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ENCONTRO MARCADO COM ALOUCURA ENSINANDO E APRENDENDO PSICOPATOLOGIA TANIA COCIUFFO AGRADECIMENTOS Mo Prof. Dr. José Vilson dos Anjos (in memorian), com quem aprendi a sonhar ¢ realizar, ‘Ao Prof Dr. Antonios Térzis, orientador que, a0 longo de dois anos, me acompanhou, passo a passo, na construgéo deste trabalho, acolhendo o estado de Caos inicial sempre acreditando no meu potencial e incentivando minha escrita. Com ele, tive optivilégio de aprender sobre a Grécia€ 0 povo grego, com sensibilidade e sabedoria. A Prof, Dra. Maria Emilia Lino Silva, interlocutor me recebeu literalmente de bracos abertos, minhas anglstias e incertezas, o que poss séria para escrever e compreender Bion. centa ¢ exigente, que sempre ‘ou a liberdade de pensamento neces- ‘A meu pai (in memorian), que me legou a heranga da generosidade. A minha av6 Aids com quem tive o peazer de conhecer as primeiras letras do alfabeco, fas de todas as tardes da minha infancia as incansaveis ¢ pelas vezes em que se transformou into dos meus filhos ¢ de mim. ‘Ame filho Felipe, com quem aprendo todos os dias a forga da vide. A minha irma Sonia, grande escritora, com quem aprendi a profundidade das palavras, 0 prazer da leitura e da companhia dos livros, pela primeira digitacio desse trabalho nas madrugadas de fins-de-semana. A Tata (Mercedes de Paula Ferreira), pelo longo trabalho de revisao deste trabalho, € por todas as contribuigées presentes nas entrelinhas do texto e da minha vida. A Laura, minha linda sobrinha, pelo sorriso largo ¢ interesse constante no meu trabalho. ‘Ao Ricardo, meu cunhado, pelo bom humor presente em todas as situagoes da vida, lembrando-nos constantemente que 0 riso é, quase sempre, excelente solugto. brilhantismo com que deu nome 20 que ainda nao era palavra, no titulo deste trabslho. ‘Ao Dr. Alexandre Saadeh, amigo que, com delicadeza e comprometimento, me acompanha e incentiva. A minha cunhada Irene, pelas orag6es sem fin ‘A.meu analista, Dr. Aluizio Cerpa Corsi, por todos esses anos de conhecimento, A amigae comadre Marilia Pereira Bueno Millan, pela cumplicidade em todas as horas. ‘A Ligia Ananias Cardoso, amiga de tantos anos ¢ por toda a eternidade. A amiga Silvia Pan-Chacon, por sua capacidade de amar. A UNIP (Universidade Paulista), especialmente a Prof. Dr’. Marilia Ancona Lopez e a Prof. Dr’. Gohara Yverce Yheia, que todos esses anos acreditaram na proposta de trabalho de nossa equipe. APUC-SP especialmente as Prof. Dr*. Juliana Emma Radivany Florez, M da Graca Martina Goncalvez e Regina Gorodscy pela receptividade ao crabalho. ‘Aos colegas da cadeira de Psicopatologia da UNIP e PUC-SR, pela dedicagao a0 curso. © SONHO: um ensino transformador, mestigo 12 Capitulo 1 LOUCURA: de que se trata? 18 A bistéria de Maria 19 Concepcao mitica ¢ desenvolvimentos posteriores 21 Concepa ientifica: a cdncia delimitacaminbos 24 — Capitulo 11 OLOUCO: como se trata? 29 Didlogo serdtieo 30 Priguiatria 32 Poicandlise 35 Capitulo IIL PSICOPATOLOGIA: como se ensina? 37 Carta de wm alin 38 Pricpatologia Psicanaltiea 40 Uma didética 46 Capitulo IV © ENCONTRO COM O LOUCO: antes e depois 57 A pesquisa: aspectes metedeligicos 58 As expectativasinicais ou pré-concepges 62 Acsperitnia 68 Capitulo V © CONHECIMENTO QUE FICOU 81 Pensar a experiéncia 82 Conbecimento 91 Condudo 96 REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS 100 PREFACL ae ——— ste €um ive que transite amon embs micos. Amor pelos mestres, pelos alunos, pel xilado em icopatologia, entendida como um instrimento para ouvir 0 outro, © eae ‘um fim, porém um meio de Jos pacientes, pelos leitores € pela sua doenca, e escutar osemelhante, A teoria nfo é mm um permitir essa capacidade, essa sensibilidade que supera a visio ingénua ou [preconceituosa ¢ abre a oportunidade para o entendimento da teoria da relagio cantinente-contido, eerial de pesquisa, porque este remete 2 a9 sinais para continence € contido s80 08 ‘macho, respectivamente, embors 8 Biologia consagrou para f@ Pb sie nas descobertas de Melanie Klein sobre o corpo da mie tal fanga muito pequena. Ou seja, duas formas fandamentais ncepeto bi fim do curso descobre, surpresa, que a exper fora tao unilateral quanto a principio supusera E assim vamos acompanhando, quase com incimi ide, quase dentro do texto, a rmagio daqueles iro a bagagem, cheia de suposicées e expeccativas ~ as pré-concep- Ges. Depois, o registro mental, subjetivamente transformado, da experiéncia — a realizagio, Finalmente, o resultado das frustracoes e das satisfacées vividas no pro- cesso - a teoria (concepgdes ou pensamentos) a respeito do que seja um hospical psiquiatrico, seus pacientes ¢ funcionérios, e sobre a vida mental que ali se aber Contudo, nao se trata de uma ceoria apenas racional, que rorula os acontecimentos rna medida em que vio acontecendo, ¢ permanece incélume nos livros & espera de novos aprendizes. Trata-se, a0 invés, de uma teoria mulata, que vai sendo gera ‘nos encontras com o louco, com os colegas, com a supervisora e com os autores. a forca da experiéncia questionando a teoria ¢ sendo moldada por esta, numa mestigagem que colore indelevelmente o aluno no momento mesmo do romper das sementes da identidade profissional. Mas poderiamos também utilizar uma outra imagem, uma outra perspectiva ou tum outro conceico bioniano e falar da loucura como um pensamento & procura de quem a pense, e destes alunos como perisadores que aceitam o convite e partem para a aventura deste desbravamento conceitual e emocional em que vio se descobrindo mais implicados do que gostariam. E entio, ao seguir 0 caminho proposto por Freud de tornar conscience o que teima em permanecer desconheci especialmence a continuidade encre a lucidez ea loucura, os alunos percebem como, neste particular tipo de pedagogia, que Tania - inspirada pelo Dr. Vilson dos Anjos - chama de mestica, 2 aprendizagem se revela bem menos um acimulo de tanto intelectual quanto emacional, € uma aluna chama de “nasa ia”, mostrando bem que nfo se trata simplesmente de diagnésticos 2 cia, mas do desenvolvimento de uma que nds chamamos de “escuta nossa presenca 8 espera de uma ajuda pro! especifica técnica experiéncias cantas vezes inusitadas com os loucos, as sessbes de superv sn como o laboratério em que a continéncia € a escuta ¢ a personal vio se forjando nos attitos reciprocos. E assim a loucura, ances cemida como algo impensivel, vai aos ppoucos podendo ser contida pelo aparelho psiquico que se vai desenvolvendo especialmente para pensé-la E, na continuidade entre a loucura e a normalidade, importantes diferenciais vao surgindo, como a capacidade de no saber, a tolerdncin & ambigitidade © & sensibilidade, a humildade de nos aceitarmos humanos, no super-homens ¢ nem robs, e mesmo assim persistirmos conscenciosamente em nosso trabalho, em nos- sa “profissio impossivel”, como jé foi chamada. E nessa caminhada, drdus porém assistida, nfo é de se admirar que Tania seja tantas vezes escolhida paraninfa, acompanhando seus alunos inclusive no rito de passagem que € a formacura, esse ‘momento de chegada e de partida. Creio que este livro ~ resultance de seu mestrado ~ possa ser um instrumento precioso no ensino de Psicopatologia, canto para 0 aluno como para o professor Diante das agruras do ensino e da aprendizagem da arte de se encontrar com 0 ‘0 reconfortante pasa ambos, que podem se mirar na n ensino transformador, a menos académica ¢ insano, esed aqui um esp jaspira amor. Macia Ei Campinas, ontubra de 2001 2? ‘pero é0 caminbo do aprendizado (.). A meta do arqueiro nao & apenas atingir o ales; a epada nao é empunbada para derrotar 0 adversévia; 0 damcarino néo danga umicamente com a finalidade de execntar movimentas harmonioses que les pretondem antes de tudo éharmonizar o consciente com o inconscionte. Para ser usm auténtico arqueiro, o dominio nica & insuficionte. B necssiria se comverta numa arte sem arte, emanada do inconsciente, E. Herrigel * Mn INTROpUEKO _ OSONHO: um ensino bransformador, mestigo Sandade éa pres Olavo Bilac ‘4, catorze anos, fui convidada a dar aulas de Psicopatologia pelo Dr oposta eta iar uma nova metodologia de ensino, rates de Psicologia na pratica hos- ( método de aula lo médico de atuagio ¢ exame do paciente. Um modelo branco necessério muito para que ele apareca no nosso cotidiano. 0 nosso fio de esperanca que faz com que o povo brasileiro, apesar de tudo, sob vviva no cochicho, na risada, na capacidade, no humor solidatiedade dos pobres e no nosso mimetitmo culeural, a0 ensino nao s6 de Psicopatologia, mas a todo processo de conhecimento. O lugar da excluséo em que se localiza o paciente psiquidtrico também deve ser pensado no nosso cotidiano, a partir da negativa, implicita em muitas préticas, de nos reconhecermos como herdeiros nao apenas dos colonizadores europeus, mas também de outras etnias e culturas, como se esse fato histérico nao estivesse impregnado em nés como fator determinante de nossa maneira de existir. (A dite culeural brasileira, cerca de sua origem européia(...fabricou médicos para estrangeiros (... médicos competences, mas incapazes de conhecer a dor brasileira em. suas formas (.)fabricou psicélogos que tratam de pricélogos, que tratam de psicélo- 20S... ois, sendo um conhecimento de elite, ndo hi espago para 0 povo. Entio sé hes esta tratar dos proprios colegas, para manterem a profissdo e 0 status. 7 (© “método mestico” inclui o branco, o negro € 0 indio presentes na nossa cultura € 6, do meu ponto de vista, uma metéfora belissima para trabalharmos com a aceita- io das diferencas € com as peculiaridades inerentes & nossa brasilidade. Terfamos que descobris, com os alunos, uma linguagem que oferecesse espaco para a concep- do do lades de existéncia, do movimento de incluso e compreensio do sofrimento humano, intrinseco ao existir e, no caso da icose, um sofrimento de tamanha poréncia, que deixa em quem a ele assiste a marca da perplexidade. A conscientizac2o dos alunos, quanto & importincia e & urgéncia de uma formagio que nao privilegiasse apenas o atendimento em consul- trio particular voltado para a classe média, seria, assim, ampliada A implicagio deste olhar na Psicopatologia resgata cultura, na satide mental. Em sua erajetoria na Psiquiatria, em 1973, no Complexo Hospitalar do Juqueri, em Sao Paulo, Bi ressocializagio dos pacientes crBnicos, na tentativa cle devolver o paciente psic6tico 4 sua familia, contando com a contribuicio do Servico Social do hospital.O traba- Iho tinha como objetivo restaurar a dignidade das mulheres internadas, conside- rando a sua culeura e o seu saber. Bra um trabalho intuitivo ¢ cheio de amor. (.) Quando fui crabalhar no Juqueri sme senti desolado com tanta pobreza, tanta sujeira, tantas coisas para fazer, aqueles pacientes crOnicos abandonados, parecia 0 Exprexo da Meia-Noite(..) As grades aque eu via no Juqueri, de Faro, ram grades. A prisio da mente correspondia & prsio arquiteénica externa. Bram noventae nove mulheres amedrontades, dopadas, Sem perspectivas. Gente que estava presa hé mais de vinte anos por rer dito um home feio na feira, babds que envenenaram criangas, mes que macaram as filhas thos fornos, Ya por ai afore, Uma desgraca s6. Bem, como trazer a Bahia com béngio da negritade para aquele lugar indspito,cheio de mulheres mal-amadas? Vilson conseguia trazer essa béncfo s6 com seu olhar no contaminado, que ou- sava pensar no Juqueri como um cenétio possivel paraafelicidade, #6 por ser um lugar de abrigo para seres humanos: ‘Meu primeiro teabalho foi com a equipe de enfermagem. Precisava convencer a8 enfermeiras ¢ ajudantes de que ali era 0 lugar daquelas pessoas, clas precisavam ser felizes Id. Porém, se feliz em quatro paredes era muito dificil, pensavam. (..) O saesunto sexo era tabu, mas havia sexo.e muito. A enfermagem se horrotizava com © Iesbianismo.(..) Entdo a primeira providéncia foi legalizas as relacées. Saber quem ddormia com quem. Quem era casada com quem? Quem queria amar quem? Dessa forma, podiamos ficar sabendo das rivalidades © minimizar a agressividade. O amor nio era ingénuo nem displicente. Apenas nio se acomodava aos faros como estabelecidos e se empenhava em buscar novas ¢ melhores solugdes. Humanas. © meu trabalho era escuté-las sempre que precisassem, naturalmente com 1, bascado no meu proprio limite. Com essa forma de agit, consegui ivos ¢ medicé-las 56 quando realmente preci Jxdclas sean medicamentos coer sassem, Se ances o médico, para entrar Ié, precisava de seguranga, agora elas faviam coxinha de galinha para mim... Pasmem... sem veneno! E aquilo virou ew anine queria a liberdade e sl grupo operacive © caldo comegou a engrossar wm que tinham esse direito.? Tendo sido sua aluna, ¢ tendo-o acompanhado por muitos anos, devo dizer que 0 que mais me impressionava, e que marcou definitivamente meu trabalho, foi a linguagem amorosa que dedicava aos pacientes. A aceitacéo, a continéncia, 0 esforco de mostrar a loucura tirada do reino do absurdo. A doenca mental deixa- vva de ser um mito e passava a ser uma expressio passivel de compreensio. Com essa concepgio do que fosse ensinar Psicopatologia, langamo-nos & experi- éncia. A disciplina faz parte do curriculum obrigatério dos graduandos do 4° ano do curso de Psicologia da Universidade Paulista (UNIP) ¢ do 3° ano da Pontificia Universidade Cavdlica de Sao Paulo (PUCISP), Compoe-se de aulas teéricas € ppraticas, estas ministeadas em hospitais psiquidtricos. O recorte para este raba- Iho €0 das aulas précicas, que, ao longo desses anos, cém me suscitado iniimeros guestionamentos ¢ reflexées. Nosso geupo de docentes era formado por psicélogos ¢ psiquiatras, ¢ tinhamos em comum 0 sonho de um ensino transformador. Eramos uma equipe que jé reconhecia a prépria mestigagem. Hoje, olhando esse percurso, percebo que toda 4 experiéncia vivida nio me fez perder 0 “apaixonamento”. Cada encontro langa- ‘0s, a mim e aos alunos, no inusitado da experiéncia, na criagéo de um espaco ‘grupal de continéncia e numa reflexio sempre nova do que é essa relagio com 0 paciente, com 0 outro igual, com o outro diferente. Em 1999, perdemos o grande idealizador desse trabalho, Dr, José Vilson dos Anjos, que por anos manteve viva a chama do “apaixonamento” por ensinar, Sua morte premacura deixa um silencio nos espagos hidicos do ensino e no exercicio constante do aprender a pensar com a experiéncia. Perdemos 0 “Pai eesse traba- Iho tem o sentido também, dentre outros, de continuidade, de homenagem a um hhomem que nos mostrou a forca do vinculo. A forca de uma linguagem amorosa, A sustentagio teérica desse trabalho de ensino, por sua vez, foi construida no encontro das obras psicanaliticas de Freud, Melanie Klein, Bion ¢ de alguns au- tores da escola francesa como Fédida, Kaés, Anzieu, Pontalis: 0 momento de enconero dos pares, na teoria, nos traz o prazer de outras vozes ecoando aquilo Jone Op. tgp. 13) Nossa forma de ensinar prope que 0 aluno comece a pensar a partic da experién- ares Nec sentido, as aulas sio sempre inéditas, Nosso objetivo é ir construindo crompreenszo da doenca mental €, posteriormente, o conhecimento dos diag: ‘ Ssccos psicopatoldgicos. Os capitulos de uma teoria de conhecimento de inspi- taco psicanalitica so: conhecer, pensat, dizer, saber ¢ fazer. O desenvolvimento do curso baseia-se nessa proposta. ica‘ inclusio das experiéncias emo- fssional, caracteriza um aprendizado 10. O estudo ressalta a questo do en- rortro com o objeto da investigacéo — seres humanos em sofrimento psiquico Serenso~ que provoca angéstia ao remeter a nacureza humans em sua diversda- dee fragilidade, despercando a percepcio da importancia do processo terapéurico ‘como um dos pilares da formagio do psicélogo. assim objetivo deste veo écompartilhar reflexes sobre oensino de Psicopatologis para graduandos do curso de Psicologia nas alas préticas realizdas em insicuioes Ye Saiide Mental, transformando a experiéncia em uma comunicagio ci de provoca refiexdes, visando ampliar a dscussio de como a metodologia de aul Sdowada pode contribuir para o ensinolaprendizado de Psicopatologia Psicanalitia Gostaria de encerrar esta Introducio com mais uma lembranca do pensamenco ‘on dos Anjos, em relacdo a importincia da formalizacao escrica de

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