Você está na página 1de 33
Como nasce 0 Direito Selo Horizonte ~ 2001 Caalogagso na Ponte da Bibiotes da Fasade de Direito da URMG © ISBN Depatieteite Nacional do Livro —— ‘Carnet, Francesco, 1879-1905 canoe Como nace © dvsit/Pancesco Camel; Traduyso de: ttomar ‘urine Olvera. ~ Belo Horicele: Lider Oalura Jurisica, 2001 1. Diveto = Floeafi 2. Dito ica. L Thulo cpu: 01 ———— Dison Machado de Lima ‘Maria de Lurdes Costa de Queiroz (Tacha) Tels (ex) 3295-3690 Copyright © Dilan Machado de Lima, 2000 Ueanga edlteral para kider Lids, “Todos or direiton exeados, Serhura pare dea aga poe se proc sxjam qu orm oF mee oo formas, sem 4 express autorizacso da Editora, o lUmpress 22 Bruit Printed bn Bri Sumirio INTRODUGAQ - DIREITOE JURISTAS I-DIREITO EECONOMIA I= DIREITO E MORAL I~ 0 DELITO..... IV-A PROPRIEDAD! V-OCONTRATO. IX— A COMUNIDADE INTERNACIONAL X~AJURISPRUDENCIA .... INTRODUGAO - DIREITO E JURISTAS ‘Antes de tudo, tratemos de definir estes dois termas. De modo aproximado, entende-se que isso seja conveniente para se ter um ponto de partida. Estou seguro de que, na mente de meus ouvintes, a pala- vra direito suscita a idéia de Jei; inclusive, a desses conjuntos de leis que se chamam cédigos. B uma definigéo empfrica, mas provisoriamente podemos aceité-la: um conjunto de leis que regula a conduta dos homens. A frente, veremos como & por qué. Além do mais, é a definigao predominante, até agora, também no campo da cigncia E 08 juristas? Dir-se-ia que so operadores da direito. ‘Também isto eai bem. A comparago do direito com uma fa- brica é cémoda ¢ nada tem de casual: os juristas so aqueles que fabricam 0 direito. Operadores, esta certo; mas operada- ificadas, ¢ tanto é assim que antes de fabricé-lo 0 2s- tudam; ¢ o fazem exatamente na Universidade. Contudo, basta uma experiéncia minima para demonstrat que para fabricar 0 direito concorrem também aperadares no qualificados; com efeito, as leis se fazem nos parlamentos, & 7 FRANCESCO CARNELUTTL hoje os parlamentos, mais ainda com o sufrdgio universal, nfio se compdem unicamente de juristas. A verdade é que os proje- tos sobre os quais discute e delibera o-parlamento séo prepara- dos quase sempre por juristas, mas, freqtientemente, esses pro- jetos se modificam; e, de toda maneira, os nae juristas, mesmo quando nfo formam por si sés as leis, certamente cooperam para a sua elaborago. Acontece, inclusive neste procedimen- to, © contrario do que vemos nas fébrieas, nas quais os pedes executam as ordens dos supervisores; com efeito, no parla- mento so os pedes os que predominam o podem predominar pelo menos. As leis, pois, so feitas, se ndo precisamente ape- nas, pelo menos também pelos homens que ndo aprenderam como fazé-las. Assim sendo, ha que se acrescentar que o direito quando sai da oficina legislativa nao é mais do que um produto acaba- do; pelo contrério, para que sirva ao consumo, deve ser subme- tido auma elaborag2o ulterior, Na verdade, o que fazem os jufzes a niio ser algo que pode ser eficazmnente comparado com o to- cido da ld fiada ou cardada? Se fossem as leis suficientes, nao haveria necessidade dos juizes, nfo € verdade? Também os juizes, pois sio operadores do direito. Entre © legislador ¢ 0 juiz, a diferenga, aproximadamen- te, € intuida por todos: o primeiro formula as leis, a segundo as aplica. Mas nfo é verdade que esta aplicagao seja obra ex- ‘clusiva dos juizes. Aplicar uma lei quer dizer confronté-la com uma situagio de fato, a fim de saber o que & que se podee o que ‘io se pode fazer. Se, ao passar diante de um mercado de fru- tas, me vem a vontade de comer uma maga com a tentagio de pegé-la c lové-la, mas pelo contrario, pago o prego a compro, fago, 10 sem me dar conta disso, o mesmo raciocinio que faria 0 juiz, se, tendo cedido & tentagSo, me declarasse culpado = (COMO NASCE O-DIREITO do furto, Ah! se para aplicar as leis tivessem de intervir em todos 0s casos os jufzes! A verdade € que elas siio aplicadas também pelos cidadios, quando de acardo com elas regulam sua conduta, © que quer dizer que também eles, como o Burgués sgentilhomem se. expressava em prosa, fazem direito sem sabé- Jo. Em outras palavras, o juiz prové para terminar o praduto semi-elaborado unicamente quando o cidaddo nao conse-' gue fazé-lo. Se os juristas, pois, so os operadores qualificados do direito, nem tudo em direito é obra deles. Assim sendo, pode- se admitir que nfo ha necessidade de um treinatnento especffi- co para fazer as aplicagdes das leis necessérias & vida cotidia- na, assim como para concorrer no parlamento & elaboragao dolas, enquanto existirem operadores qualificades, que so os juristas, aos quais se recorre em caso de necessidade. Mas isto supde que na cultura geral, que deve ser fornecida ao cidadao a. fim de que possa conduzir-se na vida cotidiana, inclua-se um. conhecimento genérico do dircito. Se nfo se fornecesse esse conhecimento, 0 cidadio nic estaria em condigbes sequer dé saber quando deveria se dirigir ao jurista pela dificuldade do caso, Com efeito, muitos inconvenientes nascem, por exeii- plo, em maiéria contratual, exatamente porque aqueles que fa- zem contrato ignoram as conseqiiéncias que deles podem sur- git Esta verdade se toma mais evidente no campo do direito penal. Jé veremos que 0 Cédigo Penal foi elaborado para con- seguir que os cidadaos se abstenham de certos atos considera- dos gravemente nocivos ac bem comum e realizem outros necessétios a esse mesmo bem comum. Mas como se poderé conseguir esse resultado se ndo se Ihes fazem conhecer as leis que compdem tal Cédigo? Hé nele um artigo em virtude do 9 qual, como nés dizemos, ignorantia legis non exeusat [a ig- norfincia da lei nao escusa], ov seja, que um cidadao, uma vez contrariando um preceito penal, nfio pode se escusar dizendo que no 0 conhecia. Seu conhecimento, pois, no ¢ mais do que tomar parte da cultura comum; pele contrério, haveria ne- cessidade de que cada um de nds, a todo momento da vida, ti- vesse a0 lado um jurista a quem pedir conselho sobre se podia ou se devia fazer algo. Tudo isso quer dizer que se a insirupdo de jurista supe- rior deve ser reservada aos juristas, ndo pade menas ser distribuida a todos os cidaddos uma insirugéo inferior. A posigiio € andloga no campo do direito ¢ no da medicina: os advogados ¢ 0s juizes stio chamados, como os médicos, quan- do se declaram as doengas; mas, a fim de que no se declarem, € necessério difundir ao povo conhecimentos elementares de higiene. Depois de tudo, uma certa educacdo juridica estendi- da aos néio juristas € um meio para combater as duas pragas sociais que so a delingiiéncia ¢ a litigiosidade Sob este aspecto, dizfamos, 0 ordenament dos estudos vigente na Itélia, especialmente no que diz respeito a instrugio ia, & gravemente defeituoso. Quer seja para fins de educa- 20, quer para fins informativos, ou seja, tanto para a formagio do caréter quanto para o treinamento téenico para as varias obrigagées sociais, é necessério um minimo de conhecimento Joridico. Acerca da segunda destas finalidades, éindtil por acaso insistir, tao evidente é a coisa; em particular com respeito a0 direito penal; este, provavelmente, deveria ser ensinado nas es- colas primérias, na forma ¢ na medida adequadas, compreen- de-se. Chamo, pelo contririo, a atengo pelo valor educativo do direito, que ndo € menor de que o da matemética por um lade © © da miisica por outro lado. Estas so coisas que nem COMO NASCE O DIRETTO mesmo muitos dos juristas conhecem a fundo; mas é possivel que, ao final de nossas conversagées, se esclaregam um pou co, Estas conversaptes, pois, propGem-se a suprir, ou come- ‘gar a suprir, quanto for possivel, a grave deficiéneia da instru glo média neste tema delicadissimo. I DIREITO E ECONOMIA Quando comecei a Ihes falar outro dia, dei o exemplo de quem, passando diante de um mercado de frutas, rouba ou com- pra uma maga, Estes, o roubo ou a compra, so atos juridicos mas, antes de pertencerem ao campo do diteito, pertencem 0 da economia. Sao atos ecandmices tadas aqueles por meio das quais 0s homens tratam de satisfazer suas necessidades. A palavra economia, que vem do grego, expressa até literalmente essa idéia, posto que oikos quer dizer casa, ¢ a casa um interesse fundamental do homem, e até da sociedade, porque farnece o ambiente dentro do qual a familia, que € a célula da sociedade, pode realizar o milagre, nfio somente da propagagao da espé- cie quanto da formagio do individuo. ‘As necessidades dos homens sio ilimitadas ¢ 08 bens si0 limitados. Infelizmente, os bens, enquante satisfazem certas necessidades, estimulam outras. Para distinguir o homem dos demais animais, por acaso a {Smula mais satisfat6ria seria di- zer que o homem nunca esté satisfeito. Quanto mais tem, mais quer ter. Por isso é que os homens, como as nagies, fazem guerra uns contra os outros. ‘Assim sendo, hd que se saber 0 que € a guerra. A idéia que as pessoas tem dela é comumente grosscira ¢ aproximada. ‘Tampouco a ciéncia cuida, ademais, de defini-la com exatidao. FRANCESCO CARNELUTEL Quem fala em guerra pensa em dois povos que se combatem com as armas. Essa é, dirfamos, a guerra vista com o telescépio. Para compreender o que é a guerra, h4 que se empregar, contudo, também 0 microscépio. Vista de perto, observa-se que 0 con- ceito da guerra depende do conceito da propriedade. Também a propriedade & um fenémeno econdmico, an- tes de ser juridico. 6 singular que ele também, coma a econo mia, estabelega relag3o com a casa; em latim, o terme corres pondente a propriedade é dominium, que vem de domus, que quer dizer casa, O fato econdmico é aquele em virtude do qual alguém, quando tomou algo que the serve para satisfazer uma necessidade, quer reté-lo para si: 0 esforgo para tomé-lo se prolonga no esforgo para manté-lo. Estabelece-se uma rela cio fisica entre o homem.¢.0 bem, o qual fica mantido sob seu dominio, ou seja, na esfera submetida & forga fisica, Observa- se nisso uma vinculagdo entre a casa e 0 corpo de homem, que € o que lhe pertence antes de nenhuma outra coisa, e se forma em tomo dele uma espécie de halo ou de recinto, que & exata- mente a domus, a casa, entendida nie apenas como hospeda- gem, mas como o eonjunto de coisas que the servem para a vida. Q lema da economia é, infelizmente, homo homini lupus fo homem, para o homem, é @ lobo}; 9 homem, economica- mente, comporta-se diante de outro homem como um animal predador, Em vez de deixar a cada um o que tenha conseguido obter, 0 outro se vé tentada a amebaté-lo dele. A guerra nao é em sua raiz mais que este ato de amebatar, Invasdo do domf- nio, em outras palavras. Os limites entre o ter de um homem e o ter de outro homem, em vez de ser respeitados, so violados, (COMO NASCE © DIREITO Niio hd que acreditar, pois, que a guerra seja combatida unicamente entre povos e apenas com as armas. A guerra macroscépica corresponde a guerra microscépica. Também 0 furto tem a esséncia da guerra, e no apenas a rapina, que é 0 furto com violéncia, mas também o furto com destreza. A guer- ra, antes de se combater entre 9s povos, combate-se entre in- dividuos. Se nos parece estranha a vinculagao e até a identida- de entre o furto ¢ a guerra, isso ¢ porque consideramos esse ato sob © aspecto juridico, ¢ néo sobre o econdmico, Mas no se comegando pela economia ¢, portanto, nao desenvolvendo © conceito da guerra em toda a sua amplitude, no se compre- endent o direito, Assim sendo, observe-se que a guerra produz, desordem, ow, melhor ainda, ¢ desordem, Da ordem, idéia fun- damental para compreender o mundo e a vida, basta falar aqui de forma simples: hd desordem quando as coisas no estdio em seu lugar, Quem nao sabe que a guerra se resolve na desordem? Lembrem-se do- que era a Itdlia ha pouco menos de dez anos? Nao se podia viver naquele caos. O sogredo do direito est& exatamente nisto: que 0s ho- mens no podem viver no caos. A ordem Ihe € tio necesséria como © ar que respiram. Como a guerra se resume na desor- dem, assim a ordem se resume na paz. Os homens fazem guer- fa UNS aos OUtrOS, Mas precisam Viver em paz. A guerra, pois, nem tanto termina com a paz, mas tende & paz. O que pde fim & guerra 6 0 pactum, ¢ a raiz: de pacto 6 pax. Outra palavra ex pressiva € a de contrato, que quer dizer no fundo o mesmo: pondo fim & guerra, os homens, em vez de estarem uns contra 68 outros, tratam de estar juntos. ‘Também o contrato, como a propriedade, & um fendme- no econdmico antes de ser juridico. Ae combaterem entre si, 08 homens observam que tém necessidade uns dos outros. O 1s FRANCESCO CARNELUTTL homem 6 essencialmente sociével; em outras palavras, o ho- mem € a sociedade so as duas faces de uma mesma moeda. Robinson Crusoé é o fruto da fantasia de um escritor; mas este, além do mais, o pds ao lado de Sexta-Feira, pois do conirério nido teria podido escrever sequer a novela. Necessidade da paz e necessidade dos demais homens so a mesma coisa, Como a domfnio, como a guerra, assim também o tratado de paz é, por- tanto, um produto puro da economia. Mas, enquanto se mantém no terreno puramente econd- mico, o contrato nfo oferece & paz nenhuma garantia, Econo- micamente, o contrato é a expressio de um equilibrio obtide pelas forgas contrdrias dos combatentes. Na luta chega inevi- tavelmente © ponto morto quando um dos deis tem a sensagaio de nfo poder obter um resultado melhor do j4 conhecido, de modo que continuar combatendo redundaria em pura perda. Entio, os combatentes fazem a paz. Mas esta é uma expresso de eufemismo que nao corresponde & realidade, Na verdade, mais do que a paz, trata-se de uma trégua, Com efeito, quando depois do necessério descanso um dos adversérios acredita estar em posicao de forga que possa Ihe permitir melhorar a situagio estabelecida pela irégua, volta a se acender a luta. No campo da economia, portante, nunca hda verdadeira paz; a his- téria da economia é toda uma sucessio de Iutas € de tréguas; nfo é a verdadeira paz a pausa entre duas guerras. A conclusio que hé que se tirar disso é que a economia nio basta para colocar ordem entre os homens ¢ satisfazer as- sim o que constitui a necessidade suprema do individuo e da sociedade, II DIREITO E MORAL Se quiséssemos resumir em uma breve formula as razdes pelas quais os homens nao conseguem viver em paz no terteno da economia, poderfamos dizer que a economia é 0 reinado do ext, ou seja, do egoismo. O terreno da economia é aquele no qual se encontram diversos egofsmos, tanto dos homens quan- te-dos povos, Por isso, em sie por si, € 0 reinado da desordem, Para por ordem no caos econdmico ¢ fazer desse modo: com que os homens vivam em paz, é necessério substituir 0 -egotsmo pelo altruismo, 0 ew pelo tu. Sc a economia € 0 rei- no do eu, o reinado do tu é a moral. Kant falou a este propésito do respeito; mas a férmula crist@ incomparavelmente mais clara € vigorosa propée o amor ao préximo como solugie do pro- blema. E evidente que se aquele que tem da espontancamente Aquele que no tem, amando-o come a si préprio, quem rece- be se contenta com o que Ihe € dado, porque também cle res- ponde com amor, a guerra desaparecer. EBevidente, assimmesmo, que quando deste modo se com- péiem por amor og conflitos de interesses entre os homens, nao hd lugar mais‘para o emprego da forga para constrangé-los. Por isso, a moral, como reinado que € do amor, também ¢ 0 reinado da likerdade, Tudo isto € facil de dizer, mas quando se trata de colocd- lo em pritica, hie sunt leones (aqui estiio os ledes). Cristo ensinou que © amor ao préximo ¢ o amor a Deus se implicam W FRANCESCO CaRNELUTT ———— reciprocamente, dai que o amor ao préximo seja a perfeigao do homem:; mas quanto é do que se necessita para ser perfeito? Amat ao outro quer dizer identificar-se.com ele; colocar o outro no mesmo nfvel qué a si proprio: ¢ isto nio pode ser mais do ‘que ameta de um longo ¢ duro caminho, a qual, salvo excegdes de certos caracteres privilegiados, os individuos, como 0s po- ‘vos, no podem chegar a ndo ser por meio de um lento proces- 0 que dura toda a vida? E, no entanto.. A nnecessidade que eles tém de eliminar a guerra é imedia- ta. E necessério, a qualquer custo, colocar ordem no caos. Se 0 amor nfo germina ainda na terra, hd que encontrar um sucedé- neo para ele. Se quem tem nao dé espontaneamente a quem no tem, h& que constrangé-lo para que dé. & preciso inventar algo ‘que consiga, a respeito da economia, os mesmos efeitos que & moral. E, s¢ nfo so os mesmos, paciéneia, contanto que pos- sam aproximar dele. Esse sub-rogado da moral é o direito. Obtém-se assim uma ponte entre a moral € a economia, ou se conclui uma espécie de compromisso entre clas. Mas é coisa jf de explicar como pode isto acontecer. ‘Todos compreendem que assim acontece: se quem tem no dé a quem nfo tem, antes de que se acenda a guerra entre cles, é preferfvel que alguém tire de quem tem para dar a quem nao tem. Mas quem, entretanto, serd esse alguém? ‘Nio ha resposta se nao se partir de ponto de que os ho- ‘mens sfo diferentes entre si: mais cu menos fortes, mais ou menos jovens, mais ou menos inteligentes, mais ou menos ‘onitos, mais ou menos bens; e nunca é idéntica a medida do mais ¢ do menos. Hé entre eles, inclusive nas sociedades pri- mitivas, individuos privilegiados. E cles exercem naturalmen- te sobre os outros a fungiio de chefe ou de cabega, Mancmio Agtipa, com seu famoso apdloga, aproximou-se da verdade 18 COMO NASCE G DIREITO mais do que ele mesmo, ¢ os demais aereditaram. A sociedade tem uma eabeca pela mesma razio pela qual 0 corpo humano tem uma, Nao € que a sociedade se parega com um organismo vivente; 4 um organismo vivente. A seciologia € um capitulo da biologia. A cabega, dentre outras coisas, vé e ouve, olha ¢ escuta, E singular o parentesco filolégico entre caput e capio, de onde vem nosso eapire, captar ou compreender. O chefe capta ou compreende mais do que os demais, ou, melhor ainda, capta ou comprcende pelos demais. ‘O que a cabega ou chefe compreende é, simplesmente, que tem dé ¢liminar a guerra. Também scu compreender é len- toc fatigante. Comumente, sente a necessidade de eliminar a guerra para fazer a guerra: jogo de palavras que se esclarece procisando: eliminar a guerra entre os seus, para fazer a guerra contra os demais. A Hist6ria, incluindo a Pré-Histéria, de- monstra que a guerra vai progressivamente deslocando-se dos individuos para os poves. Os romanos, por exemplo, para fazer guerra contra os demais povos ¢ conquistar, pouco a pouco, ‘no somente a Itélia, como também uma boa parte do mundo entio conhecido, tinham necessidade da ordem interna. Concordia minimae res crescunt, discordia maximae ditabuntur (Pela coneérdia as coisas mfnimas crescem, pela discérdia até as maiores so desbaratadas), dizia sua sabedoria. Se nio tivessem estado em acordo e unidos, no teriam podido se impor aos demais povos. Mas, a fim de que os romanos se impusessem aos de~ mais povos, era necess4rio que alguém se impusesse aos ro- manos. Posto que estes no tinham em si uma dose de moralidade suficiente para se abster espontaneamente da guerra ‘entre eles, era necessdrio uma cabeca para que fizessem por forga o que no sabiam fazer por amor, A imposi¢do, natural- 19 ‘bandido. FRANCESCO CARNELUTT mente, nao pode ser mais do que o efeito de um mandate. O chefe é aquele que manda: ixbet. Exatamente em sua denomi- nago (ius), 0 direito se vincula ao mandato. E 0 mandato, 0 que é? Antes de tdo, um preceito: indicagao de: uma eonduta que hd de se seguir: faga isto, no faga aquilo. Indicagao que, s¢ quem add é um verdadeiro chefe, ¢ como tal est provide de autoridade, pode jd por si sé perswadir a quem a recebe. Mas, quando se trata de seus interesses, ¢ sobretudo dos referentes ao té-los, nao € fécil que um homem se preste a0 sactificio de se abster de aten- der & sua satisfagdo ou pelo menos de delimité-la. Por isso, o preceito, se pode ser suficiente, nem sempee € suficiente; inclusive, na maioria das vezes, nao bastaria se do estivesse reforgado por uma ameaga a qual se dé. nome de sanpdo; entio, passa a set um mandato: “Se fizer o que eu te proibo que faga, ser4 castigado. Se nao der o que Ihe mandei dar, isto Ihe seré tirade.” A sangfo introduz a forga na nogao do . porque naturalmente, enquanto niio se obedecer ao pre~ ceito, necessdria se faz a forga para ser posta em ato. Este ele- mento da forga constitui a verdadeira diferenga entre 0 direito ea moral, ¢ daf a neaturalidade do direito em comparagio com a sobrenaturalidade da moral. Por isso, 0 direito nasce sobre ‘o signe da contradicdo: serve-se da guerra para cor ‘ra; para que- bandido nfo ataque @ viajante, o policial ataca 0 ra guer- distingue o direito da moral, © unifor me distingue o policial do bandido. Exatamente porque 0 ban dido faz, simplesmente economia e 9 policial faz, pelo contri rio, direito, arvora-se este no signo de sua dignidade, Isto quer dizer que se 0 meio do qual tanto um quanto 0 outro se servem 20 COMO NASCE 0 DIRETTO sempre a forca, o fim a que se dirigem € diferente: 0 bandido combate para si mesmo ¢ o polictal, para os demais. O direite 4 pois, uma combinagao de forga e de justiga, e dai que em seu simbolo se encontre a espada ao lado da balanca. 21 Tl O DELITO 0 fim do direito, dizfamos outro dia, € climinar a guerra. Em ordem l6gica, como em ordem hist6rica, o primeiro man- dato do chefe €: nde fagais a guerra uns aos outros, pois do contrério sereis castigados. Assim, onde impera o direito desaparece a guerra e, em seu lugar, entra o delito, Isto nfo quer dizer que desapareca de imediato o fato ao qual se dé.o nome de guerra, mas que muda de nome; sob a mudanga do nome est4, naturalmente, uma mu- taco radical de seu valor social. Antes, permitia-se fazer a da; antes, quem a fazia era respeita- do, e depois desprezado; antes, se tivesse vencido, era-lhe de- cretado o triunfo, depois se o-colocava na pristio; antes, o pro- duto do saque era seu, ¢ depois the era arrebatado, Esta é a razio por que hoje se fala em guerra apenas entre os povos € nfo mais nos individuos: a guerra entre os individuos pas- sou a ser wm delito, O Ynico residuo da guerra admitido entre 08 individuos é 0 que toma o nome de legttima defesa: ainda hoje, aquele que for injustamente agredido pode opor a forga.a agressiio. A guerra, dissemos, é'a invasio de dominio alheio; por isso, as forma primordiais do delito sin 0 homicidie ¢ 0 furto: agressio ¢ o dominio em suas formas elementares: 0 corpo humano e as coisas. Sab este aspecto, os dois primeiros pre- ceitos juridicos so: ndo matar e nao roubar. A estes precei- 4 FRANCESCO Caner tos vai unida a sangdo: “Se matar ou roubar, Vai lhe acontecer isto e aquilo.” Mas o que Ihe aconteceré? Acontecerio duas coisas. Pri- meira: posto que roubou, sér& colocado na pristo, Segunda: a coisa roubada the seré arebatada para set restituida ao dono. A estas duas sangSes se di o nome de sangdo penal e sangdo civil, de pena e de restituigdo. Assim surgiu o conceito rudi- mentar do delito: um ato, isto é um fato voluntdrio do ho- mem, daninho @ ordem social e por isso reprimido com a pena € com a restituigdo. O homicidio ¢ 0 furto, figuras originais do delito, dei- Xam transluzir no direito a face da guerra, Pouco a pouco, & medida que a sociedade se adianta e, portanto, se organiza juri- dicamente, vio se manifestando ovtras formas de delito, Acres- centados na sociedade 0 sentido ¢ a necessidade da ordem, multiplicam-se 0s preceitos penais e com eles as figuras do quando uta determinada conduta se conceitua de tal modo que determine uma desordem nociva a vida em comum, castiga-se isso com a pena. Isto explica o fato de que nos cédi- gos penais modernos as figuras do delito tenham se tornado tio numerosas que nfo seja possivel numerd-las aqui nem se- Quer em suas mais altas manifestagdes: seu estado constitui objeto de um dos ramos principais da ciéncia do direito, que se chama direita penal Aevolugio do ordenamento juridico 6, exatamente, no sen- tido do emprege da pena para os fins de reprimir uma variedade cada vex maior das chamadas conduias anri-sociais, Alé certo ponto, este enriquecimento da flora penal corresponde & linha de desenvolvimento de direito, E certo que segundo essa linha castigam-se penalmente certos atos daninhos & sociedade, se bem que os tenham cometido sem vontade dirigida para fazer 0 mal, por imprudéncia on negligéncia (dai a distingao entre de- litos dolosos e delitos culposos); ¢ também certos outros, que wu COMO NASCE O DIRECTO produzem um dano social néio mais por se ter feito algo que no se devia fazer, mas porque nao se fez algo que devia ser feito (por exemplo, no se socorreu um homem cm perigo de morte; donde a outra distingio entre delitos comissives e deli- tos omissivos); e, finalmente, no sentido em que se castigam alos que nado tém uma substéneia de verdadeira imoralidade, mas que, contudo, so, ou podem ser, nocivos & convivéncia social ~ sao as contravencées. Pelo contririo, é licito davidar gue corresponda ao desenvolvimento fisiolégice do direito a tendéncia a reprimir penalmente certos alos apenas por sua opo- sigao, nfio mais a ordem social, mas a certas formas de ordenamento politico: este aspecto da evolugaa do direito pe- nal pelo qual se apresenta o mencionado delito politico ao lado do delito comm, se bem que sugira ao estudo muitas reservas, hoje vai tomando cada vez maior consisténcia e apresenta por acaso um sintoma alarmante da degeneragio do ordenamento juridico. Acontece assim. que, pouco a poueo, 0 conccito de to vai deslocando-se. Em sua origem, 0 delito devia ser um ato imoral, que, pela gravidade do dano que dele se segue para a ordem social, castiga-se com a pena; em outros termos, 0 cen- tro de gravidade do delito estaria na moral, em virtude da evo- lugio a que me referi, um fato se qualifica de delito nem tanto por razies morais quanto por raztes juridicas, ou seja, nem tanto porque merece ser castigado quando porque € castiga- do. © caréter positive do delito consiste, pois, na punibilidade de um fato do homem. ‘Que é, pais, a pena? A propria palavra diz que é uma dor, A pena tem, portanto, uma fungio aflitiva: faz sofrer, E por que faz sofrer? Evidentemente, porque a ameaga do sofrimen- to, no qual consiste a sangiio penal, serve para retrair o come- timento do delito, constituindo um estimulo contra a tentagiio. Fala-se a este propdsito de uma fungiio intimidativa da pena, a ae FRANCESCO CARNELUTTL qual serve, portanto, para a prevencdo dos delitos. Preveng’io se diz geral ¢ especial: geral, enquanto se dirige aos demais, 0 quai, ao ver eastigado o delingtiente, tomam disso um exem- plo saudavel; especial, enquanto a experiéncia do castigo ensi- na o castigado mesmo a nfo reincidir A pena, todavia, apenas serve para prevenir outros deli- tos? Hé aqueles que entendem que sim. E uma das mais antigas © mais graves questOes a de saber se se castiga apenas ne peccetur [a fim de que nfo peque] ou também guia peceatum est [porque pecou], ou seja, se a pena, além da funcao preven- tiva, tem também fun¢So repressiva. Comumente, os que afirmam a funcdo repressivaa expli- cam pela necessidade de rerribuir @ mal com o mal; daf que a funedo repressiva se resolva na funeao retributiva, ¢ se define pena como malum passionis propter malum actionis: am mal de que se sofre pelo mal que se fez sofrer. Esta concep- ¢40, se bem que ainda predominante, é contréria, antes de wdo, ao ensinamento de Cristo, ao qual disse claramente que no é a alma, mas o bem, 0 que pode vencer o mal. Seu vicio Igico estd em confundir o mal com a dor. Que a pena seja uma dor, est bem, mas que a dor seja um mal, af esté.o erro. Se a pena, pois, nao pode ser um mal, teremos de consideré-la um bem? Sem diivida, posto que a dor é meio da redengilo, A via por onde a pena vem a ser um bem € © arre- pendimento. A fungio repressiva da pena se resolve, pois, na peniténcia. esta uma verdade intuida por aqueles que atribu- em ao castigo a finalidade da emenda. Mas a intuigio nfo se traduziu ainda em ago. Nosso sistema penal ainda esté domi- nado pelo princfpio da retribuigao, do que no é mais um resi- duo da vindicia ou vinganga. Em outras palavras, a pena é obje- 6 COMO NASCE © DIREITO to de uma concepgto fisica ¢ nao de uma concepedo espiritual Sob este aspecto, que € 0 mais elevada, a ciéncia, ¢ ainda mais a pritica do direito penal, ainda esté muito atrasada, orl IV A PROPRIEDADE O castigo do furto implica o reconhecimento da proprie- dade. Nesta simples proposigdo expressa-se @ nexo e alé cor- relagio entre o direito penal ¢ o direito civil, os quais sfio an- verso e reverso de uma mesma moeda Dissemos, na segunda ligdo, que a propriedade nasce no terreno da economia mais do que no do direite, Mas neste ter- reno sua tutela & encomendada exelusivamente &s forgas do proprietério; se cle niio chega a defendé-la, escapa-se-Ihe a pro- priedade, Mas quando quem se apodera das coisas de outro 6 castigado, ou seja, quando se profbe © furto, no € mais ape- nas 0 proprietério quem defende seu dominio, isto é em pri- meiro lugar sua casa; & porta dela estio 0s policiais. Entdo, a propriedade, de instituto puramente econdmico, passa a ser um instituto juridico e até se converte em ure direito. ‘Aqui se apresenta uma espécie de jogo de palavras © qual é necessério tratar com clareza, Até agora, chamamos direita a0 ordenamento juridico, ou seja, ao conjunto de mandatos que foram; ou, para lhe fazer compreender melhor, ao conjunto das cédigos e das leis. Mas como se pode chamar dizeite tam- bém a propriedade? Esta espécie de confusao se explica levan- do-se em consideragio as expresses utilizadas pelos roma- 20 FRANCESCO CaRNALUTHE hos, que tiveram um admirvel sentido do direito, e dos quais, de todos os modos, pravém nasso pensamento jurfdico, ‘Vimos que 0s romanos, para dar significado ao direito, diziam ius; assim o faziam porque se resolve em um sistema de mandato (iusswm, iubere). Assim sendo, de que for- ma se fez, no direito romano, o reconhecimento-da proprieda- de? Q furto ndo consistiu em levar a coisa de outro sic et siinpliciter, mas em levé-la contra a vontade do proprietério. Isso quer dizer que se atribuiu ao praprietdrio 0 poder de per- mitit ou de proibir que outro se apoderasse de suas coisas: e, Portanto, um poder de mandato, exatamente porque sé resolve em uth ibere (mandar), chamou-se ins. Se, a0 passar diante de um mercado de frutas, tomo uma maga sem pagé-la, sou culpado de furto apenas na condiego de que o dono de merca- do de frutas ndo tenha permitido que a tomasse; isso quer dizer que a tutela de sua propriedade depende dele, de sea mandato, de sua vontade. Assim sendo, o ceme do direito & sempre esse, 44 que o mandato provém do chefe ¢ este reconhece no stidito © poder de mandar em relago a certos interesses seus. A ver- dade é que quando © dominus profbe ou permite alguém entrar ‘em sua casa faz direitodo mesmo modo que o faz 0 chefe quan- do profbe 0 furto eu o homicidio. Hoje, a fim de evitar confu- 86es, chama-se direito objetivo o conjunto dos mandatos jurf- dicos ¢ em particular o conjunto das leis; ¢ direito subjetivo o poder de mandar em tutela dos proprios interésses, reconhe- cendo ao individuo, e em particular o proprietério. Espero ter chegado, assim, a fazer compreender como a Propriedade, de instituto puramente econémico, passou a ins- tituto juridico e, mais concretamente ainda, a um dircito. Em Outros tempos, se alguém quisesse entrar na casa do outro, dono da casa ndo podia comtar mais do que com suas préprias 30 COMO NASCE 0 DIREITO forgas; hoje, quando ele negar a pensfo ¢ o outro insistir, pode chamar a policia. A propriedade, portanto, garante-ao individuo © gozo exclusive das coisas que so objeto dela, c dessa forma se chamam coisas préprias ou suas: coisas iméveis ou coisas méveis, coisas inanimadas ou animadas. Em outros tempos, 0 objeto de propriedade podia ser também o homem, especial- mente outro homem, 0 qual, exatamente porque servia de ins- trumento, como um animal de carga, ou de tiro, au de corrida, ‘chamava-se servus. A aboligio da escravidio, devido ao cristia- nismo, excluiu do Ambito da propriedade o outro homem, mas nio 0 proprio homem, ou seja, o préprio corpo do proprieté- rio, que € 0 primeiro objeto de sua propriedade, se bem que se tate de uma propriedade regulada de forma diversa que a das coisas, exatamente no sentido de que a vontade privada se lhe Feconhecem, em relagio ao gozo de seu corpo, poderes me- nos amplos do que em relagio as coisas. E-eu posso, por exem- Plo, deixar que alguém mate meu cachorro, mas, se ele o matar com © meu consentimento, nfo serd castigado, Entretanto, embora eu tenha dado meu consenéimento para que me matem, isso nao excluird que quem o fizer seja culpado de homicidio. ‘Que © dominio passe a ser juridico €, come tratei de fa- zer compreender, o termo correlativo da proibigdo juridica do furto. Propriedade ¢ furto so dois contrarios, e como tais Jogicamente vinculados. Nao se pode proibir o furto sem te- ‘conhecer a propriedade, e no se pode reconhecer a proprie- dade sem proibir 6 furto. Daf provém a comelatividade do di- reito penal e do direito civil, os quais representam os dois la- dos de uma mesma mocda. Em outras palavras, nao poderia existir © direito civil sem o direito penal, nem este sem aque- le. A distingaa entre ambos é, portanto, I6gica, nao histérica. a. FRANCESCO Cagneturn ‘Nao se pode dizer que um tenha nascido antes do outro; nasce- ram ao mesmo tempo, Assim, & solugdo penal, de que falamos nas ligdes prece- dentes, aerescenta-se a sango civil; e sia estes também os dois aspectas da sangfo. Para se tomar consciéncia disso, pen- 84-82 que, SC 0 lado fosse castigado mas pudesse reter a coi- saroubada, ndo ficaria restabelecida a ordem; a fim-de que esta se restabelega, & necessisio que se tenha de restituf-la, A se- gunda forma de sango, ou seja, a sango civil ao lade da pena, consiste, pois, na restituigo. Os juristas dizem que, enquanto a pena tem caréter aflitivo, o cardter da restituigao & satisfativo, enquanto cla satisfaz o interesse que a transgressdo do manda- to tinha lesionado: por isso, recupera o proprietério a coisa da qual tinha sido privado. Verificando-se bem, contudo, também a restituigdo tem seu lado aflitivo; com efeito, o ladrao de quem s¢ tira 0 que tinha roubado sofre pelo menos por ter trabalhade inutilmente; por outro lado, também a pena tem o seu lado satisfative, sobretudo se chega a redimir @ condenado, A propriedade é, historicamemte, 0 primeiro dos direitos subjetivos. O direito subjetivo nasce como propriedade, mas, A medida que progride o ordenamento juridico, surgem outros direitos subjetivos, tanto no &mbito da propria propriedade quanto fora dela. O mais importante de tais progressos diz. res- peito & constituigao de direito de crédita ao Indo do direito de propriedade. © direito de propriedade ¢, para me explicar de algum. modo, o direito sobre a prdpria coisa, enquanto 0 direito de crédito tem por objeto a coisa alheia, O nascimento de um di- reito sobre a coisa alheia, que & primeira vista parece absurdo, vineula-se ao problema da sangao civil, ao qual recentemente nos referimos, Suponhamos que o ladrdo, tendo consumido a (COMO NASCE 0 DIRELTO coisa roubada, nfo esteja em condigdes de restinut-ta; serd esta uma boa razio para que ele ndo tenha de dar ao proprietério alguma outra coisa em compensagio pelo que Ihe tirou? Bis aqui como, ao lado da restituigo, constitui-se outra forma de sangéio civil, que € 0 ressarcimento de dana, Aquele que foi roubado o ladrao deve restituir-Ihe a coi- si roubada e, se a restituigdo no vale para reconstituir a situa- co tal como era antes, tem de Ihe dar, além do mais, as suas coisas, até 0 limite do dano sofride por aquele. Daf surge um direito nfo mais sobre as coisas préprias, mas também sobre as coisas alheias, ao qual se dé 0 nome de direito de crédite. Aqui esté em germe um instituto juridico que, com o progres- so da sociedade ¢ a complexidade cada vez maior das relagies ‘econ®micas, assumiu no direito moderne um desenvolvimen- 10 prodigioso, a ponto de a importincia do direito de erédito ultrapassar hoje a do direito de propriedade. Me O CONTRATO terceiro dos institutos econémicos (0 primeira vimos que era a guerra € 0 segundo a propriedade) que explicam 0 “hascimento do direito é 0 contrato. © contrato, como 0 dominio, esta logicamente vincula- do & guerra; o dominio é um pris dela, ¢ © contrato € um posterius; © dominio a faz acender, ¢ 0 contrato @ faz uit, Os combatentes, quando chegaram ao ponto de equilibrio, tratavam de se assegurar das posigdes conseguidas pelo futu- To! 0 vitorioso, para garantir as vantagens da vit6ria, eo vencido, ara se proteger contra perdas ulteriores. © contraio implica, pois, de uma projecio para o futuro; tem a finalidade de fixar 0 porvir certas posigies atuais: por isso € que implica uma pro- mesa teciproca, ¢ a promessa é uma declarago que se refere a0 futuro, A promessa, por sua vez, fundamenta-se na fides, ou seja, em tltima anélise, na moralidade da outra parte; exatamen- te para reforgar essa confianga estavam dirigidas certas formas solenes que no direito antigo acompanhavam 0 contrato. Por infelicidade, dizfamos, a economia € inimiga da moralidade. A_relagdo entie as forgas, com o transcurso do tempo, desloca-se; quando um dos contraentes sente ou acre- dita sentir que suas forgas cresceram em relago ao que eram no momento da conclusio do contrato, naturalmente se vé de- terminado a violé-Lo. Por isso, dissemos, 0 contrato, no terre- tin 35 FRANCESCO CARNELUT no econémico, vale mais para interromper do que para nar a guerra; é, na verdade, mais um instrument de trégua do que um instrumento de paz Para fazer que venha a ser ou para tratarde pelo menos de fazer que venha a ser um instrumento de paz, serve 0 direito, Do mesmo modo que de instituto cconémico se converte a propriedade em instituto juridico, também o contrato assume eficdcia juridica; em outros termos, assim como o mandato do chefe garante o dominio, assim também garante o contrato: Uti lingua nuncupassit, ita ius est, diziam os Quirites: de acor- do com as palavras que se pronunciaram, assim é o dircito. [ste significa que aquilo que com o contrato se havia estabelecido valia como direito ou, em outras palavras ¢ mais exatas pala- ‘vras, que 0 contrato vinha.a ser um mandamento, € aos contra- tante se lhes havia concedido 0 poder de mandar reeiproca- mente. Preste, pois, alengdo: 0 fato de se converter o contrato em juridico no é mais do que um desenvolvimento I6gico de se ter convertido em juridice © dominio. Com efeito, 0 que quer dizer se a propriedade passou a serum direito? Nao é outra coisa senfio que uma pessoa tem 0 poder de mandar em suas coisas. Porque eu sou 0 dona dela, tenho o poder de permitir ou de proibir que alguém entre em minha casa. Porque eu sou o dono de meu cavalo, tenho © po- der de permitir ou de proibir que outro fara uso dele Se 0 permito, ¢is aqui um contrato ao qual, conforme o g020 do cavalo se permita precariamente ou para sempre, da- mos-Ihe @ nome de comodaro ou de doagdo. Um contrato, porque, para concluf-lo, concorrem duas declaragées: a de quem dé-e ade quem recebe - duas declaragGes quae in idem placitum consentiuns, diziam 9s romanos, ou seja, que con~ cordam entre. si —, por isso a lei italiana diz que 0 contrato € % COMO NASCE © DIRETEO um acordo entre as partes para constituir um vinculo de direito, € quer dizer um acordo ao qual aqueles que 0 concluiram, esto vinculados sob pena de se verem constrangidos a observé-lo. Os exemplos recém-considerados dizem respeito a algo que se chama contrato gratuito: chama-se assim porque é uma apenas a parte que dé e outra a que recebe. Mas, se vocé subs- titui a doagde pela permuta ou pela venda, ou 0 comodato pela locagao, verd que o contrato se complica, porquanto cada uma das duas partes da ¢ reccbe: na permuta, cada uma dé a outra ‘uma coisa diversa; na venda ou na locagao, uma dé uma coisa a outra dé o dinheiro, por isto, em tais casos, fala-se em con- {rato oneroso. Entre 0 institutos juridicos, 0 contrato é o exemplo que mais coloca em evidéncia um processo que cu chamaria de fecundagae moral da economia. A economia pode ser com- parada & terra sobre a qual a ¢tica espalha sua semente; sobre essa terra e dessa semente nasce, cresce € se agiganta o direi- to. E no hé no complexo ordenamento juridico uma vegeta do mais luxuriante do que a do contrato. Semele, a economia seria um paisagem desolada. Com efeito, 0 contrato é um instrumento jurfdico sem 0 qual no poderiam atuar as duas formas fundamentais da cola- boragio cconémica: o intercdimbio ¢ a associagio. Os dois contratos t{picos, sob este aspecto, so a venda e a sociedade, mas em tomo deles veio florescendo ¢ constantemente ger- mina novamente uma flora.contratual maravilhosamente rica. Basta que cada um dos que me escutam observe um pouco, & luz destas noges elementares sua vida de cada dia, para se con- veneer, por um lado, de que sem 0 intercmbio ou a associag0 ele nao poderia satisfazer mais do que em uma medida total- mente inadequada suas necessidade, e que, por outro lado, do a7 | } | FRANCESCO. CARNELUTTI contrato s¢ serve continuamente, da manb& & noite, para se alimentar, para ter uma casa, para cultivar seu espi para, se curar, para se divertir e, geralmente, em todas as circuns- tancias da vida. O contrato, por sua vez, é a forma historicamente primi- tiva de um fenémeno juridico mais vasta, ao qual se do nome de negécio juridico, Apenas desde aproximadamente um sé- culo a ciéncia obteve a nucleacio dessa figura, da qual 0 con- {rato 6 0 exemplo mais antigo e, portanta, mais conhécido, mas No 0 tinico, O cardter clementar destas ligdes no me permite aprofundar no tema que, entretanto, no podlia deixar de ser mencionado; mas, por acaso, um exemplo pode ser suficiente para cstimular e orientar a este propdsito a intuigao de meus discipulos. Observem, pois, que 0 proprietério, nfo apenas pode doar ou vender a sua coisa enquanto vive, mas que pode tam- bém dispor dela para o tempo posterior A sua morte: este po- der, que em outros tempos era ilimitado, veio se restringindo Pouco a pouco, por motivos que nao podemos expor aqui, mas ainda existe e € de se esperar que se conserve. O ato que exer ce essa eficdcia ultra vitam, mais além da vida, € 0 testamen- to. Trate, pois, de distinguir 0 contrato (suponhamos: uma ven- da) do ‘estamento. A diferenga esta em que © contrato, mesmo guando seja apenas unilateral ou gratuito, sempre supe o con- sentimento das duas partes; a mesma doagao nilo produz vincue Jo algum se o donatiria, ou seja, aquele que recebe, niio disser sim; 0 testamento, pelo contréria, consegue seu efeito ainda que o beneficiado por ele silencie; 6 necessério, dizendo com simplicidade, nem tanto que este diga sim, quanio que nem diga nfo, Mas, exatamente por isso, 0 testamenta (e outros negéci- 6s andlogos, que nfo posso mencionar aqui) manifesta com 38 COMO NASCE 0 DIREITO mais clareza sua natureza de mandato, ou seja, de exercicio de direito: nfo h4 um ato que expresse a propriedade melhor do aquele com o qual o proprietéria pode dispor, com respeito aps seus bens, para mais além dos limites de sua vida. Ao VI ALEI ‘Vimos que a transformagia da guerra em delito © a con- versio da propriedade e 0 contrato em institutos de direito dependem, logicamente, de um mandato, ¢ © mandate supoe uum chefe que o pronuncia, Mas este € um esquema demasiada- mente Vago para quem quiser compreender, assim seja em for- ma rudimentar ¢ suméria, como nasce o direito. Vimos tam- bém que o mandato se forma com © preceito ¢ com a sangao, ‘mas resta saber quando © como se formam. O mandato deve acontecer no momento em que dois ho- mens, em vez de entrarem em acordo, de respeitarem o.domf- nio alheio, de observarem @ contrato, esto a ponta de fazer a guerra: enlo, é necessirio que sintam que se Ihes prescreve uma condutae se os ameaga com uma sangiio. Mas é claro que se deve observar neste momento que-o mandato deve estar for- mado antes desse momento; do contrario, chegaria demasia- damente tarde, Teoricamente, ¢ possivel, mas praticamente muito raro que aqueles que se véem induzidos a fazer a guerra dirijam-se ao chefe para fazer com que cle lhes prescreva a conduta id6nea para evité-la, Por outro lado, se 0 mandato deve estar formado antes que surja o perigo da guerra, nio pade ser um mandato espect- fico e concreto, ou seja, dirigido Aquelas determinadas pesso- aS com respeito As quais se manifesta o perigo; nfo pode estar 4) MEARCIS GARNELUTTE formulado, pelo contrério, a nao ser de forma hiporética ou geral. Geral, porque se dirige a todos os cidados, ndo a este ou Aquele; hipotética, porque se lhes presereve uma conduta € 0s ameaga com uma san¢ao para o caso de que se manifeste entre eles o perigo de uma guerra, Em uma palavra, o chefe nao diz a Ticio: “Vocé nao deve matar ou roubar, ¢ se matar ou rou- bar as conseqiiéncias sero que se dhe infringira uma certa pena: terd de restituir a coisa roubada e ressarcir os danos” — mas sim: “Se um cidadio qualquer matar um homem ou roubar uma coisa, se lhe aplicardo tais ¢ tais sangGes, ou, mais resumida- mente, quem mata um homem ou rouba uma eoisa sofrerd esta ou aquelas conseqiiéncias.” A estes processos-mandatos hipo- téticos dé-se o nome de leis. Passemos ao largo porque se Ihes da este nome e qual seja a relagiio entre estas, que so as leis juridicas, ¢ aquclas ‘outras que s¢ chamam leis fisicas ou naturais, pois, se bem que este seja um problema de sumo interesse, o cardter ele- mentar da ligde que estou dando nd me permite expd-lo; bas- ta-me indicar que 0 nome da lei foi adotado antes no campo do direito do que da natureza, e, portanto, os juristas forjaram in- tuitivamente um dos conceitos mais importantes da cigncia logica. A primeira impressio € de que a Iei deve ser expressa ou explicita, no sentide de que deve ser formul: proposigGes verbais oportunas. Inclusive nés habituados nao apenas as leis expressas, mas as leis escritas, das quais temos exemplos abundantes nos cédigos distintos. B certo que a lei é uma declaragio de vontade do chefe, e como tal deve consistir cm um comportamento exterior apto para fazer entender sua vontade; mas no dizemos com isso que a Unica atitude Util para este fim seja a de falar ou de eserever, 42 __COMO-NASCE O DIRETTO Por exemplo, se mesmo nao dizendo que o homicida e o la- dro serio castigados o chefe castiga uma, duas, dez, vinte, cem vezes 0 furto ou 0 homicidio, essa série de castigos dé a entender sua Yontade exatamente da mesma forma que a dari- am pata compreender as palavras. As leis podem, pois, ser tam- bém no expressas ou, como se costuma dizer, téicitas; & lei tacita dé-se @ nome de costume. Com o progress do ordenamento juridico, as leis faladas e até escritas prevale- cem cada vez mais exatamente sobre os costumes; mas esta egea tem suas excegdes, a mais ostensiva das quais se refere a0 ordenamento juridico inglés, ou melhor, a0 ordenamento dos pafses anglo-saxdes, mas tampouco esta alusdo, embora de sumo interesse, pode ser expandida pelo cardter elementat de meu curso. Compreenda-se que quanto mais progride uma socieda- de, com ela o direito, tanto mais se mulliplica o néimeto das eis. A comparacao entre um cédigo antigo e um e6digo mo- demo, ou ainda entre um sistema de c6sigos modemos, calo- ca em evidéncia esta multiplicagéo. A legislagie arcaica ro- mana estava contida na famosa Leis das Xi Tabuas, um mo- aumento legislative bastante anterior a um c6digo bal que leva.o nome do rei Hammurabi, que viveu mais de dois mil anos antes de Cristo ¢ contém pouco mais de uma centena de artiges. Se tivéssemos de contar, pelo contréria, os artigos de que se compée a legislacao italiana atual, chegariamos, sem diivida, a centenas de milhares. Em determinados momentos, em paises de leis escritas, cada uma das proposigées das leis, chamadas exatamente artigos, agrupaii-se em certos conjun- tos que siio os modemos cédigos. Na Itélia, atualmente, os cédigos sdo cinco: Cédigo Civil, Codigo Penal, Cédigo da Na- vegagio, Cédigo de Procedimento Civil, Codigo de Procedi- 43 FRANCESCO CARNELUTT mento Penal; mas esses c6digos, hoje, nao contém nem ainda sequer a maior parte das leis; além deles, existe uma quantida- de notabilissima de outras leis que diriamos extravagantes. Sio tantas que, a fim de facilitar seu conhecimento € manejo, muitas delas esto recolhidas, por iniciativa privada, em ou- tros cédigos: Cédigo do Trabalho, Cédigo Administrativo, Cédigo Tributério, Codigo Sanitirio, ete. Até certo ponto, esta m dio das leis um fon6- meno fisiol6gico: as leis se multiplicam como os utensilios de que nos servimos em nossa casa ou no exercicio das profis- sbes. Nao se pode negar, contudo, que mais além desse ponto se verifica com respeito das leis algo que se assemelha & obs- trugio da ruas de nossas cidades pelo excesso de vefculos que as abarrotam. Hoje, fala-se cada vez com maior in: em uma crise da lei como um dos aspectos mais ¥ moderna crise do direio. Também este € um tema acerca do qual devo me limitar a uma insinuagae, jé que no poderia nem estendé-lo nem aprofundé-lo, precisamente porgue constitui uum dos problemas mais graves que se apresentam & ciéncia do direito. ‘Mas sobre o que nfio posse silenciar € que os inconveni- enies da infragao legislativa nio so menores do que os devi- dos 2 infragdo monetdria, sao, como todos sabem, os incon- venientes da desvalorizagéio, Por infelicidade, da mesma for- ‘ma que nossa lira (moeda italiana), também nossas leis valem hoje menos do que as de outros tempo, Por um lado, a produ- a0 das leis, como a produgdo das mercadorias em série, re solve-se em uma decadéncia no cuidado em sua construc. ‘Mas o mais grave estd em que, ao crescerem de niimero, nilo ‘conseguem mais preencher sua fungao. Lembre-se de que esta fungio consiste em dar aos homens a certeza do direito, ov COMO NASCE 0 DIREITO seja, em Ihes fazer saber o que devem fazer ¢ ni fazer ea quais conseqiiéncia se expoem fazendo ou no fazendo, A este fim é necessario que as leis possam, antes de tudo, ser conhe- cidas, mas como faz um cidadio, hoje, para conhecer todas as leis de seu pafs? Nao mais © homem da rua somente, nem mes- mo sequer os juristas, esté hoje em condigdes de conhecer mais do que uma pequena parte delas. O ordenamento juridico, cujo maior mérito deveria ser a simplicidade, veio a ser, por infelicidade, um complicadfssimo labirinto no qual, freqlien- temente, nem aqueles que deveriam ser os guias conseguem se orientar. 4s Vil OJUIZO © problema do direito, contudo, nao se esgota com a for- mao dos mandatos e, em particular, das leis. Com efeito, um mandato pode nao ser obedecido, Nao € de crer, dentre ovtras coisas, que quando a guerra veio a serum delito fique eliminada imediatamente da sociedade, A mais ¢le- mentar experiéncia desmente esse otimismo: desde séculos e séculos a lei probe o homicidio, todavia, mesme em um pais civilizado come o nosso, quantos homieidios ainda se come- tem? E claro, pois, que para.a formagdo das leis deve-se seguir alguma outra coisa a mais. Por isso dissemos na ligdo introdutéria que as leis so um produto juridico semi-elabora- do. Essa outra coisa no pode ser mais do que a colocagiio em atividade das sangdes: se alguém matar ou roubar, poderé ser encarcerado; se nao restituir a coisa alheia, esta Ihe deve ser tirada; se ndo pagar sua dfvida, é precise Ihe tirar 0 que sirva para satisfazer o credor. Trata-se, em uma palavra, de fa- zer com que se executem as leis, depois de havé-las elaborada. O conceito da execugaio sugere a imagem do carcereiro, como também a do verdugo ou a do oficial de justiga, que de- saloja de uma casa a quem a ocupa sem ter direito, ou embarga ¢ vende os bens do devedor inadimplente. Mas um pouco de a FRANCESCO CaRNMUTHL Teflexdo faz observar que a coisa nfo ¢ to simples e que a ‘execugdo nao exige apenas as obras deles. Alguém é acusado de ter matado um homem; mas serd verdade? © dono de uma coisa sustenta que outro a ocupa sem titulo; mas esse tal, na maioria das vezes, sustenta pelo contrario que 0 tem, O credor afirma que née recebeu; mas, e se for mentira? Qualquer um verd que antes do carecreiro ou do oficial de justiga entra em jogo outra figura: o juiz — este ¢ verdadeiramente uma figura de primeiro plano, Assim, a0 lado da lei, coloca-se 0 jufco como um dos institutes fundamentais do direito, Em vex de juizo, a ciéncia maderna gosta de falar em proceso. Se nos detivermos acerca da comparagio entre estas duas palavras ¢ de seus respectivos conceitos, para a exposicao elementar que estou fazendo pode-se atribuir a uma e outra o mesmo signifi- cada, © proceso, pois, divide-se em duas fases, que se cha- mam cognigdo ¢ execuedo. Por outro lado, de acordo com a distingSe entre direito penal ¢ civil, também 0 proceso se bi- furca em processo penal e processe civil. Temos que nos de- ter um momento sobre a diferenga entre estas categorias. © processo penal, como todos saben, serve para com- provar ¢ castigar o delito; inclusive, levando em consideragio as contravengdes, é melhor dizer, geralmente, 0 réu. E o pro- cesso civil? No processo civil, vemos em discussao o propri- etdrio e aquele que ocupou seu imével, ou o devedor e 0 cre dor, ou @ esposo que quer se separar de sua esposa ¢ esta que quer permanecer como tal, ¢ outras coisas andlogas. De acor- do com o modo de pensar comm, 0 processo civil serve, en- tre dois litigantes, para dar a razdo a quem a tenha. Isto quer dizer, em linguagem técnica, que para decidir uma [itis (lide), 48 COMO NASCE 0 DIRETO. ou seja, um conflito de interesses, no qual um dos dois inte- ressados coloca uma pretensdo e 0 outro resiste a ela, proceso de cognigtio, por sua vez, de acorde com 0 significado préprio da palavra, serve para conhecer, em. maté- ria penal, se alguém cometeu ou no um delito e, portanto, se deve ou néo dser castigado; em matéria civil, qual dos dois Ii gantes tem razito ¢ quem ndo a tem. Finalmente, com 0 processo de execu, tende-se a por em pritica a lei, isto é, a modificar as evisas do modo que a lei quer. Mas isso diferentemente do processo de cognigao, que se resolve em um dizer (ius dicere, segundo a formula roma- na, donde o nome de jurisdicda), 0 proceso executive culmi- na em um fazer (ius facere). Paderfamos dizer que o proceso de cognigto encerra-se com a sentenca, a qual ndo é mais do que um conjunte de palavras; 0 processo de execugio, pelo contrério, mantém encerrado no carcere o condenado, tira do imével o ocupante abusivo, toma os bens do devedor &-05 con- verte em dinheiro para entregé-lo ao credor. O jufzo sugere naturalmente a figura do juiz, no qual a citneia do diteite reconhece cada vex mais o érgdo elementar do direito. Antigamente, néo se pensava assim: durant tempo, 0 juiza foi desvalorizado em comparagao com a lei, 0 juiz aparecia com uma figura de segundo plano em compara- (80 com 0 legislador. Mas a verdade 6 que sem 0 juizo a lei nem poderia surgir nem poderia servir para os fins de direito. (oricamente, o juizo é anterior a lei: © chefe se afirma como juiz antes do que como criador de leis; a formagio primitiva as leis € 0 Costume, e este supde uma sucessio de julzos. Por outro lado, sem o jufzo a lei seria um mandato sem cumprir e, freqitentemente, inativo. Quando a lei diz, por exemplo, que quem contraiu uma divida deve pagé-la, qualquer um de n6s, 40 FRANCESCO, CARNELUTTL para saber se tem ou nao a obrigagdo de pagar, tem de verificar se contraiu por ele ou nao uma divida, E esta verificagio se faz. as vezes de imediato; mas ndo poucas vezes apresenta, pelo contrério, notéveis dificuldades, jé que nem sempre as leis so faceis de interpretar nem os fatos féceis de comprovar. Uma ‘nunca funciona sem ser integrada com 0 juizo das partes; freqtientemente, esse juf2o nfo basta tampouco, por- que as partes, por impulso de seus respectivos imteresses, nia tém a serenidade necesséria para julgar. Entdo, em lugar da par- {c, 0 juiz atua com a sentenca, integrando a lei no sentido de que transforma o mandato abstrato e geral da Jei em um man- dato concreto € particular. A lei diz: “Quem mata um homem deve ser castigs ‘Ou melhor: “Quem contraiv uma divida deve pagé-la.” Eo juiz, tendo verificado que Ticio matou um homem ou contraiu uma dfvida, diz: “Vocé, Ticio, deve ser castigade ou tem de pagar ssua divid: ‘Além do mais, niio apenas da lei, mas também da senten- ga se pode dizer que niio é um produto juridico acabado, isto é, sem metéforas, que nao basta para conseguir os fins do direito. A este fim nao é menos necessirie 0 processe executive do que 0 processo de cognicao. Se o diteito se limitasse a dizer: “Voct nfo deve matar, ou ndo deve roubar, ou tem de pagar sua divida’’, ¢ nfo hoavesse umm juiz para condenar « homem que ‘matou, ou roubou, ou nao pago sua divida, as pessoas de ma vontade poderiam rir-se tranqlilamente de dele; 0 direito seria intitil. Mas isto aconteceria também se depois que 0 juiz tives- se condenado o homicida oua ladrao ou o devedor inadimplente nfio houvesse alguém que executasse fisicamente a condena- a0 e detivesse o ladrio ou o homicida e os retivessem na pri- silo, ou tirasse a coisa devida da mao do devedor. _COMO NASCEO DIREITO Portanto, nfo apenas € necesstirio © processo geral, a fim de que se forme 0 ordenamento juridico, mas que esta neces- sidade se refira nfo exclusivamente & chamada cognigio, mas também 4 execugio forcada. Téio-somente deste modo a reali- dade do direito corresponde ao seu conceito, no qual, como dissemos, se contém desde logo a balanga, mas também a es- pada, - O ESTADO ‘Vimos que o direito serve para ordenar a sociedade. A idéia da ordem se resolve na idéia da estabilidade. © caos € essencialmente instdvel. Entre a sociedade em desordem ¢ a sociedade ordenada hd.a mesma diferenca que entre um monte de materiais ¢ um edificio. Um edificio tem o cartiter da esta- bilidade, Estavel ¢ algo que esta, Por isso a sociedade juridica- mente ordenada se chama Estado. A idéia do direite e a idéia do Estado estio, portanto, intimamente relacionadas: no hé Estado sem direito ¢ nem direito sem Estado. Além do mais, Estado ¢ dircito nfo sao a mesma coisa, como alguns ensinaram, com um eto anilogo a0 de quem confundisse © corpo com a vida, Outro erro 6 0 de acreditar que o direito nasce do Estado, como s¢ do corpo nas- cesse a vida. A comparacao nos leva, pelo contrério, a compre- ender que ndo mais do Estado deriva o direito, e sim o Estado do direito. O Estado, isto é, a estabilidade da sociedade, é um produto, ¢ até 0 produta da direita. Hé pouco comparei, a fim de me fazer compreender, 0 Estado a um edificio. Mas a comparagio apenas em parte & exata. Com efeito, 0 edificio é imével ¢ o Estado se move. Uma Sociedade que no se move esté fora da realidade, Na realidade, a sociedade ¢, portanto, 0 Estado esto em movimento cont- FRANCESCO CARNELUTTL nuo, elemento do qual a ciéncia do direito reconhece a exis- tncia e até a necessidade, mas nem sempre chega a esclarecer a posigaio e a relago com 0 pove. Assim sendo, a histéria do direito ensina que a familia foi, em sua origem, um Estado mindsculo. Um Estado mondrquico por exceléncia, dominado por um sei ou por uma rainha, segundo as duas diregdes do patriarcado ou do matriarcads, Os historiadores do direito, especialmente do direito romano, comprovaram este carter politico da familia, depois o Estado foi crescende pouce a pouco. A familia, a gens, a cidade (polis) so as primeiras fases do desenvolvimento, depois o Estado ainda aumenta; no & necessiirio remontar muito para trés na Historia para ter a prova dessa evolugdo que se encontra ao alcance das mos nos tiltimos séculos de de- senvolvimento da historia italiana, Mas o que se deve ter também em mente € que, se a evo- lugdo acrescenta progressivamente algo ao que antes existia, 0 que antes existia nao deixa por isso de existir. Quero dizer com isso que as unidades menores nfo desaparecem porque se for- mam unidades maiores. A familia esté compreendida, mas no absorvida na gens ou gente; ¢ da mesma forma a gente na tribo ow na cidade; ¢ igualmente, a cidade na provincia, na regio, no Estado. Estado se chama, necessariamente, a unidade superior; mas as unidades inferiores, se mudam de nome, nio perdem nem a estrutura nem a fungdo. Hé que se ter consciéncia desta verdade para compreender a estrutura, ou melhor, a natureza do Estado. A pretensiio, dentre outras coisas, de negar a fami- ia para afirmar o Estado € uma das mais insanas aberragdes que podem ser adotadas na histéria do pensamento humana. Sem a famflia, o Estado nao pode viver, como nao se poderia construir um edificio se se desagregassem os tijolos com que oe ‘COMO NASCE 0 DIRE ele € construfdo, Um Estado sem familia € tao absurdo quanto um corpo humano sem células. Assim como a satide do corpo humano depende da permeabilidade da célula do misterioso fluxo vital, também a satide do Estado depende da coesao da familia, ov seja, da circulagao do amor entre seus membros. Na verdade, o Estado é uma universitas, 0 que quer dizer a versio in unum, a redugao & unidade dos homens que o inte~ gram. Assim sendo, essa redugo se opera através de uma série de estruturas progressivas, cujo estudo €, ou deveria ser, a mis- sio principal da sociologia. © Estado no se compreende se no se toma consciéncia de sua complexidade c até de sua com- plicagdo. Até agora nao se conseguiu um pleno conhecimento isto nfio mais apenas pelo pensamento empirico nem sequer pelo cientffico, Comumente, temos do Estado um conceito amais parcial do que inexato, no sentido de que compreende- mos nele apenas algumas estruturas que realmente o compoem. ‘Assim pensamos, quando se fala dele, no presidente da repi- blica, no governo, no parlamento, nos tribunais, nos munici ‘98; mas nfo, por exemplo, na familia ¢ tampouco nas associa- ges, sociedades, consércios, sindicatos, em sua variedade sem- pre crescente. O fato é, sem embar; jue, se bem que estas ‘estruturas no estivessem compreendidas no Estado, nfo to- mariam parte deles tampouco os cidadaos. Estes cidadaos, quando se devem compreender nele, nao podem estar compre~ -endidos em uma singularidade abstrata deles, mas na variedade ¢ complexidade real dos grupos do qual fazem parte. 55 Ix A COMUNIDADE INTERNACIONAL Navtltima de nossas conversas, tratando de delinear o con- ceito de Estado, vimos que este vai se desenvolvendo no tem- oa ponto de poder se assemelhar a uma planta cujo mindscu- Jo germe fosse a familia, mas que cresceu depois até chegar a obter, hoje, as dimensdes de uma drvore secular, Seria eaisa de estudar agora esse desenvolvimento, sobretudo com o fim de saber se sua dimensio atual corresponde & sua maturidade, ou se, pelo contrittio, se pode prever, e até que limite, um fucuro ulterior dele. A fase atual do Estado se define com a formula do Esta- do nacional. © da nado, diferentemente do Estado, é um con- ceito que pertence no ao direito, mas a sociologia, ou me- Ihor, @ etnologia, A nagdo é um derivado da gente (gens, de gignere) c expressa, portanto, um grupo proveniente de um tronco comum:; 0 indice mais manifesto desta comunidade ¢ a lingua, Pouco a pouco, através dos movimentos e agitagties da historia, o Estado veio se assentando sobre a nagdo, no sentido de uma coincidéncia dos limites de um ¢ de outra. Uma das Forgas ideais que operaram no século pasado e continuam ope- rando ainda hoje foi o principio da nacionalidade, entendide exatamente como aspiragdo a que cada nagdo tivesse seu pré- prio Estado, sy FRANCESCO CARNELUTTL A do Estado nacional é, entretanto, uma férmula absoluta do Estado moderno, no sentide de que j4 existem hoje Estados nltranacionais ou supranacionais ¢ 0 exemplo mais intcressan- te deles € a Confederagao sufga. A palavra confederacdo nio deve levar a engano, fazendo acreditar que nao se trata de um Estado unitério; indica, pelo contrério, apenas uma caracteris- tica de sua organizagio juridica, que € a descentralizagdo. A Sufca é um Estado unitétio, mas descentralizado, como, para, colocar outro exemplo, os Estados Unidos da América, que fio so, de modo algum, um conglomerado de Estado, mas um tinico Estado, se bem que descentralizado também. A presenga. de Estados plurinacionais estimula, pois, pelo menos, se a dtt- vidasobrea fase nacional do Estado pode ser consideradacoma a Ultima do desenvolvimento do Estado; em outros termos, se a progressiva expansio dos ordenamentos juridicos deve ser detida nos limites de uma nagao. ‘A solugdo negativa desta divida parece estar implicita na existéncia do chamado direito internacional, existéncia hoje em dia conhecida mesmo por aqueles que estejam provides somente de uma cultura elementar: hoje, todos sabem, se bem que seja a grosso modo, que existiram e existem tratados de paz, tratados de alianga, convenges internacior socieda- des © organizacdes de nagdes, ouvem qualificar esses fend- menos com a formula internacional. Pois bem, se, conforme ‘vimos nas ligdes passadas, Estado e dircito esto intimamente. relacionados 2 ponto de que no pode haver Estado sem direito nem direito sem Estado, ao direito internacional deveria corresponder 0 Estado internacional. Mas a prépria formula de Estado internacional agrava em vez de resolver a diivida: se o Estado existe, esti sobre seus stiditos, e ndo entre eles. Com efeito, o direito postula @ man- COMO NASCE © DIRECTO dato, ¢ © mandato supée um mandante e um mandado. Pelo contririo, esta formula é adotada exatamente para significar que © direito internacional no prejulga de modo algum sobre a soberania dos Estados nacionais singulares, mas como € pos- sfvel mandar num Estado soberano, posto que a soberania se entende como a posigdo nem tanto de quem esta sobre quanto de quem nao tem ninguém sobre si? Uma nova razao de divida provém de fuio de que o direi- to exclui a guerra, Um Estado no qual a guerra nio esteja proi- bida nao é um Estado. Assim senda, o chamado direito interna- cional, tratando-se de moderar a guerra, nfo a proibe, contudo nio existe uma norma deste direito de acarde com a qual 0 fazer guerra esteja qualificade de-delito, A conelusdo que se tem de tirar, em termos simples, é de que até agora o Estado supemacional esta em vias de constru- 40. Hé alguns exemplos parciais de superagio do limite nacio- nal, mas séo ainda demasiadamente poucos para poder tirar deles a seguranga de que essa superago esta em via de se es- tender, ¢ menos ainda de que se possa chegar Aquele tipo su- -premo de Estado supernacional que seria o Estado mundial, 0 chamado direito internacional, portanto, nfo é ainda verdadeiro € 0 préprio direito, como o € 0 direito interno; € tum direito que se est fazendo, n&o um direito ja feito; um feto, nem ainda um recém-nascido; por isso a experiéncia des- te se fazer-se. Tal como se est realizando diante de nossos olhos é preciosa a fim de que possamos nos precaver de como nasce 0 direito. O direito ¢ © Estado supemacional ainda nia nasceram porque, por um lado, as guerras entre os Estados na- cionais nao vieram ainda a ser consideradas um delito, € 0s tratados conelufdos por eles ainda nao adquiriram a verdadeira e propria eficdcia do contrato. 59) FRANCESCO CARNELUTTE Contudo, tendo-se de fazer uma previsio, esta seria pru- dentemente favorével 20 movimento para o qual hoje se chama de Comunidade internacional. Seré us movimento lento © fatigante, que niio poder se realizar mais por etapas: wma des- sas etapas € a que estd tratando de realizar diante de nossos olhos com a Constituigio dos Estados Unidos da Buropa.’ Mas és devemos e podemos esperar que o movimento chegue a um bom termo, o qual suponha que o Estade mundial se forme sem a guerra e nfo por meio da guerra, ou seja, nflo porque um dos Estados atuais suprima a todos os demais ¢ se aposse do ‘mundo, mas pelo acordo de todos com vista A paz. Mas © acar- do nda poderd ser obtide enquanto ndo se difundir entre os povos as grandes e simples idéias da mensagem eristf e & luz delas nie se retifique 0 falso conceito de soberania a que antes me referit enquanto os homens acreditarem que soberano € apenas aquele que ndo tem de abedecer a ninguém, nunca po- derio conseguir a paz, Soberano quer dizer, indubitavelmente, a cabega; mas sea cabega esid sobre os demais membros, ta- bém esta debaixo da arcada celeste. Apenas quando o soberano souber escutar ¢ obadecer a voz que Ihe vem de cima, no-pr6- prio sentido de escutar, ¢ mandar tal como a ele se Ihe manda fazer do alto, obter-se-Ao 0s tiltimes limites do Estado ¢ do direito, © NUT: Hoje, ano 2001, Comunidade Bcondenica Européia ou Unite Europea, Interessanie observar que este texto foi escrito por volta de 1935. x A JURISPRUDENCIA. Vimos, nestas conversagbes, nascer 0 direito da semente da moral jogada sobre a terra da economia; nascer © creseer até se converter em uma 4rvore majestosa, O frute que esta Srvore est destinada a produzir chama-se justica. Nao poderia cu encerrar este breve curso sem tratar de orientar também acerca desse aspecto do problema o pensamento de meus ouvintes. Existem drvores estéreis ¢ drvores fecundas, De que depende a fecundidade de nossa drvore secular? Para este fim € necessério, antes de tudo, que nos enten- damos acerca do conceito da justiga. Nao hé diivida de que di- reito e justiga no so a mesma coisa. Ha entre eles a relagao de meio para fim: direito é 0 meio; justiga é 0 fim. © produto fornecide pelas oficinas do direito € bom ou mal de acordo com que sirva ou nio sirva & justiga. Mas qual ¢ esse fim” Qs homens tm, acima de tudo, necessidade de viver em paz. A justiga é a condigio da paz. A paz, dissemos no prinei- pio, nic éatrégua; a trégua é efémera, a paz € duradoura. A paz | €um estado da alma que extingue o desejo de mudanga. Hie manebinus optime [aqui pérmaneceremos otimamente} pode- ria ser seu lema. Os homens conseguem esse estado de animo quando ha ordem neles ¢ ao redor deles. A justica € de confor- midade com. a ordem do universo, direito € justo quando serve realmente para pér ordem na sociedade. Se pensarmos 61 FRANCESCO CARNELUTT que ordem, de ordior, nascer, se resolve no pri cipio € Deus, 0 direito. serd justo quando obedecer & vontade de Deus, Este é um resultado que os homens nao obtém sem traba- tho. O trabalho necessério para este fim se parece: com o traba- tho do lavrador, Todos sabern que niio basta deixar cair a semen- te sobre a terra para que nasga o gro: a terra deve ser arada, adubada, gradada, etc. Para isso, como 0 disse na conversaco introdutéria, estio os operadores do direito. Assim, a conver- sagdo introdutéria se coordena com essa conversago Todo o trabalho exige uma réenica, ¢ até a eonstitui pou- co a pouco, A técnica € 0 conjunto das regras que.a experién- cia ensina que devem ser cumpridas para que o trabalho produ- za um resultado itil. Técnicos se chamam os que conhecem essas regras e saber aplicé-las exatamente em relagiio & téeni- ca, distinguindo os operadores qualificados dos nao qualifi- cados, de acorde com a maior ou menor quantidade de técnica que possuam. Assim se explica por que 0 cultivo do direito, & medida que se desenvolve, exige um grande ntimero de téeni- cos que se prestem a sua obra, & formagio e a aplicagio das leis. As figuras mais conhecidas, mas nao as tinieas, de técni- cos do direito sio os juizes € 08 advogados, A medida que 0 direito cresce, sua técnica se tora cada vez mais complicada, O crescimento do direite se explica pela cada vez maior complexidade da economia. Uma diferenga entre a ética ¢ a economia esté exatamente em que, enquanto a ética 6 simples, a economia € complexa. A ética, depois de tudo, se reduz a um principio; os romanos haviam formulado trés: honeste vivere, neminem laedere, suum cuique tribuere [vi- ver honestamente, no fazer mal a ninguém, dar a cada um 0 que é sen). Mas o Cristianismo reduziu a trindade & unidade (COMO NASCE 0 DIREFTO que os tedlogos chamam da regra de ouro. Faga aos otras o| ‘que tt queres que te facam a ti mesmo. Mas quando se trata de aplicé-la & economia, essa regra s¢ desdobra em. uma infinida- de de normas particulates. E como um raio de luz que, através de um prisma de cristal, se decompée em cores. Isto explica por que o principio ético, que é sempre uno, de acordo com a diversidade das pessoas, dos tempos ¢ dos lugares, engendra normas juridicas nfio apenas radicalmente diferentes, mas até opostas. Os céticos se aproveitam deles para falar de uma re- latividade da moral; mas, dese: modo, confundem a moral com 0 direito ou com o costume: a semente é sempre a mes- ma, mas, de acordo com a qualidade do ambiente, dela germi- nam plantas diversas. Da técnica, em um certo momento de seu desenvolvi- mento, nasce a ciéncia, quando os homens no se contentam em tirar da experiéncia as regras que tém de ser seguidas para se conseguir um determinado resultado, mas que tratam de in- dagar © porqué, ¢ esta indagac3o chegam a sistematizd-la, ou seja, a estudar suas relagdes e desse estudo extrair seus princ- pins, A ciéneia, em comparagio com a técnica, &tardia; assim aconteceu que, enquanto a técnica do direito, especialmente entre os latinos, & antiguissima, a ciéncia dele é, pelo contré- tio, relativamente moderna — ainda nfo conta dois séculos de vida; ¢ em alguns paises, especialmente os anglo-saxSes, me- nos ainda, Na ciéncia do direito, os italianos, hoje, ém uma incontestével primazia: tendo importado no principio a cién- cia francesa c, depois, a ciéncia alema, superaram répido e de- cididamente seus mestres, de forma que, atualmente, 0 pensa~ mento cientifico italiano exportade para todos os mercados jutidicos do mundo. 64 FRANCESCO CARNELUTTL Mas a ciéncia nao é suficiente para garantir a adequagao do direito ao seu fim, ou seja, conseguir a justiga. Provavel- mente nenhuma ciéncia, nem no campo da natureza, € sufici- ente para fazer conhecer a verdade. De todo modo, esta insufi- cigncia, da qual muitos naturalistas nao se preveniram ainda, manifestou-se, antes que em nenhum outro setor em relagao ‘ao direito, A verdade é que a ciéncia opera com os materiais da técnica, que siio as regras ou as leis inferidas da experiéncia Em uma palavra, a cies ia no é mais do que um desenvolvi- sendo, 0s juristas observaram muito prontamente que @ lei, justa para a grande maioria dos casos agrapados em uma categoria, termina, pelo contrério, em al- ‘guns casos, em um resultado injusto. © Mestre Divino, que- rendo exatamente persuadir seus discipulos de que se a necesséria ndo é, pelo contrério, suficiente, adotou o exemplo da lei mosaica, que impoe a abstengfio do wabalho em dia de sdbado, mas se no dia de sdbado, disse ele, cair uma ovelha em um buraco ¢ 0 pastor, fiel a lei, ndo fizer por salvé-la, isso niio seréi uma injustiga? Com isto 0 Mestre Divino queria fazer que atendessem nfo apenas ao valor da regra, mas também ae da excegdo, Com- preende-se imediatamente a importincia da exce¢io no cam- po do direito, posto que este governa a conduta dos homens, e cada homem é, na verdade, uma excegio. Os animais sdo feitos em série, mas os homens nio, Nao hé entre os homens um linico, como acreditou certa filosofia, j4 que cada homem & tinico em razao da liberdade, que 0 faz. semelhante a Deus, Os animais caminham sobre os trilhos do instinto; mas o caminho do homem néo € obrigado, Exatamente a experiéncia do ho- ‘mem, fazendo os juristas cair em si sobre a insuficiéncia da lei, os induziu a descobrir, junto com a lei, a eqididade, que um COMO:NASCE 0 DIRETTO grande mestre italiano do direito chamou de justiga do caso singular, com uma férmula que permite compreender que a justiga nfo se deixe aprisionar por uma lei. Aristételes, com- parando a eqiiidade com a régua lesbos, que feita de chumbe adaptava-se & sinuosidade da matéria que tinha que regular, j4 tinha expressado a idéia de que a rigidez da lei nio se adapta, como deveria, as formas imprevisiveis do caso concreto. Nem a técnica nem a ciéncia, enquanto operam com. @ lei, e nfo poderiam operar de outra forma, silo suficientes, por conseguinte, para fazer com que o direito consiga a justiga, ¢ assim nao se esgotam a jurisprudéncia, entendida esta como a atividade necesséria ¢ suficiente nao somente para fazer quan- to para fazer bem, 0 direito, ou seja, nem tanto para fazer qual- quer direito quanto para fazer direito justo. Mais além da té- nica c da cigneia esté a arte, a qual supera a regra, guiada pela intuiggo, como dizem os légicos, também pela inspiragao, de acordo com os poetas. Sem a arte nao se faz direito, ¢ esta é a maior dificuldade de fazé-lo. Disso 0s romanos estiveram cons- cientes, este povo que, dentre todos os demais, realizou as obras, mais altas do campo do direito, ja que um deles o definiu ars boni et aequi [arte do bom e do justo), € outro explicou a jurisprudéncia como divinarum atque humanarum rerutt notitia (conihecimento das coisas divinas ¢ humanas}. 6 sur- preendente que nem um nem outro houvessetn confundido a jurisprudéncia com a ciéncia das leis: em uma das duas defini- ‘ges campeia 0 conceito da eqtiidade em lugar do conceito da Jei, e na outra a mengfo das coisas divinas ao lado das coisas humanas traz ao pensamento o Mestre Divino, 0 qual. depois de ter afirmado a insuficiéncia da lei, acrescentou que acima da kei esté Deus. 65 FRANCESCO CARNELUTTY Por isso, se uma cultura elementar de direito é nevessé- tia a todos os cidadaos a fim de que possam colaborar com a ‘ordem social, eles devem saber assim mesmo que, também esse campo, como em todo outro, a necessidade s¢ resolve na insuficiéncia. Se o direito ¢ um instrumento da justiga, nem a técnica nem a ciéncia bastam para saber manejé-lo. Desgra- adamente, a ilusio de sua suficiéncia tem ratzes profundas na alma humana e nao € ffcil desarraigé-la, mas qualquer um de in6s tem o dever de fazer o quanto possa para esse objetivo. Exatamente os romanos, quando tiveram de definir 0 jurisconsulto, disseram antes de tudo: vir bonus, Sem a bon- dade, a cigncia do direito poder sem diivida fazer com que cresga a drvore do direito, mas esta arvore ndo dar os frutos de qué 0s homens tém necessidade. Pp LANCAMENTOS! COLEGAO; CLASSICOS DO DIREITO . Tratado de Direito Processual Penal (Ne Prelo) Autor: Vincenzo Manzini— 5 Volumes Tradutor: Dr. Hiltomar Martins Oliveira . Ligdes de Politica Positiva Autor: J. V. Lastarria Notas: Dr, Rauph Batista de Maulaz . © Processo Civil no Direito Comparade (No Prelo) Autor: Mauro Cappelletti Tratudor: Dr, Hiltomar Martins Oliveira . Como Se Faz um Processo Autor: Francesco Camelutti ‘Tradutor: Dr. Hiltomar Martins Oliveira 6r

Você também pode gostar