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A Concepção Adultocêntrica da Infância em Coraline e o Mundo

Secreto
Nildo Viana*

O cinema cria um universo fictício que é simultaneamente uma reprodução da realidade social, mostrando
e ocultando as relações sociais existentes. O universo fictício é uma realidade figurativa que manifesta a
sociedade existente. Essas considerações são importantes para compreender que toda produção fílmica,
por mais fantástica e exótica que seja, manifesta o mundo real. O que as análises sociológicas e teóricas
do filme pode fazer é descobrir o que está oculto no filme. O filme Coraline e o Mundo Secreto, Henry
Selick (EUA, 2009) manifesta o mundo real, concreto, no plano da ficção. Este filme mostra uma garotinha
mal humorada, com pais sempre ocupados, vizinhos estranhos e isso provoca o seu tédio e a busca de algo
para fazer, já que a solidão e a falta de sentido tomam conta de sua vida.

A aparência e a intenção dos produtores parecia ser mostrar o mundo infantil da perspectiva de uma
criança. A protagonista é uma menina que descobre um "mundo secreto" e que ninguém acredita. Neste
mundo secreto, Coraline teria outra mãe e outro pai, que eram radicalmente diferentes dos seus
verdadeiros pais, realizando os seus desejos, lhe dando atenção, produzindo o seu quarto como ela queria,
um jardim com a imagem do seu rosto visto de forma panorâmica, um pai brincalhão, comida deliciosa
feita pela mãe (ao contrário da comida intragável feita pelo pai verdadeiro). O único elemento
desagradável é que nesse mundo as pessoas não possuem olhos e sim botões em seu lugar.

Esse feliz mundo secreto revela um segredo: ele é apenas uma armadilha para prender Coraline por uma
entidade misteriosa que quer roubar seu amor, sua alma e seus olhos. A trama passa por este processo de
tédio, descoberta do outro mundo, encantamento, desencantamento e luta para fugir dele. No final,
Coraline descobre o seu erro e busca se livrar deste mundo e acaba fazendo isso, e volta para o seu lar, no
mesmo mundo que lhe entediava, mas que agora está diferente, seus pais estão mais atenciosos, os
vizinhos menos estranhos, etc.

Assim, o segredo do filme Coraline não é o mundo secreto que esta encontra, nem o seu próprio mundo e
sim a concepção adultocêntrica por detrás de toda esta produção fictícia. Um inocente conto - que alguns
podem até considerar assustador em certos aspectos - revela, no fundo, um conjunto de valores,
sentimentos, ideologemas, que despertam emoções, reflexões, etc., e tudo apontando para um
determinado sentido.

A grande mensagem do filme, no final das contas, é que as crianças devem ser pacientes, suportar a
ausência dos pais, a falta de sentido e de atividades significativas na vida, a solidão, pois, fazendo isso,
mais cedo ou mais tarde, serão recompensadas, tal como ocorre no final do filme, quando os pais super-
ocupados conseguem a publicação de um catálogo de jardinagem e conseguem dinheiro para comprar as
luvas que ela tanto queria, ter tempo para brincar e cuidar de jardim. Sair desse caminho de suportar a
realidade em que vive é "perigoso", palavra que aparece no filme justamente para se referir ao mundo
secreto, que é, no fundo, o mundo dos desejos de Coraline.

*Nildo Viana é professor da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Federal de Goiás; Doutor em Sociologia e
autor de diversos livros, entre eles, “Como Assistir um Filme?” (Rio de Janeiro, Corifeu, 2009) e “A Concepção
Materialista da História do Cinema” (Porto Alegre, Asterisco, 2009).
Ceder aos desejos, mesmo na imaginação, eis o “pecado”, ou eis o recado da sociedade repressiva.
Aprender a aceitar as imposições da sociedade repressiva, desde a infância, pois caso contrário, suas
utopias, desejos, mundos imaginários, poderão lhe destruir, fazer perder sua alma (significaria ir para o
inferno? Ou seja, temos o velho tema cristão de “perder a alma”, roubada pelo diabo), perder os olhos (a
cegueira, a imaginação é perigosa, pois “cega”, faz não “ver a realidade”), o “amor” (os pais e seu
suposto amor, no qual o mundo do trabalho os absorve). Aceitar tudo isso para um dia ser recompensado,
tal como os cristãos podem aguentar o mundo de miséria e depois ser recompensado no “reino dos céus”.
Um mundo maravilhoso existe, mas só no futuro, seja o do além vida dos cristãos, seja no dia da
recompensa no filme Coraline e o Mundo Secreto.

Enfim, Coraline e o Mundo Secreto é um filme infantil, mas feito por adultos. Daí a concepção
adultocêntrica que lhe perpassa. Aceitar a realidade, ou seja, o princípio de realidade contra o princípio
do prazer, para utilizar linguagem psicanalítica, é o fundamental, o que gera o tom moralista e até
ameaçador, pois ninguém quer ter os olhos trocados por botões. Uma mensagem repressiva de uma
sociedade repressiva, que desde a tenra infância tem que fazer terrorismo com as crianças. “Cresça para
ter seu mundo”, mas quando crescer, será como os adultos e aí já não o irá desejar, irá estar muito
ocupado com o trabalho, com o Estado e com a família e as Coralines perturbadoras.
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Artigo publicado originalmente no Jornal Opção, 28 de Março de 2010.
http://www.jornalopcao.com.br/

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