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14. Tid (p. 230). 15. Maspero, 1970. 18, Maspero, 1915 11 A vontade de suber (pp. 117418) joel 18, R, Castel, © psicanalismo, Edigbes Graal (p. 288), 19, De Fr. Lyotard (Lieconomie libidinale, 1974) a P. Legen- dre (L'amour du censeur, 1974), passando por R. Scherer, a lista seria longa. 20, Ph, Aris, Histoire de la mort en Occident, 1975, © 08 trabalhos de L. V. Thomas. 21, Jowir du powvotr, 1976. 22, Foi também o meu caso, em meu primeiro texto: Na- ture des choses et droit, LGDJ, 1968. Texto esgotado hé muito tempo. Nao se inquietem, pois fio tenho intengio de reeditélo. 23. Ver igualmente, na Franga, os trabalhos de M. Chemil- Mer-Gendreau, E.; PisierKouschner, M. Miaille, Fr. Demichel, J-P. Collin, G. Labica, ete 24. Na Franca, os trabalhos de G. Haupt, M. Lowy, M. Re- vérloux, M. Rodinson, P. Villar, ete. 25, L. Febvre, La terre et evolution humanine, 1922; P. Ls veque e P. Vidal-Naquet, Clisthene I'Athénien, 1964; P, Lévéque, Laventure grecque, 1964, 1964; J-P. Vernant, Mythe et pensée ches les Grecs. 1914; J. Le Gotf.-La civilisation de !'Occtdente ‘Imédiéoal, 1072; R, Mandrou, Introduction @ la France moderne, 1961; F. Braudel, Civilisation matérielle et capitalisme, 1967; por {fim,’ destaco os’ trabalhos da equipe da revista Hérodote, © & obra de Fr. Chatelet, La naissance de l'histoire, 1975, “10/18”. 26. M. Serres, Discours et parcours, in Critique, abril 1975, 27. O antiEdipo, op. cit. (pp. 239). 28, Em sua contribuigho & obra coletiva, Faire I'Histoire, 1914, sob a direc&o de J. Le Goff e P, Nora, t.’l 29, Die Polendebatte in Frankfurt, in Neue Reinische Zet tung, sept. 3, 1848, Aus dem Uterarischen Nachlass von K. Marz, By, Hncels tind F, Lettale, oaitado, por Pr. Menring (1002), TI 140 SEGUNDA PARTE AS LUTAS POLITICAS: 0 ESTADO, CONDENSACAO DE UMA RELAGAO DE FORGAS Consideramos até aqui a necessidade de relacionar © arcabougo institucional do Estado com as relagdes ca- pitalistas de produciio e sua diviséo social do trabalho. © estabelecimento dessa relaco j4 era uma primeira aproximagéo do Estado com as classes sociais € a luta de classes. # esse tiltimo ponto que desenvolverei agora, fazen-\ do uma andlise do Estado em termos de dominagéo po- litica e de Iuta politica. Uma teoria do Estado capitalista / ndo poderia construir seu objeto pela referéncia apenas as relagdes de producio, como se a luta de classes s6 interviesse nas formacées sociais como simples fator de variagéo ou de coneretizagao desse Estado, tipo ideal, em tal ou qual Estado conereto, Se essa teoria ndo for ‘um simples percurso ou tracado da genealogia do Estado capitalista, ela s6 & possivel se explicar a reproducéo historica desse Estado: Estado de tal ou qual estagio ou fase do capitalismo (Estado liberal, Estado intervencio- nista, estatismo autoritério atual), formas de Estado de excegdo (facismos, ditaduras militares, bonapartismos), 141 formas de regime desse Estado. Uma teoria do Estado capitalista deve poder explicar as metamorfoses de seu objeto. Isso traz, inicialmente, a baila as transformagées “das relacées de producdo. Estabelceer a relacio do Es- tado com essas relac6es significa desde j4 que as trans- formagées do Estado em sua periodizacao histérica fun- damental (estégios e fases do capitalismo: estagios con- correncial e imperialista — capitalista monopolista, fases desse Ultimo) levam a substanciais modificacdes das relagdes de producao e da divisao social do trabalho capitalistas. Se seu nuicleo persiste, que é 0 que faz com que o Estado continue capitalista, nao impede que eles passem por importantes transformacées ao longo da re- \ producdo do capitalismo. Mas essas transformacées sugerem entdo modifica- ges na constituigdo e reproduedo das classes sociais, de sua luta e da dominacdo politica. Isso é valido para a periodizacéo fundamental do Estado segundo os esté- Bios e fases do capitalismo: essas transformacdes impli- cam em importantes modificacdes no campo da domina- go politica. Isso é valido igualmente para as formas e regimes precisos de que se reveste o Estado no seio de um mesmo estagio ou de uma mesma fase do capitalis- mo, segundo as diversas formagdes sociais: tal ou qual forma de parlamentarismo, de presidencialismo, de fa- cismo ou de ditadura militar. As relagdes de classe estao presentes assim tanto nas transformagées do Estado se- gundo os estagios ou fases do capitalismo, ou seja nas ‘transformag6es das relagdes de producdo/diviséo social do trabalho que elas implicam, como nas formas dife- renciais de que se reveste o Estado num estégio ou fase marcados pelas mesmas relagdes de producao, Dai o problema: construir uma teoria do Estado ca- pitalista que, a partir das relagdes de produedo, explique, pela propria estrutura de seu objeto, sua reproducao di- \ferencial em fungao da luta de classes. Se dou tanta én- fase a esses pontos, no é por acaso: é que o teoricismo formalista na teoria do Estado pode tomar diversas for- mas. Pelo momento afastamos uma delas; a que con- 142 iste em construir 0 objeto de uma teoria do Estado ca- pitalista colocando-a em relacéo unicamente com as relagées de producao no sentido de uma estrutura eco- némica, na qual a luta de classes e a dominacdo politica 6 intervém @ posteriori, para explicar as concretizacdes- singularidades secundatias dese Estado no real histo- rico. Concepcao que leva a negligenciar as formas espe- cificas desse Estado. Mas 0 teoricismo formalista pode tomar igualmente uma forma diferente, que leva a0 mesmo resultado. Esta forma nos interessa muito particularmente, pois ela envolve, desta vez, o relacionamento do Estado com a do- minacdo politica. Ela trata as proposicdes gerais dos clés- sicos do marxismo sobre o Estado como uma “teoria ge- ral” (a Teoria “marxista-leninista”) do Estado, e reduz © Estado eapttalista a uma simples concretizac&o do “Es- tado em geral”. No que se refere & dominacdo politica, ela 86 leva a banalidades dogmaticas do género: todo Estado é um Estado de classe; toda dominacdo politica ¢ uma di- tadura de classe; o Estado eapitalista é um Estado da burguesia; o Estado capitalista em geral, e todo Estado capitalista em particular, sio uma ditadura da burguesia, Isso foi observado ainda recentemente, no debate sobre a ditadura do proletariado no seio do PCF e nos argumen- tos colocados por alguns dos defensores da “manutencio” dessa nocio, especialmente E. Balibar erh seu ultimo li- vro, Sur la dictadure du prolétariat. # evidente que uma tal andlise nfo poderia fazer a pesquisa avangar nem um Ela é totalmente ino- perante na andlise de situagdes concretas, pois é inca- paz de induzir a uma teoria do Estado capitalista que explique as formas diferenciais e as transformacées his- téricas desse Estado, de maneira tautolégica. As caréncias dessa anilise tém conseqiiéneias poli- ticas incalculaveis: resultado e efeito concomitante da simplificagdo-dogmatizaco estaliniana sobre a questéo do Estado, esta andlise conduziu a desastres politicos, especialmente no periodo do entre-guerras, quanto & estratégia adotada face & ascenséo do facismo. Ela se traduziu na estratégia do Komintern, dita do “social- 143 facismo”, fundamentada exatamente nesta mesma con- cegio do Estado, ineapaz de distinguir entre a forma de Estado democrético-parlamentar e essa forma espe- cffica de Estado que é o Estado facista. Questdo que jé tratel anteriormente, tanto que ndo voltarei a ela, salvo para indicar incidentalmente que, a esse respeito, se po- deria reconhecer esta concepcao stalinista do Estado em A. Glucksman, que, em seu texto Le facisme qui vient d’en haut!, identificava o Estado francés em 1972 ‘com um facismo de tipo novo; Glucksmann que, como se sabe, passou do neo-estalinismo para o antimarxismo mais barato, pensando provavelmente que suas elucubra- / ges de agora fossem “o que faltava em Marx”. Eu ob- servaria entretanto que a necessidade de uma teoria do Estado capitalista que conseguisse explicar suas formas diferenciais, nao vale apenas para essas grandes dife- Tencas que sio o Estado democratico-parlamentar e 0 Estado de excecio, mas vai ainda mais longe. £ neces: sério explicar as diferencas no proprio seio do Estado capitalista de excecdo: tentei mostrar, em crise das ditaduras, que as diferencas entre facismo e ditadura militar sdo decisivas quanto a estratégia politica a se- \ guir. Questo que foi capital para a Espanha, Portugal e Grécla e que nao é de menor importdncia, como o tes- temunha a discusséo na esquerda sul-americana, para certos regimes atuais na América Latina, Mas ¢ neces- srio estabelecer igualmente as diferencas entre as pro- prias formas democraticas-parlamentares desse Estado: quem nao se lembra das derrotas politieas as quais con- duziu, durante algum tempo, a impossibilidade de com- preender a especificidade do Estado gaullista na Franca? A urgencia te6rica é entdo a seguinte: compreender a insorigdo da luta de classes, muito particularmente da luta e da dominagao politica, na ossatura institucional do Estado (no caso a da burguesia no areabouco mate- rial do Estado capitalista) de maneira tal que ela con- siga explicar as formas diferenciais ¢ as transformagées histéricas desse Estado. Aqui também, o Estado tem um papel organico na luta e na dominacdo politicas: o Es- tado capitalista constitui a burguesia como classe poli- ticamente dominante. Certamente a luta de classes 144 detém o primado sobre os aparelhos, no caso sobre 0 aparelho de Estado: mas nao se trata de uma bury ja instituida como classe politicamente dominante fora ‘ou antes de um Estado que ela criaria para convenién- cia prépria, e que funcionaria apenas como simples apéndice dessa dominacao. Essa funcéo do Estado esta igualmente inscrita na sua materialidade institucional: trata-se da natureza de classe do Estado. Para estudé-la seriamente é preciso ter clareza dessa funcao do Estado tanto a respeito das classes dominantes como das classes dominadas. # 0 que tentarei fazer permanecendo sempre num plano bastante geral: as consideragdes que se seguem se- rio destacadas, quando da andlise da atual forma do Estado, o estatismo autoritdrio, em seu devido tempo. 1. 0 Estado e as Classes Dominantes \classe ou fragao hegeménica. © Estado constitui portanto a unidade politica das classes dominantes: ele instaura essas classes como clas- ses dominantes. Esse papel fundamental de organizacdo 145 Em relagdo principalmente as classes dominantes, em particular a burguesia, o Estado tem um papel prin- cipal de organizacdo, Ele representa e organiza a ou as classes dominantes, er suma representa, organiza o interesse politico a longo prazo do bloco no poder, com- posto de varias fracdes de classe burguesas (pois @ bur- guesia 6 dividida em fracdes de classe), do qual parti- cipam em certas circunstdncias as classes dominantes provenientes de outros modos de producéo, presentes na formagio social capitalista: caso classico, ainda hoje em dia, nos paises dominados e dependentes, dos grandes proprietirios de terra. Organizacio, na pers- ectiva do Estado, da unidade conflitual da alianca de poder e do equilfbrio instdvel dos compromissos entre ‘seus componentes, 0 que se faz sob a hegemonia e dire- eo, nesse bloco, de uma de suas classes ou fragées, a nfo concerne alias a um nico aparelho ou ramo do Es- tado (os partidos politicos), mas, em diferentes graus e géneros, ao conjunto de seus aparelhos, inclusive seus aparelhos repressivos por exceléncia (exército, policia ete.) que, também eles, desempenham essa funcao. O Estado pode preencher essa funco de organizacio_e unificagao da burguesia e do bloco no poder, na medida em que detém uma autonomia relativa em relacdo a tal ou qual fragag.e componente desse bloco, em relacdo a /Xais ou quais interesses particulares. Autonomia cons- titutiva do Estado capitalista: remete & materialidade * desse Estado em sua separacdo relativa das relacoes de producdo, e & especificidade das classes e da luta de \classes sob 0 capitalismo que essa separacdo implica. Anilises que jé fiz anteriormente e as quais nao re- tomarei. Lembraria simplesmente que essas andlises nao se aplicam apenas, como algumas vezes se pode pensar, a uma determinada forma do Estado capitalista, par- ticularmente 9 “Estado liberal” do capitalismo concor- rencial. Elas abrangem o nticleo estrutural desse Estado, ¢ portanto também sua forma na presente fase do capi- vo«-|w@talismo monopolista. Esse Estado, agora como no passa- do, deve representar o interesse politico a longo prazo no conjunto da burguesia (hipoteticamente o capitalista co- letivo) sob a hegemonia de uma de suas fracdes, atual- \mente o capital monopoliste. @) A burguesia se apresenta sempre como que constitutivamente dividida em fracdes de classe: capital monopolista € capital néo monopolista (pois o capital monopolista ngo é uma entidade integrada, mas designe um proceso contraditério e desigual de “fusio” entre diversas fragdes do capital), fracionamentos desdobra- dos se se consideram as atuais coordenadas de interna- cionalizacao do capital; b) Essas fragdes burguesas em seu conjunto, se situam, se bem que em graus cada vez mais desiguais, no terreno da dominacao politica, fazendo parte por- tanto do bloca do poder. Indo de encontro a determina- das anélises do PCF sobre o Capitalismo Monopolista de 146 Estado, no é apenas o capital monopolista que ocupa © terreno da dominagéo politica. ¢) © Estado detém sempre uma autonomia rela-\ tiva em relagdo a essa ou aquela fracdo do bloco no poder (inclusive em relacdo a tal ou qual fragdo do proprio ca- pital monopolista) a fim de assegurar a organizacéo do | interesse geral da burguesia sob a hegemonia de uma de suas fracoes. De encontro ainda a certas anélises doy Capitalismo Monopolista de Estado, nao se trata aqui nem de uma “fuséo” do Estado e dos monopélios (ané- | lise abandonada pelo PCF), nem também, e no sentido rigoroso da palavra, de sua “reuniio” (mesmo contra- ditéria) num “mecanismo unico”; | d) Tudo isso ainda 6 verdadeiro mesmo se as for- mas atuais do processo de monopolizacdo e a hegemonia particular do capital monopolista sobre o conjunto da ‘burguesia impdem incontestavelmente uma restri¢ao da autonomia do Estado em relacao ao capital monopolista e do campo de compromissos deste com as outras fracoes da burguesia, Como se estabelece concretamente essa politica do\ | Estado em favor do bloco burgués no poder? ¢ ‘Ao precisar algumas de minhas formulacées ante- riores, diria que o Estado, no caso capitalista, no deve Ure 2% % ser considerado como uma entidade intrinseca mas, e1**"* como alids € 0 caso do “capital”, como uma relagéo, mais» ¢. J. ezatamente como a condensapio-material-de-uma-rela- , tal como ¢o-de_forcas entre classes e {1 ele expressa, de maneira sempre especifica, no seio do, Estado*. Todos os termos da formulacdo precedente tim uma importancia propria, e devem ser examinados. Princi- palmente no aspecto do Estado como condensacao de ¢ uma relaedo: compreender o Estado desse modo ¢ evitar\ os impasses do eterno pseudo-dilema da discussio sobre 5 © Estado, entre o Estado concebido como Coisa-instru- mento e Estado concebido como Sujeito. O Estado como | Coisa: a velha concepcao instrumentalista do Estado, ut cr rorech OF FROST em peciay sons OS instrumento passivo, senfo neutro, totalmente manipu- lado por uma Unica classe ou fracéo, caso em que ne- nhuma autonomia é reconhecida ao Estado, O Estado como Sujeito: a autonomia do Estado, considerada aqui como absoluta, é submetida a sua vontade como instén- cia racionalizante da sociedade civil. Concepgdo que re- monta a Hegel, retomada por Max Weber e a corrente dominante da sociologia politica (a corrente “institucio- nalista-funcionalista”). Ela relaciona esta autonomia 20 poder prdprio que o Estado passa por deter e com os portadores desse poder e da racionalidade estatal: a bu- Tocracia e as elites politicas especialmente. ‘Mas o Estado ndo é pura e simplesmente uma rela- gio, ou a condensacéo de uma relacio; é a condensacao materiale espeeitiea de uma relagdo de forcas entre clas- \ses e fragdes de classe. A questo é de importéncia e merece ser examinada, pols refere-se a recentes evolucdes tedrico-politicas do Partido comunista francés. Essa andlise do Estado como condensacéo material de uma relagdo de classe, eu a opu- nha & concepedo do Estado nas anélises comunistas da época em referéncia ao CMB, Capitalismo Monopolista, de Estado. O que eu criticava no essencial nesta concep- ‘edo, era que levava a uma viséo do Estado ‘‘fundido” ao eapital monopolista, Estado que nao possuiria nenhuma autonomia propria e estaria a servico exclusivo dos mo- nopélios, em suma de participar da concepc&o instru ¢mentalista do Estado. Mas fazia igualmente uma outra critica: tentava mostrar que essa visio de um Estado manipulavel, no limite, a vontade pelos monopélias, po- dia articular-se perfeitamente com uma visio descur- dada da materialidade propria do Estado. A materiali- dade de um Estado entendida como ferramenta ou instrumento nao tem pertinéncia politica propria: re- duz-se ao poder de Estado, ou seja a classe que manipula esse instrumento. O que implica, enfim, que esse mesmo instrumento (que passa por diversas modificacdes, em- bora secundarias) poderia ser utilizado de outra manei- ra mediante uma mudanca do poder do Estado, pela classe operéria numa transi¢ao para o socialismo, 148 Nesse primeiro ponto, as andlises do PCF evoluiram. Esse encaminhamento pode ser constatado na obra co- letiva de J. Fabre, Fr. Hincker e L. Seve, Les communis- tes et V'Etat, assim como numa série de artigos, em La Nouvelle Critique, de Fr, Hincker. Essas posiedes apresentam uma evolucéo considerd- vel pois rompem, apés um encaminhamento perseguido ha muito tempo, com a concepeao instrumentalista do Estado legada pelo dogmatismo stalinista. O Estado é ‘compreendido como condensag&o de uma relacdo: “O Es-\ tado, sua politica, suas formas, suas estruturas, tradu- zem portato os interesses da classe dominante nao de modo mecanico, mas através de uma relacdo de forcas que faz dele uma io condensada da luta de clas- ses em desenvolvimento”. Destacando a importancia/ dessa evolugdo, 6 no entanto preciso considerar que em seu segundo ponto as andlises do PCF persistem ainda em negligenciar a materialidade propria do Estado como aparelho “especial” precisamente. Isso se manifesta na série de artigos de Fr. Hincker* que encerram consideracées tedricas mais aprofundadas: refiro-me a esses artigos a guisa de exemplo, pois eles tratam de questées que estéo no centro do debate no seio do comunismo (tanto na Ttalia como na Espanha ou na Gra-Bretanha). Hincker refere-se a duas concepedes do Estado que, segundo ele, se entrecruzam em toda histéria do movimento marxista. Uma concep cdo “estreita”, que considera que o Estado é em sua es- pslide séneia um aparelho, e uma concepcao “ampla”, que 6 sy /n/» aceita como justa por Hincker, que considera o Estado simplesmente como a expresso de uma relagéo de clas- se. Ora, a oposicao entre as duas concepcdes néo é colo-/ cada de maneira exata. Nao se trata de opor uma con- cepedo que considera o Estado como um aparetho a uma outra que o tem como uma simples relacéo de classe, mas de opor uma concepeio instrumentalista do Esta- do-Coisa Aquela que o considera como a condensacio material de uma relacdo de forcas entre classes. O as- pecto material do Estado como aparelho nao desaparece absolutamente na concepcio do Estado como conden- sagdo de uma relac&o entre classes, em oposi¢o ao que 149 / parece implicar as andlises de Fr. Hincker. # a relacio do Estado com as relagoes de produco e a divisio social do trabalho, concentrada na separacao capitalista do Estado e dessas relacdes, que constitui a ossatura ma- terial de suas instituigdes: tentei demonstré-lo na pri- meira parte desse texto. O Estado no se reduz a relacéo de forcas, ele apresenta uma opacidade e uma resistén- rias, Uma mudanca na relacdo de forgas entre classes certamente tem sempre efeitos no Estado, mas no se expressa de maneira direta e imediata: ela esgota a materialidade de seus diversos aparelhos e s6 se cris- taliza no Estado sob sua forma refratada e diferencial segundo seus aparelhos. Uma mudanca de poder do Es- tado nao basta nunca para transformar a materialidade do aparelho de Estado: essa transformacio provém, sa- \\bemos, de uma operacao e ado especificas. Voltemos a relac&o entre 0 Estado e as classes so- ciais. Tanto na concepeao do Estado como Coisa e do Estado como Sujeito, a saber portanto, do Estado como entidade intrinseca, a relacdo Estado-classes socials e, em particular, Estado-classes e fracdes dominantes, é compreendida como relagéo de ezterioridade. Ora’ as classes dominantes se submetem ao Estado (Coisa) por um jogo de “influéncias” e de grupos de pressio, ora 0 Estado (Sujeito) se submete as classes dominantes. Nessa relago de exterioridade, Estado e classes dominantes sio considerados sempre como entidades intrinsecas “confrontadas” entre si, uma “face” a outra, e assim uma Possuiria tanto poder que a outra nada deteria, confor- me uma tradicional concepgéo de poder como quanti- (dade dada numa sociedade: a concepgio do poder soma-zero, Ora a classe dominante absorve o Estado es- vaziando-o de seu proprio poder (o Estado-Coisa), ora 0 Estado resiste a classe dominante e Ihe retira seu poder em seu préprio beneficio (0 Estado-Sujeito e érbitro \ Gite as classes socials, concepedo cara & social-demo- cracia). ‘Mais ainda: segundo a primeira tese, a do Estado- Coisa, a politica do Estado em favor da burguesia se estabelece pelo simples controle exercido sobre o Estado- instrumento, de uma tnica fracdo da burguesia, atual- 150 ital monopolista, do ela mesma por sree cas bina unidade politica. em qualquer sentido prévia acdio estatal. O Estado ndo desempenha uma fragéo propria na organizagao do bloco de poder bur- gués, e néo possui nenhuma autonomia em relago & classe ou fragio dominante ou hegeménica. Na tese do Estado-Sujeito, em troca, é o Estado dotado de uma vontade racionalizante, de poder proprio e de uma au- tonomia tendencialmente absoluta em relacao as classes sociais, sempre exterior a elas, que imporia “sua” poli- tica, a'da burocracia ou das elites politicas, aos interes- ses divergentes e concorrentes da sociedade civil. Essas duas teses ndo podem assim explicar o esta-\c pelecimento da politica do Estado em favor das classes ,. dominantes, e nao levam igualmente @ compreensao de um problema decisivo, 0 das contradigdes internas do Estado, Em sua perspectiva comum de uma relacio de/ exterioridade entre Estado ¢ classes sociais, o Estado aparece forgosamente como um bloco monolftico sem fissuras. No caso do Estado-Coisa, onde o Estado parece dotado de uma unidade instrumental intrinseca, as con- ‘tradigdes em seu seio existem apenas como contrafacoes externas (influéncias, pressdes) de pecas e engrenagens do Estado-maquina ou instrumento, em que cada fracdo dominante ou grupo de interesses particulares ficam com a melhor parte si, Portanto contradicées cla- ramente secundérias, simples falhas da unidade quase metafisica do Estado, nao influindo na definigéo de sua politica. Elas so consideradas mesmo como elementos que perturbam, ainda que provisoriamente, o centralis- mo instrumental do Estado, devido ao controle exercido sobre ele de uma classe ou fracdo, que se reativa sem- pre, 6 0 caso dizer, de maneira mecdnica. No caso do Kstado-Sujeito, a unidade do Estado é a expressio ne- cessiria de sua vontade racionalizante, faz parte de sua esséncia face aos fracionamentos da sociedade civil. As contradig6es internas do Estado mantém-se manifesta- des secundarias, acidentais e episddicas, devido no es- sencial as fricgdes ou antagonismos entre diversas elites politicas ou grupos burocriticos que encarnam sua von- tade unificadora. L4, as contradigées de classe so exte- 151 N Govkead riores ao Estado; cé, as contradigées do Estado so exteriores as classes sociais, Ora, o estabelecimento da politica do Estado em favor do bloco no poder, o funcionamento conereto de sua autonomia relativa e seu papel de organizacdo sio organicamente ligados a essas fissuras, divisdes e con- tradig6es internas do Estado que ndo podem representar /simples acidentes disfuncionais. O estabelecimento da ica do Estado deve ser considerado como a resul- tante das contradicées de classe inseridas na prdpria estrutura do Estado (0 Estado-relacio). Compreender 0 Estado como a condensacio de uma relaedo de forcas entre classes e fragdes de classe tals como elas se expres- sam, sempre de maneira especifica, no seio do Estado, significa que o Estado é constitufdo-dividido de lado a Nado pelas contradicées de classe. Isso significa que uma instituicao, 0 Estado, destinado a reproduzir as divisoes de classe, nao é, nfo pode ser jamais, como nas concep- goes do Estado-Coisa ou Sujeito, um bloco monolitico sem fissuras, cuja politica se instaura de qualquer ma- neira a despeito de suas contradigées, mas € ele mesmo Gividido. Nao basta simplesmente dizer que as contradi- ges e as lutas atravessam o Estado, como se se tratasse de manifestar uma substdncia ja constituida ou de per- correr um terreno vazio, As contradicdes de classe cons- tituem o Estado, presentes na sua ossatura material, ¢ armam assim sua organizacdo: a politica do Estado é 0 efeito de seu funcionamento no seio do Estado. As contradigées de classe, examinadas momenta- neamente apenas as que existem entre as fracces do bloco no poder, assumem no seio do Estado a forma de contradicoes internas entre os diversos ramos e apare- Ihos do Estado, e no seio de cada um deles, conforme as linhas de direcéo ao mesmo tempo horizontais e verti- cals, Se isso acontece dessa maneira, é porque as diversas classes e fragées do bloco no poder s6 participam da dominac&o politica na medida em que esto presentes no Estado. Cada ramo ou aparelho de Estado, cada face, de alto a baixo, de cada um deles (pois eles sdo muitas vezes, sob sua unidade centralizada, desdobrados e obs- curecidos), cada patamar de cada um deles constituem 152 muttas vezes a sede do poder, e o representante privile- giado, desta ou daquela fracdo do bloco no poder, ou de uma alianca conflitual de algumas dessas tragdes contra as outras, em suma a concentracio-cristalizagao especifica de tal ou qual interesse ou alianea de interes- ses particulares. Executivo e parlamento, exéreito, ma- fnunieipals e-spartiho central, sper, desbploas municipais e aparelho central, aj icos, sins emeperanaie cireuitos, redes e trincheiras diferentes, representam com freqiiéncia, conforme as diversas formacées socials, interesses absolutamente di- vergentes de cada um ou de alguns componentes do bloco no poder: grandes proprietérios de terra (caso de nume- rosas formagées sociais dominadas e dependentes), ca- pital néo monopolista (e uma ou outra fracéo deste: comercial, industrial ou bancério), capital monopolista (e uma ou outra fracdo deste: capital monopolista com dominancia bancéria ou industrial), burguesia inter- nacionalizada ou burguesia interna. As contribuicdes no seio das classes e fragées domi-\, nantes, as relagdes de forcas no seio do bloco no poder, que incitam precisamente a organizacao da unidade desse bloco na perspectiva do Estado, existem portanto como relagées contraditérias estabelecidas no seio do Estado. O Estado, condensagéo material de uma relacko~ contraditéria, néo organiza a unidade do bloco politico no poder desde o exterior, como que resolvesse pela sua simples existéncia, e a distincia, as contradicdes de classe. Bem ao contrario, é 0 jogo dessas contradicdes na materialidade do Estado que torna possivel, por mais paradoxal que possa parecer, a de organizagao do Estado. Dessa maneira 6 preciso abandonar definitivamente uma visio do Estado como um dispositive unitario de alto a baixo, fundamentado numa reparticao hierarqui- ca homogénea dos centros de poder, em escala unifor- me, a partir do dpice da piramide para a base. A homo- geneidade e a uniformidade do wars oo, poder estariam garantidos regulament ca in- tema a0 Estado, Paantalaradccocioca ou administra- tiva que estabeleceria os limites desse dominio de com- 153 peténcia e de ac&o dos diversos aparelhos. Imagem intelramente falsa: 0 que néo quer dizer, certamente, que o Estado atual ndo possua uma trama hierérquica e burocratica, nem também que no apresente essa ca- racteristica de centralismo, mas que essa nio se asse- melha em nada @ sua imagem juridica (tanto na Franca, pais do jacobinismo centralizador na tradigéo da mo- narquia absolutista, quanto alhures). Entende-se assim porque o estabelecimento pelo Es- tado atual do interesse politico geral e a longo prazo do bloco no poder (sua fungko de organizacéio no equili- brio instavel dos compromissos) sob a hegemonia de tal ‘ou qual fragdo do capital monopolista, o funcionamento conereto de sua autonomia relativa e também dos limi- tes desta diante do capital monopolista, em suma, a politica atual do Estado, é a resultante dessas contradi- Ges interestatais entre setores e aparelhos de Estado e no seio de cada um deles. Portanto trata-se exatamen- te de: 1. Um mecanismo de seletividade estrutural da in- formagéo dada por parte de um aparelho e de medidas tomadas, pelos outros. Seletividade implicada pela ma- terialidade e histéria propria de cada aparelho (exército, aparelho escolar, magistraturu, etc.) ¢ pela representa- ‘go especifica em seu selo de tal ou qual interesse par- ticular, em suma por seu lugar na configuragio da rela- cdo de forcas; 2. Um trabalho contraditério de decisées, mas também de “ndo-decisées por parte dos setores e seg- mentos de Estado. Essas nao decisées, ou seja um certo grau de auséncia sistematica de ado do Estado, que néo séo um dado conjuntural porém esto inseridas em sua estrutura contraditéria e constituem uma das re- sultantes dessas contradicdes, séo igualmente necessé- rias & unidade e & organizacao do bloco no poder assim como as medidas positivas que ele toma; 3. Uma determinacdo presente na ossatura orga- nizacional de tal ou qual aparelho ou setor do Estado 154 segundo sua materialidade propria e tais ou quais in- teresses que eles representam, prioridades mas também contraprioridades. Ordem diferente, para cada apare- tho e setor, rede ou patamar de cada um deles segundo seu lugar na configuragéo da relacao de forcas: séries de prioridades e contraprioridades contraditorias en- tre si; 4. Uma filtragem escalonada por cada ramo e aparelho, no processo de tomada de decisées, de medidas propostas pelos outros ou de execucdo efetiva, em suas diversas modalidades, de medidas tomadas pelos outros. 5. Um conjunto de medidas pontuais, conflituais e compensatérias face aos problemas do momento. ‘A politica do Estado se estabelece assim por um processo efetivo de contradicées interestatais, e ¢ preci- samente por isso que, num primeiro nivel e a curto prazo, em suma do ponto de vista da fisiologia micropolitica, els parece prodigiosamente Ineosrente ¢ catia. Se ums\ de coeréncia se estabelece ao fim do proceso, a fung&o de organizac&o que cabe ao Estado é bem mar- cada por limites estruturais. Esses demonstram o card-/ ter especialmente ilusério das concepgoes de um atual capitalismo “organizado”, ou seja que consegue superar suas contradicdes na perspectiva do Estado; ilusées que se embricam com as referentes as possibilidades reais de uma planificac&o capitalista. Esses limites do papel\y organizacional do Estado niio the sdo impostos somente do exterior. Eles nao se referem unicamente as contradi- "" es inerentes ao proceso de reproduc&o e acumulacdo do capital, mas igualmente & estrutura e ossatura mate- rial do Estado que, ao mesmo tempo, fazem dele o lugar de organizacao do bloco no poder e Ihe permitem uma autonomia relativa em relagéo a tal ou qual de suas fragées. Essa autonomia nao é, assim, uma autonomia do\. Estado frente as fragdes do bloco no poder, ela nfo ad- vem da capacidade do Estado de se manter exterior a 155 elas, mas a resultante do que se passa dentro do Estado, ., Hssa autonomia se manifesta concretamente pelas di- versas medidas contraditérias que cada uma dessas clas- ses ¢ fragGes, pela estratégia especifica de sua presenca no Estado e pelo jogo de contradicdes que resulta disso, conseguem introduzir na politica estatal, mesmo que sob a forma de medidas negativas: a saber, por meio de oposigdes_e resistencias & tomada ou execucio efetiva de medidas em favor de outras fracdes do bloco no poder (é particularmente 0 caso, hoje em dia, das resisténcias do capital néo monopolista frente ao capital monopo- lista). Essa autonomia do Estado em relago a tal ou qual fracdo do bloco no poder existe pois concretamente como autonomia relativa de tal ou qual setor, aparelho ou rede do Estado em relagio aos outros. Certamente isso néo significa que no existam pro- jetos politicos coerentes por parte dos representantes ¢ do pessoal politico das classes dominantes, nem que a ‘burocracia de Estado néo desempenhe um papel proprio na orientacdo da politica do Estado. Mas as contradi- ges no seio do bloco no poder atravessam, segundo as Tinhas de clivagem complexas e segundo’ os diversos ramos ¢ aparelhos de Estado (exército, administracdo, magistratura, partidos politicos, igreja, etc.), a buro- eracia © o pessoal de Estado. Muito mais que com um corpo de funcionérios e de pessoal de estado unitério e cimentado em torno de uma yontade politica univoca, lida-se com feudos, clas, diferentes faccdes, em suma_com uma multidéo de micropoliticas diversifica- das, Essas, por coerentes que possam parecer conside- radas isoladamente, nao sio menos contraditérias entre si, consistindo a politica do Estado no essencial na re- sultante de seu entrechoque e nao na aplicagio — mais ou menos perfeita — de um esboco global de objetivos do Estado, O fenémeno espantoso, e constante, de revi- ravoltas da politica governamental, felta de aceleragées ¢ freadas, de recuos, de hesitacdes, de permanentes mu- dancas, nao é devido a uma incapacidade de qualquer maneira caracteristica dos representantes e do alto pes- soal burgués, mas é a expresso necessiria da estrutura do Estado. 156 Resumindo, entender 0 Estado como condensacéo\ material de uma relac&o de forcas, significa entendé-lo como um campo e um processo estratégicos, onde se en- trecruzam micleos e redes de poder que ao mesmo tempo se articulam e apresentam contradicdes e decalagens uns em relacdo aos outros. Emanam dai taticas movedi- cas e contraditérias, cujo objetivo geral ou cristalizacao institucional se corporificam nos aparelhos estatais. Esse campo estratégico é transpassado por taticas muitas vezes bastante explicitas ao nivel restrito onde se inse- rem no Estado, taticas que se entrecruzam, se comba- tem, encontram pontos de impacto em determinados aparelhos, provocam curto-ireuito em outros e confi- guram o que se chama “a politica” do Estado, linha de forca geral rae atravessa os confrontos no seio do Esta- do. Nesse nivel, essa politica é certamente decifravel como céleulo estratégico, embora mais como resultante de uma coordenacdo conflitual de micropoliticas e tati- cas explicitas e divergentes que como formulacao racio- nal de um projeto global e coerente. © Estado nao constitui no entanto um simples con junto de pecas descartaveis: ele apresenta uma unidade/..J3\)<0 ae aparetno, isso que se designa comumente pelo tera... de centralizacdo ou centralismo, ligada desta vez & uni- i dade, através de suas fissuras, do poder de Estado. Isso”’" se traduz por sua politica global e macica em favor da classe ou fragdo hegeménica, atualmente o capital mo- nopolista. Mas essa unidade de poder no se estabelece” por uma penhora fisica dos donos do capital monopolista sobre o Estado e por sua vontade coerente. Essa unida- de-centralizagdo esté inscrita na ossatura hierérquica- burocratizada do Estado capitalista, efeito da reprodu- gGo no seio do Estado da divisdo social do trabalho (inclusive sob a forma trabalho manual — trabalho in- telectual) e de sua separacio especifica das relacdes de producdo, Ela resulta também de sua estrutura de condensacéo de uma relacio de forcas, logo do lugar preponderante em seu seio da classe ou fragéo hegemd- nica sobre as outras classes e fracdes do bloco no poder. Nao apenas essa hegemonia na relacdo de forgas esté presente no seio do Estado, mas, da mesma maneira que 157 Cad tra , © bloco no poder s6 pode funcionar a longo prazo sob a hhegemonia e direcdo de um de seus componentes que o unifique diante do inimigo de classe, 0 Estado reflete essa situacdo. Sua organizacéo estratégica leva-o a fun- cionar sob a hegemonia de uma classe ou fragéo em seu proprio seio. O lugar privilegiado dessa classe ou fracéo & ao mesmo tempo, um elemento constitutive de sua hegemonia na constelacdo da relacdo de forcas. A vunidade-centralizagio do Estado, em favor atual- “mente do capital monopolista, se estabelece portanto por um complexo : por transformagées institu cionais do Estado de tal forma que alguns centros de decisio, dispositivos e niicleos dominantes s6 podem ser ermedveis aos interesses monopolistas instaurando-se ‘como centros de orientagiio da politica de Estado e como pontos de estrangulamento de medidas tomadas “alhu- Tes” (porém dentro do Estado) em favor de outras fra- \gGes do capital. A relacio de causalidade tem alias aqui duplo sentido: a classe ou fracéo hegeménica no ins- taura apenas como aparelho dominante aquele que jé tenha cristalizado por exceléncia seus interesses, mas também todo aparelho dominante de Estado (domina- do, que pode advir de muitas razées, ¢ corresponde particularmente a relagdes de hegemonia precedentes ¢ histéria concreta em questéo) tende a longo prazo a ser a sede privileginda dos interesses da fracao negemo- nica e a encarnar as modificagdes da hegemonia. Essa unidade se estabelece por toda uma cadeia de subordi- nacdo de determinados aparelhos a outros, e pela domi- nagéo de um aparelho ou setor do Estado (o Exército, um partido politico, um ministério, etc.), 0 que cris- taliza. por exceléncia os interesses da fracao hegemonica sobre outros setores ou aparelhos, centros de resisténcia de outras fragées do bloco no poder. Esse processo pode tomar assim a forma de toda uma série de subdetermin: ‘gdes e de dissimulagées de alguns aparelhos em outros deslocamento das funcGes e esferas de competéncia entre aparelhos e decalagens constantes entre poder real e poder formal; a forma de uma efetiva rede transes- tatal que sobrepuja e provoca curto circuito em todos (08 niveis, os diversos aparelhos e setores do Estado (6 158 o caso da DATAR na Franca atualmente), rede que cris- taliza por exceléncia, e por sua natureza, os interesses monopolistas; enfim pela subverséo da organizacao hie- rarquica tradicional da administragéo de Estado, a dos circuitos de formacao e de funcionamento de corpos- destacamentos especiais de altos funciondrios de Esta- do, dotados de um alto grau de mobilidade nao apenas interestatal mas igualmente entre o Estado e os nego- clos monopolistas (X, ENA) e que, sempre pela estraté- gia de importantes transformagces institucionais (atual fungGo dos famosos gabinetes ministeriais, do Comissa- riado de Planificago, etc.), sio encarregados de (e le- vados a) colocar em ago a politica e em favor do capital monopolista. Essas andlises permitem colocar agora um impor- tante problema referente a ascenséo das massas popu- lares € de suas organizagées politicas ao poder, numa perspectiva de transicao para o socialismo. Certamente\ ‘,., esse proceso ndo pode se deter na tomada do poder de x Estado e deve se estender & transformacéo dos apare-- > hos de Estado: mas isso supde sempre a tomada do poder de Estado. @) Dada a complexidade de articulag&o dos diver- sos aparelhos de Estado e de seus setores, o que com freqiiéncia se traduz em uma distingéio entre poder real e poder formal (este, aparente, da cena politica), o fato da esquerda ocupar o governo nao significa forcosa nem //*""” automaticamente que a esquerda controle realmente os, i ‘ou mesmo alguns, aparelhos de Estado. Tanto mais que essa organizacao institucional do Estado permite & bur- guesia, no caso do acesso das massas populares ao poder, permutar os lugares do poder real e poder formal. b) Mesmo no caso em que a esquerda no poder, além de ocupar 0 governo, controle realmente os setores 7. e aparelhos de Estado, nem por isso ela controla forco- samente aqueles, ou um entre eles, que detém o papel dominante no Estado, que constituem o pivd central do poder real. A unidade centralizada do Estado nao reside numa pirdmide na qual bastarla ocupar o cume para garantir sou controle. Hé mais: a organizacio institu 159 de cional do Estado torna possivel & burguesia permutar ‘0 papel dominante de um aparelho por outro, no caso em que a esquerda ocupando 0 governo conseguisse con- trolar o aparelho que, até entdo, desempenhasse 0 papel dominante. De outra’ maneira, essa organizagéo do Es- tado burgués Ihe permite funcionar por deslocamentos e substituig6es sucessivas, dando condigdes para o des- locamento do poder da burguesia de um aparelho para outro: o Estado nao é um bloco monolitico, mas um \campo estratégico, Essa permutacio do papel dominante entre os aparelhos dada a rigidez dos aparelhos de Esta~ do que os torna refratérios 4 uma simples manipulacéo por parte da burguesia, nao se faz certamente do dia para a noite mas acompanha um processo mais ou menos longo: essa rigidez e auséncia de maleabilidade também podem assumir um papel desfavordvel & bur- guesia e deixar um espaco para a esquerda no poder. Mas esta permutagdo nao tende a reorganizar a unidade cen- tralizada do Estado em torno do novo aparelho domi- nante, centro-reftigio por exceléncia do poder burgués no seio do Estado, mecanismo constantemente em mar- cha ao longo de uma situacio na qual o esquerda tenha © poder, Mecanismo complexo que pode encobrir varias formas algumas das quais aparentemente paradoxais: particularmente a funcdo decisiva que assumem repenti- namente aparelhos-instituigdes que até entio, tinham um papel perfeltamente secundario sendo simplesmente decorativo; a Camara dos Lordes na Inglaterra derro- tando recentemente os projetos de nacionalizago por parte do governo trabalhista, magistratura-tribunais onde se descobrem repentinamente vocacdes irrepreen- siveis de garantia da “legalidade” (Allende), diferentes conselhos constitucionais, etc, c) Isso no é tudo: as contradigées internas ¢ os deslocamentos entre poder real e poder formal nao se situam unicamente entre os diferentes aparelhos e se- tores do Estado, mais igualmente no seio de cada um deles, no sentido em que o centro real de poder em torno do qual cada aparelho se organiza, nao se situa igual- mente no cume de sua hierarquia tal como se apresenta na cena da fungio piblica: isso vale tanto para a admi- 160 nistragéo, policia ou exéreito. Do mesmo modo, senio mais, qué em termos de aparelhos verticalmente cen- tralizados, é preciso raciocinar aqui em termos de nu- cleos e focos de poder real situados em lugares estraté- gicos dos diversos setores e aparelhos de Estado. Mesmo\ quando a esquerda no poder consegue controlar, em sua ¢.)..-: yuia formal, os devidos cumes, ou aparelhos do- minantes do Estado, resta saber se ela controla real- ““ mente seus niicleos de poder real. 7 Il, © Estado e as Lutas Populares ‘As divises internas do Estado, o funcionamento’ /'s/al» ov concreto de sua autonomia eo estabelecimento de sua) J, fidcy politica através das fissuras que caracterizam-no, nao’ ”” Ee reduzem as contradicdes entre as classes ¢ fragoes do.) loco no poder: ‘da mesma maneira, e mesmolp:rderes ds principalmente, do papel do Estado frente ds ‘classes:| 'y~ |nados dominadas, Os aparelhos de Estado consagram e repro- duzem a hegemonia ao estabelecer um jogo (varidvel) de compromissos provisérios entre o bloco no poder determinadas classes dominadas. Os aparelhos de Esta\\ do organizam-unificam o bloco no poder ao desorgani-pos4. i. garailvidir continuamente as classes dominadas, polari-,. zando-as para o bloco no poder e ao curto-circuitar suas”, ‘organizagbes politicas especificas, A autonomia relativa 4° =e do Estado diante de tal ou qual fracio do bloco no poder 6 necesséria igualmente para a organizacéo da hege- monia, a longo termo e de conjunto, do bloco no poder em relaco as classes dominadas, sendo imposto muitas yezes ao bloco no poder, ou a uma ou outra de suas fragées, 0s compromissos materiais indispensaveis a essa hegemonia. Mas esse papel do Estado diante das classes domi- nadas, tanto como seu papel frente ao bloco no poder, néo deriva de sua racionalidade intrinseca como enti- dade “exterior” as classes dominadas. Ele est4 igual mente inscrito na ossatura organizacional do Estado / como condensacio material de uma relagao de forcas. de wsicis swaftesa) eal entre classes. O Estado concentra no apenas a relacdo de forcas entre fracdes do bloco no poder, mas também \a relagdo de forcas entre estas e as classes dominadas. Se as andlises precedentes que se referem a relacdo do Estado e classes dominantes parecem facilmente aceitaveis, existe em geral, e na esmagadora maioria dos casos, a tendéncia de considerar que o Estado constitui, em relagdo As classes dominadas, um bloco monolitico que Ihes é imposto de fora, e sobre o qual elas s6 atuam cercando-o e assediando-o de fora, como uma fortaleza impermedvel e isolada delas. As contradigées entre clas- ses dominantes e classes dominadas permaneceriam con- tradigdes entre o Estado e as massas populares exterio- res ao Estado. As contradigées internas do Estado nao passariam de decorréneias das contradigdes entre clas- Ses e fragdes dominantes, a luta das classes dominadas nao seria uma luta presente no Estado, consistindo sim- plemente em pressdes sobre o Estado. Na realidade, as lutas populares atravessam o Estado de lado a lado, ¢ isso néo acontece porque uma entidade intrinseca pe- netra-o do exterior. Se as lutas politicas que ocorrem no Estado atravessam seus aparelhos, é porque essas lutas estado desde j4 inscritas na trama do Estado do Luis ppl? qual elas esbocam a configuracéo estratégica. Certa- mente, as lutas populares, e mais geralmente os poderes, ultrapassam de longo o Estado: mas por mais que elas sejam (e elas o so) propriamente politicas, nao Ihe sio ‘Nrealmente exteriores. Rigorosamente falando, se as lutas populares esto inseritas no Estado, nao é porque sejam absorvidas por uma inclusio num Estado-Moloch tota- lizante, mas sim antes porque é o Estado que esta imerso /Mas lutas que o submergem constantemente. Fica en- tendido no entanto que até as lutas (e no apenas as de classe) que extrapolam o Estado néo esto no entan- to “fora do poder”, mas sempre inscritas nos aparelhos de poder que as materializam e que, também eles, con- densam uma relacdo de forcas (as fabricas-empresas, a familia numa certa medida, etc.). Em razio do enca- deamento complexo do Estado com o conjunto de dis- ositivos do poder, essas lutas mesmas tém sempre efel- \tos, “a distancia” desta feita, no Estado. 162 Assim a estrutura material do Estado em sua rela- cio com as relacées de producao, sua organizacio hie- ‘arquica-burocrética, reprodugao em seu seio da divisio social do trabalho, traduzem a presenca especifica, em ‘a estrutura, das classes dominadas e sua luta, Elas néo tém por simples objetivo afrontar, cara a cara, as classes dominadas, mas manter e reproduzir no selo do Estado a relagao dominacéo-subordinacio: o inimigo de classe esté sempre no Estado. A configuracdo precisa do conjunto dos aparelhos de Estado, a organizacdo deste ou daquele aparelho ou ramo de um Estado c creto (exéreito, justica, administracdo, escola, igrej etc.) dependem nao apenas da relacdo de forcas interna no bloco no poder, mas igualmente da relacdo de forcas entre este eas massas populares, logo da funcdo que eles devem exercer diante das classes dominadas. O que explica a organizacdo diferencial do exército, da policia, da igreja, nos diversos Estados e que funciona como a historia de cada um deles, historia que é também a marca impressa em seu arcabougo pelas lutas populares. ‘Tanto é assim que o Estado, trabalhando para a organizacaio da hegemonia, logo para a divisdo e desor- ganizac&o das massas populares, faz de algumas delas, especialmente a pequena burguesia e as classes popula- res camponesas, verdadeiras classes-de-apoio do bloco no poder e curto-circuita sua alianca com a classe ope- raria. Essas aliancas compromissos, essa relacéo de for- ¢as, incorporam-se no arcabougo de tal ou qual aparelho de Estado que desempenha exatamente essa funcao. O aparelho escolar na Franca por exemplo nao pode ser compreendido sem essa relacao, nele concentrada, da burguesia e da pequena burguesia, nem o exército ‘sem ‘a relacio entre burguesia e classes populares do inte- rior. Enfim, se tal ou qual aparelho detém o papel do-\ minante no seio do Estado (partidos politicos, parla- mento, executivo, administracao, exército), no € ape- nas porque ele concentre o poder da fragio hegeménica, ;.,.. mas porque ele consegue da mesma maneira, e a0 mesmo, tempo, cristalizar a fungio politico-ideolégica do Esta- do diante das classes dominadas. Mas geralmente, as, divis6es e contradigées internas do Estado, dentre seus \ 163 de diversos setores e aparelhos, no seio de cada um deles, no pessoal de Estado, ocorrem também devido existén- \cia de lutas populares no Estado. Ora, a existéncia das classes populares nfo se m: terializa no seio do Estado da mesma maneira que as classes e fragdes dominantes, mas de maneira especifica. As classes e fracdes dominantes se constituem no Estado mediante aparelhos ou setores que, certamente sob a unidade do poder de Estado da fracao hegeméni- ca, nao deixam de cristalizar um poder proprio dessas /classes ¢ fragdes. Nao é mediante aparelhos que con- centram um poder prdprio das classes dominadas que elas se constituem no Estado mas, no essencial sob a \forma de focos de oposi¢aéo ao’ poder das classes dominantes, Seria falso — deslize com conseqiiéncias politicas graves — concluir que a presenca das classes populares no Estado significariam que elas ai detenham Poder, ou que possam a longo prazo deter, sem trans- formagdo radical desse Estado. As contradicées internas do Estado nao implicam, como particularmente acredi- tam certos comunistas italianos', uma “natureza con- traditoria” do Estado no sentido em que ele apresenta- ria, atualmente, uma real situag&o de duplo poder em seu proprio seio: 0 poder dominante da burguesia e o poder das massas populares. Se esse das classes Populares no seio de um Estado capitalista inalterado é impossivel, isso acontece nao apenas em razdo da uni- dade do poder de Estado das classes dominantes, que deslocam o centro do poder real de um aparelho para outro tao logo a relacao de forcas no seio de um deles areca oscilar para o lado das massas populares, mas ibém em razdo do areabouco material do Estado. Esse arcabouco consiste em mecanismos internos de repro- ducao da relacéo dominacao-subordinacao: ela assegura ,.& Presenca de classes dominadas em seu seio, embora *Nexatamente como classes dominadas. Mesmo no caso de uma mudanca da relagio de forcas e da modificacao do poder de Estado em favor das classes populares, 0 Esta- do tende, a curto ou longo prazo, a restabelecer Sob nova forma algumas vezes, a relacdo de forcas em favor da burguesia. E o remédio para isso no seria, como se diz 164 freqiientemente, a “tomada” dos aparelhos de Estado pelas massas populares, como se fosse o caso de penetrar em alguma coisa afinal que seria até entdo externo a elas e de fazer com que tido mudasse apenas pela vir- tude de sua sibita presenca no interior da fortaleza. As classes populares sempre estiveram presentes no Esta- do, Sem que isso tenha modificado jamais alguma coisa no nticleo essencial desse Estado. A aco das massas po- pulares no seio do Estado é a condicao necesséria para sua transformagao, mas no é o bastante. Se as lutas populares esto constitutivamente pre- sentes nas divisoes do Estado sob as formas mais ou menos diretas da contradicao classes dominantes-clas- ses dominadas, elas o estao sob uma forma mediatizada: isso devido ao’ impacto das lutas populares nas contra- digdes entre classes e fracdes dominantes em si mesmas, {As contradig6es entre bloco no poder e classes dominadas intervém diretamente nas contradigées no seio do bloco no poder. Para no tomar mais que um exemplo, a baixa tendencial da taxa de lucro, elemento primordial de divisio no seio da classe capitalista (particularmente na medida em que uma contratendéncia nesta baixa reside na desvalorizacio de determinadas fracdes do capital) néo passa afinal da expresso da luta das classes domi- nadas contra a exploragio, ‘As diversas frag6es do capital (capital monopolista, capital no monopolista, capital industrial, bancério ou comercial) nao tem pois sempre as mesmas contradi- Ges com as classes populares (ou uma ou outra dent elas), e suas atitudes politicas nesse aspecto nao sao sempre idénticas. As diferencas de tética, ou mesmo de\ estratégia politica, numa conjuntura dada ou a mais,, longo prazo, frente as massas populares, sdo um dos) fatores primordiais de diviséo no seio do pr. ‘éprio bloco/ no poder. Isso se verifica 20 longo da histéria do capita- lismo, e nao se pode deixar de mencionar as diferentes politicas seguidas, frente aos mesmos problemas, pelos diferentes Estados. Se é verdade que existe um acordo de fundamento entre as classes e fracdes dominantes quanto a sustentacdo e reptodugao da dominacao e ex- Ploracéo de classe, seria falso acreditar em um acordo 165 sobre uma politica univoca, a todo momento, diante das massas populares. igualmente falso acreditar que as viradas da politica burguesa se reduzam aqui & uma simples questdo de periodizagao histérica, como se, se- gundo os diversos periodos e conjunturas, a burguesia /se alinhasse em bloco a tal ou qual solucao politica. As contradigées no seio do bloco no poder sio permanentes: *“elas se referem tanto a problemas relativamente secun- dérios quanto as grandes opedes politicas, inclusive as proprias formas de Estado a instaurar frente As massas \ Co*populares, as escolhas entre formas de Estado de exce- 40 (de guerra aberta contra as massas populares: fa- cismos, ditaduras militares, bonapartismos) e formas de “demoeracia parlamentar”, ou entre essas wltimas (por exemplo regimes de direita classicos ou regimes social- \democratas). Nesse caso também, a burguesia nao ade- Te em bloco, e de maneira un{voca, a tal ou qual solugao (facismo ou democracia parlamentar, regime de direita classico ou social-democracia) / Tanto é assim que, desta vez em sentido contrario, ‘as diversas fracdes do bloco no poder procuram muitas veres, segundo suas préprias contradicées com as mas- sas populares, assegurar-se, por diversas politicas, de \seu apoio contra outras fragées do bloco. Ou seja, utili- zé-las em suas relagbes de forcas com as outras fragdes desse bloco, com o fim quer de impor solugdes mais van- tajosas para si, quer de resistir mais eficazmente as so- lugdes que as prejudicam em relacdo a outras fracdes: compromissos do capital monopolista com certas par- celas da classe operaria ou com a nova pequena bur- guesia (as camadas médias assalariadas) contra o ca- pital no monopolista, compromisso deste com a classe operdria ou a pequena burguesia tradicional (comer- clantes, artesdos) contra o capital monopolista. Tudo isso que se condensa nas divisoes e contradigées inter- nas do Estado, entre seus diversos segmentos, redes aparelhos, € no seio de cada um deles. Em resumo, as lutas populares esto inseritas na materialidade institucional do Estado, mesmo se néo se esgotam ai, materialidade que traz a marca dessas lutas surdas ¢ multiformes. As lutas politicas desenca- deadas sobre o Estado néo esto, tanto quanto qualquer luta frente aos aparelhos de poder, em posicao de exte- rioridade frente ao Estado, mas derivam de sua confi- guracio estratégica: o Estado, como é 0 caso de todo ispositivo de poder, é a condensagéo material de uma relagéo. Ill, Para uma Teoria Relacional do Poder Podemos considerar agora, no contexto mais geral da problemética do poder, a relacéo, ao mesmo tempo de convergéncia e de oposiefio, dessas andlises com as pro- venientes de horizontes diferentes, particularmente as de Foueault. Quando Fouesult,eatabelece sus eee mncepedo de poder, ele toma como alvo de oposi¢éo ora Car Set retake aol peetnelepMexrscaesoat do-o, ora o marxismo & TiI Internacional e & concepeao stalinista que muitos de nés criticévamos j& hd muito tempo. E continuaria a discorrer aqui em meu proprio nome: as observagdes apresentadas até ra, retomam, desenvolvem e sistematizam andlises jf presentes, através de suas evolugdes, em meus textos Ge antes da publicacéo de Viglar e Punir (1975) e A vontade de Saber (1976) de Foucault: Alguns es nés n&o esperaram Foucault para propor ler com ta quais, em alguns portos, suas anélises ‘colncidem agora, o que s6 € motivo de jubilo! Retomarei aqui apenas (anteriormente j4 conside- rel outros aspectes) as andlises de Foucault referentes fe a sociedade dada: “O poder no) Titans oles que se aaqule, as surat ourse die alguma coisa que se guarde ou que se deixe escapar... / Sem diivida ha que ser nominalista: 0 poder, isso que do é uma instituicgo, ndo é uma estrutura, ndo é uma determinada capacidade da qual alguns seriam dotados: {+ 0 nome que se dé a uma situacdo estratégica comple- | fos Her. % as ¢ t numa determinada sociedade... Af onde ha poder, ha resisténcia e no entanto, ou até por isso mesmo, ela nao est jamais em posieao de exterioridade em relagéo \ao poder’"’, Essas posi¢des me parecem justas por um lado: 1. As anélises que fiz até aqui mostram que 0 po- der em si nao é uma quantidade ou coisa que se possua, nem uma qualidade ligada a uma esséncia de classe, a uma classe-sujeito (a classe dominante). J4 insistia sobre esses pontos em Poder politico e classes sociais, especialmente no capitulo referente ao conceito de po- der: nele eu examinava certamente o poder apenas sob seu aspecto de recobrimento do campo da luta de clas- ses, pois esse era meu objeto fundamental, embora o importante € 0 que foi dito do poder nesse campo. Por poder se deve entender a capacidade, aplicada as classes sociais, de uma, ou de determinadas classes sociais em conquistar seus interesses especificos. O poder referido as classes sociais é um conceito que designa 0 campo de sua luta, 0 das relacdes de forcas e das relagdes de uma classe com uma outra: os interesses de classe designam horizonte de agao de cada classe em relagao As outras. 7A capacidade de uma classe em realizar seus interesses esté em oposicao a capacidade (e interesses) de ou- tras classes: 0 campo do poder é portanto estritamente wsAszelacional. O poder de uma classe (da classe dominante yr exemplo) néo significa uma substancia que ela tenha em mfos: 0 poder nao é uma grandeza quantificdvel que as diversas classes partilhariam ou trocariam entre si segundo a velha do de poder-soma-zero. O poder de uma classe significa de inicio seu lugar objeti- Vo nas relagdes econdmicas, politicas e ideol6gicas, lugar que recobre as praticas das classes em luta, ou seja as relacdes desiguais de dominacio/subordinagao das clas- ses estabelecidas na divisio social do trabalho, e que con- siste desde entao em relacées de poder. O lugar de cada classe, portanto seu poder, é delimitado, ou seja ao mesmo tempo designado e delimitado, pelo lugar das outras classes. O poder néo ¢ portanto uma qualidade imanente & uma classe em si no sentido de uma reunifo 168 de agentes, mas depende e provém de um sistema rela- clonal de lugares materiais ocupados por tais ou quais agentes. ‘Mais particularmente o poder politico, cujo referen- cial é fundamentalmente o Estado, relaciona-se com a organizacio de poder de uma classe e a posicao de classe na conjuntura (entre outros fatores, organizaco partido), com as relagdes de classes constitufdas como forgas sociais, logo com um campo estratégico propria- mente falando. O poder politico de uma classe, sua ca », pacidade de concretizar seus interesses politicos, depen- de nao apenas de seu lugar (de sua determinacio) de , classe em relagdo as outras, mas também de sua posi-~! fo e estratégia diante celas, 0 que denominei come | estratégia do adversério. 2. Contra a concepedo que Foucault e Deleuze atribuem ao marxismo, eu também insistia sobre o fato de que o Estado nao é uma coisa ou uma entidade com esséncia instrumental intrinseca que deteria um poder- grandeza quantificdvel, mas que reflete as relacdes de classes e forcas sociais. Sd se pode entender por poder de Estado o poder de algumas classes (dominantes), ou seja o lugar dessas classes na relacdo de poder frente as outras (dominadas), e, ainda mais, na medida em que trata-se aqui de poder politico, a estratégica relacdo forgas entre essas classes e suas posicdes. O Estado nao 6 nem o depositério instrumental (objeto) de um poder-esséncia que a classe dominante deteria, nem um sujeito que possua tanta quantidade de poder que, num confronto face a face, o tomaria das classes: o Estado\ é o lugar] de organizagao estratégica da classe domi- nante em sua relacdo com as classes dominadas. # um Silo v lugar e um centro de exercicio do poder, mas que nko Lp! & possui poder proprio. Eu insistia no fato de que as lutas__‘ politicas, que se referem a0 Estado e que atuam sobre ( eles (pois as lutas populares néo se esgotam nunca. no », Estado) nfo Ihes so exteriores mas estdo inscritas em" seu arcabouco, motivando conclusées politicas. Essas/ andlises tém igualmente implicagées considerdveis 169 Cie tl oe quanto & questo da transicéio para o socialismo, e é aliés a razdo pela qual nela me detenho, Isso nao impede que subsistam diferencas funda- mentais também aqui entre 0 marxismo e as andlises de Foucault: 1. Se o poder tem por campo de constituicio uma relagdo desigual de relacdes de forcas, sua materialidade pelo menos nao se esgota nas modalidades de seu exer- cficio. © poder tem sempre um fundamento preciso; no caso de uma diviso das classes e quanto & sua luta: a) @ ezploracdo, a extracéo da mais-valia no capitalismo; >) o lugar das classes nos diversos aparelhos e dispo- sitivos de poder, e néo apenas no Estado; lugar que é essencial na organizacao dos aparelhos fora dos préprios Estados; c) o aparelho de Estado que, se nao inclul cer- tamente o conjunto de aparelhos e dispositivos de poder, nao fica no entanto insensivel aqueles que esto fora de seu proprio espago. © campo relacional do poder refe- rente as classes est ligado por um sistema material de distribuicao de lugares no conjunto da divisio social do trabalho, e ¢ determinado fundamentalmente (ainda que nao exclusivamente) pela exploracdo. De onde a divisdo em classes e, em decorréncia, a luéa de classes e as lutas populares. Por isso mesmo se pode considerar que toda Tua, mesmo heterogénea as lutas de classe propriamen- te ditas (luta homens-mulheres por exemplo), sem dui- vida s6 tem seu sentido numa sociedade em que o Es- tado utiliza todo poder (a falocracia ou a famflia no caso) como dispositive de poder de classe, na medida em que as lutas de classe existem e permitem assim que outras lutas se desenrolem (0 que deixa intacta a questo da articulacdo, efetiva ou ndo, desejavel ou no, dessas lutas com as lutas de classe). Ora, para Foucault, a relacdo de poder nfo tem outro fundamento que nao ela mesma, tornando-se sim- ples “situacdo” na qual o poder é sempre imanente e a questao qual poder e para qué Ihe é absolutamente per- functoria. © que tem em Foucault um resultado preciso, aporia nodal e absolutamente incontornavel de sua 170 obra: as famosas resisténcias, elemento necessério a toda situacio de poder, so para ele assercdo propria- mente gratuita no sentido em que nao tém nenhum fun- damento: elas sdo pura afirmacdo de principio. Como se diz freqtientemente, se pode deduzir de Foucault apenas uma guerritha e simples desgastes esparsos frente ao poder, porque nao hé, a partir de Foucault, nenhuma re- sisténela possivel. Se o poder esta desde entao sempre al, se toda situacdo de poder é imanente a si mesma, porque “ haveria resisténcia? De onde viria essa resisténcia e como ela seria possivel? Velha questao A qual, sabemos,/ a filosofia politica tradicional respondia por meio dos direitos naturais e do pacto social; mais proximo de nés, esté Deleuze, por meio do desejo-fundador, o que nao é decerto a boa resposta, mas pelo menos é uma. Para Foucault esta questéo continua sem resposta. Por mais que se queira, essa absolutizacdo do poder que se refere sempre a si mesma induz inelutavelmente idéia de um Senhor-Poder, fundador primeiro de toda luta-resisténcia, As lutas sio entéo originalmente e constitutivamente pervertidas pelo poder do qual séo apenas uma simples recapagem, sendo uma legitimacdo. Entre a impossivel naturalidade das resisténcia em Fou- cault e a atual concepeao de um poder (Estado) como perenidade do Mal radical, a distancia é¢ menor que se pode pensar. Toda luta s6 pode assim alimentar 0 poder sem jamais subvertélo, pois essa luta nao tem nunca outro fundamento que néo sua propria relacdo com o poder, ou seja nenhum outro fundamento que que nao o péprio poder. Nossos “novos filsofos”, espe- cialmente B. H. Lévy, podem legitimamente se reclamar de Foucault ao despontarem, mais que como sua ulti- ma conseqiiéncia, como sua ‘iltima verdade, 2, As lutas detém, em seu fundamento material, sempre o primado da verdade em relacdo as instituigdes- aparelhos de poder (especialmente o Estado), ainda que se inserevam sempre no interior de seu campo. # preciso se precaver, por outro lado, para ndo cair numa concep- Go essencialista de poder (inclusive de Estado) frente am — ss ssssS”s—~<;7 45 Estado e mais geralmente o poder nfo sao um pélo/ a esséncia diante das lutas. Se as lutas detém sempre 0 ( primado sobre os aparelhos, € porque o poder é uma | relag&o entre lutas e praticas (exploradores-explorados, dominantes-dominados), porque o Estado € em espe- 113 \ = | | fn ode | es! ; No ie is cial a condensacdo de uma relagio de forgas, exata- 7 mente das lutas. O Estado, néo mais que os outros dis- Jus Positivos de poder, nao se choca com limites num ex- terior radical: isso nao porque ele seja uma entidade onipotente frente a um nada exterior, mas porque ele comporta, inscritos desde entéo em sua materialidade, 08 limites, internos a seu campo, impostos pelas lutas ‘dos dominados. Se num Estado (mais frequentemente em dispositivos de poder) ha sempre lutas dos domi- nados, nem por isso 0 Estado e 0 poder sio a ratio primeira das lutas. As lutas estéo inscritas no campo estratégico dos dispositivos e aparelhos de poder, as lu- tas polfticas que atuam no Estado em seu campo estra- tégico proprio, sem estar, no entanto e forcosamente, “integradas” no poder das classes dominantes. 7 Isso vale ndo apenas para o Estado mas para o \y»©conjunto da aparelhagem de poder que excede em muito 4, © Estado, mesmo que concebido de maneira ampla. AS “ lutas que se situam aquém e além do terreno do Estado nao se localizam no entanto num lugar-exterior absolu- to ao poder, mas so sempre parte pregnante da apare- Yhagem de poder e tém alids, também elas, em razio do complexo encadeamento do Estado com 0 conjunto “de dispositivos de poder, efeitos no Estado. Porém, ainda que no seja o caso do Estado, esta inscrieao das lutas nos outros dispositives de poder nao significa forcosa- mente sua “integracéo” a eles. De qualquer maneira, nao se inscrever no Estado (no fazer politica por exem- plo, velha lenga-lenga que voltou & baila hoje em dia) nao bastaria para uma néo-integracéo ao poder, como se fosse possivel situar-se fora do poder e escapar as suas \(telagdes: nao se consegue estar imune ao poder pelo ‘simples fato de ficar fora do Estado, Esse problema é bem mais geral e se coloca para 0 conjunto dos dispo- sitivos do poder e para o conjunto das lutas, quaisquer que sejam e onde quer que se encontrem. Sem antecipar as conseqiiéncias politicas que de- correm daf, terminaria por ora com duas observagées relativas mais particularmente ao Estado: 174 1. Essa inscrigdéo das lutas populares no Estado\ nfio esgota o especial problema das modalidades da 0" Presenga prépria ¢ efetiva, sob uma forma ou outra, 5! das massas populares no espago fisico deste ou daquele de seus aparelhos. O Estado no é uma simples relagao, ““ mas a@ condensacao material de uma relacéo de forgas:;)\,... i ele possui uma ossatura especifica que implica igual- /... mente, para alguns de seus aparelhos, a exclusio da presenca fisica e direta das massas populares em seu seio. Se elas, por exemplo, esto diretamente presentes em aparelhos tais como a escola, o exército de circuns- crigo nacional ou, na perspectiva de seus represen- tantes, como as instituigées eletivas, so fisicamente mantidas @ disténcia de aparelhos tais como a policia, a magistratura ou a administragao. we Mas, nesses iltimos casos, as lutas politicas nao ficam realmente exteriores ao campo estratégico do Es- tado. Mesmo nos casos em que as massas esto fisi mente excluidas de certos aparelhos, essas lutas sempre } tém efeito em seu selo, ainda que esses efeitos se mani- |< festem, aqui, de qualquer maneira a distancia e entre- | | meados por ‘pessoas (0 pessoal do Estado). Esses con.’ ‘tornos de exclusio fisica das massas populares do Esta- do nao devem, também aqui, ser entendidos como trincheiras e muralhas de isolamento de um Estado- fortaleza assediada apenas 'do exterior, em suma, como barreiras que formam uma verdadeira barragem do Es- tado diante das lutas populares, segundo duvidosas metéforas topograficas. Trata-se antes de uma série de painéis que comprovam ser anéis de repercussdéo das Tutas populares no Estado. Isto é observado, hoje mais do que nunca, em aparelhos tais como a policia, a ma- gistratura ou a administracdo, divididas e atravessadas Por lutas populares. 1 observado de maneira mais nitida ainda em determinadas formas de Estado, em que se constata um fendmeno aparentemente paradoxal e inex- plicdvel se ndo se leva em conta que as lutas populares esto de qualquer maneira, e sempre, inscritas no Es- tado. Constatou-se isso nos casos de ditaduras militares que grassavam, ainda hé pouco tempo, em Portugal, na Grécia e na Espanha. Contrariamente aos regimes fa- 175 (e538 caclodl ® Pooke # cistas tradicionais que incluiam certas classes populares em seu proprio seio por meio dos partidos e sindicatos facistas de massas, elas ficaram sempre distanciadas dessas massas ou foram mantidas A distancia por elas. Ora, elas ndo sé ndo ficaram verdadeiramente afasta- das das lutas populares, mas também foram mais atin- gidas por isso como nunca o foram os regimes facistas. Por sinal, elas nao foram abatidas a golpe de ataques frontais, ‘abertos e macigos, como as organizagdes de resistencia a esses regimes tinham preconizado, mas a golpe de suas contradicdes e divis6es internas, das quais ‘as massas populares foram, ainda que a distancia, o fator principal. 2. Fazer ou no o jogo do poder, integrar-se ou no ao Estado, depende portanto da estratégia politica ‘seguida, mesmo que, para Foucault é 0 fato da “plebe” estabelecer para si uma estratégia que a “integra” no poder substancializado, que a faz abandonar o fora-de- lugar absoluto do poder, ndo-lugar de fato, para reinte- gré-la em suas linhas. Contudo: » 7 @) # sabido que essa estratégia deve ser funda- mentada na autonomia das organizagées das massas populares: mas atingir essa autonomia ndo significa para as organizacdes sair do terreno estratégico da re- \lacio de foreas que é 0 Estado-poder, assim como para as outras or Ses (sindicais ou qualquer outra) colocar-se fora dos dispositivos de poder corresponden- tes, como se isso fosse possivel, segundo a velha ilusio anarquista, no melhor sentido do termo. Organizar-se no campo do poder nao significa, tanto num caso como noutro, que essas organizacées devam inserir-se direta- mente no espago fisico das instituigées (isso depende das conjunturas), nem, o que também acontece, que elas devam reproduzir’ sua materialidade (muito pelo contrario). 7») # sabido igualmente que as massas populares devem, paralelamente a sua eventual presenca no es- Le jek pago fisico dos aparelhos de Estado, manter e desenvol- re ver permanentemente focos e redes @ distancia desses 176 aparelhos: movimentos de democracia diretamente na base e redes de autogestéo, Mas estes ndo se situam,/ por mais que visem objetivos politicos, nem fora do Estado nem, de qualquer maneira, fora do poder, con- forme as ilusées simplistas de uma pureza anti-institu- cional. E ainda: colocar-se a qualquer preco fora do Estado quando se pensa em situar-se por isso fora do poder (0 que é entéo impossfvel) pode ser muitas vezes exatamente o melhor meio de deizar 0 campo livre para estatismo, em suma, recuar nesse terreno estratégico diante do adversério, IV. 0 Pessoal do Estado Essas anélises tornam-se mais nitidas ainda se con- siderarmos agora 0 pessoal do Estado. Seu caso mostra que as lutas de classe simultaneamente atravessam e constituem 0 Estado, revestindo-o de uma forma especi- fiea, e que essa forma estd relacionada com a ossatura material do Estado. ‘As contradig6es de classe se inscreyem no seio do\ Estado por meio também das divisGes internas no seio Corlisj..1 do pessoal de Estado em amplo sentido (diversas buro- cracias estatais, administrativa, judicidria, militar, poli- cial, etc.), Mesmo se esse pessoal constitui uma categoria.) social detentora de uma unidade propria, efeito da orga-.. .. nizagio do Estado e de sua autonomia relativa, ele nio deixa de deter um lugar de classe (nao se trata de um grupo social & parte ou acima das classes) e é, entdo, dividido. Lugar de classe diferente da origem de classe (ou seja das classes de onde esse pessoal se origina) e que est relacionado & situagio desse pessoal-na divisio social do trabalho tal como ela se cristaliza no arcabou- co do Estado (inclusive sob a forma de reproducao es-/ pecffica da divisio trabalho intelectual/trabalho manual no préprio seio do trabalho intelectual concentrado no Estado): incumbéncia ou lugar de classe burguesa para as altas esferas desse pessoal, pequena-burguesia para aT ‘0s escaldes intermedisrios e subalternos dos aparelhos de Estado. ‘As contradig6es e divis6es no seio do bloco no po- der repercutem portanto no seio das altas esferas do pessoal do Estado. Mais: uma vez que amplas parcelas desse pessoal so da pequena burguesia, as tutas popula- res forcosamente afetam-no. As contradigdes classes do- minantes-classes dominadas repercutem como distancia mentos dessas parcelas do pessoal de Estado com a cuipula especificamente burguesa, e se manifestam como fissuras, rupturas e divises no seio do pessoal e apa- relhos de Estado. Certamente essas divisdes no se refe- rem apenas a relagio geral de forgas, mas igualmente as reivindicacdes especificas desse pessoal na diviséo do trabalho no seio do Estado. Seguramente, também, ‘as contradig6es classes dominantes — classes domina- das se refletem no seio do pessoal do Estado de manei- ra complexa, devido & especificidade desse pessoal en- quanto categoria social diferente. Isso nio impede que as contradigoes de classe existam de algum modo em seu seio. As lutas das massas populares nao atingem o pessoal do Estado apenas quando as massas estao fisi- ‘camente presentes nos aparelhos de Estado, ou apenas nos aparelhos dos quais elas fagam parte: esse seria o caso se se tratasse de fazer, por simples pressdes e con- tactos, pender para seu lado grupos © grupamentos aci- ma ou & parte das classes. A luta de classes esté pre- sente nos aparelhos de Estado, mesmo quando se ex- pressa & distancia: 0 pessoal de Estado esté desde en- t4o, em razio do seu ser-de-classe, na luta de classes. A luta das diversas classes populares atravessa aliés 0 Estado de maneira diferenciada: visto serem da peque- na-burguesia os escaldes intermedidrios e subalternos do pessoal dos aparelhos de Estado, so as contradicées € posicdes da pequena-burguesia, em suas relac6es com as classes dominantes, que os atingem diretamente. As lutas da classe operéria af repercutem geralmente atra- vés das relages desta (conflituais ou de alianga) com a pequena burguesia. As lutas das masas populares regulam de maneira permanente a unidade do pessoal de Estado a servico 178 do poder ¢ da frag&o hegemOnica. Essas lutas se reves- tem de formas especifices: moldam-se no arcabouco material do Estado, segundo a trama de sua autonomia relativa e néo correspondem, ponto por ponto, nem de maneira univoca, as divisbes na luta de classes. Elas tomam freqlentemente a forma de “querelas” entre membros de diversos aparelhos e setores do Estado, de- vido as fissuras e reorganizagdes do Estado no contexto geral das contradig6es de classe, a forma de friccdes entre cliques, facges ou diversos corpos do Estado no seio de cada setor e aparelho. Mesmo quando as posi- des de classe repercutem no seio do pessoal de Estado através de uma politizacdo direta e mais nitida desse pessoal, isso é sempre encaminhado por vias particula- Tes, em razio da maneira prépria pela qual a divisio social do trabalho se reproduz no seio deste ou daquele aparelho de Estado (esse proceso toma formas dife- rentes, por exemplo, no exército, no sistema escolar, na policia ou na Igreja) mas em razdo igualmente dos mecanismos ideolégicos no seio dos aparelhos. ‘A ideologia dominante, que o Estado reproduz e inculea, tem igualmente por func&o constituir 0 cimento interno dos aparelhos de Estado e da unidade de seu pessoal. Esta ideologia é precisamente a do Estado neu- tro, representante da vontade e do interesse gerais, ar- bitro entre as classes em lula: a administragio ou a justiga acima das classes, 0 exército pilar da nacdo, polfcia garantia da ordem republicana e das liberdades dos cidadios, a administragéo motor da eficiéncia e do bem-estar geral. a forma que reveste a ideologia dominante no sefo dos aparelhos de Wstado: mas esta ideologia néo domina inteiramente pois os sub-conjun- tos ideolégicos das classes dominadas esto também cristalizados, sob a dominincia desta ideologia, nos apa- relhos de Estado. Esses temas da ideologia dominante so freqiientemente entendidos por amplas camadas do pessoal de Estado como o que lhes compete no estabe- Iecimento da justica social e da “igualdade de chances” entre os cidadios, no restabelecimento de um “equilf- brio” em favor dos “‘fracos” etc. As lutas populares, que forgosamente revelam a natureza real do Estado aos olhos de agentes predispostos, por sua origem de clas: 179 se, a enxergar mais claramente, acentuam assim consi- deravelmente as divisdes, contradigées ¢ clivagens no seio do pessoal de Estado. Ainda mais que essa luta se articula, no mais das vezes, com as reivindicagées espe- cificas do pessoal de Estado. Tudo isso é verdadeiro a despeito dos limites da “politizagéo” do pessoal do Estado, devido a maneira pela qual a luta de classe se reflete em seu seio. Os agentes do pessoal de Estado que pendem para as massas populares vivem comumente suas revoltas nos termos da ideologia dominante, tal como ela se corpo- rifica na ossatura do Estado. O que quase sempre colo- ca-os contra as classes dominantes e as esferas supe riores do Estado, é que a dominagdo de grandes inte- resses econdmicos sobre 0 Estado pée em questo seu papel de garantia da “ordem” e da “eficacidade” sécio- econémica, destrdi a “autoridade” estatal e o sentido das tradicionais ‘hierarquias” no seio do Estado. Eles interpretam o aspecto, por exemplo, de uma democra- tizagao do Estado nao como uma intervencao popular nos negécios ptiblicos, mas como uma restauracio de seu proprio papel de arbitros acima das classes sociais. Eles reivindicam uma “descolonizagao” do Estado em relac&o aos grandes interesses econdmicos, 0 que, a seu yer, significa 0 retorno a uma virgindade, supostamen- te possivel, do Estado que lhe permita assumir seu pré- prio papel de direcio politica. Assim, mesmo os grupos do pessoal de Estado que se inclinam para as massas populares nio apenas no colocam em questdo a reprodugéo da diviséo social do trabalho no seio do aparelho estatal — a burocratiza- Go hierarquica — mas, além disso, geralmente néo dio importancia & divisdo politica dirigentes-dirigidos enrai- zada no Estado. Ou seja, nao levam até as ultimas conse- qléncias seu prdprio papel e lugar diante das massas populares. Nada mais evidente que a profunda descon- fianga que as iniciativas das massas de tipo autogesto- ras ou de democracia direta despertam nesses grupos do pessoal de Estado, aliés favordveis & sua democrati- zagio. 180 Esses limites da politizagéo do pessoal de Estado nflo passam de efeitos do areabouco material do Esta- do sobre ele, e Si0 conseqtientemente consubstanciais ao lugar proprio desse pessoal na diviséo social do tra- balho. Esses limites inerentes as praticas do pessoal de Estado s6 podem entdo ser transpostos sob a condicao unica de uma transformagdo radical deste arcabougo institucional, e na proporgéo desta transformacio. De encontro a toda uma série de ilusOes, a tendéncia es- quedizante de apenas uma parte do pessoal de Estado no basta, longe disso, para a transformacdo da rela: cdo Estado-massas populares. A solugdo para esse pro blema nao esté na simples substituigéo do pessoal de ws sl! Estado, quer sob a forma de ocupacao de postos cha-). ves do Estado por militantes “devotados & causa” das massas populares, quer, mais prosaicamente, sob a for- ma de democratizagao do recrutamento desse pessoal favordvel a agentes de origem de classe popular. Essas > medidas no so indcuas, mas tornam-se secundérias (i: diante do problema mais fundamental, que ¢ 0 da trans-\. formagéo do Estado em suas relagdes com as massas >. populares. Na auséncia de uma tal transformacio, qua-/ se se pode dizer que esse novo pessoal certamente aca- bard, ou comegard, colocando-se a altura de sua funcio e reproduzindo as praticas decorrentes da estrutura do Estado: os exemplos histéricos abundam. Se é preciso transformar o Estado a fim de poder’, modificar as préticas de seu pessoal, em que medida %'™ se pode contar, nessa transformacao do aparelho de Estado, com o pessoal que se inclina para as massas populares? B, 6 claro, hé que observar-se aqui as resis. tencias desse mesmo pessoal de Estado, para nfo dizer do pessoal que continua fiel a seu papel de cio de guar- da do bloco no poder. Em razio de seu lugar na divisio social do trabalho personificada pelo Estado, esse pes: coal s6 tende, no mais das vezes, para as massas popu- lares (pelo menos num primeiro momento) apenas sob a condicéo de uma determinada continuidade que sus tente o Estado. E ele até mesmo tende muitas vezes para as massas populares para que esta continuidade do Estado seja assegurada, continuidade que preserve © Estado. E mais ainda: ele tende muitas vezes para 0 181 lado das massas populares para que esta continuidade do Estado seja assegurada, continuidade que the pa- Tece ser colocada em questo pela influéncia dos gran- des interesses ou “feudalidades” econdmicas sobre 0 Estado, e as rupturas e revoltas que ela provoca no corpo social ou “nacional”. Esta atitude, constantemen- te verificada, nfo se atém apenas a defesa de privilé- beg gios corporativistas alids evidentes. Se a burocracia de Estado tem igualmente interesses proprios, os da sua rea, a defender, a tal ponto que se possa falar de um “interesse pela estabilidade” do Estado prdprio do con- \\junto de seu pessoal, isso nfo é o essencial, Paralela- mente @ considerdvel, nos dias de hoje, extensdo desse | \ pessoal de Estado, os privilégios da fung&o ptiblica sio | \ Postos em questo por uma importante parcela desse Pessoal. Mas se esta situac&o favorece incontestavel- mente sua politizagio para a esquerda, parece certamen- { te apontar sempre os limites relativos ao arcabougo ma- ¢ terial do Estado. Todas essas coisas tém incidéncias poli- [ » ticas no que tange a uma transicéo para um socialismo + oe: “@emocratico: como apoiar-se nesse fator, hoje em dia / Se" decisivo, de politizacio esquerdizante de amplas parce- | Gtr & Jas do pessoal de Estado, considerando esses limites e Gorin »» “preparando” esse pessoal sempre suscetivel a tender

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