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Automa~áo, competitividade e "


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o discurso da qualidade
ea
qualidade do discurso

Mariano Fernóndez Enguita

92
,

Se existe hoje uma palavra em moda no mundo da educa~ao,


essa palavra é, sem dúvida, "quaUdade". Desde as declara~oes
dos organismos internacionais até as conversas de bar, passando
pelas manifesta~oes das autoridades educacionais, as organiza-
~oes de professores, as centrais sindicais, as associa~6es de pais,
as organiza~oes de alunos, os porta-vozes do empresariado e
uma boa parte dos especialistas, todos coincidem em aceitar a
qualidade da educa~ao ou do ensino como o objetivo prioritário
ou como um dos muito poucos que merecem considera~ao.
A qualidade se converte assim em uma meta compartilhada,
no que todos dizem buscar. Inclusive aqueles que se sentem
desconfortáveis com o termo nao podem se livrar dele, vendo-se
obrigados a empregá-lo para coroar suas propostas, sejam lá
quais forem. Qualquer proposi~ao relativa a conservar, melhorar
ou mudar isto ou aquilo, nao importa o que seja, deve explicar-se
em termos de qualidade. Da mesma forma que, em campos mais
amplos, as medidas políticas devem ser justificadas em virtude
da democracia (ou do socialismo, conforme o país) e as econo-
micas em fun~ao do controle de pr~os ou do aumento do
emprego, mesmo no caso em que conduzam, respectivamente,
a restri~ao das liberdades ou da soberania popular ou ao aumento
da infla~ao e do número de desempregados. De um simples
termo ou expressao, transforma-se assim no eixo de um discurso
fora do qual nao é possível o diálogo, porque os interlocutores
nao se reconhecem como tais senao através de uma linguagem
comum.
Converte-se, além disso, em uma palavra de ordem mobili-
zadora, em um grito de guerra em tomo do qual se devem juntar
todos os esfor~os. Por sua polissemia pode mobilizar em torno
de si os professores que querem melhores salários e mais
recursos e os contribuintes que desejam conseguir o mesmo

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,
resultado educacional a um menor custo; os empregadores que automóveis se veem forc;ados a renovar constantemente os
querem urna forc;a de trabalho mais disciplinada e os estudantes modelos em oferta e ninguém está disposto a deixar que o náilon
que reclamam maior liberdade e mais conexao com seus interes- lhe irrite a pele ou a vestir a mesma fOupa que o vizinho. Na
ses; os que desejam reduzir as diferenc;as escolares e os que primeira etapa buscava-se aceder a uIJl novo tipo de consumo,
querem aumentar suas vantagens relativas. na segunda trata-se de adquirir produtos mais ajustados a espe-
Entretanto, o predominio de uma expressao nunca é ocioso cificidade das próprias necessidades - nao importa qua! seja a
ou neutro. A problemática da qualidade esteve sempre presente origem dessas - e que distingam cada individuo dos demais.
no mundo da educa<;ao e do ensino, mas nunca havia alcan<;ado a consumo de escolariza<;ao passou já pela primeira etapa
antes esse grau de centralidade. Ela vem substituir a problemática e se encontra agora na segunda. A amplia<;ao da escolariza<;ao
da igualdade e a da igualdade de oportunidades, que eram entao universal e as reformas compreensivas de maior ou menor
os coringas desse jogo. alcance asseguraram a totalidade da popula<;ao o acesso a níveis
do ensino até entao reservados a urna minoria e abriram poten-
cialmente as portas para o acesso a níveis superiores. Nessa
A qualidade como meta necessária etapa, o que a sociedade demandava e os poderes públicos se
viam obrigados a satisfazer era o acesso ao existente, a igualdade
Urna vez que se vao expor e criticar aqui sobretudo os em rela<;ao aos que já o possuíarn, e nao havia milito tempo para
significados ocultos da demanda de qualidade em educa<;ao, deter-se a pensar se o que se estava demandando ou oferecendo
parece necessário comec;ar por dizer que nao há nela nada de tinha a forma adequada ou devia ser submetido a revis30, e menos
necessariamente demoniaco. a acesso a todo recurso escasso ainda se deveria ajustar-se a medída dos desejos de cada um.
come<;a sempre por constituir um problema quantitativo para a processo consistiu assim em colocar vinho novo em tonéis
converter-se posteriormente, quando a escassez já nao é tanta, velhos, em incorporar todos a um ensino que nao havia sido
em uma questao qualitativa. configurado pensando na sociedade em seu conjunto, mas em
A atitude diante da educac;ao formal pode ser comparada a urna reduzida parte da mesma. Presumia-se que o que era ou
adotada diante de outras grandes necessidades que a humanida- parecia ser bom para os que até entao vínham desfrutando-o
de, ou ao menos sua parte privilegiada (o Norte), foi progressi- com exclusividade também o seria para os demais. Entretanto,
vamente satisfazendo. No processo de urbaniza<;ao, por a única coisa que com seguranc;a tinha de indiscutivelmente
exemplo, as necessidades de habitac;ao e transporte individuais "bom" era sua exclusividade, e isto foi justamente a primeira
viram-se inicialmente "satisfeitas" através da oferta padronizada coisa que foi perdida. Perdida essa característica, era apenas
de pequenos apartamentos em grandes edifícios e automáveis questao de tempo que os setores recém-incorporados a cada
que se pareciam entre si como um ovo a outro. Quando se lan<;ou nível de ensino, e inclusive os mesmos que já o freqüentavam
o Ford T, o primeiro carro produzido em massa e a um pre<;o antes, se perguntassem sobre se necessariamente tinha este que
mais acessível que o de seus predecessores, a publicidade continuar sendo o que era ou se, pelo contrário, deveria adap-
afirmava ironicamente que o comprador podia escolher qualquer tar-se melhor a diversidade de expectativas e interesses de seu
cor desde que fosse preta. Na Espanha, por exemplo, os público ampliado.
populares automáveis "seiscentos", os ternos de tergal e as Para dizer de outra forma, desaparecido em boa parte seu
camisas de náilon e de outras fibras sintéticas, entre outros valor extrínseco - baseado essencialmente em sua escassez -
produtos, marcaram com sua onipresen<;a a aparic;ao do consu- havia de chegar o momento de perguntar-se pelo valor intrínsec~
mo de massas. Hoje em dia, entretanto, os fabricantes de dos ensinos convertidos em patrimonio de todos ou da maioria ,

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isto é, os de acesso garantido e os de fácil acesso. O movimento
"
qualidade nao substitui inteiramente e de urna vez por todas as
em favor de um ensino mais ativo, mais participativo, mais anteriores: a nova versao afasta as antigas para o lado, mas tem
centrado nos interesses dos alunos, etc., pode explicar-se, em de conviver com elas. É isso preci6amente que permite que
parte, em virtude desse processo e deve entender-se, de qualquer setores e grupos com interesses disfintos possam coincidir em
forma, como um movimento centrado nos aspectos qualitativos tomo de uma mesma palavra de ordem.
do ensino ou, caso se prefira, a favor da melhoria da qualidade Mas nao foi nenhuma dessas mudan<;as aquUo que, por si
da educa<;áo. Nesse sentido, o lema da qualidade aparece como só, converteu a qualidade da educa<;iio ou do ensino em mono-
uma aspira<;iio inteiramente legítima, necessária e encaminhada tema da época, mas o fato de que sua pr09ressiva centralidade
a abordar os problemas deixados de lado e, de certo modo, e sua mudan<;a de significado sao duas faces do mesmo processo.
agravados durante a etapa anterior. Para que esse processo tivesse lugar eram necessários motivos
Entretanto, o lema da qualidade da educa<;iio tem, como a que 1090 veremos e, ademais, agentes adequados. Comecemos
máe e rival de lady Windermere, mais de um passado e, como por esses últimos.
Jano, duas faces. A partir de agora nos ocuparemos da outra. O movimento come<;ou nos Estados Unidos, onde, em
1981, a National Commission for Excellence in Education,
lan<;ava o grito de socorro no título de seu relatório a adminis-
Origem e difusao da palavra de ordem tra<;iio Reagan, "Urna na<;iio em perigo", e a palavra de ordem
em seu próprio nome. Nao era a primeira vez que os Estados
Na Iinguagem dos especialistas, das administra<;6es educa- Unidos se convertiam em cenário de urna cruzada desse tipo pela
cionais e dos organismos intemacionais, o concelto de qualidade melhoria, ao menos suposta, da educa<;iio. Aquele país levou a
tem invocado sucessivas realidades distintas e cambiantes. Ini- cabo outras cruzadas desse tipo no segundo decenio deste século
cialmente foi identificado táo-somente com a dota<;iio em recur- e no final dos anos cinqüenta e início dos anos sessenta.
sos humanos e materiais dos sistemas escolares ou suas partes No início deste século teve lugar a tradu<;iio do taylorismo,
componentes: propor<;áo do produto interno bruto ou do gasto entáo em processo de implanta<;iio pr09ressiva no mundo do
público dedicado a educa<;iio, custo por aluno, número de alunos trabalho, a Iinguagem escolar. Reformadores como Bobbitt,
por professor, dura<;:ao da forma<;:áo ou nivel salarial dos profes- Spaulding, Cubberley e outros sustentavam que a escola devia
sores, etc. Este enfoque correspondia a forma pela qual, ao servir a comunidade, identificando esta com a empresa. Bobbitt
menos na época florescente do Estado do Bem-Estar, se tendia afirmava que os alunos deviam ser modelados pela escola de
a medir a qualidade dos servi<;os públicos, supondo que mais acordo com os desejos das empresas, da mesma forma que as
custo ou mais recursos, materiais ou humanos, por usuário era fábricas metalúrgicas produziam os lingotes seguindo as especi-
igual a maior qualidade. Mais tarde, o foco da aten<;:áo do fica<;6es fomecidas pelas companhias ferroviárias; e que o pro-
conceito se deslocou dos recursos para a eficácia do processo: cesso de trabalho dos professores podia ser organizado e
conseguir o máximo resultado com o mínimo custo. Esta já náo normalizado da mesma forma que o havia sido o do infeliz
é a lógica dos servi<;:os públicos, mas da produ<;:áo empresarial Schultz por Francis W. Taylor. Spaulding introduziu a análise de
privada. Hoje em dia se identifica antes com os resultados obtidos custo-benefício e propos avaliar os resultados das escolas de
pelos escolares, qualquer que seja a forma de medi-Ios: taxas de acordo com a propor<;iio de jovens nelas matriculados, os dias
reten<;:áo, taxas de promo<;iio, egressos dos cursos superiores, de freqüencia no ano, a porcentagem de promo<;6es, o tempo
compara<;:6es intemacionais do rendimento escolar, etc. Esta é necessário por aluno para realizar um trabalho, etc., aventuran-
a lógica da competi<;áo no mercado. Cada nova versao da do-se inclusive a estimar o custo em dólares de cada Ii<;áo por

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'-
matéria, para suprimir as menos rentáveis. Cubberley se esfor<;:ou nos, a capacidade mostrada pela URSS para construir bombas
por introduzir nas escolas a figura do especialista em educac;:ao, de uranio e de hIdrogenio em competi<;:áo com seu adversário).
a réplica escolar do especialista em tempos e movimentos. Nos anos oitenta, a ameac;:a está co~tuída pelo Japáo e pelos
No final da década de cinqüenta foi James B. Conant o novos países industrializados da zona do Pacifico, com sua
encarregado de fazer soar o alarme e propor soluc;:ées. Esta vez crescente participa<;:áo no mercado mundial.
000 se recorreu táo grosseiramente el linguagem e aos métodos Na segunda metade dos anos vinte, a ameaYl era dupla:
da empresa - isso, em grande medida, já estava feito. Para econ6mica por parte da Alemanha, representada por seu cres-
dramatizar a necessidade de reforma das escolas lnvocou-se a cente poderlo. e política por parte do movimento operário,
defesa da democracia, mas assinalando, como sempre, que náo representada pela Revoluc;:ao de Outubro. Estabeleceu-se entáo
se ensinava suficiente matemática, Iinguagem, etc., e que era uma espécie de divisao do trabaIho: do problema político se
necessário reforc;:ar as matérias exigidas pelo mundo empresarial. ocuparam os Iiberais, empenhados na "americanizac;:ao" dos
A economia esteve presente, mas, diante do mal-estar social dos imigrantes, em boa parte consistente na exfupac;:ao das idéias
sessenta, centrou-se preferentemente em motivos mais gerais e socialistas e na inculcac;:ao dos valores da democracia parlamen-
mais em sintonia com o mal-estar social da década: igualdade de tar e da economia de mercado; do problema econ6mico ficaram
oportunidades, a educac;:áo como investimento, sua relac;:áo com encarregados os eficientistas.
o desenvolvimento, etc. No final dos anos cinqüenta e durante os anos sessenta, a
Nos anos oitenta, de novo, levantava-se o grito pelas altas dupla ameac;:a provinha de uro mesmo ponto: a URSS, o
taxas de evasáo, os maus resultados em comparac;:áo com outros socialismo. Por uro lado, a aparente vitória tecnológica dos
países, a suposta queda do nível - por outro lado nunca russos (artificialmente amplificada com fins propagandísticos
demonstrado, antes pelo contrário -, a crise de disciplina, a mais pelos próprios norte-americanos que por eles mesmos); por
proliferac;:áo das matérias optativas em detrimento das tradicio- outro. o mal-estar social que invadiu o Ocidente durante os anos
naís, etc. Desta vez, a palavra de ordem da qualidade nao se sessenta, capaz de ser capitalizado e veiculado pela esquerda.
veria obscurecida pela da igualdade. Especialistas e autoridades Talvez por isso os dois discursos em apoio da reforma educacio-
a levariam a seu grau máximo, a "excelencia", tomando a busca nal, o da eficiencia e o da igualdade, puderam e tiveram de se
dessa como o norte principal da política educacional. fundir em um único (recordem-se a teoria funcionalista da
O comum a todas essas situac;:óes tem sido a convicc;:áo estratificac;:ao social. a teoria do capital humano e a da moderni-
estadunidense de que sua supremacia no mundo se sentia zac;:áo).
ameac;:ada por um competidor exterior. Nos anos da Primeira Nos anos oUenta, quando o socialismo burocrático nos
Guerra Mundial essa ameac;:a era, naturalmente, a Alemanha. países do Leste mostra-se esgotado, ineficaz e escassamente
Mas, no que conceme a escola e ao discurso em tomo dela, nao atrativo, e quando os países do Oeste assistem a queda. o
se tratava tanto da ameac;:a bélica quanto do forte desenvoM- estancamento ou a reconversáo da esquerda e o auge da nova
mento industrial desse país. A guerra nao era mais que uma direita, o discurso da reforma educacional limita-se ao campo da
conseqüencia de algo mais preocupante, a rápida ascenSao eficiencia e deixa estacionada a questáo da igualdade.
alemá a Iideranc;:a das grandes potencias industriais. Ao final dos Deve-se observar, por outro lado, que, embora a extensáo
anos cinqüenta e início dos anos sessenta seria a ameac;:a da internacional da temática obsessiva da qualidade náo fosse
industrializac;:áo soviética, cujo símbolo paradigmático foi a colo- possível sem uma certa coincidencia nas situac;:óes nacionais,
cac;:áo em órbita do Sputnik, isto é, a chegada ao espac;:o antes nem por isso torna-se menos importante o papel dos organismos
dos norte-americanos (mas também, embora se alardeasse me- intemacionais em sua difusáo. Já nos anos setenta foi possível

100 101
,
observar-se o papel proeminente da OCDE, da UNESCO e do líquido e desemprego em massa, o discurso oficial responsabiliza
Banco Mundial na extensao oas políticas educacionais esboc;adas a educa<;ao por ambas as coisas. Ao colocar enfase na centrali-
principálmente nos Estados Unidos. Nos anos ottenta, nao por dade das reformas educacionais para continuar ou melhorar na
acaso, incorpora-se a lista o Fundo Monetário Internacional e competi<;ao internacional, está-se afirmando que se o país nao
quase perde a Unesco, pois cada política tem os porta-vozes que vai melhor é por culpa de seu sistema educacional. Ao insistir
merece e vice-versa. A esses dever-se-ia acrescentar uma série permanentemente no desgastado problema do "ajuste" entre
de funda<;6es, vinculadas a grandes grupos empresariais, muito educa<;ao e emprego, entre o que o sistema escolar produz e o
ativas nacional e internacionalmente e sempre preocupadas com que o mundo empresarial requer, está-se lan<;ando a mensagem
a educa<;ao, encabe<;adas pelas funda¡;6es Camegie, Ford e de que o fenómeno do desemprego é culpa dos indMduos, os
Rockefeller. quais nao souberam adquirir a educa¡;áo adequada ou dos
poderes públicos que nao souberam oferece--la; mas nunca das
empresas, embora sejam essas que tomam as declsóes sobre
Uma vez mais a catarse investimentos e emprego e que organizam os processos de
trabalho.
Quando os norte-americanos buscavam um culpado a quem O sistema educacional desempenha, pois, o papel de vítima
responsabilizar por sua derrota espacial diante dos soviéticos, propiciatória que permite aos demais expurgar seus pecados; ou
podiam perfeitamente ter escolhido algum outro que nao o melhor, o de bode expiatório que Ihes permite ignorá-los. Este
sistema escolar. Se nos anos oitenta se atribui de forma indiscu- quid pro quo nao tem nada de novo: há décadas, quando reina
tível a diferen<;a de desenvolvimento entre o Leste e o Oeste o pessimismo, a escola carrega culpas que sao por completo,
industrializado a superioridade da economia de livre mercado essencialmente ou em parte culpa de outras institui<;óes; quando,
sobre a da planifica<;ao central, entao se poderia ter muito bem pelo contrário, reina o otimismo, as reformas educacionais
feito o contrário, mas se escolheu enviar a fatura ao sistema convertem-se em sucedaneos das reformas sociais desejadas e
educacional sem que se parasse para pensar quem havia feito o prometidas.
gasto.
Nos anos oitenta, a situa<;ao é bastante parecida. Há outras
muitas explica<;6es para a ascensao mais rápida do Japao, da Qualidade em lugar de igualdade
zona do Pacífico e, secundariamente, da Alemanha Federal, mas,
se nao se quiser destacar o alto grau de explora<;ao dos traba- Nos anos sessenta e setenta, a escola viu-se convertida, com
Ihadores asiáticos, todas conduzem él política das empresas, a grande complacencia própria, na institui¡;áo supostamente ga-
suas formas de organiza<;ao interna, etc., isto é, ao campo do rantidora da igualdade de oportunidade de vida. A idéia merito-
privado, as capacidades exclusivas do capital. A educa<;ao, em crática, em suas origens associada ao desenvolvimento do
traca, situa-se no terreno do público - nao importando se mercado como mecanismo de atribui¡;áo de recompensas nao
legalmente a escola é pública ou privada - e permite oferecer vinculado ao nascimento, deixou de encontrar base nesse, devido
solu<;6es sem incomodar os grandes poderes económicos. Quan- a enorme desigualdade na distribui<;ao da propriedade e das
do muito se poderá, talvez, ferir a sensibilidade dos professores; oportunidades, e passou a buscá-la de imediato na escola. Já nao
mas esses, já se sabe, sao pessoas de pouca importancia. se podia assegurar a ninguém o acesso a propriedade de seus
Na realidade, a educa<;ao carrega hoje um fardo muito meios de vida, mas isso nao parecia muito importante em um
pesado. Em urna época de escasso ou nenhum crescimento período em que, supostamente, a propriedade dos meios de
produc;:áo havia perdido importancia em favor da gestao (os nivelamento de todos por baixo, da crise de valores da juventude,
capitalistas em favor dos gerentes) e a economia privada em favor etc.
do setor público.
É importante assinalar como as mudan<;as terminológicas
Nessas circunstancias, afirmava-se, urna boa educac;:áo podia ou, mais especificamente, nas pal~vras de ordem centrais, ex-
assegurar urna carreira exitosa no mercado de trabalho e nas pressam precisamente por ¡sso as mudan<;as de clima ideológico.
burocracias públicas e privadas. Assim, através da educac;:áo, a O termo "qualidade" poderla abarcar nao apenas as políticas
sociedade podia prometer igualdade sem tocar nas institui<;áes educacionais que hoje ganham terreno, mas, igualmente, as dos
do mundo económico. A enfase na educac;:áo, por outro lado, anos sessenta e inicio dos anos setenta: ao flm e ao cabo,
coadunava-se bem com a política económica de corte keynesia- tratava-se de melhorar o sistema educadonal, permitir que mais
no com o desenvolvimento do Estado do Bem-Estar e com a
m~dan<;a na social-democracia européia em dire<;ao a platafor-
pessoas acedessem ao ensino geral nao especializado, etc. A :~
"igualdade de oportunidades" era, por asslm dizer, a síntese da
mas políticas centristas empenhadas em evitar o enfrentamento igualdade (no ponto de partida) e a busca da qualidade (em tomo
com qualquer setor da sociedade, principalmente com os mais da selec;:áo, no ponto de chegada). Mas enquanto a palavra de
poderosos. Além disso, um maior, melhor e mais igualitário ordem da "igualdade de oportunidades" coloca enfase no ca-
acesso a educac;:áo formal havia sido urna reivindicac;:áo popular mum, a da "qualidade" enfatiza a diferen<;a.
e da esquerda durante muito tempo, razao pela qual era previsível
urna ampla aceita<;ao das políticas escolares expansivas. O Outros termos também mudaram, correlativamente: se an-
tes se vinculava insistentemente a educac;:áo ao objetivo do
resultado foi um conjunto de reformas destinadas, país a país, a
ampliar os períodos de escolaridade obrigatória, igualar as con- "desenvolvirnento", agora se vincula ao da "competic;:áo" inter-
di<;:óes de escolarizac;:áo e prolongar o tronco comurn até faze-lo nacional. Este deslocamento tampouco é inocente, pois, enquan-
to o desenvolvimento é o objetivo dos países pobres, a
coincidir, ou quase, com o período obrigatório: em breve, as
competitividade o é dos países ricos.
reformas compreensivas e o que pomposa ou desdenhosamente
se chamou de "democratiza<;:ao" ou de "massifica<;:ao" do ensino
superior.
A rearrao contra as reformas compreensivas
Os anos oitenta mostraram-se ser diferentes. As idéias-for<;a
que imperam já nao sao o descrédito do mercado, a confian<;a Como já se indicou, os anos sessenta e setenta presenciaram
no setor público como remédio para os desequilibrios produzidos reformas que levavam a unificac;:áo do tronco comum até cobrír
por aquele e a busca, ao menos nominal, da igualdade, mas a o período do ensino obrigatório, geralrnente até os dezesseis
volta a ideologia do mercado, a rejeic;:áo da intervenc;:áo pública anos, as quais trouxeram consigo, a1ém disso, em geral, urna
na economia ou o neodarwinismo social. Um neodalWinismo no elevac;ao das expectativas e demandas educacionais da popula-
qual as cartas estao antecipadamente marcadas, devido as c;:áo e, em particular, urna explosao da matrícula nos níveis
profundas desigualdades sociais de origem, mas ao qual isso nao secundárío superior e superior propriamente dito.
impede justificar as desigualdades finais de riqueza, poder,
Essas reformas nao deixaram de provocar reac;áes defensi-
prestigio, autonomia no trabalho, etc., em func;:áo de supostas
vas por parte dos setores sociais privilegiados que consideravam
diferen<;as individuais. No campo da educac;:áo, tudo isso se
o ensino (o acesso exclusivo a certos níveis ou tipos de ensino)
traduz em urna ofensiva contra as políticas igualitárias do passa-
como condic;ao para a obtenc;:áo, a manutenc;:áo ou a melhoria
do, as quais se culpa da suposta "queda geral de nível", do
de seus privilégios comparativos ou, quando menos, para sua
legitimac;:áo diante deles próprios e diante do conjunto da socie-

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1"
!

dade. No primeiro caso estavam e estáo diversos grupos das


"
países ocidentais (com a exce<;áo parcial dos que chegaram tarde
classes médias náo patrimoniais; no segundo, todos os grupos a ela) assistern uma forte ofensiva contra a reforma compreensiva
das classes altas e médias patrimoniais. e seus resultados.
Esses grupos contra-atacaram reintroduzindo por diferentes
caminhos diferencia<;óes de diversos tipos dentro e a margem da
escola compreensiva ou ao ténnino da mesma. Respostas inter- A quaUdade como distin~o
nas ou él margem foram, e ainda sáo, a agrupa<;áo dos alunos
por "níveis", os regimes de matérias optativas que permitern a Na linguagem do mercado, de que tanto se alimenta o
configura<;áo de curriculos alternativos tendo em vista os estudos discurso da educa<;áo, um produto de qualidade náo o é por
superiores ou o trabalho manual, o novo auge do ensino privado oposi<;áo aos de série, da mesma forma que os "círculos de
e a diferencia<;áo das escolas de acordo com seu público e qualidade" se contrapóem ao trabalho em linha de montagern
independenternente do fato de serem privadas ou públicas. ou o clnéma qualité as produ<;óes para o grande público. Náo
Respostas ao término da escola compreensiva foram e sáo, em existe um critério absoluto que permita estabelecer a que atribuir
alguns casos, a subdivisáo do ensino secundário superior ern ou náo o termo "qualidade", exceto se conslderarmos essa como
ramos e especialidades que levam a destinos escolares muito urna caractelÍstica compartUhada por todos os produtos e pro-
diferentes e, em todos, a diferencia<;áo quantitativa (títulos de cessos. O que a expressáo "qualidade" conota é que algo
primeiro, segundo e terceiro ciclos) e qualitativa (carreiras de distingue um bem ou servi<;o dos demais que o mercado oferece
elite, profissionais e de massa) do ensino superior, o aumento para satisfazer as mesmas ou análogas necessidades.
dos obstáculos para o acesso ao mesmo (seletividade, numerus No mundo do ensino, quando se quer fazer ajustá-la él da
c1ausus, orienta<;áo escolar restritiva) e a ruptura das velhas igualdade, a busca da qualidade se refere a passagern das
equivalencias entre títulos escolares e empregos (o "desemprego melhorias quantitativas as qualitativas. Náo apenas mais mas
dos diplomados" que é, antes, seu subemprego, ou seja, seu melhores professores, materiais e equipamentos escolares, ou
emprego abaixo da qualifica<;áo exigida, e o refor<;amento da horas de aula, por exemplo. Mas a palavra de ordem da qualidade
atua<;áo dos contatos e influencias familiares na transi<;áo da encerra também um segundo significado: náo o melhor (ern vez
escola él vida ativa). do mesmo ou de menos) para todos mas para uns poucos e igual
Todas essas rea<;áes podem ser abarcadas sob a epígrafe da ou pior para os demais.
qualidade: secundária superior frente a secundária de primeiro A clÍtica já clássica as reformas educacionais dos anos
ciclo, superior frente él secundária, escola privada frente él escola sessenta e setenta (os anos setenta e oitenta na Espanha), de
pública, ensino academico frente ao ensino profissional ou geral, acordo com a qual se teria descuidado da qualidade ern favor da
carreiras seletivas frente a carreiras de livre acesso, escalas de quantidade, náo é senáo a expressáo sublimada do mal-estar
elite frente a escolas de massa. Desde o come<;o das reformas daqueles que consideram perdidos ou amea<;ados seus privUégios
compreensivas, em qualquer momento e lugar, a rea<;áo da escolares. Em principio, nada permite afirmar que a qualidade
direita política foi de alarme diante da suposta amea<;a de tenha caído: nem o gasto por aluno, nem a quantidade unitária
degrada<;áo do ensino geral e massifica<;áo dos ensinos seletivos, de recursos materiais e humanos, nern a forma<;áo do professo-
tudo issosob a bandeira de se evitar prejuízos aos alunos mais rado, nem os resultados escolares. Que, entáo, se perdeu? A
dotados (seus filhos, naturalmente), isto é, sob a bandeira da distin<;áo que era garantida por certos niveis e tipos de ensino,
"qualidade" . Nada há de chocante, pois, no fato de que a palavra hoje abertos a todos ou, quando menos, a pessoas suficientes
de ordem da qualidade presida o cenário quando a maioria dos

106 107
-
para poder continuar associados a privilégios materiais ou sim- "
separados, em urn tronco de dez anos durante todo o período
bólicos. obrigatório) foi enca~da pelos professores de latím, que
Na luta individual e grupal pelos privilégios sociais, o que a unificaram em tomo de si a maior~parte da direita política e uma
educac;ao oferece, mais que a oportunidade de adquirir urna certa esquerda "humanista" distrqída.
formac;a.o em si melhor ou pior, é a ocasiáo de adquirir simbolos Entretanto, acredito que as verdadeiras causas desse movi-
de status que logo se valorizaráo nos mercados de trabalho e de mento nao estáo tanto na defesa dessa ou daquela parcela dos
bens matenais e simbólicos. Na competic;ao entre escola pública velhos conteúdos - que, ao menos até esse grau, 56 interessarn
e privada, por exemplo, a segunda acaba sempre ganhando, muitas vezes ao setor do professorado que mo teria um poste
porque a simples o~ao por ela, entre outras raz6es, denota já de trabalho sem eles - quanto na nostalgia dos métodos que os
por si própria a busca de urn ensino de qualidade. A suposta acompanhavam. Ano após ano, a disciplina é assinalada como
qualidade de urn ou outro ensino se associa, além disso, a suposta o prirneiro problema das escolas pelos cidadaos norte-america-
qualidade da pessoa, nao tanto como resultado quanto como nos nas pesquisas Gallup. Os empregadores nao se queixam
ponto de partida. Os alunos brilhantes "merecem" urn ensino de tanto das qualifica~óes dos egressos da escola quanto de seu
qualidade, os da massa nao, mas a seqüencia se inverte para individualismo, seu escasso respeito pela autoridade hierárquica,
pressupor o brilhantismo de todos que acodem asescolas de sua pouca disposi~ao a assumir tarefas rotineiras ou sua idéia de
qualidade, independentemente do fato de que para isso basta que o trabalho deve ser urna atividade pessoalmente gratificante.
possuir os recursos económicos necessários. Embora a escola continue sendo essencialmente urna orga-
Na Espanha, isso se manifestou durante decenios na expres- niza~ao burocrática, normalizadora e disciplinadora, cuja princi-
sáo: "Ir para urn colégio pago". A consciencia de pertencimento pal func;ao, que desempenha basicamente bem, é a socializac;ao
a urn grupo seleto refor<;a-se através da passagem por urn tipo da for<;a de trabalho, ela passou por profundas mudan<;as ero
de ensino restritivo, sejam as Escolas Técnicas Superiores espa- dire~ao a urna abertura, urna tolerancia, urna liberaliza~ao e urna
nholas, as grandes écoles francesas, as public schools e os democratiza~ao crescentes, assim como urna maior atenc;ao as
colleges de Oxbridge na Inglaterra ou as universidades da ¡W necessidades, interesses e desejos dos alunos considerados indi-
League norte-americana. vidualmente ou em grupo. O trabalho, pelo contrário, nao
conheceu nenhuma evoluc;ao similar: é por isso que, desde o
ponto de vista dos empregadores, a escola já nao curnpre
A qualidade como retomo ao passado adequadamente sua func;ao.
Todos esses sáo problemas que concemem as fun<;óes nao
A qualidade do ensino se identifica também, com freqüencia, cognitivas, de socializac;ao, da escola, nao a sua func;ao cognitiva
como retomo ao passado. Nos países anglo-sax6es, o final dos de transmissáo de conhecimentos e informac;ao, desenvolvimen-
anos oitenta presenciaram urna intensa campanha sob o slogan to de capacidades, aquisic;ao de habilidades e destrezas, etc. Nao
"back to the basics", pela volta as coisas fundamentais, isto é, obstante, diante da opiniao pública apareceriam como pouco
pelo retomo a um ensino baseado nas matérias tradicionais, apresentáveis propostas como organizar um trabalho escolar
fundamentalmente na língua e na matemática, na Ipemorizac;a.o, mais enfadonho para que os alunos nao alimentassem falsas
no "trabalho duro", etc., Na Fran<;a foi urn ministro da esquerda expectativas com respeito ao trabalho em geral ou refor~ar as
socialista, Jean Pierre Chévenement, quem surpreendeu com a san~óes por aspectos nao academicos para que aprendessem a
mesma idéia. Na Espanha, a principal rea~ao contra a reforma respeitar todas as autoridades.
em curso (que unifica os ramos academico e profissional, antes

108 109
>

Mas os métodos pedagógicos, a organiza<;áo material da


aprendizagem escolar, nao sao independentes dos conteúdos
que fixam. Os métodos mals dlsdpllnares e alienantes do passa-
do (em boa medida ainda bastante vigentes) estavam vinculados
a urna sele<;áo curricular muito pouco preocupada com os
interesses dos alunos, assim como os métodos mais liberais de
hoje o estao com urna maior aten<;áo a suas peculiaridades e
com a abertura de uro espa<;o mais amplo para o exercído de
sua liberdade pessoal. O regresso aos velhos conteúdos signifi-
carla também, se fosse viável, a volta aos velhos métodos. De
toda forma, a melhor maneira de conseguir o segundo, empresa
pouco popular entre o público e entre o conjunto do professo-
rado, é simplesmente reclamar do primeiro sob a bandeira, urna
vez mais, da qualidade.•

o discurso da qualidade" como


11

nova retórica conservadora


no campo educacional*

Pablo A.A. Gentil;

• Este capítulo foi inicialmente pubücado no üvro de Mariano Femández Enguita, Juntos
pero no revueltos. Ensayos en torno de la reforma de la educación, Madrid,
Visor, 1990. Pubücado aqui com a autoriza<;ao do autor. * Capítulo do livro As estratégias
neoconselYadoras em Educa~óo: urna an6/ise crítico.
Tomaz Tadeu da Silva
Pablo AA Gentili (organizadores).

110
© 1994, Editora Vozes Ltda.
Rua Frei Luís, 100
"
25689-900 PetrópoUs, RJ
Brasil
Sumário
ACHA TÉCNICA:

COORDENA<;Ao EDITORAL:
Avelino Grasst

EDrroR:
Antorúo De Paulo

COüRDENA<;Ao INDUSTRIAL: SOBRE OS AUTORES . . . . 7


José Luiz Castro

EDITOR DE ARTE:
OmarSantos CAPíTULO 1
EDrroRA<;Ao:
A "nova" direita e as transfonna<;óes na pedagogia da política
Editorw;óo e organlza,óo Ifterárla: Ana Lúcla Kronemberg e na política da pedagogia . . . . . . . . . . . . . . . . 9
Reulsáo gráfica: Revitec S/C
Dlagrama(áo: Sheila Roque Tomaz Tadeu da Silva
Superulsáo gráfIca: Valderes Rodrigues

ISBN 85.326.1308-X CAPíTULO 2


Educa<;ao e fonna<;ao humana: ajuste neoconselVador e
alternativa democrática. . . . . . . . . . . . . . . . 31
Gaudencio Frigotto

CAPíTULO 3
O discurso da qualidade e a qualidade do discurso 93
Mariano Fernández Enguita

CAPíTULO 4
O discurso da "quaUdade" como nova retórica conselVadora
no campo educacional . . . . . . . . . . . . . . . . . 111
Pablo A.A. Gentili

CAPíTULO 5
O que os pós-modernistas esquecem: capital cultural e
conhecimento oficial . . . . . . . . . . . . . . . . . . 179
Michael W. Apple
Este livro foi composto e impresso pela Editora Vozes Ltda.,
em outubro de 1994.

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