Você está na página 1de 17
O futuro descanhecido ea arte do prognéstico “£ possivel reconhecer o passado se nem entendemos 0 presente? E quem consegue extrair conccitos corretos do presente sem saber o futuro? O futuro determina o presente; e este, 0 passado.” Estas palavras sao de Johann Georg Hamann. Parecem absurdas para quem interpreta o tempo metaforicamente como linha que parte do passado e, passando pelo pon- to ficticio do presente, leva ao futuro, O historiador do espirito logo re- conhece que as palavras de Hamann se nutrem da expectativa escatolégi- ca que, viabilizada pela revelacio, disponibiliza um conhecimento do futuro que diz respeito a cada um pessoalmente, mas também & historia mundial como um todo, Para 0 historiador politico ou social, que se ocu- pa profissionalmente com o passado e procura no passado relagbes de causalidade que levem ao presente, o futuro é metodicamente excluido. No maximo, ele aceitar4, em termos epistemoldgicos ou psicolégicos, que suas préprias expectativas influenciem as perguntas que estimulam seu interesse pelo conhecimento. Aceitaré um pouco de futuro, sem que seja forgado a vé-lo como ameaca a qualidade profissional. Hoje, as ciéncias politicas, a economia e a sociologia enfrentam o desafio, nao fazendo, contudo, previsées estatisticas para casos individuais, mas para estrutu- ras, para delas deduzir tendéncias futuras. O diagnéstico de fontes histéricas mostra incontaveis prognésticos de todo tipo. Nao precisamos viver em 1984 para lembrar as legides de uto- pias temporais, mais negativas que positivas, que fizeram previsOes a partir do presente ou, para falar com Hamann, diagnosticaram o presen- te a partir do futuro. Mas a ciranda nao para por af. Basta lembrar que previsées cleitorais influenciam eleigées, seja pela aprovacdo ou pela ‘Ao que suscitam; ou que, em atividades de planejamento, ntimeros de uma série de producao dependem das possibilidades futuras, indica- oposi¢: das por andlises de mercado; ou que computadores armazenam as alter- nativas de todas as decises possiveis em uma guerra nuclear planejada; ou que as previsdes do Clube de Roma, amplificadas agora pelo Partido Verde, desejam transpor seus temores para uma racionalidade politica em 1389 inhart Koselleck « Estratos do tempo nome do futuro; ou que as negociacées diplomiticas habituais nao exis- tiriam sem a previsao de agdes futuras; ou que até no dia a dia as conse- quéncias financeiras do nascimento de um filho sao calculadas, ainda mais que o desemprego ou a diminuicao de renda contém dados do futa- ro que precisarn ser levados em conta, Finalmente, nao devemos esquecer 0 sonho, ao qual, jd na canonizacao por Artemidoro, se atribui um poder Progndstico; ao ser aproveitado de forma terapéutica e, portanto, prog- nostica, ele também influi nos diagnésticos das andlises atuais. A sequén- cia de exemplos pode continuar a vontade. Ela se estende do dia a dia dos Individuos até a alta politica c abrange o espaco temporal dos processos Incontrolaveis, mesmo quando suas condigdes s6 podem ser influencia- das na margem. Lembro a Previsdo estatistica das reservas de energia, correlacionada com a curva demografica da populacdo mundial, Ambas agem de modo crescente sobre os dados de planejamento de curto e de médio prazos na politica e na economia. As palavras de Hamann, segun- do as quais 0 futuro infiuencia o presente, dificilmente podem set contes- tadas nessc nivel de generalidade. No entanto, 0 status do futuro nao equivale totalmente 20 status do Passado. O passado est contido em nossa experiéncia e pode ser verifica- do empiricamente. O futuro foge & nossa experiéncia e, portanto, nao pode ser verificado. Mesmo assim, existem prognésticos que, com maior ou menor plausibilidade, podem ser transpostos da experiéncia para a expectativa. Trata-se aqui, para citar um adversdrio férreo de Hamann, da capacidade de prever, da praevisio. Kant escreveu: Possuir essa capacidade interessa mais do que qualquer outra cois. ois € a condicio de toda pratica possivel e dos fins para o qual o ser humano direciona o emprego de suas forcas. Todo desejo contém uma Previsdo (duvidosa ou certa) daquilo que, por ela, se torna possivel. A visdo do pasado (4 meméria) 36 ocorre com o propésito de possibi litar a previsdo do futuro: olhamos a nossa volta do ponto de vista do Presente para tomar uma decisdo ou nos prepararmos para algo. Kant remete as dimensdes temporais histéricas a seu nticleo antropo- légico. A focalizacio no homem agente ~ diferente da posicao de Agosti- "Kant, Anthropologie in pragmatischer Absiche, parte 1, § 21, in Wilhelm Weischedel (org.), Werke, v. 6, Darmstadt, 1964, p. 490. 190 O futuro desconhecido ¢ a arte do progndstice nho, que reduz a dimenso temporal ao homem interior, mas semelhante a hermenéutica histérica de Chladenius — nos fornece categorias an- tropoldgicas e, portanto, meta-historicas que definem as condicées de historias possiveis. Dentro das trés dimensdes temporais, Kant confere © maior peso ao futuro e & capacidade prognéstica que se atribuia ele. O diagnéstico é claro. O desejo, como diz Kant, mas também os temo- Tes € as esperancas, anscios ¢ reccios, planejamentos, cdlculos e previsoes — todos esses modos de expectativa fazem parte da nossa experiéncia, ou, melhor, correspondem a nossa experiéncia. © ser humano, como ser aberto 20 mundo e obrigado a viver sua vida, permanece dependente da yisao do futuro para poder existir. Para ser capaz de agir, precisa incluir em seus planos a impossibilidade er pirica de experimentar o futuro. Precisa prevé-lo, corretamente ou nao. Esse paradoxo nos leva ao centro da nossa investigacao. © que o ser humano prevé? O que ele pode prever? A realidade vin- doura ou apenas possibilidades? Uma, varias, muitas possibilidades? A previsdo se orienta pelo medo, pela razdo ou — nas palavras de Hobbes — por ambos ao mesmo tempo? Ela é conduzida pela fé em uma profecia? Ou b da historia? Ou é alimentada pela critica on pelo ceticismo? Est4 vincula- eia-se no recurso a uma necessidade fundamentada pela filosofia da a augtirios manticos ou mégicos, a um sistema de signos de interpre- tages histéricas ou a tentativas de ilises cientificas Podemos delimitar as respostas historicas se reduzirmos as previsdes aalguns tipos basicos, que se ultrapassam reciprocamente, mas que tam- bém se sobrepdem e podem ser encontrados no decurso da historia. Além do mais, as respostas podem ser reduzidas, se perguntarmos apenas sobre as condicdes do porqué e do quando do cumprimento - ou nao -de uma previsao. Ema seguida, tratarei dessa ultima pergunta e, para isso, nao po- derei abdicar de uma tipologia rudimentar. Tendo em vista a abundancia de previs6es confirmadas ¢ a igual — ou talvez maior ~ abundancia de previsées nao cumpridas, e por isso esque- cidas, € possivel imaginar uma alternativa. O fato de uma previsao ter se cumprido ¢ outra nao ou se deve 4 mera sorte, ao acaso, ou permite en- contrar critérios para explicar por que as coisas se passaram assim — por que uma previsao se cumpriu e outra nao. Tentarei desenvolver alguns critérios a partir de exemplos de previsdes politicas. 191 Reinhart Koselleck Estratos do tempo Se prescindirmos de qualquer experiéncia histérica, podemos dizer ou que o futuro é completamente desconhecido (entao qualquer prognésti- co nada mais é do que um jogo de azar) ou que existem (¢ a experiéncia histéri que a realidade vindoura pode ser prevista. Existem conjuntos de possi- a fala a favor disso) graus de possibilidade maior ou menor com m chances diferentes bilidades que, isoladamente ou em conjunto, indi de sua realizacdo: nesse caso, deve entao existir uma arte da previséo que ofereca regras minimas para seu éxito. Em termos puramente formais, podemos estabelecer a seguinte regra: 0 espectro das previsdes se estende do prognéstico absolutamente certo a contetdos altamente improvaveis. E, por exemplo, absohitamente certo que nosso plancta sobreviva a catdstrofe que uma guerra nuclear causaria a toda a humanidade. Por outro lado, é totalmente incerto se uma ca- tdstrofe nuclear seré desencadeada pelo acaso, por um descuido ou de propésito, ou se poder ser evitada. Isso significa que, quanto mais nos distanciamos dos dados de longo prazo relacionados a precondisoes na- turais e concentramos nossas previsdes em situagdes que dependem de decisao politica, mais dificil se torna a arte da previsao. O tateante raio de luz do progndstico oscila entre as seguras condigdes basicas e aquelas que se transformam processualmente, a ponto de serem relativamente incer- tas no campo das agées politicas. Mas, em todos os casos, o prognéstico extrai sua evidéncia de experiéncias ja feitas, processadas cientificamente e cuja projecdo sobre o futuro representa uma arte de combinagio de muiltiplos dados de experiéncia. Como historiadores, somos capazes de perguntar por que certas pre- visdes se cumpritam. Mas, como historiadores, também sabemos que sempre 2 historia. Nesse sentido, a histori contece mais ou menos do que esta contido nas precondicées da ia 6S mpre nova € sempre contém a pos- sibilidade de surpresas. O fato de, mesmo assim, existirem previsdes que se cumprem mostra que a histéria nunca é completamente nova, que tem condiges de longo prazo ou mesmo condigées duradouras den- tro das quais o’novo costuma se realizar. Cada historia individual, na qual nos vemos envolvidos, ¢ vivenciada como algo singular, mas nao sao no- vas as circunstancias nas quais a singularidade se realiza. Ha estruturas que persistem e ha processos que perduram: ambos condicionam e sub- 192 0 futuro desconhecida ea arte do prognéstico sistem aos eventos individuais nos quais a historia se efetua. Em outras palavras, existem velocidades diferentes de mudanca. Condigoes geograficas néo mudam de todo ou apenas em virtude do dominio técnico da agao humana sobre elas. Condigées juridicas e insti- tucionais mudam de forma mais lenta do que as acdes politicas que se servem delas. Modos de comportamento ¢ mentalidades também sofrem mudaneas mais lentas que a arte de transformé-los de forma ideolégica ou propagandistica. Constelag6es politicas de poder também mudam em prazos mais longos do que a transformagao real acelerada que ocorre em guerras ou revolucées. Mesmo que a histéria preserve seu cardter singular, existem estratos com diferentes ritmos de mudanga. Eles precisam ser teoricamente dis- tinguidos para que a singularidade e a perduragao possam ser medidas. Mas quando dizemos que condigoes geografi cas ou aquelas ligadas 4 mentalidade perduram, somos forcados a Ihes ‘as, institucionais, juridi- conferir um cardter de repetigao na execugao de decursos temporais dia- cronicos. A carta que recebo as 9h da manha pode conter uma mensagem agradavel ou triste, que nao pode ser superada nem ultrapassada. Mas a entrega do correio as 9h da manha se realiza dia aps dia. Por twas disso esta uma organizagao cuja estabilidade reside na repeticao de regras es- tabelecidas ¢ cuja reserva financeira vem da receita postal estabelecida no orgamento. Esse exemplo pode ser estendido a todos os ambitos da vida humana. Em termos mais exatos: previsdes s6 so possiveis porque na historia cxistem estruturas formais que se repetem, mesmo quando seu contetido 6 singular e preserva um caréter surpreendente para os envolvidos. Sem as constantes, de duracao variada, presentes nos eventos vindouros seria impossivel prognosticar qualquer coisa. Permitam-me citar alguns exemplos retirados do ambito das revolu- ¢Ges da modernidade. 1. Do ponto de vista de uma teoria da histéria, 0 conceito de revolugio é realmente exemplar, pois esclarece a interacdo entre singularidade ¢ repe- tigdo. Para os envolvidos, a revolucio que se desdobra ¢ algo singular, catastrofico ou uma ventura esperada. Mas no conceito de revolucao 193 Reinhart Koselleck - Estratos do tempo também estd contida a repetigdo, o retorno ou até mesmo a circularidade. Esse significado nao ¢ apenas um resto aleat6rio da palavra latina revolu- tio. Antes, 0 conceito contém uma afirmagao estrutural sobre as revolu- cOes encontradas repetidamente, em numerosas variantes, no mundo. A doutrina da recorréncia, contida teoricamente no conceito de revolu- ¢ao, implica eventos diacrénicos, que se repetem de forma andloga, ¢ agées que podem ocorrer em paralelo, de forma sincrénica. O conceito contém o exercicio da violéncia além da legalidade; uma mudanga de modos de dominio ou das formas constitucionais, no caso de seu éxito; uma substituigao, na maioria das vezes apenas parcial, das elites; e uma mudanca de propriedade causada por levantes, desapropriacées e redis- tribuicdes de bens ou de rendas. O conceito também contém modos de covardia, a coragem, 0 temor, a esperan¢a, 0 terror do medo ou do vico, da formacao e do cisma partidério, da rivali- dade entre os lideres, do potencial aclamatério das massas e da sua falta. conduta bem conhecido Ou seja, em toda revolu (0 esto contidos tanto fatores do tipo sincréni- co, que se repetem analogicamente, como também sequéncias de efeito do tipo diacrénico, singulares no caso individual, mas cuja estrutura formal sempre apresenta também elementos recorrentes. Em outras pa- lavras: a histéria néo decorre apenas de forma singular em sequéncia diacrénica; ela também contém repetigdes ou — dito metaforicamente — revolugdes, que contém a mudanga singular e a recorréncia do analogica- mente idéntico, do semelhante ou, pelo menos, do comparavel. Em muitos aspectos — nao sé no processo contra o rei, q execucao -, 0 decurso da Revolucio Francesa de 1787 até 1815 se parece com o decurso da Revolucao Inglesa de 1640 até 1660-1688. Nao sur- preende, portanto, que as previsdes da Revolucg&éo Francesa recorressem levou & sua repetidamente ao exemplo da Revolucio Inglesa e que os diagnésticos feitos no decurso da Revoluc&o Francesa se baseassem repetidamente em analogias com o paralelo inglés, em busca de credibilidade. Cromwell era a figura ditatorial cuja encarnagdo Robespierre queria evitar, mas que mais tarde seria superada por Napoleao. 2. Em relacao as inferéncias do passado para o futuro, que se fandamen- tam em uma repetibilidade estrutural, quero citar trés exemplos que previram a ditadura de Napoleao. 0 future desconhecide ¢ a arte do prognéstico D’Argenson foi um dos primeiros a prever corretamente os eventos vindouros, quando definiu como provavel a combinaco de monarquia e democracia.? Na topologia aristotélica, a aristocracia era o verdadeiro obstaculo para a conciliagéo vindoura, que, em algum momento, levaria auma mudanca constitucional. Uma interpretagio sécio-histérica e pro- cessual das categorias aristoté prever a colaboracdo do monarca com as classes burguesas ascendentes; s de dominio capacitou d’Argenson a se is80 nao ocorresse, ele prognosticava a revolucdo. A destruigio da no- breza e a démocratie royale correspondiam uma a outra. A previsio se fundava em uma combinagao nova e temporalizada de conceitos e co- nhecimentos antigos. As trés formas constitucionais, estabilizadas prin- cipalmente por Polibio, e seus modos de declinio se tornam mais flexiveis e complexos e levam a combinagoes surpreendentes (principalmente a de uma democracia monérquica), como as novas formas que passamos a conhecer a partir da Revolucao Francesa. historica dependia de diversos estratos historicos, dos es- calonamentos temporais transpostos da experiéncia histérica para a afir- macao sobre o futuro. A metéfora espacial contida na palavra “historia”* pode ser util para a pergunta sobre o estrato de experiéncia a ser atualiza- do. Isse se torna muito mais evidente na segunda previsio do ano de 1772, feita por Diderot. Ela diz o seguinte: A previ Sob o despotismo, o povo, amargurado pelo longo periodo de sofrimen- to, ndo perdera uma tinica oportunidade para reassumir seus direitos Mas, por nao ter objetivo nem plano, ele, de um momento para outro, passa da escravidao & anarquia. Nessa confusao geral ouve-se um tinico grito — liberdade. Mas como assegurar esse precioso bem? Ninguém sabe. E jé se separou o povo em diversos partidos, alvorocado por inte- resses contraditorios. [...] Pouco tempo depois, existem apenas dois partidos no Estado; distinguem-se por dois nomes que, independente- mente de quem se esconda por tras deles, s6 podem ser “monarquistas” e“antimonarquistas”. Esse é 0 momento dos grandes abalos, o momen- to dos complés e das conspiragées. [...] Nisso, tanto 0 monarquismo quanto o antimonarquismo servem apenas como pretexto. Ambos sa0 7 D’Argenson, Considérations sur le gouvernement ancien et présent de la France, Ywerdon 1764, p. 138s. * Veja a nota do tradutor na pagina 9. [N.T. 195 Reinhart Koselleck - Estratos de tempo midscaras para a ambigao €a cobica. Agora, a naggo nada mais é do que uma multidao que depende de um bando de criminosos e corruptos. Nessa situagao, bastam um homem ¢ um momento apropriados para do esse momento causar um evento completamente inesperado. Qua vier, o grande homem se levantaré. [...) Fle fala as pessoas que, hé um momento, ainda acreditavam ser tudo: “Sois nada.” E elas respondem: “Somos nada.” E cle Ihes diz: “Eu sou vosso senhor.” E elas responder em uma s6 voz: “Vés sois o senhor.” E ele lhes diz: “Estas sio as condi- GGes sob as quais estou disposto a subjugar-vos.” E elas dizem: “Nés as aceitamos.” Como continuaré a revolugao? Nao sabemos.! Segundo a tética do Iluminismo, o progndstico de Diderot havia sido enxertado anonimamente na obra de Raynal sobre a expansio colonial da Europa. Trata-se de um dos prognésticos mais supreendentes sobre o decurso de médio prazo da revolucao vindoura, que — em termos gerais ~ se cumpriu completamente. Ele € muito mais concreto do que um Prognostico igualmente perspicaz de Frederico, » Grande.‘ Este havia previsto a guerra civil na Franga como resultado do lluminismo, mas Diderot, como iluminador do Hluminismo, foi um passo além e conseguiu transformar a dialética entre senhor e escravo em uma afirmacao estru- tural da politica, que teve como consequéncia uma ditadura voluntaria. No prognéstico de Diderot influiram numerosos estratos de experién- cia historica. Em termos contemporaneos, 0 ponto de partida de sua anilise foi a revolucao sueca de Gustavo III, de 1772, que resultou em uma monarquia supraparlamentar, levando-o a considera-la como para- lelo possivel para o futuro da Fran Mas estratos histéricos mais profundos subjazem a seu prognéstico; varios elementos estruturais repetiveis influiram nele. Trata-se de figuras de argumentagao que Diderot deduziu da hist6ria romana, principalmen- te de Tacito e de sua andlise da guerra civil do ano dos trés imperadores. No entanto, as premissas iluministas, compartilhadas por Diderot, nao ’ Diderot, in Raynal, Histoire philesophique et politique et du comrnerce des européens dans les desws Indes, IV, Genebra, 1780, p. 4886s, Veja também as interpretacoes deta- Ihadas em “Quao nova € a modernidade?” neste livro, p. 209. ‘Friedrich der GroBe, Werke, v. 7, org. G. B. Volz, Berlim, 1912, p. 267ss (Kritik des “Systems der Natur”, de Holbach, 1770, de cuja argumentagao Frederico deduz a re- volucao vindoura), 196 0 futuro conhecido ¢ a arte do progndéstica Permitiam deduzir como a palavra de ordem e até mesmo o desejo de li- berdade se transformariam em um anseio de subjugacdo voluntéria, Essa decucao sé era possivel por causa das experiéncias que remetiam as guer- as civis romanas do tempo dos imperadores. Além do mais, cla se apoiou no modelo circular de Polibio, que, na tradigao sofistica transmitida por Herédoto,* possibilitou a interpretacao do caminho inevitavel paraamo- narquia, Portanto, o prognéstico certeiro de Diderot se fundamentava em um escalonamento histérico feito em profundidade, no qual influiram experiencias historicas formuladas ¢ seu processamento tedrico. Apesar de reconhecer que ndo conhecia o futuro decurso da revolucéo, a argticia da Sua andlise se fundava na repetibilidade das experiéncias hist6ricae, © mesmo vale para um prognéstico de Wieland. Agora, ja incorpora- do ao contexto concreto e de curto Prazo dos eventos da Revolugao Fran- cesa, ele prognosticou que Napoledo Bonaparte instalaria uma ditadura na Franca. Um ano ¢ meio antes do golpe de Estado, ele o previu e acres- centou que era a melhor solugao possivel para a guerra civil francesa, [sso gerou grandes dificuldades para Wieland, que foi difamado como jaco- bino ~ teria sido chamado de “bonapartista’, se essa palavra j4 existisse. A certeza do seu prognéstico certeiro nao se baseia em instinto polfti- £0 ou NO acaso, mas primeiramente no grande paralelo estabelecido com a Revolugao Inglesa, em seus conhecimentos da Antiguidade, que 0 capa- citaram a reconhecer a mudanga constitucional no esquema da doutrina da circularidade de Polibio, e também no conhecimento da guerra civil romana, que desembocara na ditadura de César. Aquilo que distingue 0 Prognéstico de Wieland se baseia, portanto, na premissa tedrica segundo a qual, no decurso de uma revolugao, certos processos se repetem, per- mitindo deduzir disso também um caso concreto, ou seja, a ditadura pessoal de Napoleao.* Encontramo-nos na situacao afortunada de poder citar outro prognés- Uico de Wieland, que no se cumprin, Apés a convocacdo da Assembleja dos Notéveis, em 1787, cle predisse que a revolucio na Franca decorreria de forma mansa, caridosa e racional, pacifica e feliz, Literalmente: * Herddoto, Hist. Il 795s, Wieland, Der Newe Teutsche Meriur, 2° exemplar, marco de 1798, in Similiche Wer ke, » Leipzig, 1857, p. 53ss, Reinhart Koselleck - Estratos de tempo Também nessas partes importantes e, felizmente, essenci ais para os povos, parecece-nos (se a nossa confianga nao nos trair) que o estado atual da Europa se aproxima de uma revolucao caridosa; de uma revo- lugdo causada nao por indignagées selvagens ¢ guerras civis, mas por uma oposicao calma, inabalével ¢ firme — nao pela luta ruinosa de paixGes contra paixdes, da violéncia contra a violencia, mas pela supe- rioridade branda, convincente e por fim irresistivel da razao: ou seja, uma revoluco que, sem alagar a Europa com sangue humano e sem po-la em chamas, seré 0 resultado caridoso da instrugéo do homem sobre seu interesse verdadeiro, seus direitos e deveres, o propésito de sua existéncia ¢ os Unicos meios através dos quais ele pode ser aleanga- do de forma certa ¢ infalivel.” Algo se torna imediatamente evidente para a nossa investigagao: o na fé de Wieland de poder sus- pender toda a experiéncia anterior gragas a tutela autoconfiante do Thum progndstico brando e confiante baseava-s nismo. Alado pela esperanga iluminista, ele previu uma revolucio que se diferenciaria de todas as anteriores pelo fato de poder ser executada sem guerra civil. Apostando na singularidade da progressdo historica e con- fiando em sua prépria fé, Wieland renunciou a qualquer inferéncia 8 ridade hist ald da histéria, inferéncia que ele vitia a fazer dez anos depois. A singula- rica € a projesao linear do otimismo iluminista levaram-no a formular um progndstico logo desmentido pelos eventos politicos. Verificamos assim o primeiro critério que est4 contido na pergunta- -teste: um prognéstico recorre as possibilidades da repeti¢ao histérica ou pressupde uma singularidade absoluta do decurso histérico? Nos casos em que Wieland fez inferéncias analogicas a partir da experiencia, ele acertous hos casos em que redefiniu a histéria como algo incomparével, errou. Registramos, entao, como primeiro resultado intermediério: quanto mais estratos temporais de possiveis repeticdes influiram no prognéstico, mais certeiro ele foi; quanto mais o progndstico recorreu a incomparabi- lidade ¢ A singularidade da revolugao vindoura, menos ele se cumpriu. Nenhuma revolucio foi prevista tantas vezes ¢ de forma tao certeira em seu decurso efetivo como a Revolucao Francesa. Igualmente frequentes, ” Wieland, Das Geheimnis des Kosmopolitenordens (1788), in Samtliche Werke, v. 30, p.422. 198 0 futuro desconhecido e a arte do prognéstico porém, foram os informes ilusérios sobre seu decurso vindouro. Lembro a bolle révolution, que Voltaire nunca se cansou de almejar e apregoar. Para ele, a convulsio nada mais era do que a execugao de uma justica moral, que ele, como filosofo, sempre reivindicou de forma polémica. Por vezes, os prognésticos foram formulados de modo tao exato e preciso por Friedrich, Diderot ou Rousseau, por exemplo, porque eles haviam relati- vizado 0 progresso linear ¢ a singularidade. A experiéncia historica in- fluiu em doses diferentes nos progndsticos. Quando as chances de repeti- cao histrica eram negadas, os prognésticos se perdiam na esfera de grandes desejabilidades; quando a repetibilidade de possibilidades histé- ricas era levada a sério, as chances de um prognéstico se cumprir eram maiores, Tendo em vista, entao, avaliar a possibilidade de cumprimento de um prognéstico, vale identificar a estratificagéo temporal multipla da experiencia historica que 0 compée. Como esclarecimento, quero apresentar outra sequéncia de exemplos, que pertence ao nosso proprio passado e aponta para a irrup¢ae da Se- gunda Guerra Mundial. Apresentarei trés tipos explicados por nossa tese do escalonamento histérico como precondicio de prognésticos bem-su- cedidos. No dia 16 de novembro de 1937, Bene§, entao presidente da Checoslovaquia, escreveu: “Sei que a situagao é manego otimista. Creio que preservaremos a paz. Nao creio que uma guerra europeia seja possivel em tempo previsivel. Tenho a esperanca de que ela nao vird.” Bastaria preparar-se para a defesa, “Pela Checoslova- quia, nada temo.”* Um ano mais tarde, Bene’ estava exilado em Londres. Trata-se aqui de um prognéstico desejado, nutrido por um otimismo, uma expressao de opinido, que s6 pode causar surpresa, vindo de um ‘ja, mesmo assim per- politico nessa posi¢io e nessa época. No entanto, a atitude diante do fu- turo pertence a qualquer prognéstico e influi nele. Mas as chances de um prognéstico se cumprir aumentam com o poder, que precisa ser suficien- temente grande para realizar um progndstico feito para si mesmo. Essa foi a situacdo em que Hitler estava na época. Sete dias apés a afir- macdo otimista de Bene’, Hitler discursou diante do grupo local do Parti- a dos ‘Trabalhadores Alemaes (NSDAP) em Augsburg: do Nacional Social * Carta a Emil Ludwig, cit. segundo Helmut Kreuzer, Europas Prominenz und ein Schriftsteller, in Saddt. Zeitung, 17/18 de novembro de 1962 199 Reinhart Koselleck + Estratos de tempo E algo maravilhoso quando o destino elege seres humanos para se em- peaharem por seu povo. Hoje, enfrentamos novas tarefas. Pois o espaco vital do nosso povo é restrito demais. Algum dia, 0 mundo ter que » por um segundo duvido que, assim respeitar nossas exigéncias. Nei como nos foi possivel elevar a nacdo em seu interior, conquistaremos também os direitos exteriores 4 vida concedidos aos outros povos.? De forma pouco velada, Hitler anuncia seu programa de expansao, mas sem chamar a guerra pelo nome. Nesse sentido, trata-se de um prognds- tico desejado. Mas os elementos que compdem essa previsdo do futuro so mais estratificados do que no caso de Bene’. Hitler evocou — como sempre fazia — a ascensdo da politica interna como garantia para 0 sucesso futuro também no campo da politica exter- na, Trata-se de um caso tipico de uma projecao linear de médio prazo a partir do passado, como o encontamos também em Wieland, sem identi- ficar novos fatores da politica mundial na Europa - mesmo que Hitler possa té-los levado em conta como politico. Aqui vemos a energia impul- sionadora dos sucessos inic’ is de Hitler, mas concomitantemente tam- bém a profunda fonte de erros qi antiga Alemanha, A projecao linear era monoestratificada. Junta-se a isso ajudou a provocar sua queda ¢ a da © apelo ao destino, uma linha ideolégica que remete a historia do espirito alemao, aquele destino do qual Hitler nunca duvidou, como cle - assegu- rando-se a si mesmo — sempre assegurou. Assim, a estrutura desse prog- néstico revela-se como supremo prognéstico coercive. Hitler nao se can- sou de repeti-lo. Ele corresponde aquela projecao linear que nao permite alternativas e até mesmo as exclui. Em sua exclusividade, continha 0 ca- rater forcoso que Hitler tentou assegurar de forma autossugestiva, ape- lando a sua prépria predestinacao. Seu prognéstico se aproxima da estru- tura evocativa de previsdes proféticas. Confrontemos entdo 0 prognéstico desejado de Bene’ ¢ 0 progndstico coercivo de Hitler com um terceiro tipo. No dia 27 de novembro de 1932, Churchill afirmou diante da Camara dos Comuns: Seria mais seguro desenrolar mais uma vez a questéo de Danzig e do corredor polonés, por mais delicada e dificil que seja, com sangue-frio ° Max Domarus, Hitler, Reden und Proklamationen, v. 1/2, Munique, 1965, p. 760. 200 O futuro desconhecido e a arte do prognéstico e-em atmosfera calma e enquanto os poderes vitoriosos ainda possuem sua ampla superioridade, em vez de aguardar ¢ deixar-se levar, passo a passo e degrau por degrau, até surgir mais uma vez um grande con- fronto, no qual nos enfrentaremos no mesmo campo de batalha."° £ evidente que aqui também influem desejos. Também uma tltima coergao de agir esta contida no discurso, mas com 0 proposito de evitar uma s gunda guerra mundial. Trata-se de um prognéstico alternativo de condig6es que contém instrugdes. O que distingue esse prognéstico é a formulacdo clara de duas possibilidades, uma das quais remete a expe- réncia duradoura da Primeira Guerra Mundial, enquanto a outra leva em conta a singularidade das mudangas da situe 40 do apés-guerra. Sua estrutura apresenta estratos multiplos. O diagnéstico baseia-se na expe- riéneia da catéstrofe de 1914, a fim de formular uma alternativa para a margem de aco, cada vez menor, em 1932, A. adverténcia contra o retor- no da guerra mundial evoca uma instrugdo para impedi-la. Podemos, é claro, explicar a simples alternativa pelo poder sugestivo da retérica de Churchill — ele deve ter pensado também em outras possi- bilidades. A catastrofe, que Churchill propés evitar politicamente, veio a acontecer como cle previu. A experiéncia da irrupcao da guerra em 1914, com a inferéncia analdgica que deduziu dela, nao 0 traiu. Mas no caso de Churchill nao se trata de uma projecao linear sobre um futuro inescapa- vel. Antes, ele supds uma repeti¢ao meramente possivel, a fim de lutar contra ela in actu. A exatiddo do prognéstico baseia-se entao no uso de varias dimensoes de profundidade histOricas, cuja combinagao gerou sua qualidade certeira. Nossa investigacao dos estratos historicos do tempo nos per mite des- prender 0 prognéstico do quadro de referéncia da antropologia pura ou até mesmo da psicologia dos agentes. O otimismo comovente de Benes, a autossugestio de Hitler ou a sobriedade imaginativa de Churchill nao nos fornecem a chave para a exatidao ou 0 erro de seus prognésticos. Os critérios objetivantes se encontram no escalonamento de profundidade temporal usado de forma argumentativa para 0 prognéstico. © Churchill, discurso na Camara dos Comuns em 27 de novembro de 1932, in Parl Aats, 5. Ser. v. 272. 201 Reinhart Koselleck - Estratos do tempo Nao € apenas a repetibilidade formal da histdria posstvel que garante um minimo de certeza prognéstica. Também € necessério incluir no cal- culo a estratificacdo multipla dos decursos temporais histdricos. Por isso, quero precisar a noss do tempo. Em termos tedricos, podemos distinguir trés niveis de tempo, pergunta sobre os diversos estratos que podem ser atualizados de formas diferentes para viabilizar um prog- néstico. Existe, em primeiro lugar, a sucesso de curto prazo do antes e do depois, que caracteriza as nossas obrigagées didrias. Em cada situagao, essas precondicoes se alteram para os agentes envolyidos em prazos vi- venciados no antes ou no depois, em anos, meses, semanas, horas, até mesmo de minuto em minuto. Nesse contexto, é particularmente dificil fazer progndsticos exatos, pois nunca é possivel ver ou reconhecer as rea- SGes € agdes de todos ao mesmo tempo. E como no jogo de xadrez, onde apenas apés certo mimero de jogadas a situacao se esclarece a ponto de possibilitar progndsticos de certeza crescente e, Por fim, absoluta. Em segundo lugar, existe o nivel de tendéncias de médio prazo, de decursos de acontecimentos nos quais influi uma plenitude de fatores que fogem ao controle dos agentes. Aqui, as multiplas condigées trans- pessoais atuam sobre o acontecimento, alterando-se de forma mais lenta do que as ages dos agentes. A essa esfera pertencem, por exemplo, as crises econémicas, os decursos de uma guerra ou de uma guerra civil, as transformagdes de longo prazo, causadas pela introdugao de novas téc. nicas de produgao, ou aqueles processos que so compreendidos pelos envolvidos como degeneracao moral ou decadéncia de uma comunidade de agdo politica. Sempre se trata de figuras influenciadas por condiedes gerais transpessoais, mas que podem chegar a se estender ao ponto de alterarem até mesmo as préprias condigdes gerais. Trata-se de decursos processuais que, apesar de todas as inovacoes, Ppermitem muitas inferén- ias anal6gicas, como foi demonstrado pela sequéncia de exemplos dos nossos progndsticos revoluciondrios. Em terceiro lugar, existe um nivel de duracao meta-histérica, que 86 por isso ainda nao é atemporal. Nesse nivel podemos alocar constantes antropolégicas que, mais do que todos os outros fatores, afastam-se da Pressio de mudanga histérica. Dessa esfera provém uma abundancia de 202 0 futuro desconhecide ¢ a arte do prognéstico maximas'de experiéncia, que podem ser repetidas ¢ aplicadas sempre de novo, Trata-se entdo de méximas de experiéncia que contém ¢o ipso uma verdade prognéstica. Esse é 0 nivel da forma simples de provérbios que, muitas vezes, con- tém instrugées de uso contrarias, mas que sempre permanece aplicavel: a soberba vem antes da queda; muitos cachorros significam a morte do coelho; muitos cozinheiros estragam a sopa. £ claro que aplicabilidade desses provérbios depende do lado em que estamos: o dos cachorros, © dos cozinheiros, o dos coelhos ou o da sopa. Mas nao se deve subesti- mar a posicao dessas sabedorias de vida aparentemente banais. Elas rea- parecem também em afirmacées agregadas em niveis mais altos. Meso admitindo que o decurso da his tia ndo se oriente pelas nossas avalia- goes morais ¢ nossa sabedoria proverbial, a soberba perdura como forga calculavel, As vezes até domavel, no jogo das forcas. Existem, por fim, também férmulas curtas, cuja verdade progn| Assim, Séneca advertiu Nero em v: sucessor. Trata-se aqui de uma afirmagao formal sobre o futuro, que pode ser preenchida a qualquer momento. / de afirmacao pode ser aplicado de modo situacional, Stalin pressentiu isso, quando mandou assassinar Trotski. No entanto, nao pode evitar a desestalinizagao por seus sucessores. Em um nivel mais alto de abstracao, trata-se de m4ximas meta-histo- stica nao pode ser negada. o: ele poderia matar todos, menos seu parentemente atemporal, esse tipo ricas que refletem as condi¢des de historias possiveis ¢, portanto, também do futuro possivel. Remeto aqui aos discursos de Tucidides ou a tematica de Tacito, que nao descreve tanto a facticidade dos eventos, mas como eles foram vivenciados de forma contraditoria. As andlises dos dois auto- res sobre a guerra civil — que nao sé relatam os acontecimentos, mas também refletem sobre eles semanticamente ¢ investigam seu contetido de experiéncia~ fornecem ligdes da histéria que nao podem ser repetidas apenas retoricamente. Elas sdo realmente « guerras civis religiosas no inicio da modernidade talvez tivesse sido pas- licaveis. A superacao das sivel sem 0 recurso aos autores da Antiguidade, mas na realidade eles disponibilizaram li es que serviram como instrugdes imediatas. Conti- nham um potencial prognéstico que retirou das novas experiéncias 0 seu efeito supresa. A intolerancia religiosa tornou-se calculavel, politica- mente calculavel, e, por isso, controlavel. 203 Reinhart Koselteck + Estratos do tempo Podemos ir até o presente e formular uma suposigao. Nao conhece- mos 08 argumentos que Dubéek teve que ouvir no Kremlin antes de se subjugar as condigdes soviéticas. Mas a estrutura basica dos argumentos pode ser encontrada no famoso didlogo de Tucidides entre os atenienses ¢ os cidadaos de Milos." O diélogo meliano consiste numa argumentacao partilhada em dois papéis, que, em termos modernos, resulta num prog- néstico condicional alternative com um efeito didatico, Tucidides definiu a atitude dos melianos em uma frase como prognéstico desejado: toma- dos pelo desejo por seu direito, eles viram 0 futuro como presente e por isso se enganaram. Os atenienses, por sua vez, apelaram & lei do poder, que eles ndo haviam inventado, mas apenas adotado a fim de aplicé-la. Apés a troca de argumentos, nos quais esperanca e experiéncia — em ter- mos de contetido, a consciéncia juridica dos melianos ¢ 0 abuso de poder pretendido dos atenienses — eram contrapostas, Tucfdides relata em trés linhas como os melianos foram executados apés sua subjugacao, e suas mulheres ¢ criangas foram levadas & escravidao. Praga foi poupada de um destino andlogo. Os tchecos se curvaram. Hacha fez o mesmo diante de Hitler em 1939. Seria tolice querer construir uma histéria linear da recepgdo de Tuci- dides. Existem, antes, estruturas histéricas de experiéncia, que, uma vez formuladas, nao se perdem, Elas perduram até sob condigoes completa- mente transformadas de exercicio do poder moderno ou de novas con- cepgdes de direito: possuem um poder progndstico de duracao meta- -historica, que sempre pode ser aproveitado para calculos politicos. Chego ao fim. A diferenciacdo tedrica entre os nossos trés decur: temporais, entre as acGes de curto prazo, as coergées de decurso de médio prazo e as possibilidades de longo prazo ou duradouramente repetiveis, nos mostra que sua relacao se altera de forma fundamental no decurso da OS hist6ria mais recente. Os prognésticos de curto prazo so mais dificeis hoje, pois os fatores que precisam influir neles se multiplicaram. Certamente influem também fatores de duracio meta-histérica, mas a multiplicidade das condigées gerais de todas as acdes individuais aumentou: domar sua complexidade 4 Tucidides, Geschichte des peloponnesischen Krieges, trad. alema G. P, Landmann, Zu- rique ¢ Stuttgart, 1960, p. 431ss (V 85-1 204 0 futuro desconhecido € a arte do prognéstico se tornou mais dificil. Os progndsticos de curto prazo eram mais faceis quando o ntimero dos agentes, no inicio da modernidade, ainda podia ser estimado, quando a expectativa de vi politicamente. O célculo da constelacdo sucessorial para a préxima guer- ra era tarefa constante na atividade prognostica do inicio da modernida- de. Quanto mais nos aproximamos do nosso proprio tempo, mais dificil se torna a arte dos prognésticas de curto prazo, pois também as condi- da dos principes podia ser calculada 6es gerais mais duradouras das acdes de curto prazo se multiplicaram e se transformaram. Mas também as constantes transpessoais que condicionavam os de- cursos de médio prazo se transformaram em ritmo crescente durante os tltimos duzentos anos. A técnica e a industria abreviaram os prazos da experiéncia, que s6 podiam se estabilizar sob condigdes constantes. As condigées dos nossos decursos de vida se alteram mais rapidamente do que no passado e as préprias estruturas se convertem em evento, pois se transformam mais rapidamente. A velha maxima segundo a qual nao aprendemos para a escola, mas para a vida perdeu sua forca. Aprendemos apenas a reciclar nosso conhecimento. E nem isso conseguimos aprender. Em relacao ao nosso modelo dos trés estratos do tempo, podemos dizer que as constantes — que antigamente eram duradouras e estabilizavam as condi¢des gerais de decursos de médio prazo ¢ de contextos de agao de $a uma maior presséo de mudar curto prazo — agora se veem expos! Existem cada vez mais varidveis, o que dificulta o sua referénci diculo prognéstico e 2 reciproca. Por isso, em termos de uma historia da ciéncia, a classe dos socidlogos diferenciou-se da classe dos historiadores. Que- rendo ou nao, a pergunta sobre a relacdo entre prazos curtos, médios e longos forga os socidlogos ao prognéstico. Por isso, permitam-me um epilogo em perspectiva hist6rica: a certeza progndstica deveria aumentar se conseguissemos introduzir mais efeitos retardantes em relacao ao fu- turo, efeitos retardantes que se tornarao mais calculaveis assim que as condigdes ge rirem uma constancia maior. Mas isso é, provavelmente, apenas uma utopia. Nao pode ser deduzido da nossa histdria. is, econdmicas € institucionais, das nossas agdes adqui-

Você também pode gostar