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Karl Popper e a falseabilidade como critério bdsico de cientificidade de uma teoria ' Luis Flavio S. Couto! Resumo: A cigncia, como um projeto que vem sendo construfdo no correr dos anos, consolidou, como modelo, basi- co, como paradigma, o método hipotético-dedutivo. Isso nao significa, entretanto, que tal método seja absoluto ou definiti- Vo, pois nao existem critérios imutdveis. Assim, 0 proprio’ - conceito de “ciéncia” e a sua metodologia bisica hipotético- Le dedutiva, embora ainda hegeménica, € passfvel de criticase |. de Tevisdes. A partir dos anos 30, iniciou-se um processo de ~ questionamento das formas de se caracterizar a ciéncia. Esse vee ~”" questionamento vem atingindo de maneira diferenciada as di _ Versas dreas do conhecimento, umas mais e outras menos. Na_ ~medida mesma em que a metodotogia cientifica estd receben ¥ - >> do as criticas que a-levam a se-constituir-como um Novo Para----- . 1 Doutor em Filosofia, Prof. Adjunto da UFMG e da PUC/MG e titular da ‘Newion Paiva. +129 + digma, poderia a Psicanélise, caso nio se mostre cientifica pelos padrdes metodoldgicos tradicionais, requerer o estatuto . de conhecimento dentro desse novo paradigma? Essa questo, em aberto, depende um pouco da andlise dos pontos de vista defendidos pelos criticos da metodologia da ciéncia tomada em seu sentido tradicional. Neste artigo, apontamos alguns aspectos do racionalismo critico de Popper. com o qual se ini- cia 0 processo de revisio critica da metodologia cientifica ¢ da chamada Nova Filosofia da Ciéncia e 0 concluimos afir- mando que, embora Popper questione a cientificidade da psi- canalise, nao deixa de reconhecer a verdade da descoberta freudiana e de se mostrar convencido da existéncia de um mundo inconsciente. Como Claude, Bernard (1813-1878), Karl Popper (1902- ) também se opde aos excessos dos racionalistas sistematicos e dos empiristas rigorosos. Contra Stuart Mill, ele discorda da reducdo das ciéncias empiricas as percepgdes, recusando o entrelagamento. intimo e inevitdvel entre as observagGes e a teoria cientffica: A doutrina, segundo a qual as ciéncias emptricas so redu- tiveis a percepg6es sensdrias e, consegiientemente, a nos- sas experiéncias, é por muitos aceita como dbvia. Tadavia, essa doutrina é acolhida ou rejeitada na dependéncia de aceitarmos ou ndo a Logica indutiva; aqui a rejeitamos, porque rejeitanos a Logica indutiva? Ele considera que nao é possivel emitir enunciados cientificos sem ultrapassar, de muito, as simples percepgdes imediatas. Nas epistemologias do sensualismo e do positivismo dd-se por admiti- do que os enunciados cientificos empiticos falam de nossas expe- 2 POPPER. A Légica da pesquisa cientifica. Cap. V, § 25, “Experiéncias per- ceptuais como base empirica: psicologismo”. p. 100-101. ‘ + 130° riéncias. A Ciéncia, segundo esse ponto de vista, nao passa de uma tentativa de classificar ¢ de descrever esse conhecimento per- ceptivo, essas experiéncias imediatas, de cuja verdade nao pode- mos duvidar; ela € a apresentagao sistematica de nossas concep¢6es imediatas: Essa doutrina, na minha opiniao, apdia-se nos problemas da indugéo e dos universais, Efetivamente; néo hd como emitir um enunciado cientifico sem ultrapassar, de muito, aquilo que se pode conhecer de maneira incontestdvel, *com base na experiéncia imediata’, (A esse fato é cabivel aludir como a ‘transcendéncia inerente a qualquer descri- ¢ao'.) Toda descri¢do usa nomes (ou simbolos, ou idéias) universais; todo enunciado tem o cardter de uma teoria, de uma hipdiese. O enunciado ‘aqui estd um copo com dgua’ ndo admite verificagdo por qualquer experiéncia observa- cional, A razdo estd no fato de os universais que nele ocor- rem ndo poderem ser correlacionados com qualquer expe- - riéncia sensorial especifica. (Uma. ‘experiéncia imediata’ é *imediatamente dada’ apenas uma vez; ela é unica.) Usan- do a palavra ‘copo’, indicamas corpos fisicos, que exigem certo comportamento “legaldide”, ¢ 0 mesmo cabe dizer com respeito a palavra ‘dgua’. Os universais ndo admitem * redugdo a classes de experiénci tuidos’. (Nota 4: 'Constituido’ é termo cunhado por Carnap)* Go podem ser 'consti~ Além de rejeitar a indugdo como uma forma logica-e valida de aquisigéo do conhecimento cientifico’, ele também nao reco- 3 POPPER. Op. cit. Cap. V § 25. p. 100-101. 4 . CE. Idem, Sociedade aberta, universo aberto; § cisnes brancos — cisnes ne- gros. p. 535-4: “Nao hd nenhuma teoria de indugo que seja sustentavel, mesmo que s6 parcialmente.” + i3l° “nhéce a verificagio e a prova como critérios aceitéveis. O seu exemplo dos cisnes expressa a sua posigo. O fato de verificarmos que o cisne de nimero 3765 € branco nio Prova que todos os cis- nes s&o brancos; se encontrarmos porém 01 cisne negro, a hipéte-° se ‘de que “os cisnes sio’brancos” estard prejudicada. Isso 0 leva a propor a falseabilidade como um critério bésico para a considera- ¢4o de cientificidade de uma teoria. Uma teoria que nao é falsifi- cavel no pode ser tomada seriamente como cientéfica, Todas as nossas hip6teses sfio conjecturas, ¢ © campo cientifico deve estar aberto para a criagdo de um sem-nimero delas. “Todos somos li- vres para apresentar conjecturas — mesmo conjecturas que pos- sam parecer tolas @ maior parte de nés.”3 Mas todas elas dever ser testaveis — requisito fundamental Para que a estrutura tedrica sobre a qual se apdiam nao seja considerada um mito. “As teorias cientificas distinguem-se dos mitos unicamente por serem criticd- * veis e estarem abertas a modificagées 4 luz da critica. Nao podem ser verificadas nem probabilizadas.”6 Isso nio significa, entretanto, que ele aceite © ponto de vista de que a teoria cientifica prescinda da comprovagao. E com essa afirmagao que ele inicia a Légica da pesquisa cientifica: j Um cientista, seja tedrico ou profissional, formula enun- / . | Clade’ ou sistemas’ de enuunciados @ verifica-os uni a um, No campo das ‘iéncias emptricas, para particularizar, ele if formula hipdteses, ou’sistemas de teorias e submete-o5 a fF teste, confrontando-os com a experiéncia, através de recur ' , 505 de observacao e experimentagdo.? ~ 5 Wem. O realismo ¢ 0 objetivo da cigncia. In: __-Pas-escrito a ldgica da pesquisa cientffica. (v, 1) Parte t, Cap. 1, 3. (3), V. p. 96. § Idem. O realismo ¢ 0 objetivo da ciéncia. In: __ Pés-escrito & ldgica da pesquisa cientifica. (v. 1) Prefécio, 1956 p. 41, : 7 Idem. A Légica da pesquisa cientifica. Cap. I. p. 27. * 132+ Nessa"citagGo estd um aspecto que nos chama a atengio de maneira mais particular. N3o ha duivida quanto ao fato de Popper. rejeitar a suposigio de que a ciéncia progride por acréscimos, acentuando 0 procésso revolucionario pelo qual uma teoria mais antiga é rejeitada e substitufda por ma nova e incompativel. B também conhecida a profundidade com que analisa 0 papel de- sempenhado nesse processo pelo fracasso ocasional da teoria mais antiga em responder a desafios postos pela légica, pela experi- mentacdo ¢ pela observacio.8 ” Entretanto, acompanhando o pensamento de Thomas Khun?, questionamos: 0 que € submetido, pelo cientista, a um teste siste- miéatico? Enunciados determinados ou a propria hipdtese basica da ciéncia com a qual se trabalha? Hi, pois, uma espécie de generali- Zacio resultante dessa ambigiiidade que mascara a distingao entre dois momentos importantes do fazer cientifico: (1) as pritticas did- rias do cientista que persegue determinado objetivo, aceitando sem quaisquer criticas a hipdtese bdsica — trabalho esse que é, em sua totalidade quase absoiuta, a pratica normal do cientista e (2) os momentos rarissimos e revoluciondrios, nos quais-o cientis- ta se propée a questionar firmemente 0 nticleo de sustentagiio da trama teérica'de determinada ciéncia. Quanto a Popper, embora - somente reconhega como cientifica: uma teoria que. seja-passivel de comprovagao pela experiéncia, isso nao significa que aceite sem criticas o procedimento tradicional. Pelo. “contrario, ele pro- poe | uma andlise légica desse procedimento ¢ toma a comprovacaio em seu sentido negativo, nao como verificabilidade. -mas como fal- seabilidade: . 8 Cf. Idem O balde e © holofote: dvas teorias do conhecimento, In: | Co- inhecimento objetivo. Apéndice. p. 313-32. Ct. tb. O realismo e 0 objetivo da ciéncia. [...]. (v. 1) tradugio, 1982. p. 19-36, - 9 CEKHUN.A tensdo essencial. Cap. 11,p.3%. 7 Contudo, s6 reconhecerei um sistema como empirico ou cient{fico se ele for passtvel de comprovagdo pela expe- riéncia. Essas consideragdes sugerem que deve ser tomado como critério de demarcagao, ndo a verificabilidade, mas @ falseabilidade de um sistema, Em outras palavras, nado exigirei que um sistema cientffico seja susceptivel de ser dado como vélido, de uma vez por tadas, em sentido positi- vo; exigirei, porém que a sua forma léjgica seja tal que se tome posstvel valida-lo através de recurso a provas empi- ricas, em sentido negativo: deve ser possivel refutar, pela experiéncia, um sistema cientifico empirico."° Assim, para que se aceite um sistema como cientifico, a sua " hipotese bdsica deve ser passivel de falsificagdo. Ela deve conter elementos que permitam a sua refutagao empirica. Com isso, Pop- per estd apontando 0 caminho do negativo para a ciéncia. Nao basta que muitos casos confirmem a teoria; ela deve possuir a pos- sibilidade de ser refutada pela experiéncia empirica. Com um exemplo prosaico, Popper mostra que o enunciado “Choverd ou nao choverd aqui amanha” nfo poderd ser considerado empirico, pois nao admite refutagao. J4.0 enunciado “Choveré amanha” po- derd ser tomado como tal, pois é possivel refuta-lo. Caso nao haja a possibilidade de negacio da hipdtese por qualquer experiéncia empirica, o sistema poderd ser tomado como metafisica ou poesia, mas n&o como ciéncia natural. Nessa tentativa de estabelecer elementos que demarquem os limites entre a ciéncia e a metafisica, Popper procura a caracteris- tica distintiva da ciéncia e aponta a necessidade de satisfagaio dos critérios de testabilidade e de refutabilidade ou falsificabilidade para quaisquer teorias que se pretendam cientfficas. Esses clemen- tos podem resolver, em parte, a questao. Popper diz em parte, pois 10 Idem, ibidem. I. I, § 6. p. 42. +134 nao pode haver uma demarcagdo nitida entre ciéncia e metafisica. Mas tal auséncia nao significa que a demarcagao nao tenha um elevado significado, pois alguns problemas importantes e genui- nos estio a ela relacionados. Entre esses, pode-se apontar a discu- tibilidade e a racionalidade das hipdteses que se pretendem cienti- ficas, que nao deixam de envolver questdes relativas & testabilida- de dessas hipdteses. A testabilidade, inclusive, pode ser considera- da como um tipo de discutibilidade, envolvendo argumentos que abrangem a observagao € a experimentagao. Para Popper, a demarcagao € mais do que apenas uma classifi- cago de teorias em “cientificas” ou “metafisicas”. pois estd inti- mamente relacionada ao problema central da filosofia do conheci- mento, qual seja, a avaliagao das pretensdes, em amplo aspecto, de téorias e de crengas em competigao. Além disso, tem também importancia pratica, pois pode ser critério para se suspeitar da Je- gitimidade de determinadas teorias em se afirmarem como ciéncia empitica, como € 0 caso da psicandlise, defendidas de forma acri- tica. Quaisquer criticas ou argumentos contrarios eram vistos como hostis ou como uma incapacidade para se admitir a verdade manifesta, o que fazia com que tais argumentos fossem recebidos com hostilidade, e no com uma discussao séria dos pressupostos teGricos. Seria a psicandlise testavel? Para Popper, a psicandlise baseia- se na apresentagio de verificagdes, mas tal método, tipico de uma pseudociéncia, nao pode ser con derado exatamente valido. Para uma teoria ser considerada ciéncia, 0 método adequado € 0 da cri- tica, qual seja, o que implica testar uma teoria tdo severamente quanto possivel, procurando-se casos que possam constituir uma falsificagao de seus pressupostos basicos. O método de procurar verificagdes nao é apenas acritico, mas leva a uma atitude acritica, ameacando a atitude de racionalidade, isto é, da propria argumen- tagio critica. Um autor pode, evidentemente, procurar OS melho- + 135 ¢ res meios de-defender as suas hipdteses e as suas conjecturas con- tra a dtivida, mas deveria também encontrar os elementos que, se 2 apresentados, seriam capazes de demonstrar a falsidade da propo- ~ te sigao. Para Popper, a psicandlise nfio tem uma metodologia criti- ca. Nao devemos, pois, nos surpreender com essa atitude desfa- vordvel em relagao ao verificacionismo da psicandlise e nem com © rol dos graves defeitos que Popper aponta na construgao teérica freudiana. O que surpreende é que, apesar de todos os defeitos e de todas as argumentagées desfavordveis, Popper afirme que esté “convencido de que hd um mundo inconsciente”, e de que o livro de Freud “A interpretagdo dos sonhos” contém, “para Id de qual- quer diivida razodvel, uma grande descoberta?"' Ora, se a psicandlise € uma possivel pseudociéncia, se nfo ha possibilidade de falsificagao de suas hipéteses, se os argumentos de verificacionismo no servem para tornd-la ciéncia, se as tentati- vas de Freud, em termos de demonstrac%o da verdade de sua teo- ‘Tia, sao nfo validas, 0 légico seria a tejeigao pura e simples da hi- pétese fundamental, a “existéncia de processos mentais incons- cientes”, passo decisivo para a “reorientagdo decisiva no mundo e na ciéncia.”"? Mas no € essa a posigao de Popper. O que poderia té-lo levado a aceitar a hipdtese bésica de Freud, apesar de ela se: sustentar em padrdes muito distanciados daqueles estudados e até estabelecidos por ele? O que o leva a aceitar como satisfat6rio o enunciado basico da psicandlise, 0 que o | leva a se dizer convenci- do da existéncia de um mundo inconsciente? Nao poderia ser a conformidade com os padrées classicos de i investigacao cientifica, OU os aceitos por ele como validos. cal ——____ 11 POPPER. O realismo e a objectivo da ciéncia. § 18, p.181-2. 12 FREUD. (1915-1916) Conferéncias de introduccién al psicoandlisis. N° 1, p. 19. + 136+ Para Popper, 0 conhecimento cientifico € 0 “resultado do de- senvolvimento do saber comum;”" afirmagio com a qual concor- dariam, segundo ele,,os mais eminentes tedricos da epistemologia . dos tiltimos dois séclos'*. O que tais fildsofos descobriram, en- tretanto, é que 0. conhecimento cientifico pode ser estudado mais facilmente do que o conhecimento vulgar. Seus ‘problemas sao apenas ampliacdes dos problemas apresentados pelo saber co- mum, e substituem a “crenga razodvel” de Hume pelo estudo das razes que levam os estudiosos a aceitar ou a rejeitar determina- das construgées, considerando-as, ou nZo, como cientificas. Na medida em que podemos dispor de minuciosas discussées relati- vas 4 construgao de determinada teoria, podemos examinar € ana- lisar a sua organizagdo e o seu funcionamento, para apreciar-lhe 0 yalor enquanto ciéncia, — tarefa basica da epistemologia. Haveria, pois, critérios externos, transcendentes a-qualquer teoria, capazes de ser utilizados por uma espécie de tribunal da ra- Zio, no julgamento daquilo que pode ou nao ser considerado cién- cia? Ao longo dos séculos, tais critérios foram sendg estabelecidos e chegaram a se tornar uma espécie de “camisa de forga® para os conhecimentos desenvolvidos a partir do saber comum. Entre es- ses critérios clissicos de demarcagao estao, por exemplo, a previ- - sibilidade, "a, ,experimentagio, . a parciménia, a verificabilidade, a confiabilidade, ° controle € as provas. Popper, entretanto, afirma * que éa falseabilidade 0 critério bésico de uma teoria. Se assim €, © que o teria levado a estar convencido da existéncia do incons- ciente? Nao’ pode sér qualquer critério cldssico ou a propria fal- seabilidade. Se temos de tomar por.“ciéncia” 0 conhecimento que 13 POPPER, A Légica da pesquisa cei Preffcio A primeira edigfo ingle- sa, p.542. 14 Sdem, ibidem. p.542. Popper cita Kant, Whewell, Mill, Peirce, Duhem, Poincaré, Meyerson, Russel e, — pelo menos em algumas de suas fases- Whitehead. +137 + segue rigorosamente os padrées estabelecidos, duas sao as conse- qtiéncias: a psicandlise nao € ciéncia, e os argumentos de Freud so carentes de verdade. Mas, aqui, talvez uma outra possibilidade surja. Estartam cor- Tetos os que defendem critérios externos como parametros de de- marcagao de uma teoria enquanto cientifica? Se Popper avangou ao superar 0S critérios classicos pela nogdo de falseabilidade, ele ainda ficou preso 4 necessidade de um critério universal para de- marcar © que vem a ser ciéncia. Ora. o que a psicandlise vem a nos ensinar sobre 0 assunto? Célio Garcia, trabalhando a sentenga afirmativa “Sd hd ciéncia do universal’, aponta que, no entanto, “a psicandlise tem insistido em ver reconhecido algo da ordem do singular”.'5 Ora, nfo ha. dtivida em se considerarem ciéncia natural as “construgées tedricas que seguem os pardmetros classicos, mas, por que limitar ciéncia apenas Aquelas que seguem tais parame- tros? Nao se poderia pensar que ciéncia vai além de limitagdes impostas de fora do proprio fazer cientifico? Nao se poderia pen- sar, a partir das criticas de Popper aos critérios classicos, que tam- bém ele, ao propor a faiseabilidade, um pardmetro externo, incor- re no desvio de se pensar ciéncia a partir de elementos transcen- dentes 4 prépria teoria? Nao se poderia, a partir do surgimento histérico da psicandlise, ver-se reconhecida ciéncia enquanto jus- tificada por seu préprio fazer interno? Tal ponto de vista baseia-se em uma sugestao de Habermas relativa 4 dimensao cientifica da auto-reflexdo. Diz Habermas: Mesmo em que se trate de interpretagées genérico-univer- sais, a verificagdo. de hipdteses sé pode obedecer aquelas regras que so adequadas 4 situagdo do exame; somente 15 GARCIA. Psicandlise, politica e¢ ldgica. p.30. + 138+ estas garantem rigorosa objetividade da validade (cientifi- ca). Quem, pelo contrario, reclama que interpretagoes ge- néricas sejam tratadas como as interpretagées filolégicas de textos ou como teorias universais e sejam, em conse- qiiéncia, submetidas a critérios que, do exterior, determi- nam 0 curso da investigagdo — quer se traic de critérios do jogo de linguagem em vigéncia, quer dos critérios da observagdo controlada — coloca-se de saida fora da di- mensdo da auto-reflexiio, 0 vinico dominio no qual as enun- ciados psicanaliticos podem fazer sentido.'® Se considerarmos isso um certo exagero, pela impossibilida- de de um sistema pretender se justificar por si mesmo, poderfa- mos propor que ciéncia tem de constituir-se enquanto tal numa certa tensdo entre dois extremos. De um lado, um padrao de uni- versalidade, talvez um certo saber comum compartilhado, que se constituiria, em maior ou menor medida, por aqueles pardmetros ou critérios j4 estabelecidos pela tradicao, além de outros que fa- cam um certo sentido, como a prépria falseabilidade, e, por outro lado, a racionalidade e a légica interna da prdpria teoria que se quer fazer-se reconhecida enquanto ciéncia. Nao se pode, entre- tanto, deixar de concluir que se trata de uma ilusdo pretender esta- belecer pardmetros universais que, por si sés, dariam a garantia de verdade (cientifica) a uma determinada teoria. Jsso nao iria destruir 0 conceito de ciéncia tal como estabelecido pela tradicao, mas, apenas, abrir espaco para uma nova concep¢ao do que ciéncia vem a ser, incorporando-se a0 conceito muito do que é defendido por Thomas Kuhn e Paul Feyerabend. E possivel, enfim, que a psicandlise nao possa ser considerada exatamente uma cigncia natural, mas € também possivel que se tenha de mudar aquilo que hoje em dia se compreende e se estabelece por ciéncia. — 16 HABERMAS. Couhecimento e Interesse. P. 284. * 139+ REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS 1 FREUD, Sigmund. (1915-1916) Conferencias de introduccién al psicoandlisis. Buenos Aixes: Amorrortu, 1988. Introduc- cién. (Obras Completas, 15) 2 GARCIA, Célio. Psicandlise, politica ¢ légica. Sao Paulo: Es- cuta, 1995. . 3 HABERMAS, Jiirgen. Conhecimento é interesse. Rio de Janei- ro: Zahar, 1982, 4 KUHN, Thomas. A tenséio essencial. Lisboa: Ed. 70, 1989. 5 POPPER, Kari. A Logica da pesquisa cientifica. Sao Paulo: Cultrix. s/d. 6 POPPER, Karl. Pds-escrito @ ldgica da pesquisa cientifica. (v. 1) O realismo ¢ 0 objetivo da ciéncia. Lisboa: Dom Quixote, 1987. + 140°

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