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CRISE DO FORDISMO OU CRISE DA SOCIAL- DEMOCRACIA* SIMON CLARKE * A desintegragao dos regimes da Europa do Leste nao € um fendmeno isolado, pois trata-se apenas da manifestagdo mais recente e mais dramatica de um processo que vem se desenrolando no mundo todo nas ultimas duas décadas. construgdo de novas formas politicas que possam articular e também legitimar estratégias econdémicas alternativas. Apesar de que ter sido a Direita quem ficou a montante da onda politica dos anos 1980, a Nova Esquerda, durante as décadas de 1960 e 1970, articulara uma critica ao Estado igualmente poderosa. Esta critica, porém, nao foi acompanhada por nenhuma alternativa coerente para as estratégias econdmicas desacreditadas da social-democracia e do socialismo de Estado, que pudesse fazer face ao apelo da direita 4 panacéia do mercado e a ideologia de um passado idealizado. O programa da Direita de privatizagdo respondia as pressdes politicas tentando (© artigo foi publicade originalmente em Telos, 83, 1990. ** Tradugio de Isa Mara Lando. 118 LUA NOVA N® 24 — SETEMBRO 91 desmantelar ou privatizar os mecanismos que haviam sido o foco imediato de agitagdo politica, Ele garantia sua base politica através da redistribuigao seletiva da renda em favor de setores estratégicos do ponto de vista eleitoral e, sobretudo, engendrando um boom militarista-keynesiano. No fim dos anos 80 ficou claro que nao houve nenhum milagre, mas apenas 0 velho boom do crédito. A quebra da Bolsa de 1987 revelou a base precdria da montanha de dividas sobre a qual o “milagre econémico" fora construido. Embora uma nova onda de liberalizagao na Europa do Leste e no Terceiro Mundo lance agora um salva-vidas para a Direita e prepare o caminho para uma futura expansio, é improvavel que ela possa oferecer uma solucao permanente para a crise da estratégia neoliberal, Hoje, boa parte da esquerda recorda-se com saudades dos anos dourados do otimismo social-democratico. Segundo essa visio, os anos 1950 e 1960 aparecem como uma época de crescente prosperidade e harmonia social, com 0 “Welfare State Keynesiano” realizando a visao social-democratica de uma sociedade que combina o dinamismo econémico do capitalismo com os valores politicos do socialismo. Em conseqiiéncia, a “crise da social democracia” nao é vista como um fracasso dessa concep¢4o, mas apenas da sua concretizacio — fracasso criado por mudangas econdmicas fundamentais que tornaram um socialismo monolitico e burocratico inadequado para os novos modos de organizagio. Ao compreender que as crescentes crises econémicas, sociais e ambientais mostram que o modelo neoliberal de desregulagio nao oferece uma solugio vidvel, a social-democracia vem se empenhando em construir um novo modelo de regula¢ao a fim de concretizar a velha idéia. Todo um leque de novas teorias surgiu para articular as oportunidades estratégicas que se supde que as recentes mudan- gas econdmicas estejam abrindo para a social-democracia.} Apesar de consideraveis diferengas te6ricas e politicas, todas se baseiam na critica sociologica da teoria liberal do mercado. Para todas elas, um maior crescimento econdémico s6 € possivel den- IAs mais influentes sio a Teoria Francesa da Regulagio, cujo pioneiro fol Michel Aglietta © que foi popularizada por Alain Lipietz; a Teoria das Estruturas Sociais da Acumulagao, desenvolvida basicamente por Tom Weisskopf, Samuel Bowles © David Gordon; e a teoria da Especializagao Flexivel, desenvolvida sobretudo por Michael Piore e Charles Sabel. Para uma critica da teoria da Aglictta, veja meu antigo *Overaccumulation, Class Struggle and the Regulation Approach", em Capital and Class n® 36 (1988), pp. 59-92. ‘CRISE DO FORDISMO OU CRISE DA SOCIAL-DEMOCRACIA? 19 tro de uma determinada estrutura institucional reguladora, capaz de reconciliar 0 crescimento com a harmonia social. Nenhum desses tedricos explica por que 0 processo competitivo nao funciona, ou de que maneira as alternativas que eles propdem poderiam substitui-lo. Eles concordam que nao existe um tinico modelo de regulacio, mas sim uma série de alternativas, cada uma mais ou menos limitadas pelas condigées das formas de produgao dominantes. Concordam também que o boom do pés-guerra e a hegemonia social-democratica da década de 1960 fundamentou- se numa forma de produgo em geral definida como “fordista”. Assim, a crise da social-democracia dos anos 1970 foi uma expresso do colapso cos modos fordistas de regulagao, como resultado da crise da produgao fordista. Por fim, ha um consenso cada ‘vez maior de que nos anos 90 irao forjar-se novos modos de regulacao, adequados a novas formas de produgao, que definem tanto os limites como as oportunidades para as novas estratégias politicas. Estas novas formas de producao ainda nao estao claras, e as formas de regulacdo que se adequam a elas com preciséo ainda precisam ser determinadas. Entretanto, os contornos do p6s-fordismo ja esto surgindo. Alega-se que o fordismo se baseia na produgio em massa de produtos homogéneos, utilizando a tecnologia rigida da linha de montagem, com méquinas especializadas e rotinas de trabalho padronizadas (tayloristas). Consegue-se uma maior produtividade através das economias de escala, assim como da desqualificagao, intensificagéo e homogeneizagio do trabalho. Isto da origem ao trabalhador de massa, organizado em sindi- catos burocraticos que negociam salarios uniformes que crescem em proporcdo aos aumentos na produtividade. Os padrées de consumo homogéneos refletem a homogeneizacio da producao e fornecem um mercado para os bens de consumo padronizados, enquanto os salérios mais altos oferecem uma demanda crescente para fazer face a oferta crescente. O equilibrio geral entre a oferta e a procura € alcangado por meio de politicas keynesianas de macroeconomia, enquanto o equilibrio geral entre salarios e lucros se alcanga através de acordos coletivos supervisionados pelo Estado. A educagio, treinamento, socializagio etc. do operario de massa € organizada através das instituig¢Ses de massa de um welfare state burocrtico. Coletivamente, estas instituigdes, que surgiram na década de 1950, definem um circulo virtuoso de 120 LUA NOVA N? 24 ~ SETEMBRO 91 nivel de vida crescente ¢ produtividade crescente, salarios em aumento e lucros em aumento, estabilidade econdmica e harmonia social. A subseqilente crise do fordismo leva 4 fragmentacao econémica, social € politica da qual deve surgir um novo regime “pés-fordista”. A medida que a produgao fordista se aproxima de seus limites, surgem novos métodos de producdo. A saturagio dos mercados de massa leva a uma crescente diferenciacio dos produtos, com uma nova énfase ‘no estilo e/ou na qualidade. Produtos mais diferenciados exigem turnos de trabalho mais curtos, € portanto unidades de produga’o menores € mais flexiveis. Novas tecnologias fornecem os meios pelos quais se pode realizar vantajosamente esta produgao flexivel. Entretanto, estas novas formas de produgao tém implicagdes profundas. Uma produgao mais flexivel requer maquinas mais flexiveis ¢ de finalidades genéricas, e mais operarios “polivalentes”, altamente qualificados, para oper4-las. Uma maior qualificagio e flexibilidade exige que 08 operarios tenham um grau mais alto de responsabilidade e autonomia. Uma produgao mais flexivel também requer formas mais flexiveis de controle de produgao, a0 passo que relacdes de produgdo mais flexiveis requerem o desmantelamento das burocracias corporativas. Os interesses de uma forca de trabalho mais diferenciada nao podem mais ser eficazmente representados por sindicatos e partidos politicos fordistas, monoliticos e buro- craticos, S40 necessarios acordos descentralizados para negociar sistemas de pagamento mais complexos e individualizados, que recompensam a qualificagdo e a iniciativa, A diferenciacao do trabalhador de massa leva ao surgimento de novas identidades que nao sao mais definidas ocupacionalmente, mas sim articula- das no consumo idiossincratico, em novos estilos de vida e novas formas culturais, que reforgam a demanda por produtos mais diferenciados. ‘Tudo isso vai corroendo as velhas identidades politicas. As necessidades de bem-cstar, satide, educacio e treina- mento de uma forca de trabalho diferenciada nao podem mais ser satisfeitas por um welfare state burocratico e padronizado, mas apenas por instituigées diferenciadas, capazes de responder de maneira flexivel as necessidades individuais. Essas mudangas nfo sao inevitaveis. Embora 0 modelo pos-fordista prometa criar as condigdes para a prosperidade eco- némica e a harmonia social, a0 mesmo tempo que oferece novas oportunidades para a realizagdo humana e o controle demo- CRISE DO FORDISMO OU CRISE DA SOCIAL-DEMOCRACIA? 121 cratico, no ha garantia de que tal utopia possa ser alcangada. A realizacdo do projeto fordista levou quase cinqiienta anos c teve de superar a oposi¢ao politica durante todo o seu percurso. Hoje, as forcas sociais e politicas ainda vinculadas a velha ordem ini- bem o surgimento do pés-fordismo. Os sindicatos burocratizados nao estéo dispostos a abandonar seu poder e seus privilégios, assim como os empresirios e funcionarios pGblicos também nao esto, Os fabricantes de produtos de massa reagem a competic¢ao manipulando seus produtos, procurando criar a impressio de diferenciagao através do marketing e da embalagem, e nao de novas concepgdes ¢ de uma produgio flexivel. Assim, 0 pés-for- dismo nao retrata um futuro inevitavel, mas define um projeto politico. Seu apelo ideolégico vem do fato que, como lhe falta qualquer fundamento social significativo, cle baseia suas reivin- dicagdes na sua necessidade historica. NOVAS UTOPIAS: POS-FORDISMO, ESPECIALIZACAO FLEXIVEL E A CRISE DO FORDISMO © modelo pés-fordista tem tantas versoes como propo- nentes.? Nenhuma delas, porém, pode rivalizar com o rigor da teoria de Aglictta do regime fordista de “acumulagao intensiva”, basicamente porque nao tém uma analise comparavel das rela- sdes de valor que o novo “regime de acumulagio” é solicitado a regular.3 O modelo pos-fordista apenas concatena umas tantas observagées superficiais da sociedade contemporanea, sem sequer especificar a relagio tedrica entre os varios elementos do suposto regime pés-fordista, muito menos submeté-los a qualquer 26 modelo foi apresentado com 0 maximo vigor peto jornal mensal do Partido Comunista Britnico, Marxism Today; 2s contribuigdes principais foram reunidas por Stuart Hall e Martin Jacques, eds. New Times (Londres: Lawrence and Wishart, 1989). A versio mais coerente © ambiciosa do modelo é a proposta por Bob Jessop, que tenta teorizar um pacote pés-fordista coerente, com uma ‘estratégia de acumulacio”, uma ‘estratégia cstatal” c um “projcto hegeménico”. Veja Bob Jessop ct. al., Tbatcherism: A Tale of Two Nations Polity Press, 1989); Bob Jessop, "Thatcherism: The British Road to Post-Fordism”, Essex Papers in Politics and Government (Colchester: University of Essex, 1989); Bob Jessop, "Regulation Theory in Retrospect and Prospect”, em Economy and Sociely, a sair. 3cf. Jamie Gough, “Where's the Value in Post-Fordism?" em Nigel Gilbert Roger Burrows, eds., Fordism and Flexibility (Londres: Macmillan, a sair). 122 LUA NOVA N® 24 ~ SETEMBRO 91 exame critico.4 Os proponentes do modelo fazem uma virtude da sua incoeréncia, alegando que o pés-fordismo é uma visio do futuro cujos contornos ainda nao estado claros e sé poderao ser definidos através de um extenso periodo de crise e restruturagdo das relagdes econémicas, sociais e politicas. A necessidade do pos-fordismo nao provém das suas proprias virtudes definiveis, mas da sua alega¢ao implicita de que nao ha alternativa para a social-democracia perante a suposta crise terminal do fordismo. O pés-fordismo nao é uma realidade, nem mesmo uma visio coerente do futuro, mas sobretudo uma expressao da esperanga de que o futuro desenvolvimento capitalista sera a salvacao da social-democracia. Se o modelo pés-fordista nao € coerente o bastante para permitir uma avaliagao racional, 0 modclo da “especializacao flexivel", como uma nova forma de producdo, parece mais coe- rente ao postular a relagéo entre novas tecnologias, novos pa- drées de demanda e novas formas de organizac4o social da pro- dugdo. Este vinculo define as fundagées de um novo projeto so- cial-democratico, ao reconciliar o interesse do capital de garantir altas taxas de produtividade com o interesse dos trabalhadores de combinar realizagdo pessoal no trabalho com niveis de renda mais altos. Contudo, esta coeréncia se evapora assim que se exa- mina 0 modelo cuidadosamente. © modelo se propée a estabe- lecer a conveniéncia social dos novos métodos de produgdo, mas a superioridade econémica destes ainda nao foi demonstrada. O modelo da “especializagdo flexivel” foi desenvolvido originalmente por Sabel e Piore, com base numa generalizagdo da pesquisa de Sabel na regifo italiana da Emilia-Romagna.? A partir dai seus defensores mais ardorosos foram Paul Hirst e Jona- than Zeitlin.6 O trabalho original de Sabel tinha pretensdes muito 4Veja a critica de Paul Hirst ao p6s-fordismo do ponto de vista da "especializacao flexivel” em “After Henry", em New Times, op. cit. Scharles Sabcl, Work and Politics (Cambridge ¢ Nova York: Cambridge University Press, 1982). Charles Sabel c Michacl Piore, The Second Industrial Divide (Nova York: Basic Books, 1984). Sveja o volume editado pelos dois, Reversing Industrial Decline? Industrial Structure and Policies in Britain and ber Competiiors (Nova York: St. Martins Press, 1989), € seus artigos “Flexible Specialization and the Competitive Failure of UK Manufacturing’, Political Quarterly, vol, 60, n° 3, pp. 164-78; ¢ “Flexible Specialization vs. Post-Fordism: Theory, Evidence and Policy Implications", artigo apresentado na conferéncia “Pathways to Industrialization”, Arrowhead Lake, California, marco de 1990. RISE DO FORDISMO OU CRISE DA SOCIAL-DEMOCRACIA? 123 modestas, relacionando as novas formas de alta tecnologia e de producao artesanal cooperativa com o contexto econémico, so- cial € politico muito especifico no qual elas tinham sido introdu- zidas. Em particular, os privilégios dos novos artesaos provinham de uma combinagao de escassez de mao-de-obra qualificada num setor particularmente dinamico da produgdo especializada, mais a disponibilidade de um conjunto de trabalhadores nao-qualifi- cados percebendo baixos salarios. A lucratividade dos novos métodos de produgdo era garantida por condigées de mercado muito favoraveis e pela intensificagdo do trabalho de uma maioria de trabalhadores mal-pagos. Ficava implicito que tanto a capacidade de generalizar © modelo como seu carater social- mente desejavel eram questioniveis.? As mesmas qualificagdes se aplicam aos outros exemplos apresentados pelos proponentes da “especializacao flexivel”, como por exemplo os sistemas flexiveis de fabricag4o, dos quais a pioneira foi a Toyota, no Japao, ¢ o setor da alta tecnologia em Baden-Wiurttemberg, na Alemanha.® A coeréncia do modelo original provinha da particula- ridade das suas circunstancias, o que explicava as con favoraveis que possibilitaram certo grau de colaboragdo entre empresas e permitiam que uma parte da forga do trabalho desfrutasse de relagées de trabalho vantajosas do ponto de vista social e material. Contudo, as particularidades do modelo logo foram se tornando secundarias e desapareceram. No livro que escreveu com Mike Piore, Chuck Sabel generalizou seu modelo como sendo a base de uma concepgao proudhonista de um novo futuro de produg4o artesanal cooperativa em pequena escala, ao passo que Hirst e Zeitlin retiraram todas as limitagées, quebrando 0 vinculo entre a “especializag’o flexivel” ¢ quaisquer condigées 7sobre a “Terceira Kalla", veja também Fergus Murray, “The Decentralization of Production and the Decline of the Mass Colective Worker?” em Capital and Class, n® 19 (1983), pp. 74-99; Fergus Murray, “Flexible Specialization in the'Third Italy", em Capital and Class n® 33 (1987), pp. 84-95; e Ash Amin, “The Flexible Small Firm in Italy: Myths and Realities’, em Anna Pollert ed., Farewell to Flexibility (Oxford: Basil Blackwell, 1990). 8sobre os limites do Toyotismo, veja Satoshi Kamata, Japan in the Passing Lane (Nova York: Pantheon, 1982); Knuth Dohse, Ulrich Jurgens e Thomas Malsch, “From 'Fordism’ to ‘Toyotism’? The Social Organization of the Labor Process in the Japanese Automobile Industry’, em Politics and Society, vol. 14, n® 2 (1985), pp. 115-46. Sobre os beneficios duvidosos da flexibilidade na inddstria alema, veja Christel Lane, “Industrial Change in Europe: The Pursuit of Flexible Specialization in Britain and West Germany", em Work, Employment and Society, vol. 2, n® 10 (1988), pp. 141-68. 124 LUA NOVA NP 24 ~ SETEMBRO 91 particulares, técnicas ou econdmicas, ao insistir que o modelo é universalmente aplicavel, uma vez que as relacdes de cooperagio © confianga nao dependem da produgio em pequena escala, nem de uma determinada tecnologia ou relagdo de mercado, mas apenas da presenga de um conjunto apropriado de normas ¢ valores.? Esta generalizacao levou a uma inversio sub-repticia das relagdes causais originais, Enquanto que no modelo eram as condigdes econdmicas favoraveis que possibilitavam a formagio de relagdes de trabalho harmoniosas, a0 menos entre os capil listas e uma parte da forea de trabalho, a generalizagio do mo- delo bascia-se no pressuposto de que sao estas relagées de traba- Iho harmoniosas a condicao para a prosperidade econdémica, embora esta suposi¢do nado seja nem explicitada nem submetida a um exame critico. E dificil detectar qualquer coeréncia no modelo da “especializagao flexivel”, enquanto que sua aplicabilidade empi- rica também ja foi amplamente contestada. Williams e outros! apresentam uma critica completa de Sabel e Piore, mostrando que 0 modelo no postula relagdes coerentes entre seus diferen- tes elementos, ¢ que nao ha prova empirica para a suposta quebra dos mercados de massa nem para a suposta incapacidade da pro- dug3o de massa de responder a mudangas nas condigdes econd- micas, ¢ nem ainda para a suposta correlagao entre a nova alain Lipietz generalizou 0 dualismo do modelo original para ressuscitar a teoria, hd muito desacreditada, da "nova divisto internacional do trabalho", argumentando que ela representa uma divisio entre economias nacionais dominadas por relagées de produgio p6s-fordistas, sustentadas por setores de produgao dinamicos, de alta tecnologia, alta qualificagao ¢ altos salérios, ¢ aquelas dominadas pelas relagdes de producao neo-fordistas, nas quais se enfrenta 2 pressio da competicéo com a intensificagio do trabalho € 03 cores salariais, Veja Alain Lipietz e Daniele Leborgne, “Fallacies and Open Issues about Post-Fordism", artigo apresentado na conferéncia “Patways to Industrialization", Arrowhead Lake, California, margo de 1990. Sobre 2 “nova divisao internacional do trabalho", veja Rhys Jenkins, “Divisions over the International Division of Labor’, em Capital and Class n? 22 (1984), pp. 28-57; David Gordon, “The Global Economy: New Edifice or Crumbling Founda- tions, em New Left Review n® 168 (1988), pp. 24-64; B. Schoenberger, “Multinational Corporations and the New International Division of Labor: A Critique”, em Stephen Wood, ed., The Transformation of Work (Londres: Unwin Hyman, 1989). 10Karel Williams, Tony Cutler, John Williams ¢ Colin Haslam, “The End of Mass Production", em Economy and Society, vol. 16, n® 3 (1987), pp. 405-439. CRISE DO FORDISMO OU CRISE DA SOCIAL-DEMOCRACIA? 125 tecnologia e a escala e as formas sociais da produgio. Pollert!! mostrou que, no caso britanico, a “flexibilidade” acarretou uma intensificagao do trabalho, Fairbrother!? enfatizou o papel de lideranca do Estado ao promover a “flexibilidade”, a qual, longe de expressar 0s requisitos tecnolégicos da produgio moderna, foi implementada no mais alto grau no setor publico. Também Holloway!5 destacou o papel do Estado ao reestruturar as rela- gdes de classe na inddstria automobilistica — no como conse- qiiéncia da introdugao de novas tecnologias, mas como pré-con- digo social e econdmica para estas. Elger!4 reforcou esta conclu- sfo com base num levantamento abrangente das provas, que mostra que houve amplas mudangas na organizagio do trabalho, nos acordos trabalhistas ¢ nos sistemas de pagamento, mas que estas mudangas refletem o crescente fortalecimento dos empres4- tios € 0 enfraquecimento dos trabalhadores, ¢ nao tém nenhuma relagio determinada com a mudanga tecnolégica. Estas conclu- sées foram ainda mais reforcadas por um grande nGmero de 1 Lanna Pollert, “Dismantling Flexibility’, em Capital and Class 09 32 (1988), pp. 42-75. 12peer Fairbrother, Flexibility at Work: The Challenge for Unions (Londres: WEA, 1988) 13john Holloway, *The Red Rose of Nissan", Capital and Class n® 32 (1987), pp. 142-64 Tony Elger, “Not the Polyvalent Worker: ‘The Resirueturing of Work Relations and Flexible Intensification in British Manufacturing*, em Hew Beynon, ed., The Changing Structure of Work (Londres: Anglo-German Foundation, a sai), ¢ “Technical Innovation and Work Reorganization in British Manufacturing in the 1970s,” em Work, Employment and Society, vol. 4, numero especial (maio 1990), pp, 67-101. '5veja Richard Hyman e Wolfgang Streek, eds., New Technology and Industrial Relations (Oxford: Basil Blackwell, 1988); Richard Hyman, The Political Economy of Industrial Relations (Londres: Macmillan, 1989); Anna Pollert, ed., op. cit., John Tomaney, "The Reality of Workplace Flexibility’, a sair em Capital and Class n° 41 (1990). 126 LUA NOVA N® 24 — SETEMBRO 91 sim dos capitalistas, administradores, operarios, sindicalistas e politicos, todos de visao estreita, ainda amarrados 4 ultrapassada concep¢ao do modelo fordista. A alegacdo de Hirst e Zeitlin de que a teoria da especializacao flexivel nao propde quaisquer relagées necessdrias entre os varios elementos do modelo € falaciosa, uma vez que eles nfo apresentam 0 modelo como mera visio ut6pica, mas sim como uma teoria que define novas formas institucionais de relagdes sociais de produgéo que prometem fornecer a base econémica para uma maior prosperidade e harmonia social. O fracasso dos capitalistas e do Estado em desenvolver essa nova estrutura institucional explica nao s6 a persisténcia do conflito social mas, 0 que é mais importante, os malogros competitivos da inddstria manufatureira americana ec britanica. Esta andlise parece levar diretamente a conclus6es neoliberais: o fordismo foi susten- tado além da sua duracio apropriada por meio de subsidios e protecgées governamentais, pelo emprego de mais trabalhadores do que o necess4rio, pela intransigéncia dos sindicatos e pela letargia empresarial. Diante de tais obstaculos, s6 uma forte dose de competi¢ao ira criar as condigdes nas quais as novas formas de producdo podem prevalecer. Hirst e Zeitlin, porém, utilizam sua andlise como fundamento para uma critica do neolibera- lismo, baseando-se numa suposta antitese entre, por um lado, 0 contrato ¢ a competicao Cadotados pelo ncoliberalismo), ¢ por outro a confianga ¢ a cooperacio (os valores da espccializacao flexivel). Embora se suponha que as relagdes de cooperacdo e confianga sejam a chave para o aumento dos lucros e da pros- peridade, a sobrevivéncia das empresas de especializacdo flexivel é constantemente ameagada pela competicaéo por parte das empresas fordistas, tanto no Ambito da produgéo como nos mer- cados financeiros. Assim, longe de adotar uma solu¢4o neoliberal, Hirst e Zeitlin oferecem um programa politico construido sobre uma estratégia industrial que forneceria ampla protegao ¢ subsidio estatal 4s suas formas favoritas de produgdo ~ um progra- ma que mantém os piores elementos da velha estratégia industrial da social-democracia, ao fornecer subsidios indiscriminados a empresas capitalistas, enquanto abandona qualquer compromisso com 0s principios social-democraticos de coordenagao central ¢ responsabilidade politica. Mas ha um paradoxo no cerne do seu argumento. Se a especializacao flexivel é a chave para se restaurar RISE DO FORDISMO OU CRISE DA SOCIAL-DEMOCRACIA? 127 a produtividade ¢ a lucratividade, na esteira da crise dos ultrapassados métodos fordistas de produgio, é dificil perceber por que ela nao seria capaz de suportar a competi¢3o vinda das empresas fordistas. Do mesmo modo, se as relages cooperativas sao mais lucrativas do que as competitivas, é dificil compreender por que € necessdrio que estas relagdes scjam impostas aos capitalistas, em vez de deixar que o proprio interesse dos capitalistas as desenvolva, seja através da integracdo horizontal e vertical, do controle acionario matuo, da participagdo na gestio da empresa, ou de contratos de longo prazo. Mas talvez sejam os capitalistas que estao certos ao se apegarem ao fordismo, e Hirst e Zeitlin que estejam errados ao acreditar que o amor, a confianga ¢ a harmonia sao a chave para a lucratividade. O argumento de Hirst e Zeitlin nao tem nada a ver com © fordismo. £ essencialmente uma critica democrata-crista diri- gida tanto 4 social-democracia como ao neoliberalismo. Seu principal argumento econémico € o de que as estratégias neoli- berais nao levam em conta externalidades (0 que pode ser verdade na pratica, mas nao na teoria), de modo que uma certa estrutura coletiva € necess4ria para se fazer investimentos adequados em treinamento, pesquisa e infra-estrutura. Porém o estatismo social-democrata politiza estas decisdes de investi- mento, em vez de subordin4-las 4s necessidades competitivas dos capitalistas locais ou nacionais, Assim, a base mais apropriada Para se construir uma estratégia econdmica no sao as relagdes econémicas competitivas nem as formas politicas estatistas, mas sim um conjunto de valores comuns de solidariedade, que Hirst admite serem “as virtudes da cidade pequena, a familia a0 velho estilo @ as atitudes sociais profundamente conservadoras”, carac- teristicas da Democracia Crista.16 Estes valores se expressam em redes locais informais, tipicas da Emilia-Romagna e de Baden- Wiirttemberg, em que os capitalistas, os politicos, os funcionarios plblicos ¢ os burocratas dos sindicatos desfrutam de relagdes de confianca e cooperagao. Esta poderia se chamar a Via MagOnica para o Socialismo. Os que escolhem o Japao como modelo tém um diagn6stico semelhante, mas uma solucao um tanto diferente, tendendo a ressaltar 0 poder competitivo do capital corporativo nacional, e nado dos empreendimentos locais, e enfatizar a “flexi- bilidade estruturada” oferecida pela supressio da competicio no 16, t, “After Henry”, op. cit., p. 325. 128 LUA NOVA N8 24 ~ SETEMBRO 91 trabalho, nos produtos e nos mercados financeiros.17 Esta pode- ria se chamar a Via Industrial, ou Feudal, para 0 Socialismo. Até mesmo seus defensores mais ferrenhos foram capazes de descobrir apenas alguns exemplos isolados do novo sistema de producao, isso para nao falar dos novos modos de regulacio que se supde que o modelo exija, ¢ reconhecem que mesmo estes casos no passam de uma concretizagao imperfcita do scu sistema. O pés-fordismo nao € uma realidade, mas uma promessa. Nenhum dos varios proponentes do pés-fordismo oferece um argumento coerente para justificar a relagao harmo- niosa entre as instituig¢6es econémicas, sociais e politicas que cles prop6em. Assim, a promessa do pés-fordismo deriva inteira- mente da alegacao de que ele é capaz de superar os limites de um fordismo supostamente condenado ao fracasso por sua “inflexi- bilidade”. Esta alegacdo, porém, baseia-se na adequagdo da caracterizagdo do fordismo por eles empregada. Um exame cuidadoso da revolucdo tecnolégica fordista mostra que ela marcou 0 4pice da penetragdo do capital na pro- dugdo, o que significa que o fordismo € sinénimo da produgio capitalista como tal, Assim, a maneira como o préprio Ford apli- cava os principios da produg¢d4o capitalista era inflexivel. Esta in- flexibilidade nao era inerente ao sistema e foi abandonada no fi- nal da década de 1920, Em conseqiiéncia, nado ha motivo para acreditar que a producdo fordista € inerentemente inflexiyel. Pelo contrario, os principios do fordismo j4 se demonstraram aplic4- veis a uma gama extraordinariamente ampla de contextos técnicos. A tecnologia fordista tornou uma nova variedade de produtos disponivel para o mercado de massa. Assim 0 fordismo, em particular na indistria automobilistica, precipitou uma revolugdo no consumo. Segundo a teoria da “especializacao flexi- vel”, a inflexibilidade da tecnologia fordista ¢ os gostos confor- mistas do trabalhador homogeneizado determinaram o carater indiferenciado desse consumo de massa como um momento essencial do fordismo. Ao contrario, porém, a revolugio fordista do consumo teve 0 efeito oposto, pois a flexibilidade do trans- porte motorizado quebrou a rigidez da era da ferrovia 17veja Martin Kenney e Richard Florida, “Beyond Mass Production: Production and the Labor Process in Japan”, em Politics and Society, vol. 16, n? 1 (1988), pp. 121-58. CRISE DO FORDISMO OU CRISE DA SOCIAL-DEMOCRACIA? 129 © fordismo no foi apenas uma nova tecnologia. A in- trodugao da tecnologia exigiu novas formas da organizagio social do processo de produgio, que dependiam da questao do contro- le. Esta organizacao, porém, nao é determinada por imperativos tecnolégicos mas sim por requisitos de lucratividade. A inflexibi- lidade de formas particulares de organizagéo nao & resultado da tecnologia, mas sim da resisténcia dos trabalhadores as exigén- cias dos empregadores, tanto individualmente como através dos sindicatos. As restrigdes fordistas nao séo uma expressao da inflexibilidade tecnolégica, mas de qualquer método de produgdo que exija a criagao de um “trabalhador coletivo’. Assim, as formas de organiza¢ca4o do processo de trabalho sao determinadas através de uma luta permanente acerca da organizagao social e do controle do trabalhador coletivo. A luta pelo controle € uma caracteristica permanente que nunca pode ser resolvida de maneira definitiva, pois baseia-se num conflito fundamental entre as necessidades do trabalho e os imperativos capitalistas. Portan- to, cada resolugao do conflito é apenas a base para a sua renova- Gao. Neste sentido, a organizagao social da produgdo nao pode ser explicada como uma expressiio de uma determinada tecnolo- gia, mas apenas como uma fase da luta permanente. De um modo mais amplo, 4 medida que as organizagdes de tabalhadores fazem exigéncias politicas, sua intransigéncia ameaga a estabilidade do Estado e a reprodugao da sociedade como um todo, Se os capitalistas ¢ os politicos podem reconhe- cer que os trabalhadores tém interesses diferenciados, aqueles também insistem em que os interesses destes Ultimos devem se subordinar a necessidade de garantir a reprodugao expandida do capital e a estabilidade do Estado. Assim, a recusa dos trabalha- dores de aceitar esta subordinagao Ihes parece uma expressao irracional da sua imaturidade. E essa percepg’o que se encontra subjacente ao projeto mais amplo do fordismo, cujo objetivo nao € simplesmente criat uma nova forma de organizagao do traba- lho, mas sim criar uma nova forma de sociedade, construida so- bre instituigdes pelas quais os contlitos de interesses possam ser resolvidos racionalmente, ¢ também um Novo Homem, com as qualidades morais ¢ intelectuais exigidas por essa nova sociedade. Este projeto sociolégico fordista nao € estatico, mas deve se desenvolver 4 medida que confronta obstaculos para sua resolucao. Isto significa que nao pode haver apenas um projeto fordista, mas toda uma série deles; alguns podem demonstrar que 130 LUA NOVA N® 24 — SETEMBRO 91 so temporariamente mais bem-sucedidos do que outros, mas nenhum deles podera jamais realizar-se plenamente. O que se segue indicara como 0 fordismo da década de 1960 no foi mais bem-sucedido que qualquer de suas verses anteriores na tenta- tiva de garantir a prosperidade e a harmonia. A crise pelo qual ele passou nao significou a morte do fordismo, nem tampouco a morte de qualquer dos seus prototipos anteriores. A REVOLUCGAO TECNOLOGICA FORDISTA Aqui o ponto de partida obrigatorio € a revolugao técnica que Henry Ford realizou na Ford Motor Company. A historia € bem conhecida.18 Nao havia nada de original nem nos detalhes nem nos principios gerais que Ford aplicou a produgao automobilistica. A decomposi¢io das tarefas, a especializagao das ferramentas, a fusdéo de varias ferramentas em uma maquina, € mesmo de varias maquinas em um sistema de maquinas, eram caracteristicas tipicas da ansformagao da producao artesanal em produgdo industrial de larga escala — processo que ja havia avangado mais nos EUA do que em qualquer outro pais, estimu- lado sobretudo pela escassez e pela forga organizada dos traba- thadores especializados.19 A originalidade do projeto de Ford foi © fato de que ele aplicou estes principios a uma nova area da pro- dug4o, e os aplicou de uma maneira tao implacavel e obstinada que transformou as condigdes da produgéo automobilistica quase da noite para o dia. Embora as realizagdes de Ford sejam popularmente atribuidas 4 sua introdugao da linha de montagem, esta foi apenas uma pequena parte da revolucao. A introdugéo da linha de montagem pressupunha a produgao em massa de pecas padroni- 18fuw Beynon, Working for Ford (Londres: Harmondsworth, 1973). O Capitulo Um da uma versao’ concisa da hist6ria, Stephen Meyer Ill, The Five Dollar Day (Albany: SUNY Press, 1981) € muito Gtil. Henry Ford, My Life and Work (Garden City, NY; Doubleday, 1922) € 0 texto sagrado. 19Q5 principios gerais foram expostos sistematicamente pela primeira vez por Marx na sua discussio sobre “A maquinaria © a inddstria moderna", em O Capital, vol 1, Neste sentido, o fordismo & “um termo sucinto para os principios organizacionais e tecnolégicos caracteristicos da moderna fébrica em grande escala". Charles Sabel, Work and Politics (Cambridge: Cambridge University Press, 1983), p. 33. RISE DO FORDISMO OU CRISE DA SOCIAL-DEMOCRACIA? 131 zadas e intercambiaveis em um grau muito elevado, 0 que s6 se poderia obter organizando a maquinaria especializada de manei- ra tal que permitisse tanto a desqualificagao do operario qualifi- cado como a separa¢4o rigorosa entre produgao e montagem. Uma vez que isto foi conseguido, o desenvolvimento da linha de montagem foi quase uma formalidade. A linha mais complexa, a da montagem do chassis, levou apenas seis meses para se de- senvolver. Embora ela tivesse causado um corte imediato da ordem de seis vezes no tempo de trabalho exigido para montar 0 chassis, isso representou uma economia de apenas dez horas, ou seja, cerca de 2 ddélares em custos salariais, para um automével com prego final por volta de 500 délares. A fragmentagao de tarefas significava que os engarrafa- mentos na produgéo podiam ser identificados de imediato, oferecendo problemas tecnologicos e/ou organizacionais bem definidos para os engenheiros de Ford. Significava também que as mudangas tecnoldgicas podiam ser introduzidas uma a uma, substituindo-se determinadas ferramentas ou alterando-se a orga- nizagao de uma determinada segaio da fabrica sem ter de trans- formar o sistema como um todo. Neste sentido, a fragmentagao fordista de tarefas e a padronizagéo de componentes introduziu uma nova flextbilidade que abriu o caminho para o dinamismo tecnolégico. Em resumo, o fordismo desmontou uma tecnologia que era extremamente rigida e uma organizagao da producao igual- mente rigida, reduzindo-a a seus elementos constitutivos, a fim de remonta-la segundo seus préprios principios racionais. Se é@ verdade que nao ha virtude inerente na “flexibilidade” por si sé, e os métodos estabelecidos podem se tornar uma barreira para avancos posteriores, o dinamismo tecnologico constante inerente ao fordismo implica um maximo de adaptabilidade dos métodos de producdo. Mais ainda, enquanto o fordismo desqualificava uma grande parte da mao-de-obra da produgao direta, ele tam- bém criava a necessidade de novas qualificagdes. Para manter a linha de montagem em movimento, Ford precisava de uma camada de operarios com especializagdes “polivalentes” a fim de preencher lacunas na linha, dominar os engarrafamentos e fazer a manutengdo da maquinaria. Ao mesmo tempo, o dinamismo do fordismo, necessario para manter a superioridade competitiva de uma fabrica, implicava o desenvolvimento constante de novas ferramentas, tornos e maquinas que s6 podiam ser desenvolvidos 132 LUA NOVA N® 24 — SETEMBRO 91 O projeto de Ford estava associado com diversas outras caracteristicas provavelmente essenciais para a sua realizagao, que introduziam obstaculos ao avan¢go do fordismo, Em particular, Ford via a integracdo vertical da produgao e a padronizacio dos produtos como elementos essenciais da sua revolugao. A inte- gracdo vertical era necess4ria porque era preciso aplicar os prin- cipios fordistas 4 produgaéo de todos os componentes. Contudo, uma vez adotados estes principios, a integragao vertical se tornou um obstaculo para seu desenvolvimento, pois os fornecedores independentes podiam conseguir maiores economias de escala fornecendo componentes idénticos a diversos fabricantes.2! Da mesma forma, a padronizacao dos produtos prova- velmente foi necessaria num primeiro momento para garantir retornos suficientes para levar a cabo a racionalizagao da produ- ¢40 ¢ a padronizac4o dos componentes. Mas uma vez que isso foi conseguido, a padronizacao dos produtos se tornou um obstaculo para o desenvolvimento da tecnologia de fabricagao, pois limi- tava 0 escopo para a obtencgao de maiores economias de escala expandindo a variedade de modelos. O aumento maci¢o da pro- dugio do Modelo T, e o crescimento igualmente rapido de um mercado de segunda mio significou que 0 mercado automobilis- 20sobre a flexibilidade do fordismo, veja Karel Williams, Tony Cutler, John Williams ¢ Colin Haslam, “The End of Mass Production", em Economy and Society, vol. 16, n® 3 (1987), pp. 405-39. 216 relatério da OEEC sobre 0 desenvolvimento da indistria automobilistica européia depois da Segunda Guerra Mundial advertia contra a integracio vertical por estes motivos, Esse relat6rio € uma antecipagdo fascinante do p6s-fordismo, enfatizando a descentralizaao, a multiplicidade de fontes ¢ a subcontratagZo da inddstria automobilistica americana, ¢ a fungao central da padronizacao das pecas para a capacidade da industria de reconciliar uma alta produtividade com uma ampla variedade. A Chrysler era um exemplo tipico de subcontratagZo, com 10.000 fornecedores de pecas de automéveis em 42 estados americanos, 75% dos quais com menos de cem empregados. Veja OEEC, Some Aspects of the Motor Vebicle Industry in the US (Paris: OEEC, 1952). A integrag3o vertical, em oposigao as relagdes de subcontratagio ou puramente mercadol6gicas, € uma questa complexa, que envolve uma série de vantagens e desvantagens associadas nao s6 a limitacdes tecnolégicas mas também a consideragées legais, financeiras, comerciais e competitivas, assim como a aspectos de controle do trabalho. O fordismo requer a coordenago central da produgio e a integragao das partes com o todo. Mas em circunstancias particulares, essa subordinagdo pode ser obtida igualmente bem, ou igualmente mal, através dos processos anénimos do mercado, assim como pela regulagao burocrética centralizada por redes cooperativas. CRISE DO FORDISMO OU CRISE DA SOCIAL-DEMOCRACIA? 133 tico logo se aproximou da saturaga4o. Por outro lado, o mercado para automéveis mais sofisticados continuava demasiado restrito para comportar métodos de produgio fordistas. O fracasso de Ford em compreender plenamente que a chave da sua revolucio era a padronizacéo dos componentes, ec nao a padronizacgéo do produto, deixou aberta a brecha que a General Motors preencheu de imediato, diversificando o leque dos seus modelos. Neste sen- tido, nao se pode contrapor o “sloanismo” ao fordismo, uma vez que aquele nao passa do desenvolvimento dos principios fordis- tas, removendo as barreiras levantadas pela visdo limitada de Ford. Foi a aplicagao do principio da utilizagao de componentes padronizados para a produgao de uma série de modelos, e até mesmo de produtos totalmente diferentes, que permitiu a rapida difusio dos métodos fordistas de produgao. Se o fordismo for estritamente identificado com as realizagdes técnicas e organizacionais de Ford, ou ainda com sua filosofia de producdo, entéo deve-se considerar que o fordismo fracassou na década de 1930, sendo substituido por formas de produ¢do mais flexiveis, Gnicas responsdveis pela difusio dos principios fordistas. Contudo, é tao claro que essas caracteristicas s4o secundirias em relagao ao significado revolucionario do pro- jeto de Ford que é muito mais sensato descart4-las, e identificar o fordismo, mais amplamente, com a decomposi¢ao e a recompo- sigao do processo de produgao como base para a generalizagao dos métodos industriais de produgdo e internalizacdo das fontes de dinamismo tecnolégico. A REVOLUGAO FORDISTA DO CONSUMO O fordismo envolvia uma revolugao nao s6 na tecno- logia, mas também no consumo. O projeto de Ford dependia da sua concepcio do automével como o meio de transporte bisico. Esta revolugao nao foi, absolutamente, associada a um estreita- mento das op¢des, 4 supressao das diferengas ou 4 homogenei- zagdo dos produtos ou dos consumidores. Antes do Modelo T, podia-se comprar qualquer tipo de transporte pessoal, contanto que fosse um cavalo. Ford ofereceu uma gama de cores mais limitada do que os criadores de cavalo podiam oferecer, mas ha- via oportunidade para mais acessérios do que uma simples ferra- 134 LUA NOVA N® 24 ~ SETEMBRO 91 dura. Com a generalizagéo dos métodos de produgao fordistas, outros fabricantes logo entraram no mercado de massa, oferecen- do aos consumidores da classe média um leque de opgdes que até entdo s6 estava disponivel para os ultra-ricos. Mais ainda, a padronizacéo dos componentes e as melhorias tecnolégicas am- pliavam os beneficios do fordismo tanto em termos de prego como de confiabilidade para os produtores especializados. Em- bora até entéo cada cavalo, carroca e carruagem fora tinico, suas limitagGes fisiolégicas, técnicas e econémicas significavam que na verdade havia uma gama muito limitada de modelos disponiveis. A rapida redugao do custo de produgao do automével transformou-o de um brinquedo de luxo em um novo modo de transporte de massa, que restaurou a flexibilidade e a individua- lidade da mobilidade pessoal ameagada pela era da ferrovia, embora a necessidade de estradas pavimentadas significasse que 0 carro nunca poderia rivalizar com a flexibilidade do cavalo. O Snibus a motor cortou os custos e aumentou a capacidade do transporte p&blico urbano, O impacto do desenvolvimento do transporte comercial rodoviario foi pelo menos tao significativo quanto o desenvolvimento do automével particular. A expansio das ferrovias fora uma alavanca imensa- mente poderosa para a concentra¢4o do capital, em areas tao variadas como a dos bancos e das finangas, do aco e do carvao, da distribuigéo de commodities e do comércio atacadista e vare- jista, Isto nZo resultou apenas da concentracao do capital ferro- vidrio, mas também da rigidez do sistema ferrovidrio, que abriu o mercado de massa mas estreitou os canais de acesso a esse mercado. A concentragdo de capital em toda uma série de indts- trias de bens de consumo tinha levado 4 competi¢ao baseada na diferenciagao de produtos homogéneos e no processamento industrial de matérias-primas, oferecendo uma gama cada vez maior de bens de consumo. Ao mesmo tempo, porém, a rigidez do transporte ferroviario confinava estas oportunidades 4s empresas maiores, ao mesma tempo que restringia a distribuigéo dos seus produtos. O desenvolvimento do transporte rodovidrio superou essas barreiras, ampliando a distribuigéo do novo leque de produtos e também oferecendo aos pequenos produtores o acesso a novos.mercados de massa. A revolugio na produgdo e no consumo inaugurada pela era da ferrovia fora essencialmente urbana, ignorando assim, em boa medida, as comunidades que nao tinham estagao ferroviaria. CRISE DO FORDISMO OU CRISE DA SOCIAL-DEMOCRACIA? 135 O crescimento do transporte motorizado Propagou a revolugdo pelo campo, integrando até 0 vilarejo mais remoto a estrutura do mercado e dando a base para a revolugao nas comunicacgées de massa trazida pelo desenvolvimento do radio e depois da TV. Por fim, a generalizagio fordista possibilitou uma enorme diversifi- cagao no consumo de massa, pois a Padronizagéo dos compo- nentes possibilitava montar uma variedade quase infinita de produtos, sem perder os beneficios da produgio em massa, Em todos esses aspectos a “revolugio no consumo” aplaudida pelo pos-fordismo é, direta ou indiretamente, nao uma reacao contra 0 fordismo, mas apenas um desenvolvimento deste. A TRANSFORMACGAO FORDISTA DO PROCESSO DE TRABALHO O fordismo envolvia nio s6 uma revolugao na tecno- logia € no consumo, mas também nas relagdes sociais de produ- ¢4o. Primeiro, a rigorosa decomposicado de tarefas, incluindo a separacdo precisa entre tarefas especializadas ¢ nao-especializa- das, permitindo a diferenciagio rigorosa da forca de trabalho, o que reforgou a existéncia de um “mercado de trabalho duplo”, composto de uma pequena camada de trabalhadores especializa- dos ¢ uma grande massa de operarios nao-qualificados, imigran- tes. Segundo, a transig4o do artesanato para a produgdo industrial ameagava reduzir o operario a uma engrenagem na maquina industrial. A mao-de-obra industrial no era mais constituida por uma massa mais ou menos coordenada de operarios e grupos de operarios individuais, cada um sob a diregao de um trabalhador 136 IUA NOVA N® 24 ~ SETEMBRO 91 A flexibilidade e a autonomia que se supde que sejam caracteristicas dos artesaos especializados so, decididamente, obsticulos a socializacao fordista da producio, cujo desenvolvi- mento pleno depende de que os trabalhadores desempenhem as tarefas que Ihes s4o designadas, por mais especializadas ou nio- especializadas que scjam, no local designado, no momento desig- nado. Por esse motivo, os artesdos tendem a resistir 4 fordizagao da produgio, e a destruigio dos sindicatos de artesdos € uma pré- condigaéo para a aplicacdo plena dos principios fordistas. Isto, porém, nao é um requisito imposto pela tecnologia, mas sim pela dominagao capitalista da tecnologia, e pela organizacao social do trabalho a ela associada, para reduzir o tempo de trabalho e acelerar 0 turnover de capital. Assim, 0 grau a que a autonomia dos trabalhadores se subordinava 4 m4quina humana era deter- minado nao pela tecnologia, mas por uma luta persistente, a qual por sua vez limitava as maneiras especificas em que os principios fordistas eram institucionalizados em diversos lugares ¢ €pocas. Nos EUA, os empregadores ja tinham conseguido explo- rar o fluxo macigo de trabalhadores imigrantes € as fortes divi- sdes seccionais e racistas dentro do movimento sindicalista para destruir os sindicatos de artes4o e, temporariamente, controlar a produgao sem serem desafiados. Na Europa, os empregadores nao desfrutavam de circunstancias tao favoraveis. Embora tives- sem derrotado 0 sindicalismo em meados da década de 1920, ainda tinham de levar em consideragio os trabalhadores especia- lizados, ¢ organizar a produgio de maneira a reproduzir e refor- car dentro da forca de trabalho as divisbes herdadas do sistema anterior.23 Isto, por sua vez, reproduzia as diferengas na composi- a0 da mo-de-obra de acordo com a qualificagéo, e as formas institucionais de relagées industriais que diferenciavam a Europa (e 0 Japio) dos EUA. O fato de que mesmo assim os principios 22christian Palloix, “Le procés de travail. Du fordisme au ncofordisme”, em La Pensée 185 (fevereiro de 1976). Traduzida no panfleto do CSE/Stage One, The Labor Process and Class Strategies (1976). 23 assim, apesar dos esforgos para evitar o desenvolvimento do sindicalismo no nivel da planta, a tentativa de Ford de exportar seus métodos para a Europa nao foi totalmente bem-sucedida. Cf. Beynon, op. cit; Ferruccio Gambino, Worker’ Siruggles and tbe Developement of Ford in Britain (London: Red Notes, s/d.) CRISE DO FORDISMO OU CRISE DA SOCIAL-DEMOCRACIA? 137 fordistas puderam ser generalizados é mais uma prova da sua flexibilidade. A plena “americanizagao” da inddstria s6 poderia ter se realizado contrapondo ao poder do operariado o “direito dos administradores de administrar” — um direito que os uabalha- dores especializados nunca haviam reconhecido. Esta foi a consideracdo basica que, até os anos 1950, motivava a resisténcia dos capitalistas e operarios europeus 4 americaniza¢io da indds- tria européia, Na extenséo em que os métodos fordistas de produ- ¢do se estabeleceram fora dos EUA antes de 1939, foram ampla- mente adaptados as condigées locais, seja a militarizagio do ope- rariado no Japao e nos campos de trabalho do Terceiro Reich, ou ao corporativismo fascista da Alemanha e da Itélia, ou ainda ao produtivismo trabalhista da Unido Soviética ou as relacdes industriais mais fragmentarias da Gri-Bretanha. Enquanto a nova tecnologia podia ser introduzida lucrativamente na base da negociagao dentro da estrutura j4 existente, nao havia incentivo 4 mudanga. Na Alemanha, Italia e Japio, nem mesmo a destruigéo dos sindicatos pelo fascismo, pela guerra e pela ocupagao limpou © terreno completamente para o fordismo. Na Gra-Bretanha, foi apenas na década de 1970 que os empregadores buscaram reestruturar as qualificagdes e a organizacio sindicalista no local de trabalho - uma reestruturagdo que fai inteiramente fordista, embora facilitada por novas formas de tecnologia. £ um lugar-comum dizer que 0 desenvolvimento de novas tecnologias e da organizacio social da produgio € mol- dado pelo contexto mais amplo em que ocorre. Neste sentido, o fordismo € um projeto que nunca pode ser plenamente realizado. O outro lado deste lugar-comum € o de que a tecnologia tem de ser suficientemente flexivel para acomodar as resisténcias e€ imperfeigdes humanas. Nem as tarefas nem os trabalhadores poderio jamais ser perfeitamente padronizados, de modo que um certo grau de flexibilidade tem de ser incorporado ao sistema industrial para garantir que as variagdes normais no ritmo de trabalho possam ser absorvidas sem levar o sistema inteiro a uma brusca interrup¢ao, Isto pode envolver a manutengdo de estoques de emergéncia, a redug4o na velocidade da linha de produgio, a manutengao de uma equipe de operdrios extras, permitindo que Os outros avancem ou recuem na linha de montagem etc. Isto, por sua vez, implica que a boa vontade e capacidade dos operatios de executar as tarefas que lhes sdo designadas nio podem simples- 138 LUA NOVA N? 24 ~ SETEMBRO 91 mente ser impostas pela tecnologia, pois a flexibilidade que tem de ser incorporada para acomodar as interrupgdes ¢ as variagdes individuais pode facilmente ser explorada pelos trabalhadores, individual e coletivamente, para recriar um certo grau de autonomia ¢ aliviar a carga do trabalho.24 De outra parte, se 0 sistema simplesmente se ajusta as necessidades dos trabalhadores, os beneficios do sistema para o capital sofrerao uma gradual erosdo. Assim, longe de oferecer uma solugio tecnologica para 0 problema da regulac3o do trabalho, o sistema industrial exacerba © problema do controle do trabalho. Este problema nao era novo, em absoluto; ele é o dilema do capital desde que este comegou a tentar controlar a produgdo. Sem o controle da forca de trabalho as novas tecnologias, por mais produtivas que scjam, sdo inuteis para o capitalista. Assim, a solucao do problema do controle de trabalho era uma condicdo para a introducao proveitosa da tecnologia fordista.25 A REGULACAO FORDISTA DO TRABALHO: O DIA DE CINCO DOLARES O problema do controle do trabalho apareceu sob diferentes formas nas prOprias fabricas Ford. Interrupgdes na produgdo, deterioragao da qualidade, absenteismo, doengas, rotatividade de mao-de-obra e aumento da atividade sindical - 24assim, Aglietta esti errado quando alega que “os trabalhadores sio incapazes de oferecer qualquer resisténcia individual 4 imposi¢ao da norma da Pprodug4o, uma vez que a autonomia das fungées foi totalmente abolida.” Veja 0 seu Theory of Capitalist Regulation (Londres: New Left Books, 1979), pp. 118-19 250 método tradicional de controlar 0 wabalho na produgio anesanal era através do pagamento por produg40, com a supervisto de trabalhadores especializados na base de subcontratagao interna e sistemas de turmas ou ajudantes. © taylorismo implicava a individualizag’o rigorosa do pagamento por produgao como meio de monitorar ¢ regular 0 esforgo de cada trabalhador (embora 0 préprio Taylor fosse contra 0 pagamento por produgao). Contudo, esse método de pagamento era inadequado para as novas formas coletivas de organizagao do trabalho, nas quais as contribuigées produtivas individuais eram subordinadas a todo. Por outro lado, a tecnologia por si sé nio podia servir para impdr uma disciplina coletiva aos trabalhadores. Assim, 0 controle do trabalho s6 poderia basear-se numa combinagio de subordinagao técnica do trabalho & maquina, implementada pela supervisio externa c reforcada por novos métodos de estimular a motivagao subjetiva do trabalhador. CRISE DO FORDISMO OU CRISE DA SOCIAI-DEMOCRACIA? 139 todos esses problemas ameagaram solapar as conquistas técnicas de Ford. A primeira tentativa de combater esses problemas, no final de 1913, envolvia a criagio de uma nova escala de salarios relacionados as qualificagées (“skill-wages ladder’), a fim de oferecer incentivos e voltar a impor uma estrutura hierarquica no trabalho, ¢ uma Associagio de Poupanca e Empréstimos para combater a inseguranga. Isto, porém, teve pouco impacto. Em 1914, Ford introduziu um esquema muito mais radical, que utilizava salarios mais altos e superviséo extensa, num exercicio extremamente ambicioso de engenharia social, o “Dia de Cinco Délares”, que cortava as horas de trabalho e prometia mais que o dobro do salario (sob a forma de “distribuigdo de lucros”) para os que se conformavam aos padrées de Ford. O Dia de Cinco Délares acarretou uma reestruturagao mais radical das categorias ocupacionais. O mais importante, porém, € que cle foi usado para impor padres de moralidade e comportamento, tanto no local de trabalho como fora dele. Ape- nas os uabalhadores maduros, com seis meses de servi¢o, cujos habitos morais € pessoais passavam por rigorosos testes, eram elegiveis para as bonificagées. Para capacita-los a passar nesses testes, Ford fundou igrejas e estabeleceu um programa de educa- ¢40 e bem-estar para oferecer orientagao moral, cnsinar inglés, inculcar valores americanos e defender 0 American Way of Life. Os trabalhadores que ndo passavam nos testes podiam ficar um periodo extra antes de serem despedidos. Foi fundado 0 Departa- mento Sociolégico para desenvolver, monitorar e implementar este projeto. Nem é necessirio dizer que na visio de Ford, indivi- dualista © centrada na familia, n3o havia lugar para o trabalhador de massa, 0s sindicatos, o pleno emprego ou o welfare state.26 O impacto inicial do novo esquema foi impressionante. O absenteismo caiu de 10% para menos de 0,5%. A rotatividade caiu de quase 400% para menos de 15%. A produtividade cresceu tao intensamente que, embora os salarios tivessem dobrado e a produgao por dia de trabalho diminuido, os custos cairam. Contudo, Ford nao conseguiu pagar esses salarios por muito 26para detalhes do projeto, veja Meyer, op. cit. Na Europa dos anos 1920, 0 fordismo era visto, seja de modo positive ou negative, como um componente biasico do “americanismo". Para duas avaliagdes totalmente divergentes da visio de Ford do "Nove Homem", compare Antonio Gramsci, "Americanism ¢ Fordismo*, no scu Prison Notebooks (Londres: Lawrence and Wishart, 1971), com Aldous Huxley, Brave New World (Harmondsworth: Penguin, 1955) 140 LUA NOVA N® 24 ~ SETEMBRO 91 tempo. Enquanto a inflacdo corroia os ganhos salariais, 0 merca- do‘para seu automovel permanecia limitado, apesar de uma con- linua queda nos pre¢os, e Ford enfrentava a competi¢ao crescente daqueles que nao sé haviam seguido seu pioneirismo mas tam- bém levado ainda mais adiante sua revolugao. A General Motors oferecia uma variedade mais ampla de produtos, cnquanto o crescente mercado de segunda mao solapava 0 Modelo T. Mesmo assim, foi Ford, e nao o fordismo, que foi demasiado inflexivel para reagir a estas mudangas. Ford continuou convencido da sabedoria de seus métodos e procurou fazer face 4 competi¢ao crescente cortando ainda mais os custos. Porém as melhorias tecnologicas, por si s6, nao podiam cortar os custos 0 suficiente para restituir a boa-sorte a Ford. A unica alternativa era cortar os salarios e intensificar o ritmo de trabalho, nao por meio de au- mentos salariais, mas por uma implac4vel disciplina, imposta pelo setor agora chamado de “Departamento de Servigo”, com sua forca policial particular e sua rede de espides dentro e fora da fabrica. Os métodos cada vez mais repressivos de Ford nao foram ditados pela tecnologia, nem pelas condicdes econdmicas. Outros produtores vinham desenvolvendo sistemas alternativos mais econémicos de controle do trabalho, para fazer face a crescente resisténcia dos trabalhadores. A tentativa de Ford de criar um Novo Homem adequado a sua Nova Era criou apenas hostilidade e ressentimento, ao mesmo tempo que embarcava numa escalada de custos de supervisio e implementagio. O alto indice de desemprego possibilitou a Ford recrutar mao-de-obra durante toda a década de 1930, e ele conseguiu utilizar sua riqueza © poder para excluir os sindicatos; entretanto, outros empregado- res estavam reconhecendo os sindicatos e perccbendo que novas formas de relacdes industriais, construidas sobre os acordos coletivos, eram capazes de reconciliar o controle do trabalho com a paz industrial, permutando a aceitacdo das prerrogativas gerenciais por melhores salarios e condigdes de trabalho. O desenvolvimento de sistemas mais complexos de classificagio de empregos ¢ de pagamentos, incluindo bonificagées, incentivos € pagamentos por producao, fragmentou a forca de trabalho, ao mesmo tempo que oferecia um meio pelo qual os trabalhadores individuais podiam ser subordinados a disciplina de seus colegas, teduzindo assim os custos de supervisdo. Tais sistemas davam a mao-de-obra um certo grau de controle coletivo sobre o ritmo de RISE DO FORDISMO OU CRISE DA SOCIAL-DEMOGRACIA? 141 trabalho. Ao mesmo tempo, porém, através de acordos de produ- tividade e da ideologia da “participacdo nos lucros”, foi institu- cionalizado um interesse comum entre o empregador e os sindi- catos, representando o ‘trabalhador coletivo’, postado acima do conflito didrio de interesses entre o empregador e os trabalha- dores ou determinadas secées. Mais ainda, o desenvolvimento de um sindicalismo responsavel, com 0 incentivo idcolégico, finan- ceiro e politico do Estado, mostrou ser uma poderosa forca para a estabilizacao politica perante o crescente torvelinho politico durante 0 New Deal — estabilizacdo que foi ameagada pela opo- sigZo rancorosa e continua de Ford aos sindicatos. Mesmo assim, foi s6 em 1941, quando forgado a reconhecer a existéncia da UAW (Union of Automobile Workers) devido a uma greve macica, que Ford admitiu 0 fracasso de sua missao de inspiragdo divina. A ROTINIZACAO DO CARISMA: FORD E SUA FUNDACAO O fordismo tinha resolvido sua primeira crise desen- volvendo outras formas de controle do trabalho, diferentes das que Ford defendera de inicio - formas de controle que abando- navam a tentativa de criar 0 Novo Homem e¢ permitiam 4s organizacdes trabalhistas certo grau de autonomia negociada. O desenvolvimento de um esquema estavel de relagdes industriais na fabrica era estreitamente associado com o desenvolvimento de estruturas de negociagéo que se estendiam por toda a indis- tria, e com o reconhecimento politico dos sindicatos como o canal legitimo para a representacao dos interesscs de scus mem- bros. A utopia fordista tinha entrado em colapso, e logo seria substituida pelo novo sonho do New Deal. Embora este Gltimo sistema tivesse semelhangas superficiais com a concep¢ao social- democritica do Welfare State de Keynes, tratava-se de uma estra- tégia populista, e nao social-democritica. Assim, 0 Welfare State keynesiano nao foi um desenvolvimento do New Deal, assim co- mo 0 New Deal nao foi um desenvolvimento do projeto fordista original. A estratégia do New Deal nao podia ser mais diferente do projeto de Ford, ao conceder aos trabalhadores 0 pleno reconhecimento politico. Porém ela se baseava numa fé ingénua 142 LUA NOVA N® 24 ~ SETEMBRO 91 na compatibilidade do capitalismo com a democracia industrial. Foi articulada pelas teorias sociolégicas populistas do institucio- nalismo, que viam os sindicatos como representantes auténticos dos interesses da mao-de-obra, ou seja, como o baluarte da democracia dentro do capitalismo. Enuretanto, ela falhou ao nao reconhecer nenhum conflito de interesses fundamental entre 0 capital e 0 trabalho, assumindo assim que um sistema politico democratico podia oferecer 0 arcabougo para a resolucdo racional dos conflitos, A viabilidade dessa estratégia dependia do baixo nivel de desenvolvimento das organizagées politicas trabalhistas, do desenvolvimento limitado do sindicalismo, e da desmoralizagao dos sindicatos na pior fase da depressio. Assim, a estratégia ja estava passando por dificuldades com a onda de greves ¢ paralisagdes de 1936-37, antes de receber um ‘novo impulso vital pelos imperativos da guerra que se aproximava. Os limites da utopia do New Deal tornaram-se evidentes assim que terminou a Segunda Guerra Mundial. Os vencedores precisavam supervisionar a reconstru¢io econdmica, social e politica dos vencidos, mas tinham também seus proprios proble- mas no processo de conversdo 4 paz, e estes foram sua primeira preocupag4o. Estes problemas se centravam nas formas apro- priadas de institucionalizacdo das relagées de trabalho, uma vez que haviam terminado as condigdes de guerra. Os empregadores procuravam reverter os ganhos que 0 trabalho organizado conse- guira na época da guerra, enquanto os trabalhadores procuravam aproveitar-se do mercado de trabalho relativamente rigido, dos altos lucros e dos mercados com alta potencialidade de expan- so, para garantir mais vantagens. O resultado, em especial nos EUA, foi um periodo de lutas acirradas, ainda que episédicas e fragmentadas, e uma forte instabilidade institucional, cujos riscos politicos foram simbolizados pela direc’ de diversos poderosos sindicatos da CIO (Congress of Industrial Organizations) conquistada pela esquerda Nos EUA a estabilizagio do sistema de relagoes industriais foi um problema agudo, mas em outros paises foi pior ainda. Ele foi exacerbado pela ingenuidade da primeira tentativa norte-americana de exportar 0 New Deal para as poténcias derro- tadas, incentivando a expansio dos sindicatos como baluartes da democracia e garantia contra o ressurgimento do fascismo. Eles de fato provaram serem baluartes da democracia, mas n4o neces- sariamente dedicados a realizagdo do fordismo e do American €RISE DO FORDISMO OU CRISE DA SOCIAL-DEMOCRACIA? 143 Way. O rapido crescimento do sindicalismo militante, muitas vezes sob lideranca comunista, ameagava entregar a Europa e 0 Japao aos comunistas. © sindicalismo tinha de’ ser despolitizado, reduzido 4 representagio de interesses econdémicos especificos € a negociagéo dentro dos limites de um esquema legalmente re- gulamentado de acordos coletivos. Tinha de ser representado politicamente apenas como grupos de interesse dentro de um sis- tema politico pluralista. Tinha de ser salvo dos Vermelhos e reincorporado aos ideais do fordismo Mais uma vez foi a sociologia que veio em auxilio no momento crucial, oferecendo a perspectiva estratégica para a reconstru¢do capitalista do pés-guerra em escala global. Desta vez nao foi o defunto Departamento de Sociologia de Ford, mas uma instituicio muito mais grandiosa, a Funda¢gdo Ford, com intimas ligagdes com o governo americano, e em especial com a CIA. Em 1948, a Fundagao Ford encomendou um estudo sobre a filosofia politica a ser adotada no futuro, cujo relatorio (o Relatorio Gai- ther) teve enorme influéncia para determinar tanto a estratégia da CIA durante sua fase “liberal” dos anos 1950 como o desenvolvi- mento das ciéncias sociais. O projeto mais influente que resultou da ultima parte dessa iniciativa foi o “Estudo Inter-Universidades de Problemas Trabalhistas ¢ Desenvolvimento Econémico”, que comegou a solicitar fundos em 1951 ¢ apresentou seu relat6rio final em 1975.27 © Relatorio Gaither preocupou-se em identificar os problemas sociais criticos “onde se situa a mais grave ameaca a democracia ¢ a0 bem-estar humano.”28 © relatorio advertia so- bre os perigos da complacéncia, que surge de uma identificagao das instituigdes existentes com o “espirito da democracia”. Assim, © anticomunismo por si s6 nao era suficiente. Era necessario Pprimeiramente reformar as instituigdes americanas para dar a 270 relatorio final listava 35 livros ¢ 43 artigos como produtos desse projeto. © programa € mais conhecido pelo seu resumo te6rico. Veja Clark Kerr et. al., Industrialism and Industrial Man (Londres: Heinemann, 1962). A proposta original cra de um programa intitulado "Relagdes de Trabalho ¢ Desenvolvimento Econ6mico", que procurava compreender “a posi¢do da classe trabalhadora em diversas sociedades", a fim de auxiliar ‘o desenvolvimento de uma esiratégia americana mundial eficiente’. A historia toda esté narrada em James L. Cochrane, Industrialism and Industrial Man Revisited (Nova York: Ford Foudation, 1979), que republica a proposta original nas pp. 66-73. 2811, Rowan Gaither Jr., Report of the Study for the Ford Foundation on Policy and Program (Detroit: Ford Foundation, 1949), p. 14. 144 LUA NOVA N® 24 - SETEMBRO 91 democracia 0 “direito de crescer”, a fim de “nos livrarmos da traigdo sem pér em risco a liberdade". O relatério enfatizava a importancia da defesa nacional e os perigos do isolacionismo, mas criticava severamente as pretensdes democriticas das insti- tuigdes americanas existentes. Expressava ansiedade sobre a impropriedade de um sistema politico que servia a interesses es- peciais, em vez de refletir a vontade do povo. O relatério desta- cava a importancia de se atingir um nivel de renda e de emprego elevado e estavel, tanto no pais como no estrangeiro, € realgava a necessidade de “uma compreensio mais completa do compor- tamento humano” para determinar as causas do conflito indus- tial. Ele relatava “um grau incomum de insatisfagao” com o fra- casso do sistema educacional em oferecer igualdade de oportu- nidades e em desenvolver “a determinacao, 0 carater ¢ os'valores do individuo”. Alertava contra os perigos do “ajustamento emo- cional inadequado” perante “mudancas vastas e rapidas... com as conseqiientes perturbages politicas, econdmicas e sociais." Mas apesar de descrever a desigualdade, o descontentamento, 0 con- flito e © desajustamento no coragao do pais, o relatério deixava claro que os defeitos do sistema americano eram apenas superfi- ciais. Podiam ser remediados por um programa abrangente e ambicioso de desenvolvimento das ciéncias humanas, das quais o projeto da “sociedade industrial", dominado por Kerr e Dunlop, foi o resultado mais importante e mais influente. Sem indulgir num reaproveitamento da conhecida teo- ria da sociedade industrial, que é 0 prato principal da sociologia moderna, basta notar que Kerr definia um projeto fordista muito mais humanista e otimista, na esperanca de que ele se venderia melhor nos mercados mundiais do que o plano anterior de Ford, de trabalho duro e autodisciplina puritana. A imagem de Kerr nao era a de uma sociedade industrial tal como ela €, mesmo nos EUA, mas sim de uma sociedade industrial “do tipo ideal”, na qual uma forca de trabalho feliz, dotada de mGltiplas qualifi- cagées, instruida, individualista, orientada para as realizacées, com mobilidade social, ocupacional e geografica, culturalmente homogéna e€ psicologicamente saudavel se adaptaria constante- mente as rapidas mudangas técnicas e sociais, solucionando seus conflitos pacificamente, através dos canais apropriados para a resolugio de conflitos e de um sistema adequado de relagdes industriais. Embora Kerr acreditasse que o desenvolvimento de uma sociedade desse tipo, funcionalmente integrada, acabaria RISE DO FORDISMO OU CRISE DA SOCIAL-DEMOCRACIA? 145 sendo inevitavel, havia muitas barreiras a serem removidas ao longo do caminho. A tarefa basica do sociGlogo era mostrar como remové-los. Enquanto o Departamento de Sociologia de Ford ensinava 0 Novo Homem a portar-se de acordo com a vontade de Deus ¢ a natureza humana, o Departamento de Socio- logia de Kerr ensinava 0 Homem Mais Novo (nao, ali também nio havia nenhuma mulher) a portar-se de acordo com a vontade de Mammon e 0 espirito do industrialismo. Se ele (¢ sua mulher e seus dois filhos) gostavam da coisa ou nao, era irrele- vante. Uma vez reconhecendo que era inevitavel, ele a aceitaria. UM ESTRANHO CASAL; FORD E KEYNES Uma coisa era uracar o plano geral da nova utopia fordista; outra muito diferente era implementé-la. Os sociélogos e o Departamento do Trabalho, a CIA, a AFL (American Federation of Labor), o ICFTU (international Confederation of Free Trade Unions) e uma porcgdo de outras iniciais e acronimos podiam fazer sua parte, mas a reestruturacdo das relagdes industriais e politicas dependia da capacidade do sistema de oferecer garantia de emprego, salarios mais altos e beneficios de bem-estar adequados, coisas que no passado ele nao fora capaz de oferecer de maneira constante. Também nao estava claro de que maneira esses beneficios poderiam ser oferecidos no futuro, pois havia uma variedade de diagnésticos das limitagées passadas do capitalismo e uma variedade de panacéias para a sua reforma. £ um lugar-comum das teorias do fordismo dizer que o keynesia- nismo-welfarismo € um componente central do modelo fordista. Embora a retorica keynesiana-welfarista tenha sido amplamente empregada durante meio século, a realidade tem sido um tanto diferente, Seja na teoria, seja na pratica, 0 arcabougo da recons- trugdo do pés-guerra e a base do boom do pés-guerra foram fornecidos pela democracia liberal ortodoxa. Longe de ser uma fonte de estabilidade, 0 keynesianismo-welfarismo foi uma res- posta a uma crise que se ampliava e, longe de resolvé-la, s6 serviu para aprofundé-la e politizé-la mais ainda. No pOs-guerra imediato, os diagnésticos e panacéias dominantes e progressivos eram uma ou outra variante do keine- sianismo-welfarismo. No entanto, nao foi o keynesianismo- 146 LUA NOVA NP 24 ~ SETEMBRO 91 welfarismo que dominou a reconstrugao do pés-guerra € assentou as bases para o boom do pds-guerra. Nos EUA, 0 keynesianismo- welfarismo ficou associado aos adeptos do New Deal, que agiien- taram a maior parte da culpa pelo ressurgimento, ocorrido no pés-guerra, dos conflitos trabalhistas nos EUA e do avango da esquerda na Europa e no Japao. Assim, depois de um par de anos j& havia pouca distingdo enue 0 keynesianismo-welfarismo ¢ 0 comunismo. Na Gra-Bretanha houve uma corrente keynesianista- welfarista no Partido Trabalhista, mas sua énfase principal era produtivista. As reformas na area do welfare ficaram confinadas & producio. Embora depois da guerra houvesse medo de uma de- pressio com 0 rapido aumento do desemprego, logo ficou claro que o perigo principal era a inflagdo. A barreira principal para a reconstrugio eram os desequilibrios globais na estrutura da pro- dugao, motivo da escassez de délares e das restrig6es comerciais © monetirias, Enquanto as medidas keynesianas cram amplamen- te utilizadas para refrear as pressdes inflacionarias ¢ a retorica keynesiana era moeda corrente, nenhum governo na década do pOs-guerra comprometeu-se com a filosofia keynesiana do pleno emprego, as expensas do compromisso de conter inflagao, Assim, & muito dificil dar a Keynes © crédito da prosperidade e estabi- lidade do boom do pés-guerra. De 1947 em diante, a estratégia da reconstrugao baseou-se inequivocamente, tanto na teoria como na pratica, na rapida liberalizagdo do comércio e dos pagamen- tos internacionais, culminando em 1958 com a restauragao da conversibilidade monetéria geral. Foi essa liberalizagao ~ ¢ nao 0 keynesianismo — que alimentou 0 boom do pos-guerra.29 296 primeiro exemplo no pés-guerra da retérica expansionista keynesiana foi 0 argumento do Departamento de Defesa americano, no inicio da década de 1950, de que 0 rearmamento nao trarla custos, pois mobilizaria recursos que de outro modo ficariam ociosos — argumento que de imediato demonstrou ser falso com a inflaao produzida pela Guerra da Coréia. O primeiro caso de um governo que se comprometeu na pritica com o pleno emprego, as expensas da estabilidade de precos, foi 0 britanico, em 1957, quando Harold Macmillan derrubou a propgsta de Thorneycroft de cortes nos gastos piblicos, ¢ procurou meios alternativos de combater a inflaglo. Sobre a questo do keynesianismo ¢ 0 Estado, veja Simon Clarke, Keynesinism, ‘Monelarism and the Crisis of the State (Aldershot and Gower, VT; Edward Elgar, 1988). Sobre a estrutura liberal da reconstrugao do pés-guerra, veja Peter Burnham, The Political Economy of Post-War Reconstruction (Londres: Macmillan, 1990). CRISE DO FORDISMO OU CRISE DA SOCIAL-DEMOCRACIA? 147 © boom possibilitou um “acordo pés-guerra” entre o capital ¢ 0 trabalho organizado, que permitiu, estimulou e depois implementou a generalizagao dos métodos fordistas de producao. Este acordo pos-guerra incluia uma ampliagao dos esquemas welfaristas, fosse por meio de fundos pablicos ou privados, com a énfase sobretudo nos beneficios de contribuigdéo para os setores mais bem pagos e mais garantidos do trabalho, e marcadamente inferiores para aqueles que nao tinham a folha de contribuigées com as qualificagdes necessarias. Mas essas realizagdes eram limitadas. No final da década de 1950, os problemas econémicos aumentavam na Gra-Bretanha e nos EUA: inflagdo, desemprego, pauperismo, decadéncia urbana ¢ racismo indicavam os limites das conquistas liberais da década do pés-guerra. Para os social- democratas, as conquistas do pos-guerra traziam a promessa de mais saGde, educacéo, bem-estar, melhores moradias, saldrios mais altos e a ampliacdo na participagdo democratica. Por volta de 1960, 0 macartismo ¢ a liberalizagdo do p6s-guerra aparente- mente haviam limpado o campo para que o keynesianismo- welfarismo social-democratico assumisse seu papel histérico. Entretanto, logo ficou claro que os crescentes problemas econémicos € sociais nao eram apenas alguns fios soltos a serem amarrados. O sonho de Lyndon Johnson da Grande Socicdade durou apenas um par de anos até ser engolfado pela Guerra do Vietnan. © projeto de Harold Wilson de modernizagao tecno- légica e social mal conseguiu decolar quando foi varrido pela crise econdmica, Longe de resolver os problemas econémicos, sociais e politicos, as solugdes keynesianas tenderam apenas a intensifica-los. O rapido crescimento dos gastos estatais impunha um crescente escoamento improdutivo dos lucros. As medidas politicas expansionistas alimentavam as pressdes inflacionarias. A crescente intervengio estatal encorajava a mobilizagao politica popular ¢ politizava a tomada de decisées econémicas. Em resumo, a relacéo entre o fordismo e 0 kcynesianismo cra mais ou menos tao proxima ¢ tio estével como se pode imaginar que teria sido uma relagao entre Ford e Keynes. 148 LUA NOVA N® 24 — SETEMBRO 91 A CRISE DO FORDISMO E A CRISE DO CAPITALISMO Os pés-fordistas poderiam afirmar que exageraram a estabilidade do fordismo, enquanto ainda insistiam que a causa da crise de 1970 era a inflexibilidade da producao fordista. Num certo sentido, a crise foi causada pela inflexibilidade dos arranjos institucionais existentes, mas, tal como ocorreu em periodos de crise anteriores, esta inflexibilidade nao era uma caracteristica da tecnologia de producdo mas sim da resisténcia trabalhista, institu- cionalizada nas formas de relacées industriais ¢ de representagao politica que foram desenvolvidas como solucao proviséria de conflitos trabalhistas anteriores. Assim, a chave para se quebrar esta inflexibilidade nao era a introduga’o de novos métodos de produgao mas sim a remoc3o da base da resisténcia trabalhista, reestruturando as formas institucionais de representacao taba- Ihista. Foi apenas na base dessa reestruturacao das relacbes de classe que houve qualquer possibilidade de introdugio vantajosa de novos métodos de produgio. As pressées sobre a lucratividade vinham aumentando ja desde meados da década de 1950, embora no inicio as altissi- mas taxas de lucro tivessem possibilitado que © capital absorvesse estas pressées, cnquanto ainda comportava uma folga para atender as reivindicagdes por maiores salarios ¢ gastos sociais previdenciarios como meio de garantir a paz social ¢ a estabili- dade politica. Estas press6es, porém, se intensificaram na década de 1960 e inicio da de 1970, quando 0 boom continuo levava a uma competi¢ao internacional cada vez maior e alimentava as demandas trabalhistas, canalizadas através dos sistemas institucio- nalizados de relagdes industriais e da representagao politica oferecida pelo welfare state keynesiano. ‘A pressio da competi¢ao se fez sentir mais agudamente nos paises, especialmente na Gra-Bretanha e nos BUA, onde a forga do mercado mundial exigira investimentos em novos méiodos de producéo. Enquanto a produtividade do trabalho estagnava, os custos fixos se mantinham baixos, o endividamento das empresas continuava baixo, os riscos financeiros ¢ sociais cram minimizados € os lucros continuavam altos. A medida que as pressdes competitivas corroiam a lucratividade, os esquemas institucionais anteriores — desde o financiamento corporativo, passando pelo gerenciamento da producao, a organizagao dos operarios no local de trabalho, os sistemas de pagamento ¢ os CRISE DO FORDISMO OU CRISE DA SOCIAL-DEMOCRACIA? 149 nais, tais como as estruturas do gerenciamento das empresas ou 0 financiamento dos investimentos, podiam ser organizados com pressdes competitivas precipitaram o aumento dos conflitos in- dustriais — nao s6 acerca de salarios e beneficios sociais, mas tam- bém, cada vez mais, acerca da produgao, acordos ¢ pagamentos salariais, satide, educagao e seguro social. Entre 1966 @ 1980 0 conflito entre o keynesianismo e o monetarismo foi a expressao politica dessa luta. As pressdes politicas impediram os governos briténico e americano de reagir a crise de 1974 com as medidas deflacion4rias sustentadas do tipo das que foram adotadas pelo governo alemio. Em vez disso, lancaram mao de uma variedade de meios inflacionarios que aliviaram a ameaca de recessio mas também mantiveram 0 po- der de barganha trabalhista e reduziram as pressdes sobre os capitalistas retrogados para investir em novas tecnologias de produgio. Mesmo assim, tendo aprendido a licao da crise de 1974 e sofrendo crescentes presses financeiras, o Estado buscou estratégias de reestruturacdo cada vez mais implacaveis, planeja- das basicamente para restaurar a solvéncia fiscal. Isto nao foi conseguido desenvolvendo-se a capacidade de producdo, mas intensificando o trabalho, mantendo os salarios baixos e cortan- do beneficios de satide e bem-estar. No final da década, a base institucional da resisténcia trabalhista tinha sido substancialmente erodida, de modo que, em resposta a crise de 1979 tanto 0 gover- no da Gra-Bretanha como o dos EUA conseguiram adotar estratégias deflacionarias radicais. Num primeiro momento a ofensiva da década de 1980 ainda foi dominada pela tentativa de restaurar a lucratividade através da intensificacdo do trabalho e da redugdo dos salarios reais nos setores mais vulneraveis da forc¢a de uwabalho. Esta estra- tégia de confronto nao foi ditada pela obstinag’o capitalista de se fecusar a reconhecer o potencial libertador da nova tecnologia, 150 LUA NOVA N? 24 — SETEMBRO 91 mas sim pela forga residual da mao-de-obra. Era necessaria uma reestrutura¢do institucional, nado para a introdugao de uma deter- minada tecnologia, mas para restaurar o controle sobre 0 proces- so de trabalho. S6 com a restauragao da lucratividade poderia 0 novo capital se tornar disponivel para novos investimentos, e s6 com a restauracéo do controle do processo de trabalho pode- tiam esses novos investimentos se mostrar lucrativos. Assim, a reestrutura¢4o institucional foi imposta pela crise da reprodugao capitalista — e nao pelos requisitos de qualquer tecnologia parti- cular. £ por isso que 0 mesmo processo ocorreu em todos os se- tores da produgao, qualquer que fosse a tecnologia; nas indistrias de produgao de massa, na indistria pesada, nas inddstrias extra- tivas, no transporte e nas comunicagdes, nos servigos € no setor puablico. Nao ha nada de pés-fordista nessa reestruturagéo. O sucesso da ofensiva capitalista removeu muitas barreiras que antes impediam que a mudanga tecnologica criasse condig6es nas quais novas tecnologias pudessem ser introduzidas com proveito. Mas essas tecnologias nao sao introduzidas em termos qualitativa- mente diferentes de qualquer das suas predecessoras; tal como a linha de produgdo de Ford, sao introduzidas apenas para aumentar os lucros. Alguns setores do trabalho se beneficiaram da introdugéo das novas técnicas, da mesma forma que os operarios da linha de montagem de Ford se beneficiaram com a introdugao do Dia de Cinco Délares. Mas, assim como as pres- sdes competitivas vindas de novas formas do fordismo, mais desenvolvidas e mais flexiveis, logo forgaram Ford a introduzir os homens de Pinkerton e 0 Departamento de Servigo, também os especialistas flexiveis e os especialistas em nichos do mercado ja estao sofrendo a pressio de competidores que conseguiram reconciliar as economias de escopo com economias de escala. A crise do fordismo nao € nada de novo; € apenas a mais recente manifestagio da crise permanente do capitalismo. SIMON CEARKE 6 professor da Universidade de Warwick, Coventry, Inglaterra,

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