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DELCO DE ARTE E FORMA , FILMICA FRANCIS VANOYE. ANNE GOLIOTLETE T° Edic&o PAPIRUS EDITORA. Titulo orignal em francés: Précis o’analyse filmique © Editions Nathan, Paris, 1992 Tradupao: Marina Appenzeller Revisdo técnica: Nuno Cesar P. de Abreu Capa: Femando Comacchia Foto de capa: Renato Testa Diagramagao (7* edt): DPG Editora Revisio: Ménica Seddy Martins @ Simone Ligabo Dados Internactonais de Catalogagaio na Publicagao (CIP) SP, Brasil) Ensaio sobre a andlise filmica/Franc's Vanoye, Anne Golict- Late; Trad. Marina Appenzeller; Revisiio técnica Nuno Cesar. de Abreu. — 7# ed, - Campinas, SP: Papirus, 2012. ~ (Série Cficio de Arte e Forma). Titulo origin Bibliogratia, ISBN 978-85-08-0311-7 Précis d’analyse filmique. 1. Critica cinematografica 2. Filmes cinematogréficos — Historia, ecritica |. Goliot-Lété, Anne Il. Titulo. lil. Série. 12-06363 CDD-791.4375 Indice para catélogo sistemético: 1. Andlise fimica 791.4375 Exeeto no caso de ctagies, a grafia deste livro esta atualizada segundo 0 Acordo Ortogtéfico da Lingua Portuguesa adotado no Brasil a partir de 2009, 2! Reimpressao 2013 Prolbida a reprodugdo total ou parcial da obra de acordo com a lei 9.610198. Editora afliada & Associ dos Direitos Reprogralicos (ABDR). DIREITOS RESERVADOS PARA ALINGUA PORTUGUESA: ©M.R. Comacohia Livraria 6 Editora Ltda, —Papinis Editora R. Dr. Gabriel Penteado, 253 -CEP 18041-908 —ViiaJoio Jorge Foneffex: (19) 3272-4600 - Campinas — So Paulo ~ Brasil E-mail: editora @papirus.com.br ~ wwe. papirus.com.br A Christian Metz ¢ A enunciacao. ie . 40 ° Narrador(es) e instancia narradora 42 Analisarlinterpretar - 48 Os limites da interpretacay, iat set «1s 6's ishlocen eee Puan 49 ° Andlise e interpretago sécio-histérica...........0...0..004 51 * Andlise e interpretagdo simbélica............. 000.0 cece 56 AANALISE NA PRATICA Sa. 65, Descrever e analisar . - 65 Descrigao e andlise de uma sequéncia: Rebecca . - 66 ° Inicios e finais de filmes ......... slovbinit ereinga eae eeeidhs)erarcke 81 ° Estudo de um plano-sequéncia: Paisagem na neblina ......... 93, © Andlise de um plano: Rebecca. ......... 0c cscs neces vous s 100 Formas curtas. - 103 © Spots publicitarios . 104 ° Curtas-metragens de ficgdo sLL0 Elementos para a andlise de um filme inteiro: Rebecca ........... 118 ¢ Resumo do filme ........ asics FaRidia olay plies STA, Stier Be 119 Segmentacao do filme em grandes atos............ 000s ee 119 © O dispositivo narrativo ¢ Analise narrativa e organizagao espacial . e Rebecca: uma narrativa de iniciagao.. .. ° Rebecca como adaptacao de uma obra literaria ............. 132 CONGLUSAG GERAD: csiesiciks bark Ser aa sted votes sien nea 139 BIBLIOGRABIAV eh ayaa vas cate oy dufuen.s daascue, Sw, 141 INTRODUCAO Aanilise filmica nao é um fim em si. f uma pratica que procede de um pedido, o qual se situa num contexto (institucional). Esse contexto, porém, é variavel, e disso resultam evidentemente demandas também eminentemente varidveis. Hoje, a andlise filmica 6, por vezes, requisitada por instituigdes escolares e universitarias (exames de final de curso, por exemplo), concursos (Capes, licenciatura etc.) ou pesquisas (dissertagdes de mestrado, teses relativas a filmes, diretores, quest6es cinematograficas). Pode igualmente proceder de solicitagdes procedentes de outras instituigdes: imprensa escrita ou audiovisual (critica, estudo de filmes de diretores), edigao (livros sobre 0 cinema), cinema (constituigao de documentac&o de apresentagao de filmes ou de conjuntos de filmes, Irailers etc.). A analise de filme geralmente da lugar a uma producao escrita, mas pode também conduzir a uma produgao audiovisual ou mista (fita que apresenta andlises de sequéncias, fragmentos acompanhados de comentarios, montagens de cenas ou de planos caracteristicos etc.). A definigéo do contexto e do produto final 6, portanto, indispensdvel ao enquadramento da anilise. Permite esbogar, pelo menos em parte, seus limites, suas formas e seus suportes, seu ou seus Ensaio sobre a andlise filmica 9 eixos (ou, pelo menos, a possibilidade maior ou menor de escolha de eixos). A presente obra nao conseguiria evidentemente explicar todos os contextos em sua especificidade. No entanto, tenta proporcionar alguns principios, alguns instrumentos, algumas condutas validas em todos os contextos, a partir do momento em que se parte de um objeto-filme para analisé-lo, isto é, para desmonté-lo e reconstrui-lo de acordo com uma ou varias opges a serem precisadas. Os obstdculos a andlise A anilise de filme depara com muitos obstdculos, 0 que é importante reconhecer se quisermos nos proporcionar os meios de supera-los ou contorna-los. Obstaculos de ordem material Raymond Bellour' afirmava que o texto filmico é “impossivel de se encontrar”, no sentido de que no é citdvel. Enquanto a anilise literaria explica 0 escrito pelo escrito, a homogeneidade de significantes permitindo a citacao, em suas formas escritas, a andlise filmica s6 consegue transpor, transcodificar 0 que pertence ao visual (descri¢ao dos objetos filmados, cores, movimentos, luz etc.) do filmico (montagem das imagens), do sonoro (misicas, ruidos, graos, tons, tonalidades das vozes) e do audiovisual (relagdes entre imagens e sons). Foi possivel ver algumas analises perseguindo em vao 0 mito de uma descrigao exaustiva do filme. Empreendimento evidentemente fadado ao fracasso. Se a complexidade do objeto-filme de fato conduz a colocagao com rigor do problema de sua descricgao pela linguagem e do que a ela se integra, sua natureza de pluralidade de cédigos proibe pensar em qualquer “reprodugao verbal”. E possivel que os limites da descrigao, da “anotagio” se devam aos eixos de analise, as hipéteses 1. “Le texte introuvable”, ir L’analyse du film, Paris, Albatros, 1979. 10 Papirus Editora cle pesquisa colocadas no inicio (ou no decorrer) da anilise. Impossivel «de ser encontrado, o texto filmico, também naquilo em que é fugidio, movente, sempre preso ao desenrolar da pelicula e/ou ao circuito da distribuicéo. Ver, examinar um filme tecnicamente nem sempre « facil, tanto no tempo como no espaco. Analisar um filme implica evidentemente que se veja e reveja o filme: numa sala de cinema, na moviola, no video, com a ajuda ou nao de uma transcri¢gao escrita a existente? As condicdes materiais de exame técnico do filme (auxilio, frequéncia, tempo, possibilidade de parar o desfile, de parar na imagem, voltas e avangos rapidos etc.) condicionam a analise. Muitos criticos e teéricos cometeram erros baseando-se numa visao tinica de um filme (a memoria cinéfila muitas vezes engana, pois lembramo-nos de ter visto 0 que agrada ou fortalece uma hipotese de andlise ou uma impressao de conjunto). Dai a necessidade de averiguag6es sistematicas. Inversamente, 0 recurso ao videocassete, as possibilidade de manipulagao infinita do filme podem conduzir a andlises “microscépicas” nao necessariamente pertinentes (ainda ai, tudo é questao de eixo e hipétese de trabalho). De qualquer modo, 0 analista deverd estabelecer um dispositivo «de observagao do filme se nao quiser se expor a erros ou averiguacées incessantes. Dai a necessidade de aprender a anotar, de se proporcionar, a partir do momento em que se inicia 0 processo de andlise e em que nao se é mais uma espectador “comum”, redes de observacao a serem fixadas e organizadas em fungao dos eixos escolhidos (privilegiados). Obstdculos de ordem psicoldégica O fato de a andlise de um filme ser 0 produto de uma demanda, como observamos, nem por isso afasta a pergunta “entao, para que serve?”, De fato, de que serve descrever, analisar um filme? De que serve essa operacio que parece simétrica e inversa das que presidiram a elaboragao do filme (escrita dos diversos estados do roteiro, constituigao da decupagem técnica tendo em vista a filmagem)? Nao é absurdo “desmontar” o que foi pacientemente (ou impacientemente) montado? Ensaio sobre a andlise filmica 11 Com efeito, as finalidades dessas operagées diferem. A escrita do roteiro, a decupagem técnica, a filmagem, a montagem e a mixagem constituem as etapas de um processo de criagao de fabricacgaio de um produto. A descrig&o e a andlise procedem de um processo de compreensio, de (re)constituigao de um outro objeto, o filme acabado passado pelo crivo da anilise, da interpretacao. Mas, dirao, de que serve compreender? De que serve interpretar um filme? Nao basta vé-lo, eventualmente revé-lo, senti-lo? A meta do cinema nao é provocar emogdes? Nao é, antes de mais nada, um prazer, um espetaculo? Nao pertenceria, bem mais do que a literatura, e segundo uma tradic¢ao bem estabelecida pela industria e pelo conten ao universo do lazer (mesmo que dependa de fato, hoje, na Franga, ap Ministério da Cultura)? ! : Analisar um filme nao é mais vé-lo, 6 revé-lo e, mais ainda, examind-lo tecnicamente. Trata-se de uma outra atitude com relagio a objeto-filme, que, alids, pode trazer prazeres especificos: desmontar um filme é, de fato, estender seu registro perceptivo e, com isso, se o filme for realmente rico, usufrui-lo melhor. A andlise de um filme como Playtime, ae Jacques Tati, faz com que se descubram detalhes do tratamento da imagem e do som (ver 0 livro de Michel Chion sobre Tati)? que aumentam 0 prazer a cada vez que se revé a obra. : Contudo, também existe um trabalho da analise, por pelo menos dois motivos. Primeiro, porque a andlise trabalha o filme, no sentido em que ela o faz “mover-se”, ou faz se mexerem suas significages, seu impacto. Em segundo lugar, porque a analise trabalha o analista, recolocando em questao suas primeiras percepgdes e impressées, conduzindo-o a reconsiderar suas hipéteses ou suas op¢ées oie consolida-las ou invalida-las. Ademais, podemos observar que muitas vezes a analise acompanha, precede ou sucede o trabalho de criagdo dos filmes: para 2. Michel Chion, Jacques Tati, Cahiers du cinéma, 1987. 12 Papirus Editora ji0s convencermos disso, basta ler os textos ou entrevistas dos grandes ‘ineastas, de Epstein ou Gance a Fisenstein, de Hitchcock a Fritz Lang ou Ingmar Bergman e Truffaut. Ela se integra igualmente ao processo dle recepgao dos filmes. Aqui seriamos tentados a convocar o nome de grandes criticos e tedricos, de Louis Delluc a André Bazin, de Jean Mitry a Christian Metz. ‘A andlise vem relativizar as imagens “espontaneistas” demais dla criagdo e da recepcao cinematograficas. Estamos cercados por um dilivio de imagens. Seu ntimero é tao grande, estao presentes tio “naturalmente”, sao tao faceis de consumir que nos esquecemos de que sdio o produto de miltiplas manipulacbes, complexas, as vezes muito claboradas. O desafio da analise talvez seja reforcar o deslumbramento do espectador, quando merece ficar maravilhado, mas tornando-o um deslumbramento participante. O primeiro contato com um filme, a primeira visio, traz toda uma profusao de impressdes, de emogoes e até de intuicGes, se ja nos colocamos em uma atitude “analisante”. Ora, nao se quer dizer que a analise deve suprimir esses primeiros aportes, que correm 0 risco de, a seguiz, tornarem-se preciosos. De fato, impressdes, emogGes e intuigdes nascem da relacao do espectador com o filme. A origem de algumas delas pode evidentemente dizer mais do espectador que do filme (porque o espectador tende a projetar no filme suas préprias preocupagées). O filme, porém, permanece a base na qual suas projegdes se apoiam. Nao é possivel conduzir, elaborar, uma andlise de filme apenas com base nas primeiras impress6es. Mas seria errado separar radicalmente 0 produto da atividade de espectador “comum” da analise. A bem dizer, esse material bruto, resultante de um contato espontineo, ou, pelo menos, menos controlado, com o filme, pode constituir um fundo de hipsteses sobre a obra. Essas hipdteses deverao, é claro, ser averiguadas concretamente por um verdadeiro processo de anilise. Contudo, questdes do tipo “como o filme conseguiu produzir em mim este ou aquele efeito?”, “como 0 filme me conduziu a simpatizar com determinado personagem e a achar outro odioso?”, “como o filme gerou determinada ideia, determinada emogao, determinada associacao Ensaio sobre a andlise filmica 18 aay a em mim , questdes centradas no como e nao no por que conduzem a considerar o filme com maiores detalhes e a integrar, em um ou outro momento, os “primeiros movimentos” do espectador. O que é analisar um filme? A anilise filmica significa duas coisas: a atividade de analisar (quando Roger Odin, por exemplo, fala da “andlise filmica como exercicio pedagdgico”)? e também pode significar o resultado dessa atividade, ae é, com algumas excegdes, um texto (se eu evocar, por exemplo, E anlise: do Mépris [Desprezo] por Michel Marie).‘ A reflexéo que se ee questioriay sobretudo, a atividade. Sua origem so as anilises-texto que mais fazem aparecer os vestigios dessa atividade exibida, nao, ee as elaboradas pelos especialistas, as “profissionais”, ie) se Seisen os instrumentos que solicitam, se mostram a leitura o simulacro de sua producdo, apagam e fazem esquecer os obstaculos eventuais encontrados quando das diferentes fases do trabalho, mas, sobretudo, as de jovens estudantes, por vezes ricas, cativantes, convincentes, por eres phe e superficiais, em todo caso geralmente mais ingénuas, pois confessam os segredos intimos e auténticos de sua elaboragdo em todos os niveis. S40 a testemunha de certas atitudes reflexas, 0 sintoma de um certo ni me de dificuldades experimentadas. oh A atividade analitica, em que consiste? ‘ Analisar um filme ou um fragmento é, antes de mais nada, no sentido cientifico do termo, assim como se analisa, por exemplo; a composicao quimica da agua, decompé6-lo em seus elementos constitutivos E despedacar, descosturar, desunir, extraix, separar, destacar e denominas materials que nao se percebem isoladamente “a olho nu”, uma vez que o filme é tomado pela totalidade. Parte-se, portanto, do texto eiice para 3. “L’analyse filmique comme exercice péd: 2”, in Ch ‘ ig nm lagogique”, in CinémAction, n. 47, Cerf-Corlet, 4. Michel Marie, “Le mépris”, Etude critique, Nathan, 1991, col. “Synopsis”. foe 14. Papirus Editora ‘onstrut-lo” e obter um conjunto de elementos distintos do préprio © Através dessa etapa, 0 analista adquire um certo distanciamento filme. Essa desconstrugéo pode naturalmente ser mais ou menos yofundada, mais ou menos seletiva segundo os designios da analise. Uma segunda fase consiste, em seguida, em estabelecer elos entre 4ps elementos isolados, em compreender como eles se associam e se jornom cliimplices para fazer surgir um. todo significante: reconstruir 0 filme ou o fragmento. F evidente que essa reconstrugao nao apresenta «ualquer ponto em comum com a realizacao concreta do filme. E uma “criacgdo” totalmente assumida pelo analista, é uma espécie de ficcdo, enquanto a realizagao continua sendo uma realidade. O analista traz algo ao filme; por sua atividade, & sua maneira, faz com que o filme exista. Os limites dessa invengao, dessa “criagao” sao, contudo, muito putritos, O analista deve de fato respeitar um principio fundamental de logitimagao: partindo dos elementos da descricao langados para fora do filme, devemos voltar ao filme quando da reconstrugao, a fim de evitar reconstruir um outro filme. Em outras palavras, nao se deveria sucumbir 4 tentagio de superar o filme. Os limites da “criatividade analitica” sao os do préprio objeto da andlise. O filme é, portanto, o ponto de partida © 0 ponto de chegada da andlise. Duas observagoes: 1, Como se deve ter compreendido, a desconstrugao equivale & descrigao. Jaa reconstrugao corresponde ao que se chama com frequéncia de “interpretacao”. Muitas vezes, tem-se o habito de considerar a interpretagdo como extrapolacao em relac&o ao filme. Ora, caso seja concebida, ao contrario, como um movimento centripeto em diregao ao filme, qualquer perigo de cair na interpretagao selvagem é afastado. 2, Com frequéncia, lemos andlises que nao distinguem explicitamente as fases de desconstrugao e de reconstrucao, que as imbricam uma na outra, ouento, nao param de alterné-las. Nem é preciso dizer que 0 texto, resultado final da atividade Ensaio sobre a andlise filmica 15 analitica, néo tem de explicar linearmente, cronologicamente, os processos de sua producio. Mais ainda, inclusa no trabalho de preparaco que precede a redacio, nao existe uma sucessao escolar de uma fase de descrigaio e de uma fase de reconstrucao, mas antes uma alternancia anarquica de ambas: apela-se auma quando a outra se esgotou e inversamente, num movimento de balanco incessante. As fraquezas encontradas em certas andlises de estudantes (ou de outros...) podem ser variadas: © a pessoa acredita estar interpretando, reconstruindo, quando se contenta em descrever; ° a pessoa tenta, ao contrario, interpretar antes mesmo de ter descrito: faz uma pardfrase. Esses dois tipos de problema sao 0 resultado de um desequilibrio entre as duas tarefas obrigatdrias da andlise. Observamos outra fraqueza: sair definitivamente do filme para se entregar a uma fabulacao pessoal. Ou se tem um talento demasiado grande de criador e, nesse caso, talvez fosse melhor fazer cinema do que andlise de filmes, ou, também, o analista se compromete com uma hipotese falsa e tenta de qualquer modo defendé-la até o fim. O tratamento aconselhado: em primeiro lugar, desenvolver seu sentido de autocritica e, depois, permanecer flexivel intelectualmente 0 suficiente para conseguir a todo instante enfrentar um imprevisto e aceitar a mudanga de rumo. Ao contrario, finalmente, e esse caso talvez seja o mais comum: quando o analista acredita nada ter a dizer sobre o filme, ou fica aterrorizado com a ideia de emitir uma hipdtese um tanto pessoal sobre ele, refugia-se na citacdo ena sintese de todos os escritos existentes sobre esse filme. Esse esforco enciclopédico nao é de forma alguma condendvel, 16 Papirus Editora contanto que nao se o confunda com a atividade analitica, com a qual ilo tem estritamente qualquer ponto em comum. Nessa busca documentaria, recolhem-se duas espécies de textos: lextos de informacao “geral” (textos relativos a filmagem, informagées sobre o diretor e sua carreira, historia do cinema...) e eventualmente andlises (0 roteiro deve ser considerado a parte, pois também pode constituir um objeto de andlise). Veremos adiante em que medida é posstvel explorar os primeiros (tanrpouco se deve confundir andlise de filme e conjunto de histérias que cercam o filme). Quanto as andlises do filme ja existentes, nao 6 que se deva ignord-las. Ao contrario, deve-se tiliza-las, mas, antes de mais nada, é preciso sobretudo saber utiliza-las, nao as considerando de imediato um saber obrigatério, preliminar, & analise, o que seria abandonar seu préprio trabalho de andlise. De fato, é imensamente mais dificil elaborar por conta propria, enquanto estudante, aanlise de um filme quando jé se conhece uma do que se envolver com 4 mente limpa. No limite, por que nao abordar, numa primeira fase, 0 filme sem preconceito, sem ideias preconcebidas, efetuar sua pesquisa pessoal com toda a liberdade? $6 depois documentar-se, ler as andlises dos outros, ja tendo em mente pelo menos uma (ou algumas) hipotese(s) pessoal(is). S6 desse modo é possivel existir confronto, discussao, eventualmente um ajuste e até, por que nao, uma modificagao radical do proprio ponto de vista. E, é claro, se alguém se permitiu encontrar antes de mim uma ideia genial sobre o filme que estou analisando, tem prioridade, devo cita-lo e inclinar-me e nao repetir e apropriar-me da ideia em questdo (que, contudo, também me pertence...). Aparentemente, a natureza da relagao do analista com “seu” filme determina em parte a riqueza da prdpria anilise, ea pobreza de algumas andlises provém, as vezes, das dificuldades que o analista tem de entrar numa relagdo correta com seu objeto. Conhecemos o poder hipnético da imagem, quer esteja impressa na tela da sala escura, quer seja televisual. Sabemos com que facilidade somos capazes de abolir a distancia entre nds e a tela para entrar e até engolfarmo-nos no mundo ficcional do filme. A analogia, muito relativa, mas nem por isso menos poderosa, entre a imagem filmica e o mundo Ensaio sobre a analise filmica 17 reforga essa proximidade que nao facilita a reflexao “cientifica” e a producao de um discurso sobre o filme. A obra de Jacques Aumont, A imagem, e, em particular, os capitulos Te II sao wma sintese notavel sobre a percep¢ao, seus componentes fisiolégicos e psicoldgicos. Precisemos, contudo, a posigao do “espectador-analista”, que se tem 0 costume, coin razao, de opor ao espectador “normal”. De fato, se é, também ele, um “espectador desejante”,” seu desejo (consciente) é, antes de mais nada, “compreender” o filme ou o fragmento escolhido a fim de estar cut condigoes de elaborar um discurso a esse respeito. Analista e espectador “normal” nao receberiam, portanto, o filme da mesma maneira, pois 0 primeiro busca precisamente se distinguir de forma radical do segundo, nao se deixar dominar como o ultimo pelo filme. : ESPECTADOR NORMAL ANALISTA, Passivo, ou melhor, menos ativo doqueo tivo, conscientemente ativo, ativo de analista, ou mais exatamente ainda, ativode _maneira racional, estruturada. maneira instintiva, irracional. Percebe, vé e ouve 0 filme, sem designio particular Olha, ouve, observa, examina tecnicamente O filme, espreita, procura indicios. Est submetido ao filme, deixa-se guiar por © Submete o filme a seus instrumentos de ele. andlise, a suas hipdteses. Processo de distanciamento. Para ele, 0 filme pertence ao universo do Para ele, o filme pertence ao campo da lazer. reflexdo, da produgao intelectual. —Prazer Trabalho Processo de identificagao. A ideia normalmente admitida e moralmente tranquilizadora pretende que a qualidade do trabalho seja mais ou menos proporcional & amplidao e a intensidade do esforgo fornecido pelo analista conirao filme, tendo em vista “persegui-lo, brutaliza-lo e até rompé-lo um pouco” Tudo acontece, portanto, como se a relagao entre 0 analista e o filme devesse ser 5. Jacques Aumont, 4 imagem, Papirus, 1993. 6. Roger Odin, in Cinémdetion, n. 47, op. cit. 48 Papirus Editora jjeeessariamente uma relacao de forga, de luta. Seo filme me hipnotiza e me slomina, cu, analista, vou, como reagao, criticar 0 filme, ou melhor, atacaro filme; em suma, vingar-me do filme para finalmente dominar. Esse ponto de vista requer, contudo, maiores nuancas, pois, se um distanciamento {otal e uma relagao de luta com 0 filme sao para alguns um remédio para os “bloqueios e decepcées ulteriores”,’ decerto para muitos sao a propria causa de um bloqueio e de uma decepcao de outra ordem. Sim, a andlise de uma sequéncia de um filme exige tempo, perseveranca, implica passat por uma série de tarefas obrigatérias e resistit em parte Aseducdo operada pelo filme (situamo-nos aqui de imediato no contexto de uma andlise realizada pelo tempo que for necessario em companhia do filme na forma de videocassete, por exemplo). No entanto, 6 bem conhecida a sensagao dolorosa do esforco obstinado e contudo vo, infrutifero, estéril, que as vezes conduz.ao desencorajamento ea terrivel angustia do vazio. Ousamos pensar que talvez seja af que comega precisamente 0 verdadeiro trabalho: aceitar esse vazio, esse hiato, nao tentar lutar desesperadamente contra a angustia com instrumentos de andlise ou solugées alternativas, ndo, deixa- la seguir seu curso e sobretudo deixar o filme executar seu trabalho, pois parte do trabalho é incumbéncia dele. Assim, propomos que oanalista se instale as vezes, até regularmente, diante do filme ou do fragmento, sem tentar fazer um esforco intelectual particular; sugerimos a ele que solte as rédeas, que se permita nada buscar, que deixe o filme estabelecer sua lei. Assim, entao, ele volta a encontrar uma espécie de disponibilidade e outorga-sea possibilidade de deixar-se surpreender agradavelmente e de conseguir acolher elementos novos que se situam fora de suas projecdes e de suas preocupagoes particulares. As vezes, esses elementos podem constituir um aporte consideravel e principalmente uma renovacao. F claro que o conselho, aqui, evidentemente nao pontifica parar por completo qualquer atividade intelectual. Propde modificar e flexibilizar uma_ metodologia que aangustia tende as vezes a tornar rigida. Sugere simplesmente proceder de vez em quando a um afrouxamento intelectual que permita uma recepcio mais 7. Ibid. Ensaio sobre a andlise filmica 19 sutil, mais refinada do filme, de um certo modo, mais “terna” e que pode se revelar muito produtiva. Voltar a ser 0 espectador “normal” por alguns momentos, deixar o filme falar, procurar sem buscar: contemplar sem olhar freneticamente, prestar atengaio sem agucar os ouvidos, estar alerta sem violéncia. O trabalho opera-se através de uma série de vaivéns. O analista diz coisas sobre o filme, o filme também diz coisas. Podem ser estabelecidos um dialogo, uma respiragao, que evitam a saturacio, a estagnacio. Apresentagao da obra A presente obra esforga-se por corresponder exatamente ao que acaba de ser exposto. Prope, numa primeira parte, alguns elementos de reflexao geral relativos 4 histéria das formas cinematograficas, as ferramentas da narratologia e os problemas da interpretacao. Essa parte nao tem o intuito de estabelecer um contexto rigido, e sim de proporcionar referéncias e precisar um estado de espirito propicio a conduta da andlise. A segunda parte propée andlises, do plano isolado ao filme inteiro. Nao pudemos abordar, nos limites desse livro, a questao, da andlise de um conjunto de filmes (obra de um cineasta, corpus de filmes reunidos por um crit¢rio comum: periodo ¢ local de produgao, tema, género etc.); esse tipo de trabalho prolonga o nosso, mas requer 0 estabelecimento de operagdes complementares especificas. As “anilises praticas” da segunda parte nao constituem exemplos (no sentido de modelos) propriamente ditos. Sao parciais, incompletas, poderiam ser reduzidas, prolongadas, reenquadradas. Mas desenvolvem. e completam as reflexdes da primeira parte (sem pretender serem aplicagGes sistematicas destas) de maneira concreta. Operam o encontro entre principios gerais e o material filmico real, esses objetos sempre especificos, sempre “novos” que sao o filme, a sequéncia ou o plano a ser analisado e por onde, sempre, deve-se comegar. Anne Goliot-Lété agradece a Dominique Bliiher e a Nicole Jaspart. 20 Papirus Editora 1 REFLEXOES PRELIMINARES Antilise de filmes e histéria das formas cinematogréficas Analisar um filme é também situa-lo num contexto, numa histéria. ;, se considerarmos o cinema como arte, é situar o filme em uma historia das formas filmicas. Assim como 0s romances, as obras pictéricas eu musicais, os filmes inscrevem-se em correntes, em tendéncias e até em “escolas” estéticas, ou nelas se inspiram a posteriori. O cinema da modernidade europeia, de Jean-Luc Godard a Wim Wenders e a Léos Carax, 6 um cinema de cinéfilos, que integram em suas obras paincis inteiros da historia do cinema através da pratica da citagao, do pastiche ou da parédia (ver também Woody Allen e suas referéncias a Bereniany Fellini etc.). Os cineastas hollywoodianos “classicos”, porém, conheciam também seus predecessores e nao deixavam de lhes prestar homenagens ouneles se inspirar, quer se tratasse do expressionismo alemao, quer do cinema soviético dos anos 1920. Por isso pode ser interessante, embora o empreendimento apresente, sem qualquer duvida, algo de peuator e utépico, definir as caracteristicas formais de algumas tendéncias Ensaio sobre a andlise filmica 21 plano a outro, nas peliculas dos primeiros tempos (0 que seria marcantes da histéria das formas cinematograficas. Um filme jamais é considerado uma falsa continuidade temporal no cinema isolado. Participa de um movimento ou se vincula mais ou menos a uma tradig&o. Ainda é preciso ser capaz de descobrir as figuras de conteudo ou de expressao que permitem definir o papel e o lugar da obra nesse movimento ou nessa tradicao. classico). Os comentadores atribuem esses tragos de descontinuidade narrativa ao fato de que os modelos dos cineastas nao eram 0 romance O cinema dos primeiros tempos e a nao continuidade do século XIX ou 0 teatro classico, mas antes o music-hall, 0 vaudeville, a histéria em quadrinhos, os espetaculos de lanterna magica, de circo, Passado 0 tempo dos filmes num tnico plano (uma “tomada”, de teatro popular. dizia-se), os filmes dos primeiros tempos (entre cerca de 1900 e 1908) parecem caracterizar-se, para um espectador moderno, pela nao continuidade. Noél Burch via trés elementos de nao continuidade no yr cinema “primitivo”: Instalagéo da continuidade narrativa Com frequéncia, atribui-se a D.W. Griffith o mérito de ter elaborado ‘a forma de narrativa cinematografica que vai servir de modelo a todo 0 classicismo holly woodiano e europeua partir de 1915. O papel de Griffith evidentemente foi importante, mas nao é possivel separa-lo de todo um contexto e principalmente da instalac&io de um modo de produgao racionalizada dos filmes nos grandes estidios hollywoodianos. A divisdo do trabalho, a distribuigéo das tarefas confiadas a departamentos especializados (pesquisa de ideias, escrita de roteiros e adaptagées, claboragao das decupagens, filmagem etc.), tudo isso exige a existéncia de regras ou pelo menos de principios que estruturem a elaboragao do produto-filme, e isso tanto mais quanto o orgamento investido na produg&o era importante. A continuidade narrativa vai se elaborar aos poucos com base nos seguintes principios: © anao homogeneidade: os filmes sio construidos por quadros, separados por grandes elipses narrativas que as legendas mal preenchem; as legendas nao tém necessariamente um vinculo narrativo légico muito rigido com as imagens; os cendrios naturais e as telas pintadas podem suceder-se sem precaugio; 0 desempenho dos atores as vezes varia de uma cena a outra, do mais “documentario” ao mais “teatral” (dirige-se ao puiblico- espectador); as “falsas continuidades” (no sentido que se da hoje a esse termo: erro de ligacao entre duas imagens ou dois elementos da imagem) sao abundantes etc.; ® ondo rematamento: as copias eram vendidas e nao alugadas; os exploradores podiam, entao, mudar sequéncias ou planos de lugar, cortar pedacos de filme etc. Alguns filmes primitivos © homogeneizagao do significante visual (cenarios, iluminagao) apresentam dessa maneira versdes bastante diferentes e é possivel acreditar, pelo menos para alguns deles, que sua estrutura “aberta” autorizava esse género de pratica; ¢ aniao linearidade: observam-se, por exemplo, muitos exemplos e do significado narrativo (relagGes legendas/imagens, desempenho dos atores, unidade do roteiro: historia, perfil dramatico, tonalidade de conjunto), depois do significante audiovisual (sincronismo da imagem e dos sons — palavras, ruidos, musica); de encavalamentos temporais de uma cena a outra, de um e linearizagéo, pelo modo como se vincula um plano ao plano 1. Noél Burch, “Porter ou ambivalence”, i Le cinéma américain, vol. 1, Flammarion, 1980. seguinte: vinculono movimento (no gesto de um personagem 22 Papirus Editora Ensaio sobre a analise filmica 23 ou no movimento de um veiculo), vinculo no olhar (um personagem olha/enxergamos 0 que ele enxerga), vinculo no som (existe até nos filmes ditos mudos: um personagem ouve/ vemos 0 que ele ouve; ou melhor, num filme sonoro, ouve-se um ruido em um plano; identifica-se sua fonte no plano seguinte). E claro, em seguida, as vozes off, os didlogos e a musica fornecem. meios praticos e poderosos de linearizagao. Todos esses meios tém em comum 0 fato de que fazem o espectador “esquecer” 0 carater fundamentalmente descontinuo do significante filmico constituido de imagens “coladas” umas as outras. Algumas figuras de montagem contribufram para estruturar a narrativa hollywoodiana classica: a montagem alternada (orquestrada por Griffith), que permite montar alternadamente dois (ou mais de dois) eventos que se desenvolvem simultaneamente é 0 seu melhor exemplo. Deve-se decerto também a Griffith a técnica do insert, esse primeiro plano de detalhe que, na dinémica de uma cena, da uma informagao importante ao espectador, ao mesmo tempo que sublinha seu impacto dramatico (plano de ‘uma arma, por exemplo). Anartacio filmica “cldssica” Ela carrega, sem contestagio, a marca das grandes formas romanescas do século XIX. Griffith, alias, reivindicou explicitamente Dickens para justificar algumas de suas ousadias narrativas. Assim, 0 cinema, a principio situado sob a influéncia predominante da cena teatral (espetaculos populares, depois teatro classico: ver O assassinato do duque de Guise, em 1908), de sua decupagem em quadros e do ponto de vista que oferece sobre a histéria contada (cenas filmadas frontalmente dominam a produgio até os anos 1920), vé suas formas narrativas conquistadas pelo romance. E possivel ver um indicio flagrante disso na mobilidade, na flexibilidade cada vez maior do ponto de vista: a camera nao mais se contenta em registrar a cena de fora, do lugar do espectador da plateia, pode ocupar o lugar de um ou outro protagonista e fazer com 24 Paplrus Editora que se alternem os pontos de vista dos personagens e © do “Grande Imaginador”. O espectador de cinema, contudo, nao é um leitor de romance: suas referéncias visuais devem se apresentar de modo que 0 espaco e o tempo da narrativa filmica permanegam. claros, homogéneos e se encadeiem com légica. ‘As técnicas cinematograficas empregadas na narrativa classica serdo, portanto, no conjunto, subordinadas a clareza, ahomogeneidade, a linearidade, a coeréncia da narrativa, assim como, é claro, a seu impacto dramatico. Dominarao a cena (duracao de projegao-duragio diegética) e a sequéncia (conjunto de planos que apresentam una unidade narrativa forte), separadas — ou melhor, ligadas — por figuras de demarcagao nitidas (o escurecimento e a fusao muitas vezes eles proprios integrados na histéria, como demonstrou Christian Metz, para “significar” a passagem do tempo, a mudanga de lugar, a mudanga de estado fisico ou psicolégico). O encadeamento das cenas e das sequéncias se desenvolve de acordo com uma dinamica de causas ¢ efeitos clara e progressiva. A narrativa centra-se em geral num personagem principal ou num casal (0 slar system contribuiu para reforgar essa regra de roteiro), de “carater” desenhado com bastante clareza, confrontado a situagées de conflito. O desenvolvimento leva ao espectador as respostas as questdes (e, eventualmente, enigmas) colocadas pelo filme. A instauragdo ao mesmo tempo rapida e progressiva dos grandes géneros contribuiu para a homogeneizacao das narrativas cinematograficas. Cada género comporta, com efeito, caracteristicas especificas no plano dos contetidos (tipo de personagens, de intrigas, de cenarios, de situacdes) e no das formas de expresso (iluminagao, tipos de planos privilegiados, cores, musica, desempenho dos atores etc.). Mare Vernet sublinhou bem que, num dado momento de sua evolugao, um género se define tanto pelo que dele ¢ exchuido quanto pelo que dele é parte integrante — o espectador usufrui, desse modo, do prazer do reconhecimento sem correr o risco de ser perturbado por elementos de desordem estética.? 2. Mare Vernet, “Genre”, in Lecture du film, Albatros, 1975. Ensaio sobre a andlise filmica 25 Propusemos o termo “transparéncia” para designar a qualidade especifica desse tipo de filmes, em que tudo parece se desenvolver sem choques, em que os planos e as sequéncias se encadeiam aparentemente com toda a légica, em que a historia parece se contar por conta propria. O cinema classico, todavia, produziu também filmes mais complexos, mais sofisticados no plano dos dispositivos narrativos, talvez menos confortaveis para o espectador (talvez se diga, entao, que esses filmes ja eram “modernos”), Pensemos, por exemplo, nos filmes de flashback (voltas ao passado), como Cidadio Kane (1940) ou Nasce o dia (1939), dois filmes que representaram modelos para muitas produces posteriores, ou entao os filmes com pontos de vista multiplos (mais uma vez Cidadio Kane, Les girls, A condessa descalca, Rashomon), ou ainda com um narrador (narragdo) ambiguo(a) ou insélito(a) (Laura, Crepiisculo dos deuses, A letter to three wives (Quem é a infiel?) etc.). Nesses casos, a estrutura em cenas e sequéncias, 0 respeito pelas regras de montagem (muito relativo, é verdade, no caso de Cidadao Kane), a escrupulosa clareza das informagées espacotemporais compensam a complexidade da narragao. Algumas tendéncias rebeldes ao classicismo A partir de 1914, o cinema americano, poderosamente organizado, invade as telas do mundo inteiro. Um modelo estético parece se impor. Contudo, desenvolvem-se resisténcias, principalmente na Europa, embora esse modelo (denominado de MRI — Modelo de Representagaéo Institucional) seja chamado para dominar a produgaéo mundial.? O cinema soviético dos anos 1920 — Depois da revolugao de 1917, o Estado soviético interessa-se pelo cinema como meio de ensino e de propaganda. Lenin incumbe-o de uma verdadeira missdo didatica. O decreto de nacionalizacéo do cinema russo é assinado em 1919. Os cineastas engajados no movimento revolucionario evidentemente recusam o modelo hollywoodiano com suas op¢ées individualistas (o personagem principal, a estrela), seus objetivos puramente espetaculares Noél Burch, La Iucarne de l'infini, Nathan-Université, 1992. 26 Papirus Editora e comerciais, seu modo de narrativa alienante (0 espectador, arrebatado pelos aspectos pseudoldgicos e afetivos da narrativa, nao tem a possibilidade de refletir ou assumir um distanciamento critico com relacdo a viséio do mundo que lhe é apresentada). Alguns se voltam para aatualidade, para o documento, a reportagem, para explicar a realidade da Riissia. Mas essa realidade nao poderia ser restituida ao estado bruto, ser simplesmente registrada. A montagem das imagens deve contribuir para explica-la, construi-la, interpreta-la, exalta-la. Um cineasta como Dziga Vertov vai, portanto, reunir imagens filmadas por toda parte, para organiza-las em um discurso que exprime uma visao comunista do mundo soviético tal como se desenvolve (O homem da cimera, 1929). Os cineastas que se voltam para a ficgao (Pudovkin, Eisenstein) tampouco se contentarao em contar historias: véo querer sublinhar as significagdes historicas dos acontecimentos, tornar patéticos as lutas de classe e os combates, exaltar as forgas revoluciondrias em movimento. No plano dos contetidos, disso resultam histérias sem herdi individual ou personagem principal (a nao ser que seja emblematico de uma forca ou de um problema, como a Mae do filme de Pudovkin, adaptagao de Gorki, que aos poucos desperta para a consciéncia revoluciondria), historias em que forcas se confrontam (a tripulagao do encouragado Potemkin contra 0s oficiais, o povo de Odessa contra os soldados czaristas: O encouragado Potemkin, de Eisenstein; os operarios em greve e os prisioneiros contra a policia e 0 exército: A mie, de Pudovkin), histérias que na maioria das vezes assumem a forma de epopeia. Em seu conjunto, as historias sempre sao claras, mas nos detalhes os cineastas soviéticos preocupam-se menos em preservar a coeréncia ea continuidade dos encadeamentos espagotemporais do que em despertar 0 espirito e a paixao do espectador. Nessas condiges, a montagem das imagens, embora tenha uma fungao narrativa no que se refere a estrutura de conjunto do filme (ver, por exemplo, O entcouragado Potemkin, com suas partes, suas legendas explosivas), tem sobretudo duas outras fungées: e uma fungao de “tornar patético”, que tende a amplificar os acontecimentos ¢ os conflitos segundo procedimentos como Ensaio sobre a andlise filmica 27 cortes rapidos, efeitos de aceleracao, camera lenta, utilizagao, do primeiro plano e do close up, angulos de tomada acentuados (contre-plongée, por exemplo), iluminacées fortemente contrastadas ou estilizadas; * uma funcao de “argumentagao”, que tende a exprimir ideias, valores, segundo procedimentos como a montagem paraleld (que permite comparar os grevistas fuzilados a animais abatidos, a torrente de operdrios sublevados & do rio quando do derretimento do gelo — ver A greve, de Eisenstein, A mie, de Pudovkin —, ou instalar antiteses: os burguesese operérios cm A nova Babilénia, de Kozintsev e Trauberg), a comparagao visual (encadeando um plano de Kerenski a um plano de pavio em Outubro), as legendas (que ironizam, julgam, formulam slogans ou maximas), a luz, os angulos de tomada ou os primeiros planos gerais (através dos quais é possfvel ironizar um personagem ou exalta-lo: ver 0 famoso plano de detalhe do mondculo em O encouragado Potemkin, tudo o que resta do médico de bordo depois que a tripulagio se livrou dele). Com relagao ao filme classico, 0 cinema soviético dos anos 1920 nao oferece, referéncias espacotemporais estaveis que permitam construir um liniverso diegético “pleno”. Os dados sao claros, mas lacunares, abstratos Assim, no célebre episédio da escadaria de Odessa (O encoura silo Potemkin), ¢ impossivel dizer em quanto tempo tudo aquilo eee (o SEDO Parece se arrastar, os microeventos se encavalgam ou se dilatam), assim como é impossivel situar todos os protagonistas no espaco global eum com telagdo aos outros. A légica dos vinculos no é feita com rigor a partir de gestos, movimentos ou olhares, mas de acordo com um ritmo que tende a orquestrar motivos visuais e ideais. Todavia, nada permanece ambiguo, 0 sentido sempre alcanga 0 espectador, segundo linhas emocionais e conceituais.t 4 Vero estudo eritico de Barthélemy Amengual, Nathan-Université, 1992, col. “Synopsis”, 28 Papirus Editora Numa cena célebre de A linha geral de Fisenstein (1929), um tecnico acaba de fazer num kolkholz a demonstragao de uma desnatadeira diante dos camponeses desconfiados. A montagem. faz com que se allernem imagens da maquina (diversos detalhes), 0s rostos fechados clos camponeses, legendas (Embuste?). Depois, a maquina é acionada, 4 manivela gira, a montagem acelera-se: alternancia dos rostos dos camponeses, da maquina (0 leite remexido, 0 bico da desnatadeira vtc,). Planos de carretilha vém inserir-se na montagem com as legendas (Lnbuste? Dinheiro?), espécie de metaforas visuais. Amontagem acelera- se mais ainda. Um pormenor do bico da desnatadeira mostra uma gota de leite despontar, a montagem continua se acelerando, rostos hilarios dos camponeses, chuva de leite (muito abstrata, em fundo negro), legendas (Engrossou!). Nao é possivel dizer exatamente onde aquilo acontece, nem como os camponeses sao situados uns com relagao aos outros. Ve- se bem que os planos mostram elementos nao diegéticos (a carretilha, a chuva de leite). A significacéo de conjunto, porém, permanece clara, e as associagdes de imagem trouxeram a ideia. A primeira vanguarda francesa: O impressionismo — Como reagao contra o imperialismo americano, um certo numero de cineastas franceses querem, nos anos 1920, promover um cinema nacional, que consiga se distinguir das coergées do cinema dominante, ou seja, segundo eles, a submissao ao teatro e ao romance. Em outras palavras, seria preciso libertar o cinema da obrigacao de contar histérias, torna-lo uma arte que se sustentasse apenas com suas riquezas formais. E 0 “cinema puro” ou ainda a “misica dos olhos”, como escrevia Germaine Dulac. De fato, as leis do comércio e da industria néo permitem que se subtraia por muito tempo o cinema da narracdo. Esses cineastas (Louis Delluc, Germaine Dulac, Jean Epstein, Marcel L’Herbier, Abel Gance) logo compreendem esse fato. Mas nem por isso renunciam as suas pesquisas formais e inserem, como contraband, temas e variagdes visuais em ficgSes nas devidas condi¢ées: ver O dinheiro (L’Herbier, 1929), A roda (Gance, 1921- 24), A queda da casa Usher (Epstein, 1927) e muitos outros. Todos os recursos filmicos s40 convocados e explorados para compor “sinfonias visuais © ritmicas”: montagem acelerada, cameras lentas, duplas exposigbes simples Ensaio sobre a andlise filmica 29 ou multiplas, passagem ao negativo, imagens flous, jogos sobre motivos visuais, trabalho do preto e branco. A intriga as vezes arrasta-se para ceder lugar a passagens brilhantes: 0 descarrilamento do trem em A roda, que mostra variagdes soberbas a partir do motivo do circulo em movimento, a noite de espera angustiada em A queda da casa Usher, durante a gia a Tmontagem. compée um universo fantastico onde se interpenetram os movimentos interiores dos personagens e as forgas naturais e sobrenaturais que resultam na “ressurreigdo” da esposa morta. Essas pesquisas nao sao de fato arte pela arte. Inscrevem-se numa ambicao mais vasta: exprimir pelo cinema — a arte do tempo e do movimento — o “imponderavel”, revelar 0 que nao é visivel a olho nu, criar um universo de “encantamento real” (Epstein). A segunda vanguarda: Dadaismo e surrealismo — Esta procede de pesquisas plasticas efetuadas por pintores desde o inicio dos anos 1920, principalmente na Alemanha: composigées visuais centradas em Poa abstratas em movimento (Sinfonia diagonal, Eggeling, 1923) ¢ ritmos puros (série dos Ritmos, Richter, 1921-1926). Os franceses, porém, permanecem, por sua vez, figurativos, e, quando também se interessam pelo movimento (recursos da montagem, da sobreimpressao e das diversas trucagens visuais), é para tratar de assuntos concretos: objetos usuais, maquinas, corpo humano: O balé mecinico (Léger, 1924). Os dadaistas ecressentamna tudo isso um toque de irrisao, de anarquismo e de provocagao: Entreato (Clair e Picabia, 1924) apresenta imagens de impacto (uma dangarina barbuda, um carro funerdrio puxado por dromedarios) e uma montagem acelerada que se limita 4 abstrago visual. Os surrealistas exploram mais além com associagées de imagens, fantasmas erdticos e as pulsdes revolucionarias, mas s6 sao realmente representados na época por Bufiuel e Dali (Ui cfio andaluz, 1928; A era do ouro, 1930). Esses dois filmes langam contudo as bases de uma narraco que nao obedece a légica da narrativa classica, cultiva as rupturas, 0 onirismo, as imagens mentais, a confusao entre subjetividade e objetividade, as visdes provocantes a olho da mulher cortado com gilete em Um ciio andaluz). O expressionismo alemdo — O cinema expressionista alemao participa de um vasto movimento estético que engloba artes plasticas, 30. Papirus Editora leratura, artes do espetaculo, arquitetura, entre 1907 e 1926. OpGe- +» radicalmente ao realismo e 4 verossimilhanca: é um cinema de “visdes”, de “alucinacdes”, de criagdo de universo por exacerbacao das formas. A influéncia dos pintores e dos arquitetos atravessa os filmes expressionistas, revelada no recurso a cendrios irrealistas (O gabinete do doutor Caligari, Wiene, 1919) ou monumentais (Metropolis, Lang, 1926) e ‘io trabalho de composigio das imagens: oposigées fortes entre sombras » luz, estilizag&o, espaco exageradamente picturalizado ou teatralizado. A maquilagem, as roupas e o desempenho dos atores participam da instalagdo de um universo resolutamente ficticio, alucinado, inquietante, com suas cidades labirinticas, suas criaturas estranhas (sonambulo, manequim, robé, Golem, médicos criminosos, duplos etc.), suas festas populares maléficas. Todos esses movimentos — é0 destino dos movimentos estéticos — se apagaram em seu tempo por motivos diversos (ideoldgicos e politicos, econdmicos). Contudo, por um ou outro de seus aspectos, infiltraram-se no cinema classico e nao cessaram de influenciar todo o cinema ulterior. Alguns exemplos, evidentemente indicativos: a utilizacdo de primeiros planos e iluminagées “patéticas”, a Eisenstein, encontra-se em As vinhas da ira (John Ford, 1940). Os recursos da montagem, dos cortes muito rapidos foram explorados amplamente por Hitchcock (que se compare, para disso se convencer, a cena da escadaria de Odessa de O encouracado Potemkin ao ataque dos passaros a saida da escola em Os passaros: muitos cortes répidos, dilatacéio temporal, close up, detalhes — éculos quebrados - etc.). Quanto aos aspectos mais ideolégicos da montagem soviética, so encontrados em alguns cineastas dos anos 1930 (Vigo, A proposito de Nice, 1929; Renoir, A vida é nossa) e 1960 (Godard, Tempo de guerra). As pesquisas sobre o movimento das vanguardas evidentemente alimentaram o cinema underground, mas também tocaram a produgéo normal. Para dar s6 esses dois exemplos, encontraremos vestigios deles na obra de um Leos Carax (cena do engolidor de fogo em Os amantes de Pont Neuf, 1991), ou de um Wim Wenders (sinfonia visual a partir do motivo de Berlim no inicio de As asas do desejo, 1987, variagées formais sobre as imagens de video em Até 0 fim do mundo, 1991). Encontrariamos, Ensaio sobre a andlise filmica 31 porém, grande ntimero de cineastas tao impregnados de motivos visuais quanto de temas ideais: Bresson, Antonioni, Godard... Quanto ao expressionismo, marcou em profundidade o cinema alemao (Pabst, Sternberg), 0 cinema americano por meio da imigragao (ainda Sternberg, Lang) e principalmente certos géneros (0 filme noir: Welles, Hawks; 0 filme de terror), o cinema europeu dos anos 1940-1950 (filmes naturalistas “noirs” de Duvivier ou Carné, por exemplo). E claro que essas transposig6es formais sempre se efetuam num contexto diferente, E é exatamente esta a tarefa do analista: encontrar a filiago, a referéncia, a inspiragao, apreciar seu emprego, seus limites, suas novas significages, Nao faltam vestigios expressionistas em Rebecca, a mulher inesquecivel ou em O homem elefante (David Lynch, 1980), que nem por isso sao filmes expressionistas. Os cinemas da modernidade Senos referirmos a Gilles Deleuze (L ‘image-temps),° a modernidade cinematografica encontra suas origens na Europa do pés-guerra, com © neorrealismo italiano. Desastres da guerra, auséncia total de recursos financeiros, crises politica e ideoldgica: trata-se de testemunhar, de mostrar o mundo contemporaneo em sua verdade. A intriga importa menos do que a descrig&o da sociedade (subdesenvolvimento econémico, desemprego, problema nos campos, condiciio dos velhos, das mulheres, das criangas). O neorrealismo vincula-se com 0 documentario (género que nao cessou de evoluir, das primeiras tomadas dos irmaos Lumiere aos documentarios engajados de Lacombe, Carné ou Vigo, nos anos 1920, passando pelos britanicos): filmagens externas, em cendrios naturais, recusa dos efeitos visuais ou dos efeitos de montagem, imagens pouco contrastadas, recurso a atores néo profissionais (operarios, camponeses, pescadores etc.), temas sociais, intrigas frouxas, sem acées espetaculares (os personagens centrais nao so herdis, mas criangas, velhos, desempregados, gente do povo). 5. Gilles Deleuze, L’image-temps, Editions de Minuit, 1985, 32. Papirus Editora ‘Todavia, por volta do final dos anos 1950, a modernidade Opeia torna-se mais complexa sob a pressdo de diversos fatores: ‘ultugio das mentalidades (as preocupagées coletivas, sociais, cedem Jigar a problemas psicolégicos mais individualizados), evolugao das tecnicas (progresso do material leve de registro das imagens e do som: sAmera 16 mm, gravador), influéncia das outras artes (literatura, teatro), modificagdes do meio cinematografico (produtores e cineastas mais iidependentes, orgamentos menores, filmagens mais livres e flexiveis). Aparece a nogao de autor, que cede espago a obras cada vez mais pessoais (Hergman, Fellini, Truffaut). E claro que a modernidade europeia se inspira nos predecessores, nos “patrdes”, como os cineastas de entao os chamaram com respeito (Renoir, Rossellini) e foi anunciada por homens como Robert Bresson e Jacques Tati. Com relacao ao modelo classico, o filme moderno caracteriza-se: © por narrativas mais frouxas, menos ligadas organicamente, menos dramatizadas, comportando momentos de vazio, lacunas, questées nao resolvidas, finais as vezes abertos ou ambiguos; e por personagens desenhados com menor nitidez, muitas vezes em crise (crise de casais, crise psicolégica), pouco dados a agao; © por procedimentos visuais ou sonoros que confundem as fronteiras entre subjetividade (do personagem, do autor) e objetividade (do que é mostrado): sonhos, alucinagées, fantasias, lembrangas mostradas sem transicéo com imagens do “presente objetivo” (ver Fellini, Bergman, Carlos Saura, todos precedidos por Bufiuel); mistura de estilo documentario ou de reportagem com uma filmagem de ficc&o mais classica (Rohmer, Godard); manipulagées temporais que produzem no espectador efeitos de confusao entre presente, passado e tempo imaginario (Resnais); © por uma forte presenca do autor, de suas marcas estilisticas, de sua visdo sobre os personagens e sobre a histéria que conta: Ensaio sobre a andlise filmica 33 comentario narrativo (as vozes off em Truffaut), movimentos do aparelho, rupturas estilisticas bruscas (Godard), primeiros planos insistentes, longos planos fixos (Bergman, Eustache); e por uma certa propensao a reflexividade, isto é, a falar de si mesmo (do cinema, dos filmes, da representagao e das artes, das relag6es entre a imagem, o imaginario e o real, da criag4o): ver Oito e meio (Fellini), A noite americana (Truffaut), O estado das coisas (Wenders), O desprezo (Godard), Profissio, reporter (Antonioni), Viagem a Citera (Angelopoulos), Fanny e Alexandre (Bergman) e muitos outros. Dai o gosto pronunciado pelas citag6es diretas (filme no filme), ou indiretas (sequéncias inspiradas em outras sequéncias), e, em alguns cineastas, pelas pesquisas formais que exaltam o cinema por si mesmo (Antonioni, Godard). Vé-se que, por certos aspectos, a modernidade dos anos 1960-1970 extrai seus temas também da histéria do cinema: pontos comuns com os impressionistas dos anos 1920, homenagens ao cinema classico de Hollywood etc. Influencia, porém, por sua vez, a produgao corrente e os cineastas americanos (Altman, Kubrick, Coppola, Scorcese). Esse apanhado rapido e lacunar demais (seria possivel escrever uma histéria da profundidade de campo ou das imagens mentais no cinema) tem como unico objetivo sensibilizar o analista para a necessidade de situar o filme na evolugao das formas. Os cineastas herdam, observam, impregnam-se, citam, parodiam, plagiam, desviam, integram as obras que precedem as suas. Alguns elementos filmicos que se acreditava ultrapassados, desaparecidos, foram retomados (por exemplo, a utilizagao dos efeitos de mascara, de iris, frequentes no cinema mudo, voltam @ moda nos anos 1960 através dos cineastas da Nouvelle Vague francesa), mas em contextos diferentes, as formas ¢ as significagdes sendo, com isso, automaticamente renovadas. Em outras palavras, as formas cinematograficas constituem-se num fundo cultural no qual os cineastas se inspiram, e cabe ao analista explicar os movimentos que dele decorrem. 34 Papirus Editora Quadro 1 OS COMPONENTES DO PLANO Datinigéo Porgto do filme impressionada pela cAmera entre 0 inicio e o final de uma tomada; hum filme acabado, o plano é limitado pelas colagens que o ligam ao plano anterior € ‘#0 seguinte. Componentes do plano |. Aduragao (do ‘instantaneo fotografico” ao plano que esgota a capacidade total de carga do filme na camera). 2. Angulo de filmagem (tornada frontal/tomada lateral, plongée/contre-plongée etc.).. 4, Fixo ou em movimento (c&mera fixa/cémera em movimento: travelling, panorémica, movimento com a grua, camera na mo etc; objetiva fixa/zoom: movimento dptico). O plano-sequéncla, fixo ou em movimento, realiza a conjungao de um Unico piano de uma unidade narrativa (de lugar ou de agao). 4, Escala (lugar da camera com relagao ao objeto filmado): plano geral ou de grande conjunto; plano de conjunto, plano de meio conjunto; plano médio (homem em pé); plano americano (acima do joelho); plano proximo (cintura, busto); primeirissimo plano (rosto); plano de detalhe (insert, pormenor). Enquadramento: inclui o lugar da cdmera, a objetiva escolhida, 0 angulo de tomadas, a organizagao do espago e dos objetos filmados no campo. 6. Profundidade de campo: de acordo com a objetiva escolhida, a iluminagao, a disposigdo dos objetos no campo, o lugar da camera, a parte de campo nitida, visivel, ser mais ou menos importante. 7. Situagdo do plano na montagem, no conjunto do filme: Onde? Em que momento? Entre 0 qué e 0 qué? etc. 8. Definigdo da imagem: cor/preto e branco, "grao" da fotografia, iluminagéo, composigéo plastica etc. Sobre o plano, “Voici”, de Pascal Bonitzer, in Cahiers du cinéma, n. 273-275, 1977. Quadro 2 SEQUENCIAS E PERFIS SEQUENCIAIS 1, Sequéncia Definig&o: conjunto de planos que constituem uma unidade narrativa definida de acordo com a unidade de lugar ou de ago. O plano-sequéncia corresponde a tealizagdo de uma sequéncia num Gnico plano. Ensaio sobre a andlise filmica 35 Alguns grandes tipos de sequéncias: — Parametros filmicos (segundo Christian Metz)§ © a cena ou sequéncia em tempo real: a duragao da projegao iguala a duragao ficcional; © a sequéncia “comum’”: comporta elipses temporais mais ou menos importantes; ‘sucess&o cronolégica; © a sequéncia alternada: mostra alternadamente duas (ou mais do que duas) agdes simulténeas; © a sequéncia “em paralelo”: mosira alternadamente duas (ou mais do que duas) ordens de coisas (acées, objetos, paisagens, atividades etc.), sem elo cronolégico marcado, para estabelecer, por exemplo, uma comparagao; © a sequéncia “por episédios”: uma evolugo que cobre um periodo de tempo importante é mostrada em alguns planos caracteristioos separados por elipses; a sequéncia “em colchetes": montagem de muitos planos que mostram uma mesma ordem de acontecimento (a guerra, por exemplo). — Parametros de roteiro: permitem distinguir as sequéncias: ¢ em externa/em interna; © de dia/de noite; * visuais/dialogadas; © de acdo, de movimento, de tensdo/inagdo, imobilidade, distensao; © intimas/coletivas, publicas; © com um personagem/com dois personagenside grupo; etc. 2. Perfis sequenciais Dependem das seguintes varidvei ¢ _niimero e duragdo das sequéncias = permitem opor filmes (ou partes de filme) muito “decupadas" a outras pouco decupadas (comparar Hitchcock e Angelopoulos, por exemplo); © encadeamento das sequéncias: rapida/lenta; corte seco/corte demarcado (escurecimentos, encadeamento musical ou sonoro etc.); cronologicamente marcada/acronoldgica; logicamente motivada/ndo claramente motivada; continua! descontinua; ritmo intersequencial e intrassequencial: rdpido/lento; seco/suave, continuo! descontinuo etc, Metz, Essais sur la signification au cinéma, tomo 1, Klincksieck, 1968. 36 Papirus Editora sas ferramentas narratolégicas As abordagens narratoldgicas do filme hoje presentes no mercado pxtremamente numerosas e variadas: algumas, tedricas, tém como ito edificar uma narratologia da expresséo; colocam em jogo 0 junto de narrativas filmicas diante do conjunto das narrativas nao micas (teatrais e romanescas, por exemplo). Outras, dentro do conjunto s narrativas filmicas através da histéria do cinema visam estabelecer participam do estabelecimento de uma tipologia de narrativas lpfinindo grandes formas narrativas. Finalmente, a adotada pelo analista- istratélogo visa explicar o funcionamento narrativo proprio de um filme particular, ou de uma parte de um filme particular. E claro que se devem considerar uma infinidade de condutas hibridas e todas as espécies de interagées entre essas trés condutas. Vor exemplo, a de André Gaudreault diz respeito ao mesmo tempo 4 primeira, quando ele se empenha em defender a existéncia de uma narratividade “intrinseca” ao filme, 4 segunda, quando ele se detém em particular nos filmes ditos “dos primeiros tempos”, e a terceira, quando se detém em particular em L’arroseur arrosé?” No que se refere a terceira conduta, que nos ocupa mais particularmente aqui, é importante ir mais além ainda na precisdo. De fato, intitular seu estudo “Cyrano de Bergerac: Analise narratolégica” nao basta para situar seu ponto de vista na paisagem da narratologia filmica. Ainda ai, por tras de um titulo assim, uma multidao de promessas... Narrativa, narracao, diegese Em Esthétique du film,’ Marc Vernet retoma a tripartigao operacional de Gérard Genette: narrativa/narragao/histéria-diegese para aplicd-la ao filme.’ ‘André Gaudreault, “Du Litiéraire au filmique”. Syst?me du récit, Paris, Méridiens- Klincksieck, 1988. 8. Aumont, A. Bergala, M. Marie, M. Vernet, Esthétique du film, Nathan-Université, 1983. 9. Gérard Genette, “Discours du récit” (Introduction), Figures III, Editions du Seuil, Paris, col. “Poétique”, 1972. Ensaio sobre a anilise filmica 37 Diz-nos que a histéria é “o significado, 0 contetido narrativo”. Cyrano de Bergerac, por exemplo, contaria a histéria de um poeta e homem de armas feio e talentoso que enfrenta uma busca dupla: 0 amor de uma mulher preciosa (através do belo Christian de Neuvillette) e sua nao menos “preciosa” liberdade. Otermo “diegese”, proximo, mas nao sindnimo de histéria (pois de um alcance mais amplo), designa a histéria e seus circuitos, a historia eo universo ficticio que pressup6e (ou “pds-supGe”), em todo caso, que lhe é associado (a Paris de Richelieu faz parte da diegese de Cyrano de Bergerac). Esse termo apresenta a grande vantagem de oferecer 0 adjetivo “diegético” (quando o adjetivo “histérico” se revela inutilizdvel) e ao mesmo tempo uma série de expressdes bem titeis, como “universo ou mundo diegético”, “tempo, duragao diegéticas”, “espaco diegético”, “som, ruido, musica diegéticas (ou extradiegéticas)”...° Ahistoria e a diegese dizem respeito, portanto, a parte da narrativa nao especificamente filmica. Sao 0 que a sinopse, 0 roteiro e o filme tém em comum: um contetido, independente do meio que dele se encarrega. No filme, a contrapartida da diegese é, com certeza, tudo o que se refere a expressao, 0 que é proprio do meio: um conjunto de imagens especificas, de palavras (faladas ou escritas), de ruidos, de musica — a materialidade do filme. O lugar de encontro e da associagao sutil contetido-expressio é evidentemente a narrativa, definida por Marc Vernet como “o enunciado em sua materialidade, o texto narrativo que se encarrega da histéria a ser contada”. fa narrativa que permite que a historia tome forma, pois a histéria enquanto tal nao existe. E uma espécie de magma amorfo. Conta-la com palavras, oralmente ou por escrito, ja ¢ colocd-la em narrativa. Uma sinopse é uma narrativa, um roteiro também, assim como um simples resumo. A histéria de que uma narrativa nao se encarrega permanece em estado virtual. Quando digo que “Cyrano é a histéria de um poeta e homem de armas...”, na realidade ja estou operando uma 10. Ver Esthétique du film, pp. 80-82, Lectures du film, pp. 74-77. 38. Papirus Ecitora slocagao em narrativa inevitavel da histéria. Essa narrativa é diferente || proposta pela pega de Edmond Rostand, da proposta pelo roteiro do {ilme, da proposta pelo proprio filme, da proposta por um espectador X djue viu o filme e que o esta me contando. Da mesma maneira, s6 quando se articulam a um contetido os ‘omponentes expressivos do filme adquirem uma razao de existir. Um Hravelling por si s6 nada quer dizer. Adquire um sentido se acompanha determinado personagem, adquire outro se varre determinada paisagem... O contetido e a expressdo formam um todo. Apenas sua combinacio, sua associagio intima é capaz de gerar a significagao. Nao « possivel pretender trabalhar sobre o sentido de um filme sem convocar ie imediato e em sincronia a histdria e a maneira. Queneau nao nos convenceu em definitivo que contar de maneira diferente é mudar o sentido?" Finalmente, a narracao corresponde, ainda segundo Marc Vernet, ao “ato narrativo produtor e, por extensdo, ao conjunto da situacao real ou ficticia na qual ocorre. Diz respeito as relagdes que existem entre o enunciado e a enunciagao tal como se mostram 4 leitura na narrativa: portanto, s6 sao analisaveis em fungao de vestigios deixados no texto narrativo”, ou melhor, segundo Christian Metz, em funcdo de “configuragdes enunciativas” (pois a enunciagao nem “sempre émarcada, mas é sempre agente”). Metz e Vernet o dizem com razao: é dentro do texto que se encontram os indicios da enunciagao desse texto. Evitemos procurar fora os indicios da enunciagao desse texto. Evitemos procurar fora do texto algum enunciador ou narrador, responsavel pela producao do texto. Deixemos principalmente de lado a nogao de autor que nao se refere diretamente & narratologia. Posso dizer: Alfred Hitchcock dirigiu Rebecca (para ser preciso, seria necessdrio citar ao mesmo tempo 0 conjunto de seus colaboradores), mas certamente nao é Hitchcock que “enuncia” a narrativa quando 0 vejo no cinema, é o proprio filme que “se enuncia”. I. Ver Rayniond Queneau, Exercices de style, Folio-Gallimard, 1947. 12. Christian Metz, L’énonciation impersonelle ou le site du film, Méridiens-Klincksieck, 1991, Ensaio sobre a analise filmica 39 A enunciacao Nao seria apenas no titulo de seu livro — L’enunciation impersonelle ou le site du film — que Christian Metz. afirma explicitamente a natureza nao antropomérfica da enunciacao filmica. Nas primeiras paginas da obra, ele mostra como, conscientemente ou nao, tem-se uma tendéncia quase natural a colocar no que precede o filme e no que lhe sucede instancias as quais se atribui mais ou menos explicitamente uma natureza humana; essas instancias remetem, de uma maneira mais ou menos confessa, ao autor e ao espectador. Isso poderia explicar que se tenha tentado transpor para 0 dominio filmico o dispositivo enunciativo do intercambio verbal, fundado no aparelho déitico (chama-se déitico qualquer marca, qualquer indicador que remete tanto ao locutor quanto A situacdo de enunciagao. Os mais comuns séo os pronomes pessoais, os pronomes e adjetivos possessivos e demonstrativos, os advérbios de tempo e de lugar e os tempos dos verbos). Numa frase do tipo: “Eu estou lhe devolvendo o dinheiro que tomei emprestado ontem”, o presente de “estou devolvendo” remete ao presente da enunciacao, 0 passado de “tomei emprestado” e 0 advérbio de tempo “ontem” remetem a um passado relative ao presente da enunciagao, o pronome “eu” remete ao locutor e o pronome “The”, ao interlocutor. A partir desse modelo, tentou-se denominar “eu” a fonte da enunciag¢ao filmica (ou literdria) e “vocé”, seu alvo, considerando desse modo o filme como o lugar de uma conversa indireta (ou como uma metdfora de conversa) entre a fonte e o alvo da enunciacao. Ora, diz-nos Christian Metz, nado é porque os didlogos filmicos (ou as partes dialogadas de um romance) empregam a bateria déitica que devemos nos autorizar a assimilar a enunciacao filmica (ou literaria) a enunciagao da conversa. Num intercambio verbal oral, “os déiticos fornecem informagGes sobre a enunciagao através da propria enunciagao”, enquanto os déiticos dos didlogos de um filme fornecem informagdes nao sobre a enunciagao do filme, mas sobre uma enunciagao interna, ela propria enunciada pelo filme (quando um personagem de filme diz “Eu sempre odiei essa mulher”, 0 “eu” nao remete a fonte de enunciagéo do filme, é claro). Por outro lado, ao contrario da conversa, o filme e o romance 40 Papirus Editora sho “discursos preparados de antemao e imutaveis”. Imaginemos que a frase “Estou devolvendo a vocé o dinheiro...”, emitida pelo locutor X, o interlocutor Y responda de uma maneira muito original “Eu lhe agradego”. ssa resposta curta, 0 “ew” nao remete mais a X como na primeira frase, masa Y, eo “Ihe” nao mais a Y, mas a X. Na conversa, 0 “eu” e 0 “voce” sio intercambiaveis a qualquer momento. O discurso nao esta congelado, Y pode intervir no discurso de X e X no de Y. Essa “reversibilidade” do “ew” e do “vock” faz parte dos fundamentos da enunciagao déitica no intercambio oral. Nada disso ocorre na enunciagao filmica ou literaria, nenhum didlogo verdadeiro possivel entre a fonte e o alvo, nenhuma intervencdo possivel do “vocé”, nenhuma intercambialidade dos papéis. Finalmente, Christian Metz aponta a diferenca entre romance e filme: o romance é verbal por inteiro, a matéria do filme é amplamente extralinguistica. Alguns pesquisadores chegam a recusar a nocao de enunciacao referindo-se ao filme, sob o pretexto de que esta so pode ser aplicada & palavra e a escrita e nao a produgao de imagens. Sem chegar a privar o filme de enunciagio, sera necessario em todo caso “conceber um aparelho enunciativo que nao seja essencialmente déitico (e portanto antropomorfo), pessoal (como os pronomes denominados dessa maneira) e que nao imite tao de perto este ou aquele dispositivo lingitistico”. Para isso, nosso autor propGe em primeiro lugar substituir os termos “enunciador” e “enunciatdrio”, cujo sufixo duvidoso soa demais 4 maneira antropomérfica, por “fonte ou foco da enunciagao” e “alvo ou designio da enunciagao”, mais neutros. Em seguida, mostra que, se a enunciacio nao é principalmente detectavel pelos déiticos, ela 0 é “por construcées reflexivas”. E quando “o filme nos fala dele mesmo, ou do cinema, ou da posigao do espectador”, que desvenda os segredos de seu dispositivo enunciativo. O enunciado se “desdobra”, “curva-se sobre si mesmo” e fala da situacdo de sua produgao. Metz dé o exemplo dos personagens de um filme que, olhando por uma janela, lembram a mim, espectador, que estou no cinema, numa posi¢ao prdxima, a tela sendo minha “janela”.” Isso constitui uma configuragao enunciativa. O filme 13. Op. cit, p. 21. Ensaio sobre a anilise filmica 41 no filme (0 filme mostra uma projecdo de filme) é igualmente uma figura de reflexividade muito explicita... Desse modo, Metz analisa em seu livro as grandes configuragdes enunciativas. A questéo da produgao da narrativa deu lugar a uma profusao terminoldgica que merece ser um pouco reinserida em seu contexto. O que € possivel afirmar de imediato é a presenga mais ou menos marcada em cada filme narrativo de um foco, de uma fonte, uma instancia de enunciagao (Christian Metz), parente préximo da instancia narradora, ou narrador fundamental, narrador de primeira ordem, meganarrador (André Gaudreault). Os dois autores atribuem a mesma origem a seus “monstros”: 0 “Grande Imaginador”, o “Mestre de ceriménias” de Albert Laffay.'° O parentesco entre enunciagao e narragao é, portanto, evidente. ‘Tomando 0 caminho oposto de um certo ntimero de pesquisadores, Christian Metz chega a assimilar as duas nogdes no caso do filme narrativo, “nao mais dispondo entao de critério tedrico para distingui- los”: “Quando um filme é narrativo, tudo nele se torna narrativo, mesmo © grado da pelicula ou o timbre das vozes.”"* $6 nos filmes nao narrativos € que se sente a diferenga: neles, a narracdo est ausente, mas nao a enunciacao. “Enunciagao” é um termo mais geral do que “narracao”, pois aplica-se a qualquer tipo de enunciado. Ao contrario, a narragao sé interessa aos textos narrativos nos quais se confunde com a enunciagao. Onarratélogo adotara, de preferéncia, os termos de narracio, instancia de narracio, narrador, mais ctimplices e familiares aos olhos dele, mas permanecera aberto e “convivente” com relagdo a qualquer propésito - considerado em termos de enunciagao e derivados. Narrador(es) e instancia narradora Essa instancia narradora fundamental pode delegar seus poderes aum oua varios narradores que se encarregam da totalidade ou de uma parte da narrativa, Esse narrador delegado pode assumir varias formas: 14. André Gaudreault, op. cit. 15, Albert Laffay, Logique du cinéma, Paris, Masson, 1964. 16. Christian Metz, op. cit,, p. 187. 42 Papirus Editora |, Pode ser extradiegético: é “o comentador externo” do qual Christian Metz fala. Aparece, entao, na forma de uma voz identificdvel ou nao” (ex.: a voz off que os créditos de O prazer apresentam como a de Maupassant). Pode situar-se & beira da diegese. Sem intervir diretamente no desenvolvimento da histéria, esse narrador pode pertencer ao entorno diegético. Christian Metz dé o exemplo de Soberba, em que a-voz do comentario pode ser considerada a deumvizinho, a de um habitante da cidade. Esse narrador delegado éum observador fora da agdo, mas supostamente nao esta fora do ieee ot as universo diegético. Metz batizou essa voz de peridiegética”. 3, Finalmente, onarrador fundamental pode delegar seus poderes a um ow a varios personagens: e Em Nasce o dia, trés flashback longos introduzidos por fusdes apoiadas por uma musica caracteristica: Frangois rememora suas proprias recordagées e delas se encerteea enquanto narrador. Observemos que o cartaz escrito que precede os créditos (“Um homem matou... Encerrado, sitiado em um quarto, evocn as circunstincias que o tornaram um assassino”’) ja oe Francois de imediato como narrador delegado: 0 nae evocg éainda mais forte do que um “ele se lembra, pois, se é possivel recordar para si, evoca-se sua histdria para alguém. Nao ha voz de acompanhamento (exceto 0 “E contudo, ainda ontem, lembra-le”, que anuncia 0 primeiro flashback) e, no entanto, a cada vez. uma desembreagem (operagéo pela qual se passa da primeira narrativa 4 segunda narrativa, aqui, a ae Frangois) que, gragas a associacao travellin; grmiisica, atribui sem ambiguidade possivel a narrativa a Francois. e Outro caso: aquele em que 0 personagem narrador é dotado de uma voz encarregada de acompanhar a historia 17. Ibid., ver p. 53. 18. Ibid, ver p. 55. Ensaio sobre a analise filmica 43 narrada. E a “voz-eu” de Michel Chion’ retomada por Christian Metz, qualificada pelo ultimo de “justadiegética “O personagem é€ diegético, mas a voz, como voz, nao é completamente, pois nao se mostra 0 narrador no ato de contar. [...] Essa voz [...] permite que um personagem da diegese dela saia ao mesmo tempo que nela permanece”.” Essas subnarrativas de personagens tém um cardter subjetivo. As primeiras mostram e contam aquilo no que o personagem esta pensando. As segundas também, tornando o personagem mais “ativo” no ato narrativo por intermédio dessa voz que, ainda segundo Christian Metz, possui uma “funcao de diregao (indireta)” ao espectador2! Em ambos os casos, trata-se de uma focalizagao mental. Existe outra forma de focalizagao mental, a voz interior: ouve-se © que 0 personagem pensa, mas ou se vé o personagem mudo, ou nao se percebem as palavras que saem de sua boca. Os pensamentos do personagem s6 intervém na trilha sonora e néo na imagem. Assim, em A noite americana, vemos num determinado momento Ferrand (Frangois Truffaut) diante do produtor que lhe confirma a impossibilidade de obter um aumento do orcamento. No momento em que o produtor se afasta, ouvem-se os pensamentos inquietos de Ferrand, gragas 4 voz interior. Existe de fato a ciséo imagem/trilha sonora com relacao ao efeito de subjetividade. A focalizagaéo mental, Christian Metz opée: e a focalizagao visual; © a focalizacao auditiva.” (Ver a esse respeito o quadro 4, que se refere ao ponto de vista e ao ponto de escuta.) 19. Michel Chion, La voix au cinéma, Editions de I'Etoile (Cahi iné 2 ec le (Cahiers du cinéma), 1982. 21. Wid., ver p. 146. 22. Ibid., ver p. 115. 44 Papirus Editora Concluindo, algumas palavras sobre a condigao do narrador delegado através de todos os casos evocados de focalizagao. Tanto nao sentimos qualquer dificuldade de denominar narrador delegado o comentador exterior ou o personagem que se encarrega, em focalizacao mental, de uma sequéncia, quanto nos resolvemos com maior dificuldade a fazé-lo quando se trata de atribuir a um personagem uma visao ou lum som subjetivo. Nem por isso deixa de ser verdade que, em tais configuragées, a instancia narradora fundamental delega seus poderes a uma instancia narradora de segunda ordem. A duracao dessa segunda “narrativa” é muitas vezes tao curta que nao se tem tempo de perceber e sentir “o efeito-narrativa’”. Ademais, as operagdes de desembreagem (passagem da narrativa de primeira ordem @ narrativa de segunda ordem) e de embreagem (retorno a primeira natrativa) nado ocorrem. Por que nao ocorrem? Simplesmente porque se permanece no mesmo espago-tempo, nao se muda de “estrato” narrativo. Por outro lado ainda, © narrador delegado nao se encarrega necessariamente da totalidade da narrativa, mas as vezes apenas de uma parte dela. O problema nao se coloca quando ponto de vista e ponto de escuta coincidem. Nao nos esquecamos de que o ponto de escuta é geralmente muito menos precisamente localizavel do que o ponto de vista, exceto nos casos particulares como as conversas telefénicas. Desse modo, wm ponto de vista subjetivo raramente 6 acompanhado de um ponto de escuta “contraditorio”: quando vejo 0 que um personagem vé, em geral ouco 0 que ele ouve (que 6 também o que os outros personagens eventuais ouvem). Em compensagao, quando ougo artificialmente 0 que um personagem ao telefone, por exemplo, ouve (ponto de escuta marcado), em geral vejo algo diferente do que o personagem vé. Na maioria das vezes, vejo-o ouvindo. Ei raro o ponto de vista se ligar ao ponto de escuta, enquanto 0 inverso é natural. No caso do ponto de escuta, 0 personagem que ouve nao se encarrega do visual, mas apenas do auditivo-sonoro. S6 pode ser considerado o narrador parcial, o conarrador. Compartilha 0 ato narrativo com a inst4ncia narradora fundamental. O personagem-narrador: 1. Ele sabe e faz com que saibamos (focalizagao mental): Ensaio sobre a andlise filmica 45 > narrador (Frangois em Nasce o dia, que relata sua historia). ~ necessidade das operagGes de desembreagemc embreagem. 2. Ele ouve e faz com que oucamos (focalizagéo auditiva): ~ narrador-som (ex.: 0 espectador ouve o que um personagem ao telefone ouve). 3. Ele vé e faz com que vejamos (focalizacio visual): > Narrador-imagem (longo travelling para a frente, subjetivo no prologo de Rebecca: nao se sabe 0 que 0 personagem ouve, pois a trilha sonora é monopolizada pela voz off). 4, Ele vé e ouve e faz com que vejamos e ougamos (focalizagao audiovisual): — narrador imagem-som. Nos casos 2, 3, 4: auséncia de embreagem e de desembreagem. O efeito de subjetividade é obtido gracas a sujeigéo do dispositivo (camera, tomada de som). Quadro 3 PARA A DESCRIGAO E ANALISE DAS RELACOES ENTRE SONS E IMAGENS ‘Trés materiais da expressao sonora no cinema: © aspalavras; © osruidos; © as misicas, Trés tipos de relagdes entre 0 som ¢ a imagem (de acordo com Michel Chion, Le son au cinéma, Editions de lEtoile, 1985): © som in:a fonte do som (palavra, ruido ou musica) é vistvel na tela; som sincrénico; e som fora de campo: a fonte do som nao é visivel na imagem, mas pode ser situada imaginariamente no espaco-tempo da ficgdo mostrada; som diegético (diegese: designa o universo da ficcdo, o “mundo” mostrado e sugerido pelo filme); ¢ som off emana de uma fonte invisivel situada num outro espago-tempo que No representado na tela; som extradiegético ou heterodiegético. 46 Papirus Ecitora fonte nao visualizada fora de campo fonte visualizada As linhas &-1/0-2/0-3 representam as fronteiras entre as zonas, fronteiras que podem ser ultrapassadas: um som “fora de campo” pode se tornar "in" é reciprocamente, um som “off pode se revelar “fora de campo", tornar-se “in’ etc. 3. Oregistro de sons: e tomada de som direta no momento da filmagem; © _pés-sincronizagao em estudio; © possibilidade de “mixagem" dos sons, em estlidio, combinando ou nao as duas formulas ¢ realizando, ademais, combinagGes variavels de sons @ imagens: sincronismo (som sincronizado a imagem); nao sincronismo ou assincronismo (nao correspondéncia, total ou parcial, entre sons e imagens); decalagens e encavalamentos (atrasos ou antecipagées de uns em relacao aos outros); contraponto etc. 4. Aescrita e0 registro dos didlogos: e nao escritos, improvisados ou semi-improvisados e registrados em som direto; © escritos, decorados, registrados em som direto; © — escritos, pés-sincronizados; e dublados. Ensaio sobre a andlise filmica 47 Quadro 4 PONTO DE VISTAE PONTO DE ESCUTA 1. No cinema, a expressao ponto de vista pode ser compreendida de trés manelras: © Ponto de vista no sentido estritamente visual: De onde se vé aquilo que se vé? De onde é tomada a imagem? Onde esta situada a camera? © Ponto de vista no sentido narrativo: Quem conta a historia? Do ponto de vista de quem a hist6rla é contada? Esse ponto de vista 6 detectavel ou nao? As duas ordens de pergunias se combinam quando nos perguntamos: Quem vé? O ponto de vista (visual) é o de um personagem (imagem as vezes chamada de “subjetiva’) ou de um narrador exterior a histéria? Aimagem 6 atribuivel a um personagem ou ao filme? Ponto de vista no sentido ideoldgico: Qual 6 0 ponto de vista (a opiniao, o “olhar’) do filme (do autor) sobre os personagens, a historia contada? Como se manifesta? 2. Oponto de escuta coloca um pouco a mesma ordem de problemas, transpostos para a audigao: e De onde se ouve aquilo que se ouve? O ponto de escuta 6 coerente como ponto de vista (visual)? Existe dissociagao dos dois pontos? © Quem ouve? Quem escuta? O espectador e o(s) personagem(ns) ouvem a mesma coisa? Distinguir os sons “objetivos” e os sons “subjetivos”, Detectar as dissociagées entre pontos de vista e pontos de escuta (por exemplo, entre ponto de vista exterior, objetivo, e ponto de escuta interior, subjetivo). Ver: Jacques Aumont, “Le point de vue”, in Communications n. 38, Seuil, 1983. Michel Chion, L’audiovision, Nathan-Université, 1991. Analisar/interpretar Ja assinalamos e outros o disseram antes de nés:? descrever um filme, contd-lo, ja é interpreta-lo, pois é, de uma certa maneira, reconstrui-lo (¢ até desconstrui-lo?). Umberto Eco, porém, lembra numa obra recente que talvez seja util estabelecer limites 4 interpretagéo,* e vamos inspirar-nos em suas reflexGes para, em primeiro lugar, indicar um contexto para essa problematica. 23. Jacques Aumont, Michel Marie, L‘analyse des films, Nathan-Université, 1988. 24. Umberto Eco, Les limites de l’interprétation, Grasset, 1990-1992 (para a traducdo). 48 Papirus Editora Os limites da interpretagao Vamos lembrar trés distingGes propostas por Eco, que nos parecem titeis para a meditagao candidatos & andlise de filmes. Interpretacio seménticalinterpretacio critica — Esses dois tipos de atividade distinguem o leitor do analista (ver nossa Introdugao). A interpretacio seméntica remete, com efeito, aos processos pelos quais 0 leitor da sentido ao que lé ou ao que vé e ouve quando se trata de um filme. Ainterpretagao critica j4 remete (segundo Eco) a atitude do analista que estuda por que e como, no plano de sua organizagao estrutural, por exemple, 0 texto (literario ou filmico) produz sentido (ou interpretagdes semAnticas). Em outras palavras, a interpretagao critica (0 termo criticar nao comporta aqui conotacao avaliativa, nada tem a ver, ou pouco tema ver, com a critica) interessa-se pelo sentido e pela produgao do sentido,* tenta estabelecer conexdes entre 0 que se exprime e o “como isso se exprime”, conex6es sempre conjeturais, hipdteses que exigem todo o tempo serem averiguadas pela volta ao texto. Interpretar/utilizar — O texto e 0 filme podem ser de fato utilizados pelo analista, em vez de serem interpretados. Compreendamos por isso que posso usar um filme para escrever a biografia de um ator ou de um diretor, ou para esbogar 0 quadro de uma sociedade, ou ainda para descrever os contornos de um movimento estético (ver o capitulo 1, paragrafo 1), Nesse caso, tiro informacées parciais, isoladas, do filme para relaciond-las com informagoes extratextuais (biograficas, sociolégicas ou histéricas, estéticas) a fim de construir minha histéria, minha descrigao, minha tese. Essa utilizacdo nao é necessariamente incorreta (se repousar numa anélise real do texto ou do filme e néo em um levantamento arbitrario de elementos destinados a averiguar uma hipdtese), mas nao explica (alias, nem é seu objetivo) 0 conjunto do texto. Em outras palavras, autilizagao do texto procede mais do que 0 que leitor-analista quer dizer do que o texto diz. E esse tiltimo ponto nos conduz evidentemente a questéo crucial: De onde vem o sentido produzido na anilise e por ela? 25. Ver Roger Odin, Cinéma et production du sens, Armand Colin. Ensaio sobre a andlise filmica 49 ‘Textolautorileitor — A histéria da critica esta cheia de polémicas suscitadas por essa questao. De maneira muito esquemiatica, as trés posigdes extremas seguintes podem ser distinguidas: ¢ o sentido vem do autor, de seu projeto, de suas intengdes: analisar um texto 6, portanto, reconstituir 0 que o autor queria exprimir; e osentido vem do texto: este apresenta uma coeréncia interna, nao necessariamente conforme as intengdes explicitas de seu autor. E preciso, portanto, destacar essa coeréncia, independentemente de qualquer a priori que venha de fora do texto; © o sentido vem do leitor, do analista: é ele quem descobre no texto significagdes que se referem a seus préprios sistemas de compreensao, de valores e de afetos. Hoje, todos concordam em postular que um texto autoriza uma pluralidade de interpretagées. Mas é decerto importante saber se a diversidade dessas interpretagdes é desejada, prevista pelo autor (que teria concebido deliberadamente uma obra “aberta’, ambigua ou simbélica), produzida por um texto cujo funcionamento interno se abre para diversas abordagens (sem que 0 autor o tenha elaborado conscientemente como tal), ou gerada pela atividade interpretativa do leitor que nelas projeta suas tramas, suas obsessées e seus desejos sobre qualquer objeto de andlise. E duvidoso que os sentidos destacados pela andlise de um filme tenham origens mistas a maior parte das vezes. Umberto Eco defende, no entanto, 0 recurso ao “sentido literal”, isto é, ao que é efetivamente exprimido no texto, a “intencéo da obra”, em suma, como meio de fundamentar a liberdade interpretativa em averiguacées e validagGes tao concretas quanto possivel. A intengao do autor e a do leitor constituem 26. Op. cit,, p.33. 80 Papirus Editora conjeturas, propostas quanto ao que a obra diz: falta examinar em que medida a obra, em sua propria coeréncia e por ela, aprova, desaprova essas conjeturas, ou indica outras. Prolongaremos essas reflexdes a propésito de dois eixos de interpretagao: 0 eixo sécio-histdrico e o eixo simbélico. Anilise e interpretacao sécio-histérica Um filme é um produto cultural inscrito em um determinado contexto s6cio-histdrico. Embora o cinema usufrua de relativa autonomia como arte (com relagao a outros produtos culturais como a televisdo ou a imprensa), os filmes nao poderiam ser isolados dos outros setores de atividade da sociedade que os produz (quer se trate da economia, quer da politica, das ciéncias e das técnicas, quer, é claro, das outras artes). Para compreender plenamente a produgao cinematografica de um determinado periodo, em um determinado pais, € preciso se tornar economista, historiador (das instituigdes, das técnicas, das artes etc.), socidlogo, e ndo pretendo ser nada disso. Voltemos, portanto, ao filme. No sentido em que Umberto Eco 0 entende, é possivel utilizar o filme com o intuito de analisar uma sociedade. Em outras ocasides, Marc Ferro” indicou os limites dessa utilizacdo. Nosso propésito seré mais o de interrogar o filme, uma vez que oferece um conjunto de representagOes que remetem direta ou indiretamente a sociedade real em que se inscreve. A hipdtese diretriz de uma interpretacio sécio-histérica é a de que um filme sempre “fala” do presente (ou sempre “diz” algo do presente, do aqui e do agora de seu contexto de producao). O fato de ser um filme histérico ou de ficgao cientifica nada muda no caso. Pode-se observar, por exemplo, que As ligacées perigosas de Laclos foram objeto de uma adaptacao francesa em 1960 (Roger Vailland/Vadim), inicio da “liberagao sexual”, e de duas adaptagoes no final dos anos 1980 (Stephen Frears, 1988; Milos Forman, 1989), época do questionamento da liberac&o sexual. Quanto 27. Analyses de fils, analyse de saciétés, Hachette, 1976. Ensaio sobre a analise filmica 51 aos extraterrestres, sao na maioria das vezes portadores dos temores e das esperancas da sociedade que os imagina: perigosos invasores no tempo da guerra fria (A invasio dos profanadores de sepultura, 1956), mensageiros simpaticos que alertam os humanos contra seus excessos atuais em Spielberg ou Cameron (Encontros imediatos do terceiro grau, 1977; Abismo, 1989). Com o recuo dos anos, as teconstituigdes historicas conhecidas como as mais exatas, as projeces futuristas mais ousadas carregam a marca evidente de seu contexto de produgao, fendmeno tanto mais forte no cinema quanto este é tributdrio de uma tecnologia pesada e complexa: aparelhos de gravacao (cameras, tomada de som); peliculas, técnicas de montagem, de mixagem, de projecao; iluminagées, trabalho em estudio ou em externas, maquilagem; desempenho dos atores etc. O que se vé, hoje, em Laranja mecinica é de fato uma tepresentacao da Inglaterra do futuro pela Inglaterra de 1971, em Valmont, #, uma representagao do século XVIII pelos Estados Unidos de 1989 (modos de falar, de se maquilar, de se movimentar, de entrar em contato; relagées sociais, marginalidade e integrag&o social entre outras cois s). Em um filme, qualquer que seja seu projeto (descrever, distrair, criticar, denunciar, militar), a sociedade nao é propriamente mostrada, é encenada. Em outras palavras, 0 filme opera escolhas, organiza elementos entre si, decupa no real e no imaginario, constréi um mundo possivel que mantém relagées complexas com 0 mundo real: pode ser em parte seu reflexo, mas também pode ser sua recusa (ocultando aspectos importantes do mundo real, idealizando, amplificando certos defeitos, propondo um “contramundo” etc.). Reflexo ou recusa, o filme constitui um ponto de vista sobre este ou aquele aspecto do mundo que Ihe é contemporaneo. Estrutura a Tepresentacao da sociedade em espetaculo, em drama (no sentido geral do termo), e é essa estru turagdo que é objeto dos cuidados do analista. Ela aparece, se acompanharmos as propostas de Pierre Sorlin,* colocando em evidéncia: 28. Analyses de films, analyse de socie Hachette, 1976, 52 Papirus Editora e ossistemas de papéis ficcionais e de papéis sociais, os esquemas culturais que identificam os “lugares” na sociedade (exemple: os bons soldados ¢ os indios malvados, que se tornam os indios bons e os soldados malvados em Dana com lobos; a mulher “fatal” ea mulher “benéfica” etc.); : e os tipos de lutas ou de desafios descritos nos notelnoe os apels ou os grupos sociais implicados nessas agdes ae a tripulagao e os oficiais, a populagao de dees 606 pce os czaristas em O encouracado Potemkin; as ambigoes individuais em Wall Street ou Working girl); e a maneira pela qual aparecem a organizacao social, as hierarquias, as relagGes sociais; e a maneira mais ou menos seletiva de perceber e mostrar lugares, fatos, eventos, tipos sociais, relacdes (por sean campo, os camponeses e as atividades rurais em Jogo proil ne de René Clément; Paris em Acossado, de Jean-Luc Godard; a colaborag&o em Roma, cidade aberta, de Rossellini); © amaneira de conceber o tempo (individual, histérico, social); © oquese solicita da parte do espectador: identificagoes, simpatia, emogao com relagao a determinado papel ae detent) grupo social, ou ainda determinada agio, rejeicéo com relacao a determinados outros; reflexo, agao etc. Um filme como O grande jogo (Jacques Feyder, 1934) mostra um filho de uma boa familia que desvia fundos para manter sua ee Sua familia exorta-o a desaparecer para escapar da desonra da ae Ele se engaja na Legiao Estrangeira. Vai acreditar reencontrar a amante sob os tragos de uma prostituta. ne Nao é feita qualquer referéncia precisa ao lugar geografico ea histéria, De fato, esta ocorrendo uma guerra oni os. nativos (sera ae, se trata da pacificagao do Marrocos, da suerte do Rif?), mes jamais se vé oinimigo. Do local, vé-se uma casba labirintica, um cabaré sere alguns planos do campo onde se perdem os corpos dos soldados, Ensaio sobre a andlise filmica 53 caserna, cenari e dem a cenarios que se opGem as luxuosas moradas parisienses. Jamais ~ Beads Sota BS ne gens evocam a situacao histérica ou politica. Ademais € situada de i i i : ee de imediato como local de esquecimento (nao se deve evocar 0 ssado, vi S pi sempre duvidoso, de seus recrutas) e da desapropriacao (ali se perde a identidade, ali se é 2 € € apenas um soldado submetido a de seus superiores), aes aLegiao Poderiam er, portanto, tentados a ver em rande jogo ui ‘amos ser, porta: ntados a ver O grande jogo um melodrama que tende a eliminar a questao colonial ea mantera nostalgia dos cendrios exéticos. Contudo, 0 filme de Feyd ly y y ler talvez diga mais do a i ‘obre as relacées entre a Franga e suas colénias (na oposicio bist uma Paris altiva, especuladora, e um Marrocos constituido, abe ect abandonados a propria sorte, de nativos sem rosto); 0 que um francés se torna no campo das col6nias: um farrapo ( dan: do cabaré), um soldado automatico (Pierre Targieh ti jogador, ama’ Prostituta; outros tantos perdem a identidade (o motivo pirandelliano do duplo é interessante a esse respeito); ° sobre 0 cardter invisivel, misterioso, inatingivel do “outro”, d ; indigena, subtraido para sempre a qualquer influéncia. is Nada de discurso direto, Portanto, mas um pessimismo latente, sh a profundo, com relac3o aos valores e aos efeitos do colonialismo, Uma andlise mais profunda conduziria a combina 0 estudo dos atos internos ao filme (rotei: elro, aspectos formais) com i 3 is) com informacées exter s igi a i : nas sobre as condicdes de producao, o Pprojeto (0 cinema soviético los a 5 fi BANOS 1920, alguns filmes franceses do perfodo da Frente Popular, 9 cinema americano dos anos 1940, por exemplo, : si objetivos de ordem sociopolitica: exaltar a Revol explicar estabelecem para : 4 lucdo, descrever e ‘ a sociedade da época, estimular a Participagéo no esforco de guerra), 0 contexto sdcio-histérico de divulgagao. Adaptado ou nao a ee deliberacio (mas o produto final nao esté necessariamente em completo acordo com 0 projeto inicial), o filme preenche uma fungo na 54 Papirus Editora spciedade que o produz: testemunha 0 real, tenta agir nas representagoes » mentalidades, regula as tensdes ou faz com que sejam esquecidas. Existem duas armadilhas (pelo menos!) nas quais 0 analista deve ientar evitar cair. Em primeiro lugar, a que consiste em confundir certas formas cinematograficas com certas fungées. Assim, 0 documentario, a atualidade, a reportagem apresentam caracteristicas formais detectaveis (e que sao atribuiveis as condigdes da filmagem direta), que os opdem ao cinema de ficg’o e principalmente a certos géneros marcados: montagem mais entrecortada, enquadramentos aproximativos, movimentos de aparelho mais “sentidos”, tomadas frontais, olhares para a cdmera, incidentes visuais e sonoros (passagens no campo, rupturas de escala sonora etc.), descontinuidades visuais etc. Ora, esse cinema, o “cinema do real”, como as vezes é chamado, em geral preenche uma funcao de testemunha do real. Porém é sabido que as caracteristicas formais repertoriadas acima: 1. podem ser imitadas, produzidas deliberadamente para obter um “efeito de real” cinematografico, existindo essa pratica desde os inicios do cinema (noticiarios reconstituidos dos anos 1910; ver igualmente 0 inicio de Cidadio Kane); 2. podem ser colocadas a servico de um cinema de ficcSo (ver a utilizagao do “direto” por um Eric Rohmer ou um John Cassavetes). Inversamente, 0 trabalho em estiidio, a reconstituicao baseada numa estética mais classica, podem ser colocados a servigo de um auténtico projeto realista. Quanto a fantasia, nao deixa de dissimular, na maioria das vezes, intencGes descritivas e criticas. Asegunda armadilha consiste em “ler” num filme todaa sociedade e a historia do tempo, presentes, passadas e principalmente futuras — quantas andlises de O gabinete do doutor Culigari, ou de M, 0 vampiro de Diisseldorf dio a entender que seus autores haviam predito Hitler e o nazismo... Interpretagao retroativa que convém temperar e atribuir bem mais a intengao do analista do que 4 da obra ou do autor. A nao ser que nos deixemos conduzir pelos supostos poderes magicos da sétima arte: nesse caso, 0 analista corre muito o risco de nao passar de um cinéfilo... Desse modo, mais uma vez e sempre, preconizamos 0 retorno ao filme, a materialidade de seu discurso e de seus pardmetros representativos. Ensaio sobre a anilise filmica 55 Anilise e interpretagao simbélica Trés i i ae Classes de filmes poderiam ser distinguidas grosseiramente q 0 a producao de significagdes simbélicas. oe a cue lugar, os filmes que exigem deliberadamente, da parte os ane fa on, uma leitura” simbédlica global ou parcial. Compreendamos ie . ra simbdlica uma interpretagao que nao se detivesse no sentido J tl (por exemplo: isso 6 uma mulher ou um homem vestido de negro; isso € uma carretilha), mas situa de i i ' ), mas situa de imediato o que é dito me a n At e mostrado em. : st om um “outro” sentido (esse personagem é a Morte: ver Orfeu fe Jean Cocteau, O sétimo selo de In, , s gmar Bergman etc; essa c: i é oe : ? essa carretilha é ae ae de comparacao; ver A linha geral de Eisenstein, citada no ‘apitul ‘itura simbéli ‘solic fe y ae 1 P. 29). oa leitura simbélica geralmente 6 solicitada pelo 0 universo diegético, o “mundo ivel” Y possivel” construido pelo fil ser fortemente afastado d ee le qualquer mundo real pa: : oe assado, present ou imaginavel, ou entao, se aj i a 3 l , SE aparece como um mundo “plausivel”, 5 5 : plausivel”, ser aera por elementos heterogéneos que vém romper a coer€énci realista (a carretilha na cena d. i i a desnatadeira, 0 mondlit Noel , fo na abertura 6 isseit ies ie de 2001, uma odisseia no espaco). A abordagem simbdlica es filmes pode, alias, ser com: : ) § andada por referénei i Se nea : cias culturais ee (intitular um filme de Orfeu, O sétimo selo, Odisseia no espaco ja net ae lo em um “horizonte simbélico” em referéncia a textos miticos a ores). De qualquer modo, procede da intengao do autor e da i wenaie 5 bis tetas y ae coe que sejam os designios (ideoldgicos, politicos, espirituais, 8) do funcionamento simbédlico, designi 4 { : », designios que a andlise devera es ; 7 q lise devera 3 a a as Um dos aspectos nao negligenciaveis do impacto desse ‘ipo a a n a : e filme refere-se 4 apreensio dos elementos simbélicos: do mesmo lo a pe obras picturais dos séculos passados, deliberadamente carregadas de elementos simbdli al eI 5 3 cos, NAO Nos sdo compreensiveis hoji Sas ‘ eur se siveis hoje, a = ae osistema metaforico préprio de certos filmes requeruma cultura specifica para ser plenamente aj i ipreendido (ver, por exemp! Alii ae i a plo, a andlise de ndrei Rublev, de Tarkovski, por Guy Gauthier)” Trata-se, toda vez, de 29. Guy Gauthier, Andrei Tarkovski, 1988, 56 Papirus Editora uma espécie de cddigo, de um conjunto de signos situados em contextos socioculturais particulares. Uma segunda classe de filmes (a fronteira com a primeira classe esta longe de ser nitida, é claro) seria constituida de obras que, ao mesmo tempo que permanecem em uma tonalidade “realista”, ao mesmo tempo que constroem um mundo plausivel e tornam possivel uma leitura literal da histéria, operam um tratamento particular do material narrativo e filmico. Esses filmes, por exemplo, nao se preocupam rigorosamente com a coeréncia e a verossimilhanga; nao se centram em um encadeamento pleno, motivado, continuo, de agdes, ou na construgao psicolégica dos personagens. Por seus desvios de uma estética plenamente realista e classica, convidam a uma leitura simbélica. Nao sao de imediato simbdlicos, antes tornam-se simbdlicos, a medida que se desenvolvem. ‘Temos um exemplo disso em Paisagem na neblina de Theo Angelopoulos (ver capitulo 2, nas pp. 81 ¢ 93). O aspecto simbdlico pode ser captado na estrutura de conjunto do filme (por exemplo, a da viagem inicidtica em Paisagem na neblina) ou no tratamento deste ou daquele elemento da histéria (ouve-se uma vez a mae das criangas, nao se a vé; jamais se sabera se seu pai de fato existe), nos parametros formais (ver a andlise detalhada do plano-sequéncia ou do final do filme). Aqui, ainda, 0 sentido simbdlico procede da intengao do autor e da do filme. Numa terceira classe de filmes, poderiamos agrupar todos aqueles que apriori nao exigem leitura simbélica, mas oferecem-se, ao contrario, a uma apreensao “simples”, literal. Nesse caso, seria a intengéo do leitor, do analista, que geraria significagdes simbdlicas. Nao se deve, porém, evidentemente, negligenciar a possibilidade de wm “ardil” do autor (e do texto), que tende a dissimular um sentido simbélico sob uma aparéncia plana. Ademais, é possivel postular que qualquer arte da representagao (o cinema é uma arte da representagao) gera produgées simbdlicas que exprimem mais ou menos diretamente, mais ou menos explicitamente, mais ou menos conscientemente, um (ou varios) ponto(s) de vista sobre © mundo real. De que tipo(s) de pontos de vista se trata (ideoldgico, Ensaio sobre a andlise filmica 57 moral, espiritual, estético)? Como se manifestam? Tais so as questées colocadas pelo analista sobre o filme, este sabendo que as respostas nao se oferecerao necessariamente com toda a evidéncia. Qualquer que seja a classe & qual o filme pertence, a abordagem simbélica se encontra, portanto, legitimada, mas nao da mesma maneira. Oanalista devera proceder com prudéncia, uma configuragao metaforica sublinhada, ou uma auséncia aparente de configuracao metaforica, sempre podendo dissimular outra (ver a andlise de Rebecca, capitulo 2, p. 118). Voltemos aos procedimentos possiveis de detecgao do simbélico. Vamos abordar dois aspectos da questdo, sem pretender a exaustao. O esiudo do roteiro — Os roteiros de filmes as vezes (e até com frequéncia) referem-se a modelos estruturais, a grandes esquemas narrativos oriundos do patriménio universal, suportes de contetidos simbélicos e até miticos. Essa referéncia é explicita (Orfeu) ou implicita. Desse modo, Paisagem na neblina & concebido de acordo com 0 esquema da Busca e da Viagem iniciatica: duas criangas abandonam a mie para partir em busca do pai que jamais viram (e que talvez nao exista);no caminho, vio encontrar pessoas, passar por provagées, descobrir aspectos do mundo e da vida (a morte, 0 trabalho, a sexualidade, 0 amor, 0 teatro, 0 dinheiro etc.); 0 resultado da viagem é uma transfiguragao (do mundo e dos dois personagens: ver capitulo 2, pp. 84-86). O valor simbélico desse roteiro aparece através do desrespeito deliberado da verossimilhanga (como duasi criangas tao pequenas conseguem fazer uma viagem tdo longa?; nao existe a fronteira Grécia/Alemanha; 0 segundo encontro com Oreste deve-se a um acaso milagroso; de fato, ele aparece duas vezes como 0 salvador deles etc.), na estrutura de conjunto (ver principalmente a andlise do inicio e do final do filme), no tratamento das personagens (nao tém existéncia psicolégica, mas representam antes categorias de personagens com seus préprios movimentos, suas funcdes sociais, suas puls6es: criangas, atores, rapaz, policiais, soldados, caminhoneiro). 30. Ver Francis Vanoye, Scénarios modéles. Modéles de scénarios, Nathan, 1991, p. 27 ss. 58 Papirus Editora Dois eixos de leitura parecem destacar-se para interpretar esse itinerario. O eixo sdcio-hist6rico impée-se pela preciséo com a qual o filme mostra alguns aspectos da Grécia contemporanea (trens, estradas, paisagens industriais, delegacia, dancings) e pelas referéncias a sua historia (cena dos atores, ver IJ, 1.). O eixo espiritual é sugerido pelo esquema inicidtico e o final do filme. Esses dois eixos poderiam articular- se em uma abordagem “psico-sécio-histdrica”: a Mae-Patria (a Grécia de 1988) quase nao oferece protecao e abrigo a seus filhos, nao mais do que lhes fornece a lei de um Pai. A auséncia de lei é igualmente sugerida pela facilidade com que as criangas fogem da delegacia e passam pelas malhas policiais e alfandegarias. S6 resta a essas criangas fugir para um alhures mitico, talvez carregado de esperangas. De um modo geral, 0 analista pode emitir a hipdtese do funcionamento duplo de todo roteiro de filme. Por outro, 0 roteiro estrutura uma narrativa (uma sequéncia légica de eventos, de relagdes entre personagens, de conflitos, um conjunto de informagées a serem distribuidas pelo filme para garantir a compreensao ea verossimilhanga) e uma progressio dramatica (de acordo com as regras de alternancia entre tempos fortes e tempos fracos e as da progressao continua da tensao até © desenlace, passando pelo “climax”). Por outro, e simultaneamente, propde um ponto de vista (moral, estético, politico, filosdfico, postico) sobre a histéria e os personagens, assim como imagens do mundo possivel representado, imagens mais ou menos carregadas de conotagGes afetivas, fantasisticas, simbdlicas. Esses dois roteiros nao sao necessariamente convergentes. Em suas andlises dos filmes de Francois Truffaut,” Anne Gillain postula a existéncia de um roteiro “realista” (factual, fundamentado na engrenagem que conduz Antoine Doinel de uma bagatela escolar & delinquéncia) e de um cendrio “fantasistico”. O ultimo aparece a partir do momento em que o espectador aceita, de maneira menos racional do que em uma percepgao controlada, sensibilizar-se com certos aspectos do 31, Anne Gillain, Frangois Truffaut: Le secret perdu, Hatier, 1991; e Les 400 coups, estudo critico, Nathan, 1991, col. “Synopsis”. Ensaio sobre a analise filmica 59 filme: digressées, repeticdes de motivos visuais ou do roteiro, rupturas ldgicas ete. Em Os incompreendidos, 0 roteiro fantasistico “manifesta em primeiro lugar um desejo de fusio com uma figura materna” Anne Gillain 0 vé empregado, por exemplo, nas relagées apaixonadas de Antoine com Paris, “espaco materno”, “ambiente- mae”, que fornece, durante as longas fugas do menino, abrigo, comida (uma garrafa de leite), 4gua, figuras de mulheres (encontro com Jeanne Moreau, depois com prostitutas). De fato é em suas elipses, suas digresses, suas eventuais contradigdes internas, suas repetigdes (de cenas, de motivos) que o roteiro manifesta seu funcionamento duplo. Em Bartow Fink (E. e J. Coen, 1991), por exemplo, uma leitura simbélica seria autorizada pela inquietante estranheza do cendrio principal (um grande hotel deserto, isolado, imensos corredores pouco iluminados, um elevador vetusto, paredes revestidas de papel escuro) e por seus ocupantes (0 camareiro careteiro, o velho ascensorista, 0 vizinho de quarto inquietante de Barton Fink), pela recorréncia de motivos cénicos e visuais (secregdes de diversas substancias: cola do papel de parede, infeccao do ouvido do vizinho, transpiracao, sangue, vémitos do escritor e de Barton Fink; Ita: tema proposto a Barton Fink, rushes do filme de luta, simulagao com o vizinho, paginas em branco), pelo cardter misterioso de certos objetos (0 pacote que o vizinho confia a Barton), pelos aspectos reflexivos do filme (um filme sobre um aprendiz. de roteirista em Hollywood, 0 quadro pendurado no quarto de Barton que se materializa no final do filme). Paralelamente a histéria rocambolesca e tragicémica de um dramaturgo nova-iorquino perdido em Hollywood, desenvolve-se um roteiro iniciatico que inscreve a escrita no centro do sofrimento (e até do horror) fisico e moral. 32. Les 400 coups, op. cit., p. 89. 60 Papirus Editora Metdforas pontuais e redes metafricas — A metéfora, stricto sensu, é uma figura de expressdo verbal, “a forma mais condensada” da imagem literdria,* uma comparagao da qual sé restaria o comparante. Acompreensao da metafora baseia-se na analogia de sentido que existe entre o termo atualizado e o termo ausente que substituiu. No cinema, so as imagens que desfilam e nao as palavras. O efcito metaférico pode ser gerado da sucessio de imagens que produzem um sentido que “ultrapassa” o sentido literal. E a associagao, mais ou menos, estreita, de imagens que rompem o estrito continuum narrativo que cria uma configuragao metaférica (mais do que uma metafora “pura”). Assim, imagens da carretilha alternando-se com as do leite remexido pela desnatadeira em A linha geral (ver capitulo 1, p. 29). A analogia visual (movimentos giratérios rapidos) nao basta, alids, porque é substituida por uma legenda que explica a “metafora”. Mas isso nem sempre énecessario, ¢ Fritz Lang pode também mostrar um tnico plano de mulheres cacarejando com um tinico plano de galinhas cacarejando (em Fiiria) para ser compreendido. Outras configuragées sio mais frouxas, menos explicitas: em A queda da casa Usher, as maos crispadas de Roderick podem ser relacionadas com as imagens de uma guitarra com as cordas estendidas que acabam por se romper; essas imagens, porém, no sao diretamente associadas, combinam-se com outras para exprimir a fensfio fisica e nervosa que toma conta dos personagens e do ambiente no decorrer da cena. Metaforas e redes metaforicas so detectdveis por intermédio da repeticiio, de formas de insisténcia (primeiros planos, planos longos, Angulos insdlitos) ou de amplificagio (deformagGes visuais, aumentos, efeitos sonoros etc.), do grau maior ou menor de incongruéncia desta ou daquela imagem com relacéo & norma narrativo-realista (da imagem deliberadamente nao diegética a figura diegetizada, isto é, plenamente integrada no mundo representado). 33. Bernard Dupriez, Gradus, UGE, 10/18, 1977-1980, p. 286. 34. Ver as anilises de Christian Metz, Le signifiant imaginaire, cap. LV, escrito em 1975-76, editado em 1977, UGE, 10/18. Ensaio sobre a analise filmica 61 E, as vezes, ao termo de todo um trajeto simultaneamente narrativo, dramatico e de figuras, constituem-se imagens que evocama condensacio freudiana,* em que se concentram, numa tnica representagio, varias séries de associagdes de imagens para onde convergem, sintetizam-se e superam~se todas as significagées até entao dispersas ou paralelas (mas a imagem-condensagao pode igualmente ser o ponto de partida, motivo inaugural para um trajeto que provavelmente nos reconduziré a ela: ver a caneta hidrografica rolando, em camera lenta e em plano de detalhe, na relva de uma floresta, bem no inicio de Miller’s Crossing, dos irmaos Coen, como em um sonho). Sera possivel observar exemplos desse processo metaférico em sequéncias estudadas adiante, no préximo capitulo, as de Paisagem na neblina, que resultam na imagem da drvore alcangada pelas duas criangas. Em Barton Fink, quando Audrey (a secretaria-amante do escritor Bill Mayhew) responde ao apelo de Barton para ajudé-lo a elaborar seu roteiro, a sessdo de trabalho no quarto do hotel se transforma em cena de amor. ~ Plano 566; Audrey e Barton estao sentados na cama, em plano médio, ela o beija na boca, ele hesita, deita, ela se deita sobre ele, ‘Travelling para frente: ela tira os éculos dele, ele respira forte, ela o beija, — Plano 567: plano préximo dos pés de Barton e de Audrey. Ele tira os sapatos. Panordimica de baixo para cima e travelling lateral em plano médio na parede do quarto. Musica. Gemidos fora de campo de Barton. O travelling prossegue até a porta do banheiro, depois travelling para a frente (gemidos fora de campo de Audrey), até primeiro plano da pia. Zoom para a frente no cano por onde a Agua escoa, plongée da camera no cano (ruidos fora de campo dos dois personagens). — Plano 568: travelling para a frente no cano da pia. Off gritos. Fusio... ~ Plano 569: travelling paraa frente em plano aproximado ¢ plongée no rosto de Barton, que dorme.* 35. VerSigmund Freud, “Le travail du réve”, i L’interprétation des réves, cap. IV, 1926, PUF, 1967. 36. Segundo L‘avant-scéne cinéma, n. 406, novembro de 1991, “Barton Fink", de Joele Ethan Coen, 62 Papirus Editora O plano 567 opera um deslocamento, afastando a camera e180. mesmo tempo, o olhar do espectador, da cena sexual (contudo sugerida pelos gemidos: a narrago desenvolve-se de certa forma entre o sonoro € © visual). Contudo, o movimento de penetracao (da camera no buraca e no cano da pia) reconduz metaférica, metonimicamente (esses acessonos esto no mesmo universo diegético, ao lado dos protagonistas), e muito ironicamente, é claro, 0 espectador a cena. Mas, ainda ha mais, o plano 568 condensa varios motivos visuais e de roteiro: 0 dos travellings nos corredores desertos e mal-iluminados, o da circulagao dos ruidos e dos liquidos de um quarto ao outro (Barton Fink ouviu um casal fazendo amor no quarto ao lado, seu outro vizinho chorando); 0 dos corpos e a meios humorais e que escorrem (0 hotel aparece, entdo, como uma espécie de corpo monstruoso), das aguas sujas e das dejecSes (a serem opostas as imagens do oceano). Nao sera surpreendente, apés tal representagao da sexualidade, que, ao despertar, Barton se encontre ao lado de um cadaver ensanguentado... Mas tampouco sera possivel esquecer que esse pesadelo é elaborado muito conscientemente para o cinema (e contigo: sonhado por quem? Barton? Os irmaos Coen? O espectador? Onde se vé que-uma leitura simbolica de Barton Fink nos conduziria provavelmente a uma meditag3o sobre o cinema como “fabrica de pesadelos”). “Existe sempre sentido por tras do sentido”,” escreve Christian Metz, ilustrando magistralmente essa frase com a analise do primeiro plano da cacatua em Cidadao Kane. Cabe ao analista fazer os sentidos se agitarem, correndo o risco de neles se perder. 37. Lesignifiant imaginaire, op. cit., p. 334-337. : 38. Para maiores detalhes: Rhétoriques de cinéma, n. 6/7 de Vertigo, 1991. Ensaio sobre a andlise filmica 63

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