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Nesta obra, © autor procura analisar es rafzes da autocracia burguesa no Brasil a par- tir da formagao do Estado nacional e da bur- guesia enquanto classe. (© desenvolvimento do capitalismo & en- tendido como um proceso ndo-cldssico, dife- renciado, portanto, das formagoes sociais euro- péias, na medida em que o capitalismo nas coldnias apresenta-se com caracteristicas espe- cffieas, engendradas por sua ldgica (inerente) de “amoldar-se” e forjar situagdes novas para sua auto-reposicao. Este elemento ndo-cldssico de um capita. lismo que se desenvolve dentro de um pro- ‘cess acumulador baseado na excravidio © no latifindio exportador, daré as bases para 0 surgimento de um Estado que coordenaré a yociedade civil a partir da perspectiva de uma burguesia de mentalidade mercantil que, para ‘muanter seus interesses produtivos, renuncia 20 progresso € & autonomia, subordinando-se aos pélos internacionais do capitalismo: estruturs- Estado e Burguesia no Brasil Origens da autocracia burguesa Nossa Terra © Antonio Carlos Mazzeo Etitoracio/Produsdo gréfica: Bertelli Consultoria Editorial Composieio: Linotipadora Expressa Lida. Cope: Luls Diaz Ne de catélogo: 0016 Direitos reservados Oficina de Livros Lida. Rua Tupinambés, 360, 12° andar, sala 1210 elo Horizonte, MG. Tel. 2221577 — CEP 50.120 ANTONIO CARLOS MAZZEO Estado e Burguesia no Brasil Origens da autocracia burguesa Oficina de Livros 1989 Belo Horizonte DADOS SOBRE © AUTOR: ‘Antonio Carlos Mazzeo ¢ sociélogo © mestre em sociologia pela Universidade de Sio Paulo (USP). Autor de Burguesia e capitalismo no Brasil (S80 Paulo: Ed. Atica, 1988), € colaborador de vérios jornais e revistas, nos quals tem ‘Publicado artigos e enssios sobre a realidade brasileira, teoria politica e ‘metodologia cientifica. ‘Atualmente € professor do Departamento de Cinciae Politicas da Faculdade de Filosofia e Ciénciss da Universidade Estadual Paulista (UNESP), campus de Marflia, Para Augusto ¢ Ophélia, meus pais. Para Fernanda ¢ Isabella, meus amores. ‘Aos que tombaram pela liberdade. SUMARIO Prefécio, 11 Introdugdo, 13 1 — 0 caréter capitalista da colonizacéo: ainda uma discusséo necesséria, 25 Il — A formagio social colonial como particularidade hist6riea, 55 III — As determinagées histérico-particulares do Estado nacional brasileiro, 87 IV — © Brasil no quadro das “vias” de desenvolvimento do capitalismo, 105 Bibliografia, 131 PREFACIO Com alguns retoques, este texto consiste na dissertago de mestrado que apresentei em 1986, na érea de Sociologia da Uni- versidade de Sio Paulo: A génese da autocracia burguesa no Brasil. Passados alguns anos, penso que seriam necessérias reconsi- deragées, aqui e ali, sobre um ou outro aspecto. No entanto, conti- nuo a coneordar com 0 micleo central do trabalho. Fato que me levou a aceitar o convite da editora Oficina de Livros para publi- eélo, 0 que aliés me deixa bastante feliz. Ndo por um orgulho cupidista deseabido, mas porque poucas sio as editoras em nosso pais que oferecem oportunidade aos nao “figures” para coleti- vizar os resultados de pesquisas, muitas vezes, como é 0 caso desta, financiadas com dinheiro péblico. Além do mais, é para mim de fundamental importincia que a critica do meu trabalho seja feita rnio $6 pelos restritos cfrculos universitérios, mas por todos os que, de uma maneira ou de outra, estio empenhados em mudar 1 sociedade brasileira. Aproveito a oportunidade para agradecer aos professores Edgard Catone ¢ Maria Teresa Sadek, componentes da banca exa- minadora, pelas observagGes e criticas feitas com rigor e acuidade, acrescides pela simpatia e cordialidade, tio raras em nossos dias. Agradeco a Paulo Silveira, mais que um orientador académi- co, um amigo, a quem devo preciosas e fundamentais contribuigdes ‘e, também, 20 amigo Antonio Roberto Bertelli, a quem devo 0 estimulo para a publicacdo deste livro. Pela ajuda e pela “forga”, um abrago fraternal a Wanderley Codo, Margaret Presser, revisora e artesi minuciosa, Fébio Caval- canti e Fernando Cavalcanti, que durante muito tempo tornaram-se ‘minhas vitimas prediletas, a0 pacicniemente ouvirem longas dis- gregées sobre o trabalho. Em especial, agradego com amor a Fernanda Giannasi, cujo incentivo foi fundamental para a entrega deste texto ao editor. ‘Sf0 Paulo, junho de 1989 an INTRODUGAO Qualquer estudo sobre a formaggo econdmico-social brasi- que leve em conta seu processo ontogenético, passa, obriga- toriamente, pela discussio sobre as formas produtivas que aqui se estruturaram, assim como pelo cardter da especificidade supe- restrutural nela engendrada. Nesse sentido, também € obrigat6rio passar pelas tendéncias expressivas, no bojo das andlises marxistas, objetivando-se, a partir de suas conclusdes, avangar no entendi- mento da realidade de sociedade brasileira. Assim, podemos, ini- clalmente, situar duas correntes de interpretagio, que constituiram- ‘se como cléssicas: de um lado, a visio que Caio Prado Jr. chamou de “Teoria Consagrada";* de outro, a andlise interpretativa que coloca 08 paises de extracio colonial, do continente americano, na esteira do desenvolvimento do modo de produgao capitalista, ‘A “Teoria Consagrada” desdobrase das teses da Internacional ‘Comunista, » partir de seu VI Congresso Mundial de 19287 ‘onde se definem os paises de génese colonial da seguinte ma rneira: palses coloniais e semicoloniais (China, india, etc.) & paises dependentes (Argentina, Brasil © outros), que possuem ‘um embrido de indistria, as vezes mesmo uma indstria desen- vyolvida, insuficiente, na maioria dos casos, para a edificasio independente do socialismo; paises onde predominam relapbes sociais da Idade Média feudal ou 0 "modo asitico de produsio! {tanto na vida econdmica como na sua superestrutura politica La transpondo-se de forma mecéinica ¢ reducionista as anélises de Marx, Engels e Lénin, das realidedes particulares européias para as formagies sociais asiéticas e latino-americanas. No entanto, “Caio Prado Jr., A revolupto brasileira (Sto Paulo: Ed. Brasiliense, 1978). 7 Em que pese nossa discordancia de muitas de suas andlises e conclusdes, ppensamos ser importante que se conheca o trabslho de Fernando Claudin, La crisis del movimiento comunista. De la Komintern al Kominform (Barce- Jona: Ruedo Thérico, 1978). "Caio Prado Ir, op. cit, p. 65. 13 tais interpretagdes vém sendo criticadas, basicamente pelos mar- xistas dos pafses capitalistas da América Latina. £ importante destacar que a critica & “Teoria Consagrada” se efetiva em dois planos: no palco das interpretagdes c, jundamentalmente, no plano metodolégica. Dizendo de outra maneira, foi a critica marxista a0 “marxismo dogmético” que permitiu o reencontro com as melho- res tradigdes dialéticas do pensamento marxiano. Esta critica, que est apenas comegando, deve ser aprofundada. Como disse Lukdics: Tmpoese, contudo, um aprofundemento da crtica ao método ‘posto em pritica por Stélin; se aprofundarmos o nosso exame dia questio, verificaremos que sio seriissimas as conseqléncias, ‘de semelhante metodologia [...]. Foi grave o prejuizo sofrido ppelo marxismo em todo 0 mindo: a mutlagso teérica repre- seniada pelo abandono da teoria do sistema asiétco de produ ‘0 estorvou, por exemplo, os esforgos dos marxistas no sentido ‘de uma compreensio. mais aprofundada dos movimentos de libertagio nacional dos povos colonia. Na América Latina, as conseqiiéneias dessa interpretagdo resul” taram em profundos prejuizos a0 movimento operdrio ¢ aos tra- balhadores em geral. A corrente marxista de andlise que situa a América Latina no ‘contexto histérico-concreto do desenvolvimento do capitalismo, ‘enquanto modo de produgio, ¢ que tem, no Brasil, como maior expressio, Caio Prado Jr., inaugurou, efetivamente, uma inter- retagio das formagdes sociais coloniais muito mais préxima das anélises contidas nos textos de Marx e Engels. Ela representou a ruptura com 0 mecanicismo stalinista e a propria retomada do método marxista em suas dimensoes dialéticas, livre de muites das deformagées reducionistas. Nesse sentido, cabe dizer que nos situamos nessa corrente tedrico-explicativa, a partir da qual iremos discutir alguns aspectos fundamentais do que pensamos ter carac- terizado a formagao social brasileira, inserindo-a no quedro ame- ricano, enquanto uma particularidade histérica, engendrada pela universalidade capitalista, na medida em que, nas coldnias, 0 capitalismo desenvolveu-se com especificidades proprias, determi- “Gyiirgy Lukécs, Conversando com Lukes (Rio de Janeiro: Ed. Paz Terra, 1969), pp. 167-168. 4 nado por sua I6gica inerente de “amoldar-se” ¢ constituir situa: ‘gbes novas para sua auto-eprodugo. A colonizacéo da América, em geral, e da particularidade brasileira — nosso objeto de estudo —, esté inserida, assim, no ample processo de acumulago origingria do capital, iniciado a partir do século XVI. Como disse Marx, a histéria do desenvolvimento do capitalismo “...] apre- senta uma modalidade diversa em cada pais ¢, em cada um deles, percorre diferentes fases em distinta greduagdo e em épocas di- versas”* Seguindo essa conceituagéo marxiara, descartamos qualquer concepgao que defina a formagio social brasileira como um modo de produgdo distinto do capitalista ou como um “modo de produ- gio subsidistio” a0 capitalista, como fazem as interpretagSes que 4 definem como “modo de produclo escravista colonial”, embora articulado com o capitalismo, a0 nivel mais geral Isso porque entendemos serem, as referidas andlises, fruto de incorresées teSrico-metodoldgicas, das quais nos ocuparemos nos capitulos seguintes. Como enfatizou Caio Prado Jr., a América Latina esteve, desde sua génése, da descoberta, colonizagdo © estruturago econdmica, dialeticamente integrada ao capitalismo, sendo parte integrante € constitutiva de seu desenvolvimento.” ‘Como vemos, a questo do método colocase como o ponto central da interpretagio da formagdo social brasileira, 0 que nos obriga a dedicar algumas de nossas linhas a ele téo-somente, com "Karl Marx, El capital (México: Fondo de Cultura Econémica, 1973), tomo 1, p. 603, *Veja-se Jacob Gorender, O escravismo colonial (Sto Paulo; Ed. Atica, 1978). Ciro Flamarion Cardoso, Agricultura, eseravidao e capitalismo (Rio de Janeiro: Ed. Vozes, 1979). “As concepeses acerca do sistema econémico ‘mundial e do antigo sistema colonial: 2 preocupagio obsessiva com a ex: Iago de excedente” em Modos de produpao e realidade brasileira, Vv.Aa. Rio de Janciro: Ed. Vozes, 1980). “Modo de produso excravista colonial na América”, em América colonial, Vv.Aa. (Rio de Janeiro: Ed, Pallas, 1975). Décio Sues, Formapao do Estado burgués no Brasil (1888-1891) (Campinas: Eid. IFCH/UNICAMP, 1982), tese de livredocéncia, mimeo, Somente quan- do termindvamos a redacéo’ deste trabalho, 0 referide texto foi editado pela Editora Paz e Terra, no Rio de Janeiro. Assim, as referéncias a cle Serlo feitas a partir do texto mimeografado), "Vejase Caio Prado Jr. op. eit. 15 © objetivo de fundamentar, de maneira cientifica 0 que nos pro- pomos. Na perspectiva do materialismo dialético, 0 conhecimento do proceso histérico, enquanto totalidade articulada por miliiplas determinacies, constitui-se o elemento fundamental: Do ponto de vista metodol6gico, é importante observar, desde © Inicio, que Marx separa nitidamente dois complexos: 0 ser social, que existe independente do fato de que scja ou néo conbecido e 0 méiodo para captélo no pensamenio, da ma ‘neira mais adequada possivel. A prioridade do ontol6gico com relago 20 mero conhecimento, portanto, nl se refere apenas ‘a0 ser em geral; toda a objetividade é, em sua estrutura ¢ dindmica concreta, em seu ser-precisamenteassim, da maior importincia do ponto de vista ontoldgico. E essa € a posiglo filos6tica de Marx, desde os tempos dos Manuscritos econd- ‘mico-filoséficos® Ressalta-se, entio, que a totalidade ¢ sempre dinmica, dnica ‘complexa em continuo movimento interativo, no sentido de sua dialeticidade imanente. Por isso, se partirmos do real — enquanto totalidade — ou de seus determinantes imedintos, chegaremos as representagées postas pela propria dindmica que 0 real engendrou. Para tal, devemos recorrer as abstracGes particulares levando em conta suas complexidades remontadas totalidade, enquanto uni- dade do diverso. Se a realidade, no campo social, é dada de modo imediato, devemos, no entanto, buscé-la em sua propria esséncia, isto é; em sua estrutura produtiva, 0 que nfo quer dizer a priori- zacéo da “instncia econémica”, conforme a confusio estrutura- lista, A estrutura produtiva é entendida aqui como o elemento ‘conformador da totalidade, onde sio dados os processos dialéticos de interagao dos complexos sociais. Os complexos sociais possuem tuma Iegalidade objetiva, na qual seus elementos conformadores, por sua prépria esséncia ontoldgica, constituem-se em outros com- plexos — as categorias — que dio historicidade e concretude as formagées sociais, Nessa perspectiva, as categorias econdmicas sofrem alteragées histGricas, determinadas pelo préprio real cm movimento. Como exemplifica Marx: Gyorgy Lukécs, Ontologia dellessere sociale (Roma: Ed. Riuniti, 1976), vol. I, pp. 285.284, 16 © dinheiro pode existir © exis historicamente, antes que cexistsse 0 capital, antes que exbtisem os bancos, antes que cexistisce © trabalho assalariado, ete. Nesse sentido, podese dizer, entio, que a categoria mais simples pode expressar rela: ‘es dominantes de um todo menos desenvolvido ou, pelo contro, relagies subordinadas de um todo meis desenvolvido ‘em que jf existam historicamente, antes que 0 todo tivesse se esenvolvide, no sentido que se expressa uma categoria con- ‘rela [...]. Por outro iado, podese dizer que hé formas de Sociedade muito desenvolvides, embora historicamente no tenham atingido ainda sua maturidade, mas quais se encon- tram as formas mais clevadas da Economia, tais como @ coope- ragio, uma divisio do trabalho Jesenvolvida, sem que exista tnclas 0 dinheiro [...]- Além diso, embora o dinheiro tenha, Imuito cedo e por toda parte, desempenhado um papel, nfo ‘sssume papel de elemento dominante na Antigtidade, senio ‘de modo unilateral e em determinadas nagGes — as nacées ccomerciais® Esta historicidade das categorias econémicas — quando elevadas fas suas dimens6es ontolégicas — imaneates a0 proprio real (com efeitos histéricos-concretos na morfologia das formagées sociais) nos permite eliminar qualquer reducionismo dogmatizador, do real caréter, que a estrutura produtiva assume, na conformago da totalidade, Enquanto a “base real” sobre a qual se ergue 0 conjunto so- cial, a estrutura econdmica nao constitui-se no “fator” econdmico determinista, onde “estio dadas” relagdes mecinicas do tipo causa- efeito, no que se refere a economia, mis, a0 contrério, na totali dade, rica de determinacdes. No conhecido prefécio da Coniribui- ‘go @ critiea da econemia politica. Marx afirma claramente a necessidade de se considerar 0 conjunto das relagées de produgio como a “base real” que permite explicitar as formas de conscién- cia que dela se desprendem. Nessa perspectiva, fica evidente o entendimento dos processos sociais partir do ser social, enquan- to conjunto de elementos dialeticamente articulados. Desse modo, a totalidade aparece composta pelo penetrar-se incessante, dialético, do econdmico € do nao-econémico — ainda que © segundo seja conformado pelo primeiro, como articulador ‘Karl Marx, Contribuicién a la critica de la economia politica (Buenos Aires: Ed. Estudios, 1970), p. 215. 7 anatémico da totalidade. Somente nessa perspectiva a totalidade pode ser apreendida enquanto concretude, isto é como ponto de chegada do processo do entendimento do real. Como acentuou Marx: © conereio € eonersto porgue € & sintese de miltiplas deter. minagdes e, portanto, 2 unidade da diversidade. Porisso, apa rece ho pensamento, como procesto de sintese, como resuitado, ‘io como ponto de purtida, ainda que seja 0 verdadeiro pont de partida [...] © primeiro camino, a representacio plena é vyolatizada em uma determinasao absirata; no segundo, as de- terminagdes abstratas conduzem 2 reprodugdo do conereto pelo ‘eaminho do pensamento.2” Vemos, assim, que apreensio do real, por ser ele mesmo, ‘enquanto totalidade, constituido por “miltiplas determinagées” (ou, no dizer de Lukécs, por infinitas interagdes de complexos hetero- géneos internos € externos), no é mais do que uma aproximagao do real. Por isso, « aproximagio do conhecimento tem um cardter 36 secundariamente gnosiolégico, embora refirese também obvia- ‘mente & gnosiologia. Tratase priortariamente do reflexo cog: noscitive da determinago omtoligica do proprio ser: ou sea, da infinitude © da heterogencidade dos fatores objetivamente ‘ativos ¢ das importantes eonseqiiéncias dessa situacio, segundo 4 quais as leis s6 podem se afirmar na relidade através de ‘uma rede intrincada de forgas antitéticas; mum provesso de medias, em meio de infnitas acidentalidades.+2 A existéncia dessas maltiplas ¢ infinitas determinagdes do real, néo impedem que 0 conhegamos. Pelo contrério, permite que se des: cubra © encadeamento I6gico-imanente das leis mais gerais da economia ¢, com isso, 0 entendimento do desenvolvimento soci histérica € conceitualmente. O processo de abstracio do materi lismo dialético permite — sempre levando em consideracdo seus procedimentos cientificos préprios — chegar as leis gerais que regem o ser social, assim como localizar suas especificidades articulagdes coneretas. Pata tanto, 6 necessério situar objetivamen- te essas leis gerais a partir dos elementos das particularidades — complexo objetivo. 8 Karl Marx, op. cit, p. 213. 3G, Lakécs, op. cit, p. 349, 18 “Ou seja: expressase nela algo fortemente caracteristico da ontologia marxiana do ser social, isto & « presenga de dois pontos de vista que formam porém uma unidade: a unidade — dissocis- vvel no plano ideal-analitico, mas indisso:idvel no plano ontolégi- co — entre tendéncias de desenvolvimento gerais-legais ¢ tendéncias particulares”.? Dentro dessa unidade indissoldvel, a particulari- dade, enquanto concretude, encerra as grandes tendéncias do geral esté presente um elemento de critica, de determinagao mais proxi ma e mais concreta de uma lei, pois nela residem as reais media- es com a universalidade. Portanto, a totalidade nfo pode ser tomada como “sintese” ‘autOnoma das relagdes que o real engendra. Deve ser remontada | dialética das particularidades com 0 universal, que as abstragdes como instrumentos de andlise propiciam, Percorrendo esse caminho, estamos destruindo 0 que Kosik classifica de ““pseudo concretici- dade”, desmistificando as categorias que a universalidade concre- tiza nos complexos particulares. Af esté a superagio da gnosiologis do materialismo mecanicista. A forma da universalidade que per- mite a apreensio dos componentes estruturais dos nexos de reali- dade, sua legalidade inianente e suas contradigées, permitem que se alcance, da maneira mais aproximadamente possivel, as singula- ridades que sg encontram ligadas dialeticamente com a particulari- dade ¢ a universalidade. ‘Ao estudarmos uma realidade social, o fundamental é situésla no émbito da relacio universal-particular, quer dizer, @ nivel do modo de producéo que a conforma, No caso do modo de producio capitalista — que se estrutura como universatidade —, as forma- ges sociais constituem-se enquanto particularidades, que mate- rializam ¢ contém essa universalidade modo de produgao capita- lista. De fato, so as particularidades que dio os nexos & universa- lidade, que por sua vez, dé o proprio “sentido” real & singularidade, remontando-a & universalidade, enquanto, concrecio mesma, ‘A anilise mais profunda e refinada, que leva em conta todos (0s tragos irrepetiveis da singularidade de uma situasao politica, social e econdmica, & ligada inseparavelmente, nos eléssicos do marxismoleninisme, com a descoberta e a aplicacéo das 12 Ibidem, p. 351. 19 leis mais universais do desenvolvimento histérico; basta pensar nna exigéncia, continuamente colocada por Lénin, de analisar ‘concretamente situagies concretas. Se se consideram mais de perto estas anilises dos cléssicos do marxismo, temse sempre a impressdo de que a unicidade (a singulsridade) de uma tal si- tuaglo pode ser elevada A clarezs tedriea, © tornarse portanto, utilizivel praticamente, tlo-somente mostrando como as leis universais se especificam (© particular) no caso cm questio de tal modo que esta situario caracteristica, que por principio, jamais se repete nesta mesma forma, pode ser compreendida ra relagio total reciproca de leis conhecidas, universais e par- ticolares38 Assim, remontada &s suas determinagdes ontolégicas (universali- dade e patticularidade), 0 singular pode ser apreendido exatamen- te em seus nexos internos ¢ externos. Seguindo a tritha cléssica do materialismo dialético, 20 estu- darmos 0 proceso de formagio da autocracia burguesa no Brasil procuramos apreendé-lo de forma ontolégica, remontado as rela- ‘gGes que a formacio social (ou econdmico-social) brasileira, en- quanto particularidade histérico-concreta estabeleceu — dialetica- mente — com a universalidade modo de producao capitalista. Assim situaremos 05 contextos singulares do processo de consti- tuigdo do Estado nacional brasileiro, no conjunto particular que a formacao social de génese colonial engendrou. A partir da apreen- so do processo hist6rico-particular da formagao social brasileira, podemos estudar a trajet6ria politica da burguesia brasileira na perspectiva de sua geneticidade, 0 que nos permitird entender, a nivel ontolégico, 0 proprio camino que © capitalismo percorrey, fem seu processo de entificagdo no Brasil, assim como as marcas que esse processo deixou na sociedade brasileira. ‘Ao estudar as guerras camponesas na Alemanha do século XVI, Engels tinha por objetivo tracar a trilha histérico-genética do capitalismo alemao € de sua burguesia, em confronto com os mo- vimentos populares: “O paralelo entre a revolugio alema de 1525 a revolucdo de 1848-1849 saltava demasiado & vista para que ™ Gyorgy Lukics, Imrodugio a uma estética marxista (Rio de Janciro: Ed. eu pudesse renunciar por completo a ek”.!* No entanto, por tras dessas semelhangas, muitas vezes, como disse Engels, “cémicas”, estavam as diferengas que puderam ser captadas pela prépria visio de geneticidade que o proceso histérico comum a Alemanha en- gendrou. ‘Com menor pretensio, mas pela mesma senda, analisaremos fas determinagées da autocracia burguesa no Brasil. Como disse Engels em sua andlise comparativa dos movimentos dos séculos XVI e XIX: “Quem se aproveitou da revolucio de 1525? Os principes. Quem se aproveitou da revolugio de 1848? Os grandes monar- ceas”."* Parafraseando Engels, podemos perguntar: quais as deter- minagées que irio engendrar uma burguesia historicamente débil a nivel econémico, que se escuda sob um Estado autocritico que, ao contrério da burguesia alema, cede seu poder econdmico para manter 0 poder politico? Ou ainda: em 1840, ano do “Golpe da Maioridade”, a quem interessou a saida politica que, em linhas gerais, continuava mantendo a estrutura produtiva de génese colo- nial? Efetivamente, encontraremos seus nexos, através do entendi- mento hist6rico do processo brasileiro, onde essas diferencas apa- recem no “‘trago comum”, que a geneticidade mesma do processo brasileiro antiteticamente, engendrou. No quadro geral de sua ‘geneticidade, a semethanea — ainda que consubstanciada em uma nova sintese — & situacio de ser a formagio social brasileira um capitalismo que se articula enquanto clo débil da cadeia impe- rialista (€ com isso sua burguesia), conformado ontologicamente, 1a partir da insuperabilidade hist6rica de sua condigéo (genético- estrutural) de colénia, quadro esse, extensive a todos os paises da ‘América Latina, Como explica Florestan Femandes: “As burgue- sias nativas detinham o controle da scciedade politica, Contudo, feram burguesias relativamente fracas (com referencia aos centros dindmicos do capitalismo mbndial) [...]"."° Essa debilidade eco- némica — conformadora de um Estado que a expressa — no permitiré que a burguesia brasileira instale, na vida politica na- ional, os elementos democraiticos, tipices das burguesias que alcan- MF, Engels, La guerra de campesinos en Alemania (Buenos Aires: Fd. Claridad, 1971), p. 8. 18 [idem 18Florestan Fernandes, Apontamentos sobre a teoria do autoritarismo (Sto Paulo: Ed. Hucitee, 1979), p. 39. 2 garam © poder pondo abaixo a ordem anterior, pela via da revo- lugao. Ao contrério, as {6rmulas politicas autocréticas sempre prevaleceram amoldadas as novas situagdes hist6rico-concretas da sociedade brasileira € &s novas sinteses, sem que, com isso, que- brassem suas raizes genéticas de economia subsumida aos centros ‘mundiais do capitalismo. So os elementos determinadores, que conformardo a. parti- cularidade da formagio social brasileira, engendrando uma burgue- sia autocrética, sempre pronta para alijar as massas trabathadoras dos processo politicos do pais, através de contra-revolugdes cons- tantes, no sentido de manter inalterado o status quo econdmico ¢ politico, que irdo constituir © objeto deste trab argos tracos e, por isso, passivel de muitas defi 1 — O CARATER CAPITALISTA DA COLONIZACAO: AINDA UMA DISCUSSAO NECESSARIA Analisar 0 processo da colonizagao do Novo Mundo requer, necessariamente, que se discuta o cardter da expansdo européia, inserindo-a no bojo da crise de desagregacio do modo de produgio feudal. Nela, contextualiza-se, ontologicamente, 0 nascimento das novas relacdes de producao e de forgas produtivas que irdo cons- titwir a génese do modo de producdo capitalista. Sao essas novas condigdes histéricas, qualitativamente diferenciadas do conjunto da estrutura do feudalismo, que irdo desencadear a transigio do feudalismo ao capitalismo, proceso no qual aparecem no s6 as novas formas produtivas € comerciais, mas também as novas for- mas politico-ideol6gicas, que irio acelerar o desenvolvimento da cordem burguesa, até sua plenitude. No bojo dessa crise de transig#o de um modo de produgio para outro, onde as relacdes sociais comecam a tornar-se mais complexas, engendram-se as condigdes histGrico-particulares de Por- tugal que, de certa forma, materializa ¢ expressa esta primeira fase do processo de “passagem”, na medida em que se torna 0 primeiro Estado nacional europe, 20 final do século XIV, crian- do as condigdes objetivas para o surgimento de um poder politico centralizado, que ird subsidiar a expansao maritimo-comercial lu- sitana dos séculos XV © XVI, propiciando a criagso do que sera conhecido como “sistema colonial”, Estes so, em linhas gerais, os aspectos cruciais que confor- ‘mardo a base do processo da acumulagio originéria, em que as coldnias situamse com a maior relevncia. Deles nos ocuparemos neste capitulo. A transigao do feudalism a0 capitalismo: breves consideragoes Abordar a temética da transigéo do feudalism ao capitalis- ‘mo, ainda que de modo sucinto, sempre uma terefa drdua, j4 que essa questio ¢ uma das mais intrincadas e dificeis, na medida em 25 {que os problemas que atravessam essa polémica apresentam intime- ras e completas controvérsias Assim, nos limitaremos a algumas consideragdes sobre o pro- blema da transi¢ao, atendo-nos aos espectos que aparecem como (05 de maior polémica, dentro do debate que se travou entre os marxistas, desencadeado por Dobb e seus criticos: Sweezy, Ta- kahashi e Perry Anderson, entre outros. © ponto consagradamenie entendido como crucial para a desagregagio do modo de produgao feudal é, sem diivida, a crise ‘que se abate sobre a Europa, a partir do século XII,"" quando 0 modo de producdo feudal encontra novas situagdes histéricas, que © pressionam em sua base fundamental. Dobb afirma que varios fatores, externos ¢ internos, agindo com interagio complexa, sa0 que determinam a faléncia do feudalismo, enfatizando a inope- Fancia do sistema produtivo ¢ a ganincia dos senhores de terras, isto €, a ineficiéncia do sistema feudal de producdo, aliada as intimeras necessidades que surgem nas classes dominantes no que se refere & renda, constituem, inicialmente, os fatores de decadén- cia do feudalismo, na medida em que, visando uma renda adicional, sto exercidas presses insuportiveis sobre os servos da gleba ¢ sobre 0s camponeses, 0 que determinou uma fuga em massa dos feudos. Aliado a esse ponto de maior tensionamento, Dobb acres- centa o aumento populacional dos séculos XI © XIII: “Os dados referentes & populacdo nessa Epoca so poucos, mas aparentemen- te houve um crescimento demogréfico considerével, tanto na_In- glaterra quanto no continente, nos séculos XII e XIII"."* Esse fato ocasionow, num pri momento, a =xpansaa do cultivo. tum certo crescimento da producio © uma conseqiiente falta posterior exaustfo das terras produtivas, levando a um decréscimo 1 Vejase Maurice Dobb, A evotugao do capitaiomo (Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 1976) e os ensaios de P. Sweezy, M. Dobb, H. K. Takahashi, Hilton e Christopher Hill, em Do feudalism ao capitalismo (Lisboa: Ex. Don Quixets, 1971). Perry Anderson, Pastagens da Antigtidade ao Jeux dalismo (Porto: Ed. Afrontamento, 1982). Vejase também o debate indi- eto destes com Mare Bloch, em A sociedade feudal (Lisboa: Ed. 70, 1982) e Henri Pirenne, Histéria econémica e social da Idade Média (Sio Paulo: Ed. Mestre Jou, 1968), As cidades da Idade Média (Lisboa: Ed. Europs-Amériea, 1977), 38M. Dobb, op. cit, p66. 26 da produtividade, devido a0 baixo nivel téenico dos meios de produgiio e a0 estado de subnutrigao cm que a populagdo traba- Thadora iré mergulhar. A partir do inicio do século XIV, a ten- déncia geral na Europa ocidental seré a de decréscimo popula- cional, diversamente do ocorrido no ane 1000.” Por sua vez, Sweezy entende que esses fatores considerados por Dobb como internos constituem-se, na yerdade, em fatores ‘externos e que serio fundamentais na cesarticulacéo das formas feudais de producao: “Resumindo esta critica @ teoria de Dobb do declinio do feudalismo: tendo negligenciado analisar as leis © as tendéneias do feudalismo da Europa ocidental, toma erradamente por tendéncias imanentes certos desenvalvimentos hist6ricos que de fato apenas podem ser explicados como produto de causas ‘externas ao sistema”;”” j4 que Sweezy coloca 0 comércio — acti tando a visio de Pirene sobre a determinasio do coméreio na desagregaco do feudalismo — como o fator essencial para o fim das relagGes feudais de produgdo. Segundo Sweezy, é fundamen- tal a demonstragao do processo através do qual o comércio criou um sistema de mercado, no sentido de mensurar seu impacto sobre 0 feudalismo.™ No entanto, ha na visio de Sweezy, um certo reducionismo, tanto do entendimento de Dobb sobre as determinantes internas como do proprio proceso histérico-conereto. Dob deixa bem claro que nao € 0 comércio o fator fundamental de dissolugao, mas cle € parte de um conjunto de fatores que pressionam as relagoes feudais de produgao, onde, como vimos, predomina uma crise estrutural ocasionada por sua propria inoperiincia. E essa postura fica muito mais explicita quando Dobb, apoiando-se em Marx, demonstra que € a incapacidade de auto-reprodugéo do feudalismo isto é, a determinante imanente, que iré crier as condigGes para ‘0 desenvolvimento do coméreio: “Conforme Marx observou, a influéncia dissolvente que © comércio tera sobre a ordem antiga depende do carter desse sistema, sua solidez ¢ articulagao inter- na e, em seguida, 0 modo de producto que ird tomar 0 lugar do 19 Vejase Dobb, Ibid, 2. Sweeny, “Uma etitica 1 Vejase ibid., p. 38. a antigo é coisa que nao depende do comércio, mas do cardter do proprio modo antigo de producdo”.** Dobb esti, assim, realcando a dimensio ontol6gica das novas formas de produgdo que serdo ‘engendradas no seio do feudalismo em decadéncia, como as alte- goes das formas sociais de existéncia da forca de trabalho, da Seis ‘© novo carter da renda, etc. Dessa posigdo também ilha Anderson, ressalvando-se, porém, sua accrtada critica a iouh ne-qin orale A qvctso ds gals dow sabors Jowtale ‘como sendo um fator determinante para a crise do feudalismo: © fator mais profundo desta crise geral reside provavelmente, porém, no colapso dos mecanismos de reprodugio do sistema ‘num ponto limite das suas capacidades ltimas. Parece part ‘cularmente claro que © motor basico que impulsionaré durante ts séoulos toda a economia feudal, a recuperacio das terras incultas, acabou por leviclo para além dos limites objetivos da estrutura do terreno e da sociedade. A popuslagio continuava ‘a aumentar enquanto era cada vez menor a rentablidade nas terras marginais ainda suscetiveis de conversio em fungso do nivel téenico existente, € os solos deterioravam-se devido aos ‘erros de exploragio e uo caréter febril destas atividades?™ E, sem diivida, Anderson avanca nesse sentido da anélise quando prioriza to-somente os elementos fundamentais da inflexdo geral do feudalismo, e afirma que a superexploracdo dos servos, dema- siadamente realcada por Dobb, assim como 0 “Espirito” ganan- cioso dos senhores, constituem-se apenas em dados a mais, ¢ como manifestacio fenoménica, decorrente ¢ determinada pela cerise geral produtiva. ‘Ao discorrer sobre a crise geral do feudalismo, Anderson, ‘como vimos, explicita que a desagregagio est determinada por ‘uma exaustéo interna, processo este que dialeticamente gera seu contririo, j4 que a expansio da agricultura medieval permitia contraditoriamente sua dissolucdo: Assim, © progresso da agricultura medieval exigiu 0 seu pro prio preco. O desbravamento de florestas e terras incultas no fora acompanhado por um correspondent trabalho de conser- ago nos casos mais favorivels, os ferilizantes quase no ‘eram splicadas ¢ por isso 0 solo da superficie empobrecia rapi 22M. Dobb, A evolupto do capitalismo, cit. p. 60 (grifo nosso). 25 Perry Anderson, Passagens da Antighidade ao jeudalismo, eit, p. 221 28 damente; as inundagGes e as tempestades de poeira tornaram- se mais frequentes. [...] Estes fatos slo a prova evidente de uma crise das forcas produtivas dentro das relacBes de produ- ‘s20 dominantes. Indicam precisamente © que Marx entendia ‘por contradigio estrurural entre ambas*+ © que entendemos ser o fundamental dessas consideragées de Dobb e Anderson, em contraposigao as de Sweezy, & que eles esto Jevando em conta o elemento contraditério, enquanto negagio da negagao, que se articula no interior do modo de produgao feudal se realiza por elementos imanentes 20 proprio feudalismo, que agem simultaneamente como forga de manutengao dele mesmo € ‘como forga propulsora de sua dissolucdo, Essas obscrvagdes, no entanto, ndo desconsideram a importéncia do papel do comércio nna desagregacdo do feudalismo, mas 0 eleva & dimensio cabida, ‘© de ser um componente inerente ao modo de produgio feudal (0 comércio feudal) e que, num determinado momento, torna-se po- tencializado pela crise estrutural do feudalismo; uma forca con- traditéria e antag6nica que exerce seu papel desarticulador de dentro para fora. INesse contexto 0 comércio tornase o agente dissolutor fun- damental. E a forma anatémica do feucalismo que nos permite entender de que maneira aparccem as condigées histéricas da sua decadéncia e situa morfologicamente © contexto do comércio. ‘Ao contririo dos modos de produgio anteriores, © feudalismo baseava-se no esforco de subordinar a cidade ao campo. Lukécs nos esclarece 0 motivo pelo qual essa diferenca permite o surgi- mento de um processo contraditério, qualitativamente novo, que 0 impulsionava para uma progressiva’ auiodestruigo, © feudalismo € contraditério pelo fato de que ele se esforca por subordinar a cidade ao campo; mas por outro lado, o real progresso econdmico (enquanto desenvolvimento de forgas produtivas antaginicas 20 préprio feudalismo) por ele desencadeado pertence sobretudo as cidades. Esta € a razao imediata pela qual também, na formagao feudal, existe um ponto culminante que indica o grau de compa- tibilidade do desenvolvimento econdmico, com a produgio basea- da na servidio da gleba.”* Esta observacdo aponta para onde esté 4 Tbidem, p. 222 (inclusive nota 3). CT. Gyorgy Lukécs, Ontologia delfessere sociale, cit. vol. LL, pp. 301-302, 29 localizada a questio central da transigao do feudalismo a0 capi- talismo. © fulero da contradigéo no pode ser resumido, assim, 20 conflito entre comércio e economia feudal, como afirmam ‘Sweezy ¢ Hobsbawm,"" pois seria restringir todo um processo a0 mero fenoménico, Voltando a Dob ¢ Anderson, 0 destaque do processo de dissolugaio deve ser visto por seus entraves imanentes © esse € 0 entender dialético, que eleva 0 aspecto ontolégico do processo porque o imanentismo constituiu-se, do ponto de vista da metodologia dialética, uma exigéncia indiscutivel do conheci ‘mento cientifico, Como diz Lukécs, um complexo fenoménico nfo pode ser cientificamente alcancado se néo levarmos em conta seus constitutivos imanentes."” essa forma, o fundamento das contradigdes no seio do feu dalismo deve ser buscado no que se potencializou como sua nega- ‘so, enquanto contrério antagénico, onde o tensionamento maior entre forcas produtivas e relagdes de producao determina altera- es na identidade anterior, permitindo 0 surgimento de uma par- ficularidade que iniciou seu caminho na diregio de tornar-se uni- versalidade. Marx ressalta que foram trés os elementos fundamentais para ‘9 desenvolvimento do capitalismo a partir do modo de producdo feudal: primeiro, as relagdes sociais rurais que permitem a eman- cipagio do servo da gleba; segundo, o desenvolvimento das arte- sanias urbanas que passam a produzir mercadorias independentes © especializadas, livres e sob a forma artesanal, e terceiro, a acumu- lagio de riqueza monetéria advinda das relagdes comerciais ¢ da prética da usura. ‘A interacdo desses elementos destacados criaré as condi do “ir sendo” da nova entidade que brota das entranhas da velba, propiciard a passagem de uma qualidade & outra, A qualidade ‘nova, portanto a descontinuidade, aparece nos elementos por Marx ‘enunciados, ontologicamente determinads, e 0 cardter de estrutura social rural, © trabalho artesanal urbano, ¢ o desenvolvimento do comércio, a configuram. F necessdrio ressaltar que entendemos, trilhando as andlises © concepgoes de Marx € Engels, que 0 feu- 28Vejase Eric J. Honsbawm, “Introduccién”, em Karl Marx, Las formacio- ‘nes precapitalistas (Buenos Aires: Cadernos Pasado y Presente, 1972). 3 Veiase Gyorgy Lukécs, Estetica (Barcelona: Ed. Grijalbo, 1966), vol, 30 alismo apresenta-se, no quadro do desenvolvimento histérico da sociedade humana, como um modo de produgdo superior (no sentido das forcas produtivas e das relagdes de produgdo) ao escra- vismo, em que pesem concepgées diferenciadas, que atribuem a ‘esse conceito marxista um certo tipo de “evolucionismo”,.justa- mente por desconsiderarem 0 ponto conceitual de esséncia do que Marx € Engels entenderam como 0 “mecanismo geral” de toda mudanga social, isto 6: “{...] a formagao das relagdes sociais de produgio que correspondem a um estigio definido do descn- volvimento das forcay materiais de produgio: o desenvolvimento decorrente de conflitos entre as forgas produtivas © as relagées de produgdo; as épocas de revolucdo social em que as relagdes voltam a ajustarse ao nivel das forcas. Esta andlise geral nio implica afirmscGo alguma sobre periodes hist6ricos, forgas € re- lagdes de produedo especifieas”,** 0 que demonstra um conceber © processo de desenvolvimento social dimensionado pelas poten- cialidades que a obra humana (0 trabalho) desenvolve. Isso por- que a nogio marxiana de progresso vincula-se & concepgio de que o homem € um ser que responde histérica, objetiva e positi vamente as suas necessidades sociais, Assim, na perspectiva onto- logica posta pelo materialismo dialético, se 0 modo de produgao esté determinado pelo conhecimento acumulado que 0 trabalho poe e repoe, num proceso que em si contém ontoldgica ¢ teleo- logicamente um constante transformar a quantidade em qualidade, a partir da salios de ruptura e continuidade dialética, o modo de produgao promove um representa: es aparece vinculadas 20 processo de trabalho. Cada modo de produgio representa © expressa um determinado grau de desen: volvimento das forgas produtivas, acumuladas no decorrer de seu processo mesmo de entificagao, isto é seu processo de auto-reposi- <0, pressupGe um constante conflito consigo mesmo, onde as formas antigas sao concomitantemente negadoras © afirmadoras, sempre como potencialidedes para a inovagao. Nesse sentido entendemos a relevincia dada por Marx, den tro desse tipo de reflexio, ao aspecio da servidio que aparece como uma relagio social que historicamente possibilita a0 servo um desenvolver-se, pelo fato, qualitativamente diferenciado do °%E, J. Hobsbawm, op. cit, pp. 67. escravismo antigo, de ele possuir a si mesmo ¢ apropriar-se de uma parcela de seu proprio trabalho, Essa peculiaridade hist6riea das relagées sociais de trabalho permitird o seu tornar-se livre, no ‘momento em que se agudizam as contradigdes do modo de produ- ‘gio feudal. Fundamentando-se na andlise de Engels, Lukées de- monstra esse aspecto do qualitativamente novo e ‘superior do feudalismo, em relagdo a0 escravismo: [...] para os senhores feudsis, © poder dispor dos servigos dos Camponeses adquire um aspecto muito mais importante do ‘que dispor da sun pessoa fisica. A diferenga, com relagio & ‘economia escravista, que torna possivel este fendmeno, & evi- dente: o escrave trabatha com os instrumentos de set amo, {odo 0 produto de seu trabalho vai para este tiltime e 2 ele é dado somente o tanto — reduzido a0 minimo — que Ihe permi- ta reproduzir, de algum modo, sua existéncia fisica. Dai a pri mitividade, a infecundidade ccondmica desse modo de desfrute, 1 impossibiliade, dentro do seu ambito, de \dotividade. No feudalismo, 20 contrério — embora também aqui, como na escravidio, a constrigdo extra-econdmica seja a 4garantia dhtima da passagem da possibilidade ccondmica & rea- lidade — 0 trabalhador, em condigdes favordveis, tem @ pos. sibilidade, seja porque © renda venha paga em produtos, seja porque venha provida em trabalho, de clevar a um nivel ‘superior a reprodugio e também a propria vida, methorando seu modo de trabalhar [...]. Esta linha de desenvolvimento, que exprime a superioridade da formagio feudal em relagio a escravidao, € conseqiéncia de uma diminuigio, decerio par cial mas no obstante efetiva, da mera “naturalidade” nas re- lagdes de trabalho entre os homens, no lento, contraditério ¢ esigual penetrar das categorias sociais na sua estrurura de Fando. Este decenvolyimento tem, no. entante, conternce bem precisos que so os da estrutura complexa da formagao mesma € siwam-se exstamente no ponto onde outros momentos de Esse elemento potencializa-se justamente nas cidades enquanto agentes da interagdo das atividades do homem, por concentrarem historicamente os conhecimentos, scja no plano politico, scja no plano ético-cultural, militar, etc. As cidades medievais, como micleos da interagao, nao fugiram, portanto, a esse papel soci "9G. Lukics, Ontologia delfessere sociale, cit. p. 302. 32 mente posto. Apesar de estarem estruturalmente subsumidas (como parte integrante) ao modo de produgéo feudal, ¢ apesar de 0 tra- balho artesanal e corporativo nelas desenvolvido apresentar-se como uma tipica forma feudal de diviséo do trabalho, essa mesma forma de trabalho € que ira ser 0 ponto mais agudo do. processo de dissolugéo do feudalismo. Como disse Marx, nos Grundrisse, © desenvolvimento do feudalismo rumo a sua destruigao ocorrerd f partir da oposicao entre cidade e campo e da perspectiva de urbanizar 0 campo. Quer dizer, a importincia da formacio do artesanato medieval consiste no fato de que ele torna-se proprie- dade e nao mera fonte da habilidade do trabalho, introduzindo dessa forma, uma separacdo potencial entre o trabalho e as outras condigdes de produgao, 0 que expressa um grau mais elevado de individualizagdo que o trabalho comunal € torna possivel a for- magdo da categoria do trabalho livre, Esta caracteristica urbano- artesanal, aliada a uma estrutura agréria em dissolucdo, permitiré © desenvolvimento de uma atividade de mercado que a principio serd restrita e atuard justamente com formas econdmicas preexis- tentes, quebrendo-as em seguida. A manufatura direcionada para ‘© mercado externo, inicialmente, aparece em fungio do comércio 1 longa distancia, fora das guildas artesanais, nos oficios rurais mais complementares, menos especializados, com menor controle das guildas, como as tecelagens e as fiagdes, ainda que vinculada fs atividades urbanas da construgdo de navios. Na érea rural, surge 0 camponés arrendatério, no bojo da transformagio da popu- lado rural em trabalhadores livres, De fato, como diz Hobsbawn, todas estas manufaturas necessitam da existéncia prévia de um mercado massivo, A desagregagao do trabalho servil ¢ o surgi- ‘mento das manufaturas convertem graduslmente todas essas formas de producio em atividades capitalistas, principalmente os traba- Ihadores livres situados fora das guildas, que passam a ser assala- riados.”” Nese quadro historico estrutural & nifido, entio, que as alteragdes que se processam no seio do feudalismo so determi nadas pelo avango contraditério das forsas produtivas engendra- das pelas novas relagdes de trabalho, na luta por encontrarem % Vejase E. J. Hobsbawn, op. cit, pp. 5435. 33 formas alternativas que correspondam as necessidades de amplia- 20 da produgao que o feudalismo impede, como vimos, por seus limites imanentes © por sua crise de estagnaco estrutural. Esses sio os elementos que constituem, entio, 0 trajeto do desenvolvi- ‘mento das foras produtivas, criadas por novas relagdes de produ- do € que dissolvem 0 feudalismo e determinam a transi¢ao para 0 capitalismo. Portanto, © provesso que engendra o capitalismo x6 pode ser um: 0 processo de dissolupao entre o trabalhador e a proprie- dade sobre as condicoes de seu trabalho, processo que de um lado converte em eapital os meios sociais de vida e de produ- so, enquanto que, de outro lado, converte os produtores dire- tos em trabalhadores assalariados. A chamada dcumulagde ori- kinéria nso é, pois, mais que 0 processo histérico de dissocia- ‘0 entre © produtor © os meics de produgéo. Chama-se “ori- inéria” porque forma a préhistéria do capital ¢ do regime capitalist de producio. A estrutura econémica da sociedade capitalista brotou da estrutura econbmica da sociedade feudal Ao dissolverse esta, sairam a superficie os elementos necessi- ios para a formasio daquela.it Todo esse caminho da desagregacio feudal no € mais do que ‘© processo chamado por Marx de subsuncao formal do trabalho ‘a0 capital, isto é, de entificacdo do capitalismo. © desenvolvimento da producdo de mereadorias jé como valores de troca, implementado € materializado pelo dinheiro da classe mercantil, quebra a estrutura produtiva, existente anterior- mente, baseada na producdo de valores de uso, transformando 0 processa de trabalho em valorizacio do capital, isto 6, na criagio de mais-vatia, “O proceso de trabalho subsume-se a0 capital (¢ © préprio processo) € 0 capitalista esta nele como dirigente, con- dutor; para este é a0 mesmo tempo, de maneira direta, um pro- ‘© que denomino subsunigao formal do trabalho ao capital”.’* Esse tipo de trabalho, caracteristico das formas do capitalismo incipiente, indica que embora os meios de producao ja utilizem o trabalho de contetido ‘51Karl Marx, Fl capital (México: Fondo de Cultura Econbmica, 1973), fomo I, p. 608 52 Karl Marx, EI capital (Buenos Aires. Ed. Siglo XXI, 1974), libro I, capt tulo VI (inédito), p. $4 (grifo nosso). 4 capitalista, este, no entanto, é realizado sob uma forma néo-capi- talista, onde o capital utiliza-se das formas existentes numa fase anterior & produgao capitalista: [..-1 nfo efetuow-se, @ priori, ume mudanca essencial na for- ‘ma © mancira real do processo de trabalho, do processo de produsio. Pelo contrério, esté na natureza’ do caso que a Ssubsungio do processo de trabalho a0 capital se opere sobre 1 base de um processo de trabalho preexistente, anterior a festa sua subsungio #0 capital e configurado sobre # base de ddiversos provessos de producSo; anteriores ¢ de outras condi- ses de produsao; ao capital subsumese determinado processo de trabalho existente, como, por exemplo, © trabalho artesanal ‘ou 0 tipo de agricultura correspondente & pequena economia ccamponesa autGnoma. Se nestes processos de trabalho tradi- cionais, que ficaram sob a direso do capital. operam-se modi- ficapSes, as mesmas s6 podem ser consegiiéncias gradativas da subsungio de determinados processos de trabalho, tradi- + 80 capital. Esses aspectos constitutivos da desagregacdo do feudalismo, por nés sumariamente considerados, dionos a dimensiio ¢ 0 cari- ter das mudangas que ocorriam no seio do modo de produgao feudal; uma crise decisiva para as novas relagies sociais que esta- vam em gestagio, cujo mecanismo Anderson sintetiza como 0 transbordamento e a travagem das foras produtivas no limite das relagées sociais de producio existentes. A ctise do século XII aparece como conseqiiéncia de um quadro de decadéncia secular do feudalismo, uma inflexao que se matcrializa através das novas formas de producao © das relagdes de trabalho, nas cidades e no campo, na reativagiio do comércio maritimo, nas lucrativas inves- sions 88 [bid p. 53. “Em outras palavras, estamos naquela situagio, nio apenas Wégica ‘mas também cronologicamente inicial, ma qual © capital re assenhorou do proceso produtivo, do processo de trabalho, mas assenhorou-se ape- nas formalmente, no sentido de que 0 conteido particular do processo de trabalho continvou a ser 0 antigo; 0 processo produtive, do ponto de vista do processo de trabalho, desenyolveuse sob técnicas’ que © capital sinda no conseguia influenciar e tornar homogéneo a si mesmo. Tratase de uma fase historicamente bastante longa, como did Marx, essa da sim- ples subsungio formal entendida em sentido especifico". Claudio Napo- Teoni, Ligdes sobre 0 capitulo sexto (inédito) de Marx (Sio Paulo: Ed, Ciéneias Humanas, 1981), p. 68. 35 tidas contra os mouros na Peninsula Ibérica, ete., 0 que, sem davida, evidencia as novas necessidades que o feudalismo, em sua debilidade, cria © que, ao mesmo tempo, ndo consegue res- ponder dentro de suas estruturas emperradas e impedidas de auto- reproduzir-se, E 0 momento em que, como diz Duby, “[...] as dificuldades financeiras dos mais importantes senhores da nobreza Jaica se agravam, em que se acumulam as dividas dos grandes senhores com os burgueses, em que a arte de governar utilizando ieiro inclina os principes a eleger seus melhores servidores, nao entre os nobres, mas entre os guerreiros mercenérios hhomens que sabem contar, quer dizer, os mercadores [. E nesse espace histérico-social que se coloca a formagio do reino portugués; 0 da subsun¢do da nobreza & burguesia mercan- til nascente, a classe que Iucrou muito com as retaliagdes ¢ pilha- ‘gens dos cristdos contra os mugulmands e que agora passa a fi- ‘nanciar uma empresa maior, a reconquista dos territ6rios ocupa- dos na Peninsula Ibérica, O contexto do desenrolar do século XI ‘onde fervilham atividades mercantis ¢ produtivas bastante dife- renciadas das que encontramos nos séculos anteriores, inaugura, ‘enti, © que Marx € Engels chamaram de avango do capital sobre ‘@ economia natural, cujo primeiro paso se deu com a aparicao dos comerciantes de posse de um capital mével isto é, um capital no sentido modemo do termo. No bojo dessa crise, e da ruina da pequena nobreza, temos também a busca de novas terras, por parte dos senhores empobrecidos, para que pudessem ter de volta seus feudos e herdades, vazios de servos, que fugiam para as cidades, abandonando as terras. senhoriais, perdidas agora para arrendatirios © agiotas. Este € 0 motor que impulsionard 0 0 pro- cess0 de afirmagao dos cristios no Mediterrineo, 0 cruzadismo contra 0 “infiel”, no Oriente, ¢ 0 reforgamento da “reconquista” da Peninsula Ibérica, com a ida de contingentes de nobres ¢ de alguma peonagem de outras regiées da Europa, principalmente da Franga, em auxilio aos reincs espanhdis. “A maioria dos ca- valeiros ¢ dos seus chefes haviam sido recrutados, como sc sabe, centre os filhos segundo a quem escassearam terra ¢ gléria”.* 5" Georges Duby, Guerreros y campesinos (Buenos Aires: Ed. Siglo XXI, 1976), p. 325. % Oliveira Marques, Historia de Portugal (Lisboa: Ed. Palas, 1977), vol. I, pp. 6061. 36 No quadro do feudalismo europeu, a Peninsula Tbérica con- tém especificidades que a diferenciam das outras regides, principal- mente no que se refere ao tipo de feudalismo predominante na maior parte da Europa Ocidental. A polémica sobre a existéncia ‘ou nfo de um feudalismo na Peninsula Ibérica, e conseqiientemen- te em Portugal — expressa em especial nas divergéncias entre as andlises de Alexandre Herculano ¢ Magalhaes Godinho, e as dos analistas de corrente teérica marxista, como Armando de Castro e Borges Coelho, entre outros,” — tem demonstrado, em nosso enten- dimento, que a tendéncia que vé Portugal (e Espanha) inserido no feudalismo, como parte integrante desse modo de producdo que dominou as formacoes sociais curopéias, representada pelos liltimos autores, ¢ a que melhor apresenta a realidade s6cio-cco- némica de Portugal e Espanha. “Evidentemente, 20 considerarse a existéncia de uma sociedade feudal em Portugal Castela, néo pode negarse que ela apresentava caracteristicas especificas, as quais no foi alheia [sic] a ocupaso mugulmana ¢ a Reconquist hem tampouco negar que nfo cocxistissem outros tipos de socie- dade. Temos até razOes para afirmar que foi nesses rincdes pe- sulares que as novas relacdes agrérias encontraram os seus ho- rizontes”" Mare Bloch, a0 analisar as diferentes formas que 0 feudalismo apresenta nas regides européias, afirma que @ expres- sio real da feudalidade ibérica nao esté ao norte, onde @ presenga franca predominava. A originalidade, para Bloch, com a qual esta- mos de acordo, so os reinos de Astirias, Leo, Castela, Galiza e, mais tarde, Portugal. Havia, sem diivide, as influéncias culturais dos “feudalismos de além-Pirineus” e ainda que se utilizassem vocabulirios ¢ algumas formas de producao ¢ até alguns rituais franceses, % Vejase Alexandre Herculano, Histdria de Portugal (Lishou: Ed. Bertrand, 5/6). Vitorino Magalhses Godinho, A estrutura na antiga sociedade por- ‘uguesa (Lisboa: Ed. Arcédia, 1871). Armando de Castro, A evolugdo eco- nomica de Portugal nos séculos XH @ XV (Lisboa: Bditora Caminho, 1979), vol, XI. Antonio Borges Coelho, A revolugdo de 1585 (Lisboa: Ed. Caminho, 1981); Questionar @ histéria (Lisboa: Ed. Caminho, 1983). Ve- jamse, também, as visdes de Oliveira Marques, Histéria de Portugal: Jacob Gorender, © eseravismo colonial © William C. Atkinson, A history of Spain and Portugal (Londres: Penguin Books, 1970). ‘A. Borges Coelho, Questionar a histdra, cit. p. 299. 3” £...] Nunca, no entanto, estas préticas deram origem, como em Frangs, a uma rede poderosa, invasora e bem ordenada, de dependéncias vassélicas e feudais, pois dois grandes fatos im- primiram uma tonalidade particular & histéria das sociedades asturoleonesas: a reconquista e © repovoamento. Nos vastos ‘espagos conquistados aos mouros, estabeleceramse campone- ses, como colonos, os quais, na sua maioria, escaparam as for: ‘mas da sujeisf0 senhorial, pelo menos as mais constrangentes; (os quais, ainda, conservaram necessariamente as aptides guer- reirts duma espécie de milicia das fronteiras. Daqui resultara que muito menos vassalos do que em Franga podiam ser pro- vidos de rendimentos tirados do trabalho de detentores da terra, pagando rendas e fornecendo trabalho [...]. Ae lado da cavalaria dos criados, existia uma cavalaria de “vilbes” com: posta pelos mais ricos camponeses livres. Nese espectro social especifico de Iuta contra os muculma- nos os reinos feudais ibéricos iréo forjando suas identidades e caracteristicas proprias, onde o peso da heranga centralista visi- g6tica é, a todo instante, confirmado. Na lideranga desse processo ‘std o reino de Leo que se expandia € consolidava num proceso de crise geral das relages feudais de producio. Afonso VI (1072 — 1109), filho de Fernando 1 (1037 — 1065) ¢ sucessor de seu irmio Sancho II (1065 — 1072), cede ao nobre francés, Henrique de Borgonha, 0 Condado Portucalense, assim como a mfo de sua filha bastarda Tardsia. Esse pequeno Condado que, a partir de 1143, sob a lideranga de Afonso Henrique, torna-se um reino independente e, determinado pela especificidade hist6rica da Pe- ninsula Ibérica, ndo fugiré & sua caracteristica “sui generis”, isto 6, a de um reino que se desenvolve incorporando um feudalismo em decadéncia, Por isso encontraremos, em Portugal, junto as relagdes servis de producio, tipicas do feudalismo, atividades econémicas novas ¢ um florescimento de atividades mercantis € de cidades, basicamente no litoral. Essas condigdes hist6ricas per- item desenvolvimento, entre os séculos XII e XIII, de outras atividades econdmicas e de préticas politicas diversas das que ca- racterizaram-se como essencialmente feudais. 3 Mare Bloch, op. cit, p. 212. O contexto portugués: do feudalismo original & expansio mercantil No reino portugués, a crise do feudalismo lancard as bases de profundas transformagdes nas relagées de producao, que desen- cadearéo a Revolugéo de 1383, motor da expansio. marftimo-co- ‘mercial lusitana © que tem como pilar as conquistas que as classes plebéias realizaram ao longo dos séculos XII ¢ XIII. Essas con- quistas alteraram fundamentalmente a estrutura produtiva, arran- cando das classes feudais concessGes importantes, quer a nivel politico, quer a nivel econémico. 1550, possibilitou a abertura de ‘um espaco de participagio para a burguesia mercantil, que jamais seria perdido © se acentuaria no processo da Reconquista. Hi, nesse perfodo, um grande desenvolvimento de atividade de merca- do, com base na agricultura, na pesca € no comércio maritimo. ‘A nivel agricola, Portugal passa a produzir trigo e minhete, na regido do Minho, e centeio e cevada no interior. A criagao de gado adquire uma grande importincia, constituindo-se numa das principais atividades econdmicas do reino. Em consondincia com a realidade evonGmica, as insituigdes se renovam, permitinds 9 florescimento das suas virtualidades. As ‘camadas’privilegindas — nobreza € cleo — s€ contrapoe a fascensio popular, protegida pelas comunas, que crescem, na Europa Medieval [...]. A. fixagio da monarquia portuguesa, ‘contemporeneamente & revolucdo comunal européia, teve efeito fcelerador nas gerantias © privilétios dos conselhos — no prin- ‘ipio ilhas de liberdade dentro da armadura aristocrética.*® Esses avangos de novas relaqdes sociais trardio 0 fortaleci- mento de formas de trabalho nav-feudals, o que destaca a coexis téncia do historicamente velho ¢ do historicamente novo e onde primeiro inicia sua subsungdo ao segundo, Apesar da existéncia de relagdes de trabalho servis, coexistiam outras formas de tra- balho, como os artifices e os criados domésticos livres, que se ligaram aos senhores através de contratos de arrendamento ou por assalariamento. Alguns desses homens livres poderiam até com- prar terras e ter um cavalo, poderiam it a guerra com seu cavalo fe suas armas, Eram conhecidos, esses homens, como “Cavaleiros ‘% Raymundo Faore, Os donos do poder (Porto Alegre: Ed. Globo/USP, 1975), vol. I, p. 34. 39 ‘Vildes”. Também vamos encontrar, ainda que em escala reduzi- dissima, a escravatura basicamente composta de prisioneiros mu- gulmanos das guerras de reconquista. O comércio é bastante inten- so. A partir da segunda metade do século XIII, vemos uma intensa Inglaterra ¢ Flandres. Como ressalta Faoro, Portugal pos- suia uma sélida estrutura na producdo de sal, azeite, vinhos, ppescados, couro e cortica, que eram trocados por tecidos flamengos ¢ italianos, pelo ferro de Biscais, por madeiras das regides norte, por prata, agticar, etc. Além disso, internamente, viase um fervi- Thante coméreio vinculado & navegagio. Sobre essas atividades, as mios da Coroa estendiamse tribu- tandoas © dando concessoes régias, 0 que demonstra que a tri- ‘butagio do jovem reino nao provinha somente das atividades agricclas. Assim é que, no século XIV, Portugal possui duas faces. Entre 0 Douro € © Minho, as relagies feudais de produgio ainda ‘mostram-se fortes € aqui o movimento comunal conseguiu romper com muito custo os entraves feudais. A outra face de Portugal aparece fundamentalmente nos micleos urbanos e vilas, onde de- sencadeiam-se Iutas pela posse da terra € onde a forga de trabalho 4 aparece assalatiada, elementos esses que estario impulsionando ‘as novas relagies de produgio € movimentando © comércio. O trabalho servil € substituldo pelo trabalho livre, 0 que permite 0 surgimento de um campesinato que impulsiona @ producio agrico- la ¢ 0 assalariamento. A luta pela consolidacio do reino de Portugal, em meio crise geral do foudalismo, ird aprofundar, também, o confli- to entre a nobreza e a burguesia mercantil, na medida em que a prOpria consolidagéo passara pela maior centralizagio do poder ‘nas mios do rei, que desde o século XIII fruto da tradigio visi g6tiea reprimia os excessos autcnomistas dos senhores feudais, re- tirando da nobreza a condigiic de poder paralelo a0 da Coroa. Nese espaco contradit6rio, aberto pela luta do rei contra ‘a classe senhorial, camponeses plebeus enriquecidos ¢ comercian- tes atuardo no sentido de amplier a influéncia nas decisées politico- “ Vejase Raymundo Faoro, op. cit. p. 8. 40 econdmicas, através dos concelhos, que vinham se fortalecendo desde 0 periodo das lutas de reconquista, quando 0 poder da Coroa apresentava-se ainda pulverizado. Na expresso de Borges Coelho, os concelhos sfo “[...]) 0 arrear do poder senhorial e o hastear do novo poder popular. Quando os forais confirmam a imunidade dos Coneelhos, quando coutam a area das vilas, reconhecem sole- nemente a vitria do novo poder politico”. As novas relagées econémico-sociais portugueses estavam localizadas ao centro ¢, particularmente, no Sul — Alentejo, Estremadura ¢ Algarve, onde \contramos os. principais centros urbanos ¢ 0s micleos mais importantes de burgueses rurais, Pereebemos que, nessas resides, as tendéncias — a nivel das forgas produtivas © das relagées de produgéo —, que nasciam embrionariamente um século antes: XIU —, aparecem agora consolidadas, Trabathadores assalariados, quer no campo — pastoreando ovelhas © cabras, atuando no culti- vo das vinhas, etc. —, quer nos centros urbanos — artesios, pedes, etc. —, passam a compor a massa que se subordina aos proprietérios rurais e comerciantes ricos. Apesar de problemas como a peste negra, que atinge Portugal na década de quarenta dos anos trezentos ¢ da resisténcia dos senhores feudais, [.-.] a agricultura portuguesa do século XIV estava em franca expansio © corresponderia, em finhas gerais, a0 que. preten diam dela, O desenvolvimento dos centres urbanos pormgue- ses, nomeadamente de Lisboa, nio podia processarse sem 0 acréscimo da produtividade da producio global [...]. As nocessidades crescentes de produtos agricolas sé podiam ser satisfeitas com o desenvolvimento das novas rela- oer de produgio [..].A agricultura nfo sé scudia, no essen- ‘lal, as necessidades nacionals, como alimentava a exportacio cerescente para o estrangeiro? Esses excedentes agricolas ativardo © comércio no Mediter- rineo e no Mar do Norte, desenvolvendo, mais ainda, os nticleos portudrios portugueses. Lisboa, Porto © os portos de Algarve cons: tituem 0 conjunto maritimo-comercial de maior importancia. O peso politico dos comerciantes era tao grande que conseguiram a protegao de D. Dinis. Em 1377, os armadores dos navios de mais “A, Borges Coelho, A revolupdo de 1383, cit, p. 4. © Tider. 4 de cem tonéis, conseguem de D. Fernando a lei da Construcio das Naus, conquistando isengdes de dizimas das matérias-primas de transportes. Essa lei isenta ainda os armadores de servir o rei militarmente, exceto em casos especiais. Nesse contexto, vemos a burguesia portuguesa dos principais concelhos (Alentejo, Algarve, Ribatejo e Estremadura) impondo sua proposta econémica sobre ‘os senhores feudais. © quadro de avango das forcas que representam 0 capitalis- mo ascendente acelera © agudiza as contradigoes entre burguesia ¢ nobreza, obrigando o rei D. Fernando, representante dos senho- tes feudais, a ampliar as concessGes aos Concelhos. Neste clima de contradigses agudas, D. Fernando promulga a lei das Sesmarias a j@ referida lei da Construcio das Naus, como resultado das presses da burguesia mercantil:® Com a morte de D. Fer- nando a burguesia portuguesa desencadeia a tomada do poder, tendo como suporte do movimento nao s6 uma proposta econémi- ca, mas também um fundamento ideolégico de cardter nacional. A Revolucdo de 1583/85, que poe no trono o Mestre de Avis, lide- rada pela burguesia mercantil langard, pioneiramente, as bases de um Estado mereantil, de tipo moderno, pressuposto objetivo para 4 posterior expansio colonial portuguesa, ‘A subida do Mestre de Avis 20 trono & acompanhada por mudancas € inovacGes a0 nivel da administracdo do reino, de tal ‘monta que podemos dizer que a ascensio da dinastia de Avis inau- gura um Portugal com estatura de Estado nacional moderno, de cardter absolutista, processo que se consolida definitivamente no reinado de D. Jofo II (1481-1495). O novo governo, implantado ‘em 1383, desde logo atua no sentido de criar uma estrutura admi- nistrativa centralizada, priorizando as atividades burguesas em de- regides do reino,“* uma tendéncia que se acentua com seu sucessor, D. Duarte, Construiu-se também, em Portugal, uma base ideol6gi- + Ibid. p. 66. “+ Vejase Sérgio Buarque de Holanda, Histéria geral da civilizagdo brasileira (So Paulo: Fd, Difel, 1968), vol. I, pp. 15 © ss. 42 ca, composta de um conjunto de prinetpios tipicos da “razio de Estado” do periodo da passagem do feudalismo 20 capitalismo. Entre 0s séculos XIV e XV, o Estado portugués ergue um arca- bougo administrative complexo, objetivando apoiar as atividades tanto de governo, propriamente dito, como as econémico-comer- ciais da burguesia mercantil, que nio mais se limitard as presses urbanas ou dos concelhos municipais. Agora a burguesia mercantil participa ativamente das decisdes governamentais, pois esti incrus- tada no aparelho do Estado, um érgio burocrético-administrativo que expressa a propria situagao da passagem do feudalismo para © capitalismo. Nesse sentido, “[...] a nobreza néo desapareceu, nem perdeu seu papel de fator do poder, sequer se transformou ‘em clite nominal, destituida da real influéncia. Ao seu lado, com 4 fungio dindmica de conduzir a economia ¢ partilhar a diregio da sociedade, instalou-se a burguesia, transformada de grupo de pressfio em, também ela, fator do poder”. No entanto, € necessario que fagamos algumas observagdes, ainda que em breves pinceladas, sobre o proprio caréter do abso- lutismo, principalmente no que se refere & sua situagio histérico- estrutural. Com isso, objetivamos esclarecer melhor nosso enten- dimento sobre 0 Estado absolutista ¢ sobre o modo como se dé ‘sua inserydo na transigdo do feudalismo a0 capitalismo, assim como seu papel no processo da acumulacao otigindria, para que possamos, apés delimité-lo conceitualmente, contextualizar Portu- gal na expansio européia dos séculos XV e, fundamentalmente, XVI, 0 que nos leva a mais algumas reflexdes hist6rico-conceit A discussio central da questo do absolutismo € se podemos ou no consideré-lo como uma forma politica da transicao, onde con- vivem velhas € novas relagdes de producio ¢, conseqiientemente, velhas ¢ novas concepcdes politico-ideolégicas sobre o Estado, onde as relagdes burguesas de produglo vao cada vez mais afirmando-se € criando, também, as condigSes objetivas para que a burguesia comece a ocupat espagos na propria estrutura desse Estado. Na citada polémica entre marxistas sobre a transigao do feudalismo ao capitalismo, Takahashi defende a tese de que 0 absolutismo nfo constitui, de modo algim, uma forma politica de transicdo, apesar de inserido num proceso de desenvolvimento 48R. Faore, op. cit, pp. 4445. 43 das forgas produtivas. Diverge, assim, frontalmente da visio clis- sica de Marx e Engels, que entendem ser esse processo um periodo de passagem, onde uma economia de mercado, em expansio, mina, gradativamente, as relagdes feudais de produgio, 20 longo dos séculos XV © XVI. Ressaltando que, em esséncia, nesse perfodo no existem alteragGes referentes & renda feudal da terra, Takeha- shi conclui: “Torna-se evidente que o absolutismo néo passou de um sistema de fora concentrada para contra-atacar a crise do feudalismo provocada por este desenvolvimento” ** Perry Ander- son, em sua exaustiva obra Linhagens do Estado absolutista, se- gue © mesmo raciocinio de Takahashi, aprofundando mais as re- isto €, como sendo fruto de uma reacdo feudal a crise das relagdes de produco que a transiga0 desencadeia, caracterizando-o como uma “monarquia feudal avangada”. Nesse sentido, Anderson também diverge de Marx ¢ Engels, que atribuem ao absolutismo um caréter embrio- nério do Estado burgués, ja que, para ele, no século XV, 0 mundo sai da crise do feudalismo por meio de uma recombinacéo dos fatores de produgao. Para Anderson, a nobreza, durante o perio- do absolutista, nunca saiu do poder politico: Qs senhores que se mantiveram proprietirios dos meios de pprodugdo fundamentais em qualquer cociedade préindustrial ‘ram, evideniemente, proprietirios nobres. Durante toda a pri- ‘meira fase de época modema, a classe dominante — econdmica ¢ politicamente — era, portanto, a mesma da propria época ‘medieval: a aristocracia feudal. Esta nobrezs sofreu profundas ‘metamorfoses nos séculos que se seguiram a0 fim da Idade Média: mas desde o principio 2o fim da historia do absolutismo ‘munca foi desalojada do seu dominio do poder politico. A tese central de Anderson é que o Estado absolutista vem res- ponder, ao mesmo tempo, as ameagas dos levantes camponeses ¢ as presses do capital mercantil-manufaturciro sobre a estrutura de produgio feudal, Dessa forma, os senhores feudais criam uma alternativa de poder para se manter nele. AHL K. Takahashi, “Uma contribuiglo & discussie", em Do feudalismo a0 ‘capitalism, pp. 105-105 ¢ passim. 47. Anderson, Linkagens do Estado absolutista (Porto: Ed. Afrontamento, 1984), p. 44 A desagregacao do sistema de servidio, para Anderson, levou os senhores feudais a eriagio de uma copula centralizada ¢ mil tarizada, objetivando ampliar a coergao sobre os camponeses. “O feito final desta redisposigio genérica do poder social da nobreza foi a méquina politica e a ordem juridica do absolutismo, cuja coordenacao ira aumentar a eficécia do dominio aristocratico, a0 fixar os camponeses ndo-servos em novas formas de dependéncia e exploragdo. As monarquias da Renascenga foram antes e acima de tudo instrumentos modernizedos para a manutenggo da domi- nago da nobreza sobre as massas rurais™* No que diz respeito & burguesia mercantil, Anderson entende que a nobreza edapta-se a ela, cooptando-a para as suas formas politicas, através da for- ‘mulacdo de leis que respondam &s questdes do comércio e da propriedade, porque © proprio mercantilismo, na concepso de Anderson, aparece como fruto do “avango” econdmico feudal: “As fungdes econdmicas do absolutismo, porém, ndo se esgotavam no seu sistema tributério © de funcionalismo, O mercantilismo foi a doutrina dominante da época, e apresenta a mesma ambigiidade da burocracia destinada a impé-lo. com a mesma regressao subja- centes a um protétipo anterior [...]. Efetivamente, 0 mercanti- lismo representava com exatidao as concepgdes de uma classe di- rigente jeudal que se tinha adaptado a um meteado integra- do [...]"." Toda a estrutura juridica erigida visa, dessa forma, manter a expansdo das atividades feudais, que, segundo Anderson, antes de mais nada, expressava o “destino” dos principes — a conquista pela guerra —, isto 6, a guerra € vista no como o “esporte”, mas € o destino dos principes, algo que transcende as caraeteristicas individuals; 0 configurador da condigio social de ser principe. Assim, os Estados absolutistas refletem esta “razio” de set e, por isso, constituiam-se em méquinas predominantemente guerreiras."° ‘Tanto Takahashi como Anderson — este, como evidenciou- se, de maneira mais enfética e explicita — colocam em discussio @ concepsio de Marx ¢ Engels sobre o cariter do Estado que nasce do ventre de um feudalismo que agoniza, Estes 0 consideram fruto 4% Ibidem, p. 19. * Ibidem, pp. 37-38 (grifo nosso. 59 Ibidem, p. 33. 45 da expansio do capitalismo ascendente, que destréi a estrutura ppolitico-cconémica feudal, ¢ cria, assim, os alicerces da sociedade copitalista, Engels sintetiza desta forma: ‘A resleza, apoiando-se nos habitantes das cidades ou scja, o8 bburgueses, enfraqueceu 0 poder da nobreza feudal e fundou as grandes monarquias, baseadas essencialmente no coneeito de racionalidade. Sob esse regime, alcangaram grande desenvolvi- ‘mento as nagdes européias ¢ a moderna sociedade burguesa E, enquanto a burguesia ¢ & nobreza continuavam. engolfinhs- das, a reyolugdo camponesa elema assinalou profeticamente a8 futuras lutas de classe, trazendo 2 cena nio 6 os camponeses ssublevador, © que jé néo era novidade tds deles, 0 esbogo do proletariado atu bandeira vermelha €, nos ldbios, @ exigeneia da comunidade de bens.*0 Esta passagem de Engels nos aclara qual o entendimento dos cléssicos sobre o caréter do Estado do Renascimento (absolutista). E fundamental, seguindo 0 raciocinio feito por Engels, realear as ddimensbes ontol6gicas do nascimento do capitalism no bojo da cise do feudalismo, onde as relagGes de produgio mercantis con- figuram-se como a particularidade que vai se dilatando e absorven- do a particularidade feudal. Nesse sentido, a0 contrario do que é colccado por Takahashi e Anderson, Marx e Engels entendem 0 desenvolvimento do capitalismo como um ser social que constitui, no dizer de Lukées, parte de um complexo concreto, isto é, 0 set em seu conjunto é visto como um processo, 0 que determina ‘que se veja 0 capitalismo como um “ser” em processo desde sua énese, hist6rico-geneticamente, Portanto, o elemento basilar do Estado absolutista ndo esta determinado pelas injungées politicas dda “reagdo feudal” mas, a0 contrério, pelas presses que 0 novo — as relagGes de producdo capitalistas nascentes — exerce sobre 0 velho — 0 modo de produgio feudal, Essas presses na base feudal ainda que, por esséncia, se materializem pela forma eco- ‘nOmica — elemento decisivo —, langam aspectos constitutivos de ‘um projeto ideol6gico, por parte da burguesia, que jé contempla sua participagdo, como classe, no poder. Os miicleos urbanos, que St Friedrich Engels, A dialéticu da natureca (Rio de Janeiro: Ba. Pax e Terra, 1979), p. 15 (prefécio) 46 contém em si a particularidade capitalista — enquanto génese — impéem suas atividades econémicas a0 campo feudal, iniciando a reversio do que € central ao feudalismo: a subsungao da cidade ao campo. A congiiista da autonomia das cidades, entio, repre- senta esse dado qualitativamente diferenciado, Nao € possivel, aqui, seguir de perto os diversos estados © resultados dessa batalha de muitas vicissitudes. Bastard obser- ‘var que, em algumas zonas, ela termina com a conquisia da fautonomia, por parte das cidades (Itélia, Cidades Anseéticas, etc), © que val destruinds a estrutura feudal, sendo, também, ‘muito importante para a preparacio a0 capitalismo no che- ciedade. Sob este perfil adqui de primeiro plano a liga das cidades, em luta pela propria lic beracio, onde surgem tendéncias para a monarquia absolute ‘que, sobre a base do tempordneo e relative equilibrio des po- eres, entre feudalismo © capitalismo, ver a ser a forma t pica de passagem ¢ preparacio a0 definitive constituirse do segundo em sistema que abarca toda « sociedade.** Sendo assim, entendemos que Takahashi e Anderson deixam de lado, em suas anélises, 0 aspectos do ontolégico no desenvolvi- mento do capitalismo, quando colocam a tese da “rearticulagao” do feudalismo, como resposta & sua crise estrutural, Ora, a pré- pria “recombinagio”, fruto da reaciio feudal, colocada por Ta- kahashi € Anderson é por si s6 a génese do novo, gerado pela crise de inflexdo do feudalismo, j4 que dela surgem formas produtivas de mercado € que, por isso mesmo, conformam-se como negadoras da feudalidade. Nesse contexto analitico Engels afirma que, no perfodo da passagem, encontramos, na estrutura feudal, uma socie- dade que se torna cada vez mais burguesa. Para Engels, [.--] a Juta da burguesia contra a nobreza feudal & a luta do campo ¢ da cidade, da indistria © da propriedade territorial, dda economia baseada na troca e na moeda ¢ a economia fun- dada no consumo imediato, e as armas mais potentes da bur ‘guesia, em tal luea, foram suas vantagens econdmicas constan- temente acrescidas pela evolugao da inddstria, que passava da oficina & manufatura € a extensio do comércio. Durante toda 52 Gyorgy Lukes, Ontologia dellessere sociale, cit, vol. U1, p. 304 (grifo nosso). ‘sta luta, 0 poder politico se inclinava & nobreza, b excego de um periodo em que o poder real serviase da burguesia ‘contra a nobrezs, para conter as duas ordens ou estados, um pelo outro; mas's partir do momento em que a burgucsia, ainda impotente, sob © ponto de vista politico, comegou a ser perigosa, em virtude do ineremento de seu poder econdmico, 4 realeza pactuou de novo com a nobreza e provocou, desse ‘modo, primeiro na Inglaterra, depois na Francs, @ revolugdo burguesa.5* Nesse processo, 0 actimulo de forgas est4, entio, sendo realizado pelos agentes sociais da ordem em precipitagao — a burguesa — nao da que se desagrega. Essas consideragdes levam-nos a discutir, um pouco mais, a idéia central do texto de Anderson — jé referida, isto é, de que (© Estado absolutista detém hegemonia feudal e responde iis revol- tas camponesas, de um lado, € a0 desenvolvimento da burguesia e das relagdes mercantis de produgao, de outro, reacionando e impondo seu poder a clas. Nao restam dividas de que 0 Estado absolutista € 0 aparelho repressor das massas camponesas. A questo é como ele se mani- festa, enquanto Estado da passagem, no que diz respeito ao seu papel de "“mediador” das classes em luta: burguesia contra nobre- za. Engels, como vimos, deixa este aspecto bastante claro quando demonstra que a ruptura do equilfbrio entre as classes em luta leva a que € historicamente mais poderosa a tomar poder, por meios revolucionérios, 0 que nos permite concluir no mesmo sen- tido de Poulantzas, no que diz respeito ao cardter do absolutismo: no perfodo da transicéo do feudalismo ao capitalismo, na Europa ocidental, encontramos presente no aparclho do Estado caracte- risticas capitalists, ainda que contendo aspectos superestruturais de conteddo feudal, algo mutto primo « un “subeunglo formal” dos componentes de supetestrutura medieval aos elementos bur: ueses."* Esse processo de sécuilos nfo pode, no entanto, ser estrei- tado mecanicamente & simples nogo da burguesia vencendo 0 feudalismo. 1850, apesar de historicamente correto, € a sintese — @ concretude, Mediagdes so necessérias, para que elevemos os 88. Engels, El AntiDuhring (Buenos Aires: Ed. Claridad, 1972), p. 176, 54 Vejase Nicos Poulantzas, Poder politico e classes socials (Porto, Ed, Portucalense, 1971), vol. I, pp. 187-18. a constituintes da totalidade, da forma mais aproximada possive. No perfodo da passagem, acumulam-se principalmente contradigées que favorecem historicamente a burguesia e que maduras, permi- tem a eclosio do conflito final, isto é da revolugdo capitalista. Lembramos ainda que os senhores feudais nao estiveram vivendo todo esse processo de crise como meros cbjetos da acéo burguesa. Articularam-se € responderam aos avangos burgueses e as revoltas dos camponeses, sim, mas na direcGo oposta a que Anderson e ‘Takahashi defendem. Pois se a crise de inflexo gera, como vimos, © incremento de novas formas produtivas e transformam a maioria das. propriedades feudais em centros de producdo para o mercado, nna Europa ocidental os proprios senhores convertem-se, objetiva- ‘mente, em agentes propulsores das relagdes de mercado, 0 mesmo acontecendo — e ai como o elemento historicamente crucial — com 0 servo, na medida em que, com o desaparecimento de rela- es servis de trabalho, dissolve-se a relagio direta do produtor com 0s meios de produgao. No entanto podemos, ainda dentro das reflexes de Anderson e Takahashi, levantar a questo do surgi- mento da “segunda servidio”, a partir do século XV, como fator de reforgo da tese do “avango” da rearticulagéo do modo de produgao feudal, frente & sua crise geral. E historicamente indiscutivel a relagdo entre a desagregacao da servidio, na Europa ocidental, e seu recrudescimento na Euro- pa oriental — a segunda servidio enunciada por Engels: [...] um revivescimento do antigo sistema que se associava 420 crescimento da produgéo para o mercado. De forma seme- Thante nos Estados balticos, na Poldnia e Boémia, as oportuni- dades crescentes para exportagao de cereais levaram no & aboligdes, mas ao aumento ou revivestimento das obrigagSes servis por parte do campesinato, © a0 cultivo ardvel para 0 ‘mercado. nas grandes propriedades, numa base de trabalho servil. De forma semelhante, na Hungria, © crescimento do comércio, da agricultura em grandes propriedades e crescentes Jimposigées sobre os camponeses marcharam lado a lado.®? Essa_correlagdo, ainda que aparentemente contraditéria, no que se refere ao avango das relagdes de produsao capitalista, explica-se se levamos em conta que as leis de mercado passam a dominar a 55M, Dobb, A evolupdo do capitalismo, cit, pp. 5657. 49 2roduedo européia, variando de pais para pals, de acordo com suas especificidades histérico-particulares e que, como diz G. Frank, 4 maior parte da Europa oriental converteu-se em fornecedora de Ja © outras matérias-primas bdsicas para o desenvolvimento das manufaturas da Europa ocidental. Essa necessidade de ampliacao da produgo, ocasionou a concentragdo de propriedades ¢ da ren- da no Leste, proporcionando 0 surgimento da “segunda servidao” de seus camponeses, visando atender a demanda ocidental.* Po- demos dizer, inclusive, que essa necessidade de ligagio do servo terra, para produgio em larga escala, direcionada aos mercados ‘ocidentais, € 0 prentincio do que iré acontecer, em escala superam- Pliada, no Novo Mundo, onde a escravidio adquire o carter de trabalho forcado — do mesmo modo que a “segunda servidio” européia — de onde se extrai a mais-valia absoluta para um voraz processo de acumulacao de capital. E, endo, no desenvolvi- mento do capitalismo que aparece, imperiosamente, 0 trabalho forgedo, porque no crescimento das manufaturas na Europa oci- dental — centro vital do processo acumulador — desativa-se gra- dativamente @ produgdo agricola de consumo."” Portanto, © que Anderson ¢ Takahashi entendem como re- ‘crudescimento feudal é, na realidade, um avanco das relagdes de mercado, nos moldes de uma forma de trabalho feudal subsumi- da — ainda que de aparéncia morfolégica arcaica — ao capital, pois temos, na Europa ocidental, o répido assalariamento do servo © transformagao das formas feudais de trabalho em formas capitalistas. Concluimos, entio, que os senhores feudais respon- dem a burguesia, buscando realizar as proprias atividades burgue- ‘sas ¢, em alguns paises — como em Portugal —, estes mesmos senhores tornam-se burgueses, ou uma nobreza aburguesada. Assim, 1 adaptagao do Estado absolutista as novas imposigdes econdmi- cas aparece como hegemonia burguesa frente @ nobreza, no apa- relho do Estado absolutista. Este € 0 sentido da modernizagao das leis do Estado da transi¢ao isto 6, 0 de prepararse, inclusive 8 Vejnse A. Gunder Frank, Acumulagdo mundial: 1492-1789 (Rio de Jar neiro: Ed. Zahar, 1977), p- 86. Perry Anderson, Linhagens do Estado abso. lutvta, cit, onde 0 autor ve nesse fenémeno — enfatizado no Leste da ‘uropa —'um maior recrudeseimento feudal 57 Esta discussio seré realizada, mais detidamete, no capitulo seguinte, 50 legalmente, para o arranque rumo & produgao ampliada de mer- cadorias, ‘A forma juridica de propriedade do periodo de transsio & uma forma eaptlisa de roprcdade: forma institucional de do- rminagio politica, o Estado absolutisia de transigio, € uma forma de Estado capitalsta anterior & realizagio da separagio entre 0 produtor direto ¢ os seus meios de producio que é 0 pressuposio tedrico das relegdes de producio capitalists. (...1. ‘A fungio do Estado absolutista ndo € precisamente a d= operat nos mies fxads por um mado de produo i dade, mas @ de produsir relapdes ndo-aindadadas de produsio, — a8 relagdes capitalistas: a sua fungéo € a de transformar ¢ fixar 6s limites do modo de producao. ‘Ao contrério de Poulantzas, no entanto, queremos afirmar que a eficdcla do Estado absolutista, no processo de acumulagio pri- mitiva, € possivel devido & hegemonia econémica, determinada pelo redimensionamento da produgéo ¢ nfo por dominagio de “instincias” do politico ou etc., j4 que 0 nosso procedimento analitico, néo confere “privilégios” a qualquer parte constitutiva de uma totalidade socialmente determinada. ‘A nova base material — as relagdes econdmicas mercantis — constitui-se, assim, no fator de relevancia concreta na articulagio do Estado absoluto, no 0 “destino” da nobreza, nem seu “espiti- to aventureiro”, como quet Anderson. Tampouco so relagSes po- liticas dominantes que expressam o real cardter do Estado da passagem, conforme Poulantzas.” O protecicnismo, que a prin- cipio restringiase as cidades, passa a estender-se ao Estado, que expressa a garantia da nacionalidade, com 0 apoio burgués. Sio (os imperativos do proceso acumulador € de sua materialidade, 0 mereantilismo, que irdo sedimentar, em siltima anélise, o Estado centralizado ¢ forte; que caracterizam as nagdes do periodo da transi¢io, onde dinémica s ppesar de estar composta inclu- sive pela nobreza, € comandada pelos interesses da burguesia. Nao podemos, entio, concordar com Anderson, quando afirma ser 0 mercantilismo uma atividade feudal, pois nao leva em conta © proceso hist6rico da propria formagao do capital, no bojo de 8SNicos Poulantzas, op. cit, pp. 190-192. © Vejase, ibidem, principalmente 0 espitulo I, item 3. 51 produsdo curopéia, variando de pais para pais, de acordo com suas especificidades hist6rico-particulares e que, como diz G. Frank, maior parte da Europa oriental converteu-se em fornecedora de 1a © outras matérias-primas basicas para 0 desenvolvimento das ‘manufaturas da Europa ocidental. Essa necessidade de ampliagio da produgio, ocasionou a concentragdo de propriedades e da ren- da no Leste, proporcionando © surgimento da “segunda servidao’ ‘de seus camponeses, visando atender a demanda ocidental.®* Po- demos dizer, inclusive, que essa necessidade de ligagio do servo 4 terra, para produgdo em larga escala, direcionada aos mereados ocidentais, € o prentincio do que iré acontecer, em escala superam- pliada, no Novo Mundo, onde a escravidio adquire o carter de trabalho forgado — do mesmo modo que a “segunda servidio” européia — de onde se extrai a mais-valia absoluta para um voraz processo de acumulagio de capital. £, entio, no desenvolvi- mento do capitalismo que aparece, imperiosamente, 0 trabalho forgado, porque no crescimento das manufaturas na Europa oci- dental — centro vital do processo acumulador — desativa-se gra- dativamente a produgo agricola de consumo." Portanto, 0 que Anderson © Takahashi entendem como re- ccrudescimento feudal é, na realidade, um avango das relagoes de mereado, nos moldes de uma forma de trabalho feudal subsumi- da — ainda que de aparéncia morfoldgica arcaica — ao capital, pois temos, na Europa ocidental, 0 répido assalariamento do servo © a transformacio das formas feudais de trabalho em formas ccapitalistas. Concluimos, entdo, que os senhores. feudais respon- dem & burguesia, buscando realizar as proprias atividades burgue- sas e, em alguns paises — como em Portugal —, estes mesmos senhores tornam-se burgucses, ou uma nobreza aburguesada. Assim, ‘4 adaptago do Estado absolutista as novas imposigées econdmi- ‘eas aparece como hegemonia burguesa frente a nobreza, no apa- relho do Estado absolutista. Este’é o sentido da modernizago das leis do Estado da transigio isto € 0 de prepararse, inclusive %©-Vejase A. Gunder Frank, io mundial: 1492-1789 (Rio de far neiro: Ed. Zahar, 1977), p. 86. Perry Anderson, Linhagens do Estado abso- utista, cit, onde © avior yé nesse fendmeno — enfatizado no Leste da Europa — um maior reerudescimento feudal. 7 Esta diseussio seri realizada, mais detidamete, no capitulo seguinte, 50 legalmente, para 0 arranque rumo & produso ampliada de mer- cadorias. ‘A forma juridice de propriedade do periodo de transicdo & uma forma eapitalista de propriedade; a forma insttucionsl de do- rminagio politica, o Estado absolutista de transigio, € uma forma de Estado capitalists anterior & realizagio da separacio centre © produtor direto e os seus meios de produgio que € 0 pressuposto tedrico das relagbes de produgio capitalist. (...1. ‘A fungao do Estado absolutista nio € precisamente a de operat erode ios sbocndeceke de potty ade relapses nde as relagées cepitalistas: a sua fungio é a de fransformar e fixar 8 limites do modo de productos Ao contrério de Poulantzas, no entanto, queremos afirmar que a eficdcia do Estado absolutisia, no processo de acumulacio pri- mitiva, € possivel devido & hegemonia econdmica, determinada pelo redimensionamento da produgéo ¢ ndo por dominagio de “instincias” do politico ou etc., j4 que 0 nosso procedimento analitico, nfo confere “privilégios” a qualquer parte constitutiva de uma totalidade socialmente determinada. A nova base material — as relagdes econdmicas mercantis — constitui-se, assim, no fator de relevancia concreta na articulagio do Estado absoluto, nfo 0 “destino” da nobreza, nem seu “espiti- to aventureiro”, como quer Anderson. Tampouco sio relagBes po- Iiticas dominantes que expressim o real caréter do Estado ¢ ssagem, conforme Poulantzas.”” O protecionismo, que a prin ipso resragiese ts cidades, pass a esenderse ‘a0 Estado, que expressa a garantia da nacionalidade, com 0 apoio burgués. Sio (os imperativos do processo acumulador ¢ de sua materialidade, 0 mercantilismo, que iro sedimentar, em ditima andlise, o Estado centralizado € forte; que caracterizam es nagies do periodo da transigao, onde a dinmica social, apesar de estar composta incls- sive pela nobreza, comandada pelos interesses da burguesia. Nio podemos, entdo, concordar com Anderson, quando afirma ser 0 mercantilismo uma atividade feudal, pois nio leva em conta © processo hist6rico da prépria formagio do capital, no bojo de 8 Nicos Poulantzas, op. cit, pp. 190-192. 8 Vejase, ibidem, principalmente 0 capitulo 1, item 3. 51 grandes transformagdes da sociedade feudal, mergulhada em sua crise terminal, cujo climax ocorre entre os séculos XIV € XV. Nesses dois séculos, como explica Dobb, a burguesia nio s6 adqui- tiv propriedades © novas formas de riquezas, como uma certa nnobreza."* © mercantilismo, o real determinante do Estado absoluto, foi uma atividade regulamentada pelo Estado e efetivada pelas agies de mercado da burguesia, realizando objetivamente a politica eco- némica de uma era de acumulagdo_primitiva. Ap6s essa digresso necesséria, podemos agora, de forma mais segura, concluir que 0 Estado portugués contém os elementos his- ‘rico-constitutivos do Estado absolutista, até pioneiramente, © que Ihe dard condicéo de ser, também, 0 primeiro na expanséo mer- cantil, Surge um Estado de cardter nacional, onde as Ordenagies Afonsinas materializam, a0 nivel juridico, a vitéria do nacional sobre © regionalismo feudal. Também vence a concorréncia, tor- nando-se a forma de atividade econémica primordial, quer no comércio maritimo, quer na propria produgio agricola dos cen- ‘ros mais importantes do pafs. Mudam as situagdes sociais, isto é, surge a nova nobreza — a burguesia que enobrece — e parte da nobreza subsiste aburguesando-s. mdm (at ore ai, as ce mand Pretndese alo tanto guider eenige me sale # aber da ordem, a abertura do uparetho repressivo do Estado a um tov tonieddo sc, 0 an emlsrerrcs © da heoadee pela sua fazenda [...]. Por outro lado, senhores houve que se Couns pute pealeneamipiebae rosaces Kae scot Cine Ne ents se Hecspessbey ae 4 tes te Ree eee Estado vive por vezesindistinuamente do assalariato, da pilhar snk coves Molton ITT Teva bap as Soe dee tas ie eee bentcox opdctan sboa spes dian bale Sper de Esado' ed we un deda veer de hows Tous te neve nena, nel A veo ane at ‘mmc nn cambio eons tn alae Cf. M. Dobie, op. cit, p. 250. ACE A Borges, A revolupdo de 1585, cit, pp. 229-230 (gro nosso). 52 Enfim, séo essas as condigdes que permitem a expunsao mer- cantil de Portugal a partir do século XV ¢, posteriormente, com mais vigor no século XVI. Como pais que arranca em primeiro lugar pare a expanséo maritima — dadas as suas caracteristicas histGrico-particulares —, realizada com vistas & intensificagio da circulacdo, num primeiro momento, ¢ da ampliagdo da produgdo de mercadorias, ji no século XVI, direcionado para o mercado europeu, Portugal acaba sendo a prdpria encarnagdo da transico do feudalismo para o capitalismo. Se, como afirma Marx, © sécu- lo XVI € 0 momento inicial da grande concentragSo capitalista, © reino portugués est4 inserido, entdo, no contexto das transfor- ‘mages fundamentais européias, exercendo um importante papel, juntamente com outros pafses, que posteriormente superam seu estigio de desenvolvimento: “As diversas etapas da acumulacio tém seu centro, por ordem cronolégica mais ou menos precisa, na Espanha, Portugal, Holanda, Franca © Inglaterra [...]” O ex- pansionismo portugués, que € parte de um processo amplo de acumulagdo capitalista, surge justamente no momento em que se colocam as necessidades das manufaturas ¢ dos Estados protecio- nistas das atividedes burguesas. Essa expansdo do mercado mun- dial forjava uma nova fase do desenvolvimento histético, ma me- dida em que a mercadoria passa a ser o elemento determinante das relagdes econdmicas européias. Assim, Portugal se integra 20 grande processo de acumulagao capitalista, onde j4 esto postas as condigées do amplo desenvolvimento das forgas produtivas que desembocaréo na Revolugdo Industrial, na qual as colénias ame- ricanas terdo um papel fundamental. E movida justamente pelas necessidades expansionistas do ca- pital, a Europa, apds deslumbrarse com as maravilhas naturais americanas, transformaré 0 continente em seu imenso pomar, em seu inferno © em seu paraiso. (© descobrimento das jazidas de ouro e prata da América, a crvzada de exterminio, escravizacao sepultamento nas minss dda populagao aborigene, o vomeso da conquista e o seque das {Indias Orientais, a conversio do Continente africano em sitio ‘de caga de escravos negros, $80 fatos que assinalam os princi pios da era de produgio cxpitalisia. Estes idiicos processos CE. K. Marx, El capital, cit, vol. 1, p. 638. 33 ‘epresentam outros tuntos fatores no movimento da acum gio origingria. Atrés deles, pisando seus caminhos, vem a vera comercial dat nage, cujo cndio foto planeta Inco tod Temos, assim, uma expansio capitalista mercantil buscando formas de ampliar sua producao, a partir do séeulo XVI, 0 grande centro produtor se instalaré na América, onde os capitalistas euro- eus inverterio seus capitais acumulades, passando, efetivamente, da produgio simples & producio ampliada de mercadorias, O ca pital comercial sai, entéo, dos restritos limites da_distribuicao, ‘entrando definitivamente para o setor da produgio. E scré com 0 objetivo de criar uma ampla producdo para o mercado capitalista, ‘que 4 burguesia comercial implantaré, aqui na América, a grande empresa mercantil, Estes fatores, determinados pela forga de um nnascente modo de produco, destruindo o velho, propiciaréo a conquista do planeta, @ instalago européia nos novos mundos e 1 ampliagéo da produgao. Os capitais antes acumulados no comér- cio oriental das especiarias so agora aplicados no mais vasto em- preendimento comercial jamais visto até entio; teremos assim a colonizacio da América © 0 surgimento do sistema colonial. E, sob o sistema colonial, prosperaram o comércio, a navegagao ¢ a produgio de mercadorias. Os grupos mercantis funcionaram como verdadeiras alavancas de concentragao capitalista. As colénias eram ‘grandes mercados para as manufaturas, em fungio do monopdlio comercial, Como diz Caio Prado Jr.: No seu conjunto, © yista no plano mundial ¢ internacional, a

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