tinham lembrangas tanto parciais quanto totais do acontecimento, construido para eles, de forma falsa e, em duas entrevistas que se seguiam a primeira, 25% seguiram afirmando lembrar do evento ficticiamente elaborado. HA extrema gravidade no que Elisabeth Loftus, citada por Aury Lopes Jtinior!®, refere como “inflagdo da imaginagao”, cujo risco reside em interrogatérios ou terapias, nos quais sao utilizados “exercicios imagéticos” para dar coragem aos participantes a imaginar acontecimentos da infancia, como uma maneira de tentar recuperar memorias esquecidas. Tais técnicas, segundo a autora, trazem conseqiiéncias nefastas, pois a implantagao de falsas memérias tem seu potencial ampliado, quando alguém da familia afirma que tal evento de fato aconteceu, pois a confirmagao do acontecimento por uma pessoa tem alta probabilidade de induzir a uma falsa memoria." Elisabeth Loftus citada por Aury Lopes Junior'2, explica esta influéncia. Reagdes de pessoas inocentes foram investigadas da seguinte maneira: individuos inocentes foram acusados de terem estragado um computador ao tocar em determinada tecla. Os participantes inocentes, em um primeiro momento, negaram tal acusacao. Logo depois, uma pessoa, associada ao experimento, afirmou ter visto a agao ser executada por eles. A partir deste fato, muitos participantes assumiram a culpa pelo evento sem que a tivessem, inclusive desenvolvendo recordacgoes para embasar sua culpa. A confusao a respeito da origem da informagao tem um importante papel no desenvolvimento de falsas memérias, A medida que tais recordacgdes s construidas a partir da combinacgao de memérias verdadeiras com o contetido das sugest6es, provindas de terceiros. Especialmente, nos crimes de ordem sexual, as falsas memérias encontram um terreno fértil " LOFTUS, Elisabeth apud LOPES JUNIOR, Aury. Em direito processual penal sua conformidade constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. “ Ibidem. "2 Ibidem, p. 617 280 CULTURA E FE | 125 | Abril - Junho | ano 32 | p. 273-89 para que sejam implantadas. Aury Lopes Junior, citando Elisabeth", relata, também, um episédio ocorrido em 1992, quando um terapeuta auxiliou uma moga de 22 anos a “lembrar” que havia sido freqiientemente violentada sexualmente pelo pai em sua infancia, no seu periodo de vida compreendido entre 7 e 14 anos, incluindo, nos eventos, 0 auxilio da mae. A partir de técnicas de induzimento, “recordou” igualmente que teria engravidado por duas vezes € realizado ela propria, sozinha, com a utilizagdo de um cabide, os abortos. Ao longo de uma importante e séria investigagao, exames médicos apontaram que a moga nao somente jamais havia engravidado, como ainda permanecia virgem. Poder diferenciar memérias verdadeiras de falsas é bastante dificil e necessita de que se possa comprovar que os fatos contradizem tais recordagGes, isto torna evidente a fragilidade da prova testemunhal e 0 enorme risco de que injustig¢as sejam efetivadas, liberdades e patriménios confiscados a partir do relato de testemunhas oculares Conforme refere Lilian Stein!4, a Psicologia Juridica no Brasil tem ainda pontos potenciais a serem desenvolvidos, pois foca-se em casos patolo6gicos predominaitemente, e se preocupa, exclusivamente, em captar a mentira ou a verdade do testemunho. Ocorre que os testemunhos nem sempre sao precisos e sofrem distorgdes em funcdo de fendmenos, como a passagem do tempo, estresse, provocado pelo ambiente dos tribunais, e também a imaginacdo do individuo que, em geral, é bastante fértil e pode distorcer a concepgao a respeito do evento a ser testemunhado. Um falso testemunho nao se origina necessariamente de uma mentira, observa a autora, mas pode ser prestado a partir de uma falsa memoria que se relaciona ao fato de que € possivel lembrar de fatos que concretamente nunca vieram a existir. Dada a importancia deste conhecimento, ha estudos bastante relevantes, desenvolvidos em paises, como Canada, EUA e varios da Europa, nesta drea. Uma notdvel pesquisa foi realizada nos Estados Unidos por A. Richard, E. Wise e A. Martin'S, com “LOFTUS, Elisabeth apud LOPES JUNIOR, Aury. Em direito processual penal e sua conformidade constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 617. “STEIN, Lilian. A memoria em julgamento; uma analise cognitiva dos depoimentos testemunhais.s.n.t ‘8 WISE, Richard A; SAFER, Martin A. “What US judges know and believe about eyewitness testimony”. Applied Cognitive Psychology. v.18, n°. 4, 2004. p. 373-490. CULTURA E FE | 125 | Abril - Junho | ano 32 | p.273-89 281 160 juizes norte-americanos, a fim de determinar 0 conhecimento dos juizes sobre a variedade de fatores que podem interferir na veracidade dos acontecimentos, relatados pela testemunha ocular. Evidenciaram os pesquisadores 0 que aqueles juizes conheciam e que crengas possuiam sobre o depoimento da testemunha ocular. O estudo demonstrou que os magistrados estavam corretos em alguns critérios estabelecilos, porém, geralmente, equivocavam-se em quest6es relevantes como: se a confianga é um bom indicador da preciséo da testemunha ocular e se os jurados podem distinguir entre uma testemunha precisa em seu depoimento e uma imprecisa que pode levar a enganos na decisao de condenar ou absolver e inclusive na definigao da pena. O conhecimento estava relacionado a disponibilidade em permitir defesas legais, como a inclusao de um perito como testemunho no julgamento; a crenca de que os que julgam tém poucos conhecimentos a respeito dos fatores que se relacionam as testemunhas; a resisténcia em condenar os réus somente a partir do depoimento da testemunha ocular; a nogaéo mais clara sobre a conseqtiente possibilidade de condenar alguém a partir de um erro da testemunha; a crenga de que treinos adicionais a respeito dos fatores e dos procedimentos que interferem no grau de precisdo da testemunha podem auxiliar os juizes a reduzir 0 ntimero de condenagées equivocadas. A condenacao de pessoas inocentes € uma grave ameaca a um Estado Democratico de Direito, visto violar os pressupostos constitucionais e ameagar a dignidade da pessoa humana, valor consagrado desde a Revolucdo Francesa e reafirmado no Brasil, na Constituigdo da Reptiblica Federativa do Brasil de 1988. De acordo com Tulving, Tulvinf e Craik, 2000 citados por Robert J. Sternberg'®, a memoria é 0 meio através do qual se torna possivel nao somente armazenar, mas também conectar as experiéncias passadas para utilizar a informagao no tempo presente. A psicologia cognitiva evidencia trés operagoes caracteristicas da memoria que sao: a comunicagao, a armazenagem e a recuperacao, conforme Baddeley, Brown e Craik citados por Robert J. Sternberg'?. Cada uma dessas operacGes “ TULVING, 1997; TULVINF; CRAIK, apud STERNBERG, Robert J. Psicologia cognitiva. 4. ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 2008. p. 157. ' BADDELEY, 1988, 1999, 2000b; BROWN; CRAIK, 2000, apud STERNBERG, Robert J. Psicologia cognitiva. Tradugdo de Roberto Cataldo Costa. 4. ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 2008. p. 157. 282. CULTURAE FE | 125 | Abril - Junho | ano 32 | p. 273-89 esta relacionada a uma etapa no processamento da memoria. Em relacdo codificagdo, dados sensoriais s4o transformados em uma forma de representagao mertal. Na etapa, intitulada “armazenagem”, ha a manutencao, na meméria, das informacoes, codificadas na etapa anteriormente referida. Na de recuperacao, as informagoes sao retiradas ou usadas. Estes trés momentos sao compreendidos como etapas seqienciais: primeiramente, a informacao € recebida, logo apés, guardada e, a seguir, é trazida novamente a superficie. Estes processos, ao mesmo tempo em que tém uma seqiiéncia, interagem entre si, porém, de maneira independente um do outro, send que uma informagao, considerada dificil de ser codificada, tera seu armazenamento dificultado e, conseqiientemente, a recuperagao também nao sera facil. No entanto, uma denominagao verbal para 0 mesmo fendmeno pode ser um motivo de facilitagao das trés etapas, uma vez que auxilia na codificagdo da informacao. Com 0 propésito de verificar 0 tipo de cédigo, utilizado para armazenamento e uso temporario de informagées, foi apresentado, visualmente, aos participantes de um experimento, realizado por Conrad, 1964, citado por Robert J. Sternberg’, diferentes séries de seis letras cada uma, durante 0,75 segundos por letra. As letras, compreendidas nas seis séries, foram: B, C, F, M,N, P, S, T, V, X. Logo apos, os individuos tinham que escrever cada uma das listas na ordem em que lhes haviam sido dadas. O objetivo era verificar em que tipos de erros os participantes poderiam incorrer e, entdo, os pesquisadores observaram que os erros tinham a tendéncia de se fundamentar em confusGes de audigao, ainda que tenham sido apresentadas visualmente. Os participantes utilizaram como recurso a actistica das letras e, ao invés de lembrarem das mesmas corretamente, as substituiram por outras que acusticamente assemelhavam-se as letras apresentadas e, assim, acabaram por confundir F com S; B com V; P com B e outros erros desta natureza. Um outro grupo de individuos apenas escutou as letras, apresentadas isoladamente, com um ruido no ambiente. Estes participantes apresentaram 0 mesmo modelo, ao confundirem as letras na tarefa de escuta e na memoria visual das mesmas. Assim sendo, parece haver uma tendéncia em estabelecer a codificagao das letras, apresentadas visualmente, nao pela sua aparéncia, mas pelo seu som. ** CONRAD, 1964, apud STERNBERG, Robert J. Psicologia cognitiva. 4. ed Porto Alegre: Artes Médicas, 2008. p. 191 CULTURA E FE | 125 | Abril - Junho | ano 32 | p. 273-89 283 Nesta experiéncia, percebe-se, na memoria de curto prazo, um cédigo actistico e ndo um visual, podendo haver, ainda, outros cédigos nao estudados neste experimento. No que se refere 4 memoria de longo prazo, conforme Robert J. Sternberg!®, as informagdes, em sua maioria, parecem. ser codificadas, especialmente, de maneira semantica, embora haja evidéncias de codificag6es visuais e actisticas. Portanto, ha consideravel flexibilidade na maneira como sao armazenadas as informag6es que sao retidas na memoria por longo periodo de tempo. As informagdes da memoria de curto prazo sao transferidas para a de longo prazo, e a forma de se estabelecer tal passagem dependera do tipo de meméria que a informagao iré envolver, ou seja: memoria declarativa ou memoria ndo-declarativa. Varios processos s4o envolvidos na entrada da meméria declarativa de longo prazo. Uma forma de se atingir este objetivo é prestar, deliberadamente, atencdo a informacao, de maneira a compreendé-la, e outra é estabelecer conexGes entre a nova informagao e o que jé € conheddo e compreendido. As associagGes sao feitas de maneira a integrar os novos dados aos esquemas de informagao armazenados que ja existem. Estudos sugerem que a memoria € sujeita a distorgdes e interrupgdes no processo de consolidacdo, 0 que fez surgir estratégias de metameméria que, segundo Koriat e Goldsmith, Metcalfe, Nelson e Narens, Schwartz e Metcslfe, em Robert J. Sternberg”, traduzem a reflexdo sobre os proprios processos, com o propésito de aumentar a qualidade da meméria, quando novas informacées sao transferidas para a memoria de longo prazo ao realizar repeticao. Estas estratégias denominadas “metamemoria” sao um componente da metacogni¢ao, classificada como a capacidade de pensar sobre os proprios processos do pensamento, como uma forma de buscar um incremmto de sua qualidade, melhorando e controlando tais processos. O individuo possui idéias centrais sobre seu se/f que sao chamados de esquemas. Beck citado por Judith S. Beck?! destaca STERNBERG, Robert J. Psicologia cognitiva. 4. ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 2008. p. 192.v 2°” KORIAT; GOLDSMITH, 1996; METCALFE, 2000; NELSON; NARENS, 1994; SCHWARTZ; METCSLFE, 1994 apud STERNBERG, Robert J. Psicologia cognitiva. 4. ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 2008. p. 192 * BECK, 1964, apud BECK, Judith S. Terapia cognitiva: teoria e pratica. Porto Alegre, Artmed, 1997 284 CULTURAE FE | 125 | Abril - Junho | ano 32 | p. 273-89 que ha diferenciagao entre esquemas e crengas centrais. Os primeiros sao estruturas cognitivas, contidas no pensamento, tendo como contetido especifico as crengas centrais. As crencas centrais negativas se enquadram em duas classificagdes genérica: um grupo é associado ao desamparo e€ outro, pelo fato de nao ser amado. Judith S. Beck , refere que algumas pessoas possuem crencas centrais que podem ser compreendidas em uma das classificagdes, ao passo que outras apresentam crengas centrais que se encaixam nas duas. Tais crengas sdo desenvolvidas na infancia, durante a interagao da crianga com outras pessoas que lhe sao importantes, e encontra situagdes no ambiente que lhe corroboram esta idéia. As crengas centrais podem ser mantidas positivamente, sendo que as negativas podem vir a superficie em momentos de afligao. A crenga central que os pacientes acreditam ser verdades a respeito de si mesmo nao é completamente observada e podem ser relativas ao meio ambiente. Sao exemplos de crencas centrais a fixagado em pensamentos do tipo: “Nao da para confiar em ninguém”. “Viver € dificil e perigoso”, “As pessoas estéo sempre querendo me magoar”. “Sou culpada pela separacaéo dos meus pais”, “Nao tenho valor para a minha familia”, “Se eu nao agir como meu amigo estd me pedindo, ele nado gostard mais de mim”. As crencas negativas sao consideradas como absolutistas e generalizadas, com um grande potencial de queda da autoestima, quando ativadas na pessoa, dificultando o teste de realidade, 0 que produz, na concepcdo do sujeito, 0 predominio de aspectos dificeis e negativos. Além disto, reduzem a percepcao dos positivos que poderiam ser contrapostos ou comparados aos negativos, a fim de haver um equilibrio, tornando o sentimento mais de acordo com a realidade. Quando isso ocorre € na hipétese de o individuo buscar um tratamento, é importante rever as crengas centrais e analisd-las conjunamente, sendo o grau de compreensao e modificacdo das mesmas bastante varidvel, de acordo com cada pessoa A interpretagao de uma circunsancia, freqiientemente evidenciada em pensamentos automaticos, influencia a forma emocional, 0 comportamento e a forma fisiolégica da pessoa, conforme o modelo cognitivo. De acordo com Judith S. Beck, os individuos, com transtornos psicologicos, costumam, com Ibidem, p. 174. [No prelo]. BECK, Judith S. Terapia cognitiva: teoria e pratica. Porto Alegre, Artmed, 1997. p. 85. CULTURA E FE | 125 | Abril - Junho | ano 32 | p. 273-89 285 freqiiéncia, interpretar inadequadamente situagGes positivas ou neutras, apresentando pensamentos automaticos tendenciosos. Beck citado por Judith S. Beck* por pensamento automatico é um fluxo de pensamento que existe conjuntamente com um fluxo de pensamento manifesto que, na maior parte do tempo, nao se esta ciente deles, mas, com um treinamento, é possivel manté-los na consciéncia. Quando 0 individuo nao esta sofrendo de uma disfuncdo psicologica, pode testar a realidade de uma forma mais eficaz do que em um momento em que se esta passando por determinado disttirbio, no qual a compreensao da realidade fica prejudicada, levando-o a tomar decisdes fundamentadas em suas crengas, mas nao necessariamente de acordo com a realidade e, seguramente, nao sera a melhor escolha. Ao buscar um novo conhecimento, possivel que se resista a aprendé-lo, estabelecendo, logo, a idéia de que, de fato, tal informacao € incompreensivel, desencadeando um nivel de ansiedade. Mas, se a atitude for positiva, percebe que compreende algo e, ao ler novamente, podera ter claro todo 0 contetido da leitura. Uma vez identificadas as crengas subjacentes, os pensamentos automaticos podem ser previstos, sendo que a emogao, sentida pela pessoa, esta conectada ao conteido do pensamento automatico que pode ser preciso ou distorcido. Dessa forma, identificar os pensamentos automiaticos, avaliar e responder aos mesmos podem refletir em uma modificagao positiva do afeto. Elizabeth F. Loftus , verificou que, quando se constata um acontecimento, ha também uma interpretagdo a respeito do mesmo, sendo 0 material armazenado pela memoria, baseado nao somente na percepgao, mas também no conhecimento anterior que cada individuo possui e em conjecturas sobre aspectos do evento. Com base na informagao de que a memoria é armazenada em partes e, ao buscar a sua recuperagdo, os fragmentos estao disponiveis e fundamentadas neles, procura-se © fato original e que se cré verdadeiro. Ocorre que, no caso de uma sugestao falsa, esta passa a ser parte dos fragmentos colocados * BECK, 1964, apud BECK, Judith S. Terapia cognitiva: teoria e pratica. Porto Alegre, Artmed, 1997 * LOFTUS, Elizabeth F. Eyewitness testimony. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1979 286. CULTURAE FE | 125 | Abril - Junho | ano 32 | p. 273-89 a disposigao, na tentativa de recuperagao da lembranga do acontecimento, 0 que podera distorcer a meméria do mesmo. Stephen Ceci, David F. Ross e Michael Toglia _ realizam experiéncias, cujo objetivo era o de analisar as criancas da Pré- escola, em relacdo ao seu potencial de sugestionabilidade. Constatou-se ser este maior do que em adultos, e que a figura de autoridade influencia a fragilidade da crianca ao ser influenciada no desenvolvimento de uma meméria. Quando a informacao nao verdadeira era apresentada ao pré-escolar por uma outra crianga, 0 grau de sugestionabilidade apresentava-se reduzido, ao que se concluiu que a possibilidade relativamente menos dificil de programar a mente de uma crianca para desenvolver uma falsa memoria se da pela Ansia em corresponder ao desejo de uma figura de autoridade. Portanto, entender que a cognicao é influenciada por um viés nao € algo novo na psicologia, uma vez que as expectativas € as motivagées tém influéncia no que é captado ou relegado da realidade, € que somente sao codificadas as informacées cuja selegdo é feita pela meméria de curto prazo, sendo que o material, transferido para a de longo prazo, é determinado, em certo nivel, pelo que se tem de expectativa pessoal. A recuperagao depende de esquemas e€ emogoes de cada individuo. Assim, infere-se que o viés esteja presente em todo o processamento da informagao. O processo judicial, quando permite 0 uso de testemunhas no auxilio da tomada de decisao na esfera juridica, supde ser prudente acreditar no relato da testemunha, baseado em sua mem6Oria. Entretanto tal crenga nao corresponde, infelizmente, a realidade, de acordo com as pesquisas nesta drea, 0 que reforca a necessidade de se buscar a maior abrangéncia possivel a respeito da cognicao de determinado evento. Aury Lopes Jtinior? considera 0 processo penal um instrumento para reconstruir determinado fato ocorrido, sendo um ritual, a fim de proporcionar ao julgador a cognigao ao magistrado acerca de um acontecimento histérico. Nesta esteira, as provas sao os meios utilizados para atingir a reconstrugao do fato passado que, na area penal, é 0 crime. °° CECI, Stephen, ROSS, David F., TOGLIA, Michael. P. “Suggest ibility of children’s memory:Phycholegal implications.”, Journal of Experimental Psychology: General, v. 116, n. 1, 38-48, 1987. LOPES JUNIOR, Aury. Em direito processual penal e sua contormidade constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 489. CULTURA E FE | 125 | Abril - Junho | ano 32 | p. 273-89 287 Deste rito, deriva um paradoxo temporal que faz parte do processo judicial, ou seja, caberd ao juiz julgar, no presente, uma pessoa a respeito de um fato acontecido no passado ja distante, mas cujo embasamento da prova se da pela coleta de informacdes e material, feitas em um passado pr6ximo e, através destes elementos, deverd o réu ser julgado inocente ou condenado a cumprir uma pena que se tornara possivel no futuro. Assim sendo, © fato reconstruido jamais sera real, pois, fazendo uma alusio ao fildsofo Heraclito, este afirmou que na natureza tudo flui, muda e nada é estavel ou definitivo, dai a dizer que um homem nao se banha duas vezes no mesmo rio. Tudo é e nao é ao mesmo tempo, a vida é feita de paradoxos, conforme referido no livro Da mesma forma, 0 homem em julgamento provavelmente nao mantém as caracteristicas do momento do crime e nao sera o mesmo ao final do processo, quando deveré cumprir a pena e vivera no futuro que, no julgamento, é o presente, um eterno reviver do tempo passado. Desta compreensao, depreende-se que a atividade do juiz sera sempre recognitiva, uma vez que, conforme Jacinto Coutinho citado por Aury Lopes Junior um juiz com jurisdigdo que ndo sabe, mas que precisa saber, dé-se a missio de dizer o direito no caso concreto”. Para o magistrado, a cognic¢ao, a respeito do fato, se dard sempre de forma indireta, pois ele desconhece 0 fato e dependera da prova para conhecé-lo. Destas consideragGes, se evidencia a importancia da prova colhida, ela é essencial para a selecdo das hipéteses a serem construidas em funcdo do fato ocorrido a ser averiguado. A expectativa, em relagdo a um prova apresentada, é de aproveitamento da mesma, de maneira a persuadir 0 juiz de sua importancia e veracidade. As provas, especialmente a testemunhal, cumprem um rito perpassado pela emogao, pelas fantasias e crencas daquele que depde e de quem 0 outro depende na definicdo de como sera 0 seu futuro, em fungdo de possivel condenagao ou absolvicéo ou, m hipdtese da Sindrome da Alienacdo Parental, receber ou nao a disputa da guarda da crianca. Se for 0 caso, ainda mais relevante é colaborar concretamente na libertacdo da crianca que est na caverna escura, na qual ela acreditou que a percepcao que tinha do pai alienado correspondia ° NICOLA, Ubaldo. Antologia ilustrada de Filosofia — Das origens 8 idade moderna. Sao Paulo: Globo, 2005, p. 18-19. COUTINHO, Jacinto apud LOPES JUNIOR, Aury. Em direito processual penal e sua contormidade constitucional. Rio de Janeito: Lumen Juris, 2008. p, 490. 288 CULTURAE FE | 125 | Abril - Junho | ano 32 | p. 273-89 a realidade, quando, de fato, era uma memoria falsa. Eram grilhdes impostos pela ignorancia, que nao permitem que se possa ver 0 que realmente é verdadeiro, aludidos por Platao no livro VII de A Reptblica, no qual refere: E se 0 arrancassem dali a forga e 0 fizessem subir 0 caminho rude ingreme, € nao 0 deixassem fugir antes de 0 arrastarem até a luz do Sol, nao seria natural que ele se doesse e agastasse, por ser assim arrastado, e, depois de chegar a luz, com os olhos deslumbrados, nem sequer pudesse ver nada daquilo que agora dizemos serem os verdadeiros objetos®” eria A importancia de uma decisao justa para casos desta natureza nao se situa somente na propria deciséo, mas também na salvaguarda da sanidade do psiquismo da crianga envolvida — mais importante que a justica seja plena para a crianga do que 0 pedido de guarda dos genitores litigantes. Para tanto, 0 juiz devera utilizar-se de filtros para identificar, no depoimento da crianga, a presenca de falsas memérias, programadas pelo interessado, utilizando-se de meios técnicos adequados, a fim de que o leitor do ato de julgar possa restar convencido da correta avaliagao judicial. Isto porque o proprio direito impoe ao juiz o dever de fundamentar as suas decisGes, tanto no plano juridico quanto no fatico, ora, na disputa pela guarda de um filho, com muito mais razao, 0 magistrado deve motivar a sua decisao, explicando todas as fases do silogismo da sentenga. Acima de tudo, deve demonstrar que as suas conclusGes nao sao frutos de meras impressdes e, sim, de uma construgao cognitiva, baseada em dados concretos submetidos a analise 0 mais cientifica possivel, valado-se de outras areas do conhecimento, portanto, de maos dadas, a filosofia, a psicologia e o direito poderao fornecer ferramentas, a fim de que as trevas da Sindrome da Aliena¢ao parental sejam iluminadas no cotidiano, assim como pela verdade e razao. ” PLATAO: A Reptiblica. 2. ed. Si 10 Paulo: Martin Claret, 2008, p. 211 CULTURA E FE | 125 | Abril - Junho | ano 32 | p. 273-89 289

Você também pode gostar