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RESUMO Globalizacao e Governabilidade Democratica* JOSE LUIS FIORT** No inicio dos anos noventa, uma onda de otimismo global transformou em convicgao generalizada a idéia de que a humanidade havia alcangado a etapa superior da paz universal através da multiplicagdo dos regimes democraticos e das economias de mercado. Este artigo explora a hipétese de que, a0 contrério das expectativas dominantes, as sociedades periféricas sob condi- oes de ajustamento liberal enfrentam novas condigdes de instabilidade ingovernabilidade democraticas produzidas pela submissio do seu processo decisério intemo & vontade de atores sociais, agentes econdmicos e poderes governamentais externos ¢ néo-eleitos ou responsaveis frente a estas socie- dades. Em sintese, o artigo trabalha sobre a hipétese de que existe uma contradigao cada vez. mais intensa, neste final de século, entre o proceso de globalizagio e a consolidagio democratica da periferia capitalista. Palavras-chave: Globalizagio; governabilidade; democracia, ABSTRACT Globalization and Democratic Goyernability In the beginning of the 90's, a wave of global optimism created a general conviction based on the idea that humanity had reached the top of universal peace, through the multiplication of democratic regimes and market economies. The article explores the hypothesis that, contrary to dominant expectations, e Soberania”. Este texto faz parte da pesquisa apoiada pelo CNPq “Globalizagio, Transigao Hegemonica ** Doutor em Ciéncia Politica e professor titular do Instituto de Economia Industrial da Universidade Federal do Rio de Janeiro e do Instituto de Medicina Social da UERJ. PHYSIS: Rev. Safe Coletiva, Rio de Janeiro, 11): 137-161, 1997 137 José Luis Fiori the peripheral societies under liberal adjustment face new conditions of democratic instability and ungovernability, produced by the submission of their internal deciding process to the will of social actors, economic agents and external governments, non-elected or responsible for these societies. To sum up, the article deals with the hypothesis that there is a growing contradiction in this end of century, between the process of globalization and democratic consolidation of the capitalist periphery. Keywords: Globalization; governability; democracy. Mondialisation et Gouvernabilité Démocratique Au commencement des ans 90, un optimisme global a transformé en conviction generalisée Pidée que V'humanité avait atteint le stage supérieur de 1a paix universelle travers 1a multiplication des régimes démocratiques et des économies de marché, Cet article explore l'hypothése que, contrairement aux expectatives dominants, les societés périphériques sous condition d’ajustement libéral affrontent nouvelles conditions d’instabilité et ingouvernabilité démocratiques produites par la soumission de son procés décisoire interne aux acteurs sociaux, agents économiques et pouvoirs gourvernamentales externes, pas élus ou responsables par ces societés. En résumé, Particle est basé sur Vhypothése qu'il y @ une contradiction de plus en plus intense, au fin de sitcle, entre le procés de moadialisation et la consolidation démocratique de la périphérie capitaliste. Mots-Clé: Mondialisation; gouvernabilité; démocracie. Recebido em 10/10/97. Aprovado em 17/11/97. 138 PHYSIS: Rev. Sade Coletiva, Rio de Janeito, 7(1): 137-161, 1997 Globalizagio © Governabilidade Democratica A Questo Democratica Existe hoje um consenso que entre 1968 e 1973 condensaram-se acon- tecimentos e decisées nas planos econémico e polftico internacionais res- ponsdveis por uma inflexdo histérica de dimensées universais. Ali encerrou- se a “era de ouro” (Hobsbawm, 1994) do capitalismo com o fim da ordem econémica pactuada em Bretton Woods e tiveram infcio as crises sucessivas das politicas de corte keynesiano e dos Estados de bem-estar social nos paises centrais ¢ em quase todos os “Estados desenvolvimentistas situados na periferia do sistema mundial”. Comegava entfio uma longa transformagio das ordens econémica e geopolitica mundiais, caracterizada por quatro gran- des processos importantes para o tema de reflexdo deste artigo: 1) no plano econémico, o avango cada vez mais acelerado da globalizagao dos paises centrais comandada pela revolugiio ou explosio financeira que comega nos anos 60, alimenta-se da crise e do novo sistema de taxas cambiais flutuantes dos anos 70 ¢ atinge proporcées gigantescas nos anos 80 e 90, caracterizando a existéncia — na visio de Giovanni Arrighi — de um novo “momento” de expansio financeira do capitalismo, agora o “outono” do “ciclo de acumulagiio norte-americano” (Arrighi, 1994). Pro- cesso que alcanga dimensGes universais com o fim do bloco socialista e a abertura e desregulagaio da maioria dos mercados financeiros naci- onais da OECD e da periferia capitalista. 2) no plano ideolégico, sobretudo nos anos 80/90, a avassaladora vitéria de uma de uma nova “onda liberal” que se expande a partir do mundo anglo- saxdo apoiada teoricamente na “restauracdo neoclassica” e sustentada politicamente pelas forcas conservadoras. Doutrina que se difunde mun- dialmente na forma traduzida de um programa comum de politicas ¢ reformas econémicas adotadas progressivamente por governos de todos os matizes ideolégicos, chegando a América Latina junto com a renegociacao de suas dividas externas e alcangando os ex-paises comu- nistas a partir de sua opgio por uma economia de mercado. 3) no plano politico, o aumento geométrico do numero de paises que adotam © sistema liberal-democratico. Processo que comega nos anos 70, com a redemocratizagéo de Espanha, Portugal e Grécia, mas que s6 atinge snaiores proporgées com a redemocratizagao, nos anos 80, da maioria dos paises latino-americanos e, nos anos 90, do pafses da Europa Oriental e alguns paises do Sudeste asidtico. De maneira tal que, como resultado, PHYSIS: Rev. Saide Coletiva, Rio de Janeiro, 7(1): 137-161, 1997 139 José Luts Fiori segundo a contabilidade de Francis Fukuyama (1992:74-75) as trinta de- mocracia liberais que havia no mundo em 1975 se transformam em 61 jaéem 1990. 4) e, finalmente, no plano geopolitico, a longa “transigaéo” que se inicia com a “crise da hegemonia americana” dos anos 70, prolonga-se na segunda Guerra Fria dos anos 80 e culmina com o fim da Unido Soviética, da dipolaridade mundial ¢ da prépria Guerra Fria, nos anos 90, trazendo de volta a esperanca kantiana na possibilidade de uma “paz universal” . Entre 1989 e 1991, a convergéncia destes quatro processos gerou um espasmo de otimismo universal consagrado pelo ingnuo amincio do “fim da hist6ria”. Mas hoje, j4 na segunda metade dos anos noventa, uma sucesso de acontecimentos ¢ um actimulo de impasses nessas quatro dimensées da realidade mundial tém sido responsdveis pela diminuigSo do otimismo inicial © o aumento das incertezas sobre os cendrios deste fim de século. Jé nao existe a mesma convic¢ao sobre a hora da “paz universal” e pairam cada vez maiores diividas sobre se os antigos aliados do mundo capitalista con- seguirfio se coordenar, ou se voltarao a competir e a se enfrentar na luta pelo poder mundial. Por outro lado — e é isto o que nos interessa aqui mais diretamente —, se parece indiscutivel uma progressiva convergéncia e miitua alimentagao entre os processos de desregulagao e globalizagdio e o avanco das idéias neoliberais, estio cada vez menos claras as relagGes que vao se estabelecendo entre a hegemonia liberal-conservadora e a globalizagdo, por um lado, ¢ a consolidagio ou aprofundamento, por outro lado, dos velhos e novos regimes liberal-democraticos de base nacional. De maneira tal que na Europa fala-se cada vez mais da “crise moral da democracia” ou do que Pascal Bruckner (1990) chamou de “melancolia democrdtica”, caracteriza- das pela diminuig#o dos militantes partiddrios e dos eleitores ativos; pelo desaparecimento de diferengas entre os programas partiddrios e pela cres- cente substitui¢ao dos partidos pelos sistemas de mfdia; pelo esvaziamento das fungées parlamentares e pelo descrédito das instituigdes representativas de todo tipo; pelo aumento dos casos de corrupgao dentro das burocracias executivas e dentro dos parlamentos etc. etc. Enquanto isto, na América Latina o debate construtivo dos anos ocitenta sobre as melhores “condigdes, formas ¢ percursos das transigdes e consolidagdes democriticas” foi sendo cada vez mais substitufdo pela discussio pura e simples sobre as condigdes politicas necess4rias para o sucesso das novas polfticas ¢ reformas econé- micas de corte liberalizante (Nelson, 1989, 1990; Haggard e Kaufman, 1992). 140 PHYSIS: Rev. Satide Coletiva, Rio de Janeiro, 7(1): 137-161, 1997 Globatizagéo e Governabilidade Democrética Para no mencionar o retorno direto ao autoritarismo de paises situados em varias latitudes do mundo. Como explicar este aparente paradoxo ou descompasso entre a retum- bante vitéria dos regimes liberal-democraticos e este simultaneo e precoce desencanto com a prépria democracia, logo na hora em que parecia resol- vida a yelha polémica cléssica do século XIX sobre a sua compatibilidade com 0 capitalismo? Para a maioria dos autores as razées ultimas desse paradoxo decorrem de incompatibilidades ou contradigdes que vém se explicitando de forma cada vez mais répida com 0 avango daqueles quatro grandes processos ou iransformagGes contempordneas. Jéem 1984, no seu Futuro da Democracia, Norberto Bobbio explorou de maneira pioneira e sintética a idéia de que neste novo ciclo de hegemonia neoliberal, “liberalismo e democracia mostram nao ser mais totalmente com- pativeis, uma vez que a democracia foi levada as extremas conseqtiéncias da democracia de massa, ou methor, dos partidos de massa, cujo produto é o estado assistencial” (p. 124), e este tem sido, exatamente, 0 objeto central do ataque dos neoconservadores. RazGo porque, hoje “nao esté em jogo apenas o Estado de bem-estar social, quer dizer, 0 grande compromisso entre 0 movimento operdrio e o capitalismo maduro, mas a propria democra- cia” (p. 125) Para ele, a estratégia politica deste novo liberalismo aponta necessariamente para um “Estado minimo” cada vez mais forte e restritivo do ponto de vista da participagio politica e dos direitos sociais da cidadania conquistada no século XX. Numa diregiio distinta, varios outros autores tém associado a “crise das democracias” com o fendmeno da globalizago econémica, social e cultural, responsdvel, em dltima instdncia, pela erosdo das bases territoriais em que se fundou a politica moderna. Jean-Marie Guéhenno (1994) e Cristopher Lasch (1995), por exemplo, ainda que por caminhos distintos, sustentam a mesma tese de que a era global das redes transnacionais transformou a nagao e a politica em formas anacrénicas de sociabilidade e solidariedade, desconstruindo as bases sociais e culturais em que se sustentaram as demo- cracias liberais. Numa linha um pouco menos categérica ou mais “otimista”, David Held (1995) também considera que o processo de globalizagao e de reorganizacio geopolitica mundial sao os grandes responsdveis pelo maior peso e eficdcia que vém adquirindo os novos sistemas de leis e regulamentagées internacio- nais, as novas redes de comunicagio transcultural, e os novos atores € arenas politicos e econémicos supra ou transnacionais. Novas realidades PHYSIS: Rev. Sade Coletiva, Rio de Janeiro, (1): 137-161, 197 141 José Luts Fiori que, em conjunto, vém diluindo as fronteiras e gerando constituencies que ja nao tém mais a mesma base ou homogeneidade territorial. Como resul- tado, restringe-se a possibilidade do exercicio da accountability e do fun- cionamento eficaz de democracias nacionais realmente representativas com base estritamente nacionais. Mas, em compensagdo, para Held este mesmo movimento estaria criando as condigdes para a construgdo, num futuro indeterminado, de um novo “modelo de democracia cosmopolita” (Archibuggi. e Held, 1995). No contexto dessa discussao, este trabalho aponta na mesma diregéo de Norberto Bobbio, mas sua hipétese central é de que a incompatibilidade entre o atual neoliberalismo econémico e as democracias nacionais tem se acentuado com avango do proceso de globalizagio e adquire particular intensidade e visibilidade no caso das sociedade periféricas que se incorpo- raram “financeiramente” a este processo na hora em que fazem um mo- vimento simultaneo de transigéo democratica e estabilizagao econémica. Nesses casos em particular, a globatizagao financeira acaba ameagando a possibilidade de uma consolidagaéo democratica na mesma medida em que estreita de maneira radical e duradoura as margens de governabilidade e legitimidade estatal desses paises. A Questio da Governabilidade na Teoria Contemporanea Foi nos anos 60 que o tema da “governabilidade” passou a ocupar o primeiro plano nos debates académicos e politicos, E surgiu naquele momen- to como um conccito-chave na inflexdo conservadora das teorias da moder- nizacéo ou do desenvolvimento politico. Ele sintetiza, de certa forma, o momento em que perde terreno 0 otimismo desenvolvimentista dos anos 50, que sempre acreditou na associagio necesséria e irreversivel entre o desen- volvimento econémico e a construgdo democrdtica da periferia capitalista. Ainda uma vez, Samuel Huntington teve um papel intelectual decisivo nesta reviravolta, ao deslocar 0 eixo tematico do debate académico e politico para a natureza instdvel e reversivel dos desenvolvimentos democraticos nas periferias capitalistas (Huntington, 1968). E para o que diagnosticou, um pouco mais tarde, junto com outros autores, e no 4mbito de uma reflexdo “trilateral”, como uma profunda “crise democratica” dos paises industrializa- dos (Crozier, Huntington e Watanuki, 1975; Brittan, 1977). Como conseqiién- cia teérica, a idéia de desenvolvimento politico deixa de ter um signo neces- sariamente positivo e o foco central das preocupagées prdticas passa do 142 PHYSIS: Rev. Satie Coletiva, Rio de Janeiro, 7(1): 137-161, 1997 Globalizagao e Governabilidade Democritica problema da “construgao democrdtica” para o da “estabilidade politica” ou, mais precisamente, da “preservagio da ordem” ou da “governabilidade”. Essa virada teérica, como é sabido, teve desdobramentos diferentes nos paises centrais e periféricos. Nos primeiros, pode-se dizer que foi o seu diagnéstico da crise democratica, atribuida a uma presum{vel “sobrecarga de demandas”, que racionalizou a virada conservadora dos anos 80, responsd- vel, por sua vez, pela sistematica “desmobilizacdo” legal e organizacional das demandas “excessivas” que ameagavam, segundo Huntington, a governabi- lidade dos paises industrializados. Nos paises periféricos, por outro lado, a preocupagdo de Huntington com a sua “debilidade institucional” e conse- qiiente “ingovernabilidade” foram, no minimo, contemporaneas da instalagio dos regimes autoritarios que se generalizaram nos continentes africano e latino-americano nos anos 60 e 70 como forma de preservacio da “ordem”. Na sua primeira hora, portanto, o conceito de “governabilidade” teve como denominador comum, em suas diferentes utilizagdes praticas, o que Richard Higgott (1983) resumiu como “a capacidade governamental de atender cer- tas demandas, ou entao de suprimi-las de vez”. A definigao teérica ¢ pratica de governabilidade foi sendo redetinida, entretanto, ao longo dessas trés décadas. Sua principal alteragdo de rota foi obra da new political economy, que nasce do longinquo casamento entre o neoliberalismo econémico de Hayek e seus seguidores e a corrente de pensamento politico que estréia com a teoria dos jogos, passa pela teoria da agao racional e culmina na escola da “escolha publica”, onde convivem, ha alguns anos, economistas e cientistas politicos. Se as idéias de Huntington foram sécias da reagao antidemocratica do pensamento neoconservador, pode-se dizer, sem medo de errar, que foi a “nova economia politica” que ofereceu o alicerce te6rico 4 grande revolug&o neoliberal deste fim de sé- culo. Mesmo quando nio estivesse discutindo explicitamente a definigao de governabilidade, sua critica aos conceites em que se sustentou a teoria politica classica teve um efeito devastador sobre as convicgdes democrati- cas apoiadas nas idéias de “virtude” e de “interesse publico”. Em apertada sintese, 0 economic approach to politics, ao aprofundar e sistematizar a metéfora de Schumpeter sobre a politica enquanto mercado e 0 “calculo do interesse individual” como fundamento ultimo do comportamento dos eleito- res, das burocracias e da “classe politica”, acaba por reduzir o Estado, os governos ¢ os sistemas politicos a uma soma de individuos que, basicamente, se orientam pela busca de vantagens individuais através do acesso seletivo e do manejo arbitrario dos recursos e das politicas piblicas. Com a grande PHYSIS: Rev, Satide Coletiva, Rio de Janeiro, 71): 137-161, 1997 143 José Laris Fiori diferenga de que, ao contrario dos mercados econémicos, nesses mercados politicos a “mio invisivel” atuaria de forma inversa ou perversa, permitindo que seus produtos (as decisées e politicas ptiblicas) fossem invariavelmente irracionais do ponto de vista econémico. Como derivagao analitica implicita, ficava “demonstrado” que o funcionamento das “democracias de massa” do pés-Segunda Guerra tinha sido o grande respons4vel pela ingovernabilidade decorrente do processo irracional, circular e expansivo que conduziu ao crescimento e crise fiscal dos Estados, assim como 8 instabilidade ¢ crise das economias centrais nos anos 70. Em 1980, foi Buchanan quem melhor sintetizou a nova agenda da governabilidade: “limitar vigorosamente o nime- ro de atividades ainda submetidas ao poder regulador dos estados”. O “es- tado minimo” de Nozik seria, nesse sentido, apenas a versao limite desta mesma estratégica. Um pouco mais a frente, na segunda metade dos anos 80, 0 mesmo Anthony Downs que havia inaugurado, em 1957, a nova escola, com sua Economic Theory of Democracy propés uma autocritica corretiva de sua visao inicial sobre a racionalidade da ago politica, sintetizando as bases do que alguns chamam de neoinstitucionalismo: “na realidade, os valores sociais clasificados pelos economistas como preferenciais ou gostos ‘dados’ sio extremamente importantes em cada sociedade. Sua natureza ¢ transforma- cées afetam significativamente os comportamentos e instituigées politicas € econémicas” (Downs, 1991: 145). Do ponto de vista normativo, contudo, 0 neoinstitucionalismo apenas “enriqueceu” o que seria a estratégia neoliberal de Buchanan, acrescentando-lhe a seguinte idéia-sintese, aliés do préprio Downs, a saber, que “o bem-estar da sociedade e dos individuos envolvidos poderia ser enormemente melhorado se eles pudessem ser induzidos a com- portar-se de acordo com valores pessoais e sociais diferentes dos que pos- suem atualmente” (idem). exatamente essa versao eclética da governabilidade que reapareceré nos anos 90 na agenda do Banco Mundial e de outras instituigées multila~ terais, j4 agora na forma de uma preocupagdo mais limitada com o que chamaram de governance ou good governance. Qual a sua novidade conceitual? Pequena. Esta nova definiga&o aumenta apenas o rigor no deta- Thamento institucional sobre o que seria um governo pequeno, bom e, sobre- tudo, confidvel do ponto de vista da comunidade internacional. O ponto de que parte sua preocupagio, nesse sentido, é bem elucidativo: “para muitos credores do sistema financeiro, a efetividade de suas operages de ajuste e investimento € impedida por fatores que contribuem para uma gestao 144 PHYSIS: Rev. Saide Coletiva, Rio de Janeiro, 7(1): 137-161, 1997 Globalizagio ¢ Governabilidade Democritica ineficiente. Esses fatores incluem instituigdes pouco sélidas, a falta de uma adequada estrutura legal, a fragilidade do sistema, politicas incertas ¢ vari- Aveis” (World Bank, 1992: 4). Como organismos operativos, as instituigdes multilaterais definem a governabilidade de forma instrumental, e dao-Ihe ao conceito, portanto, um contetido eminentemente normativo ou programiatico. Talvez por isto, e pela propria importéncia dos seus formuladores, as suas preocupacées ¢ recomendacdes tiveram um papel decisivo na construgdo do senso comum contemporaneo que acabou fazendo do conceito de “governabilidade” sinénimo da capacidade dos governos de conjugar simul- tanea e eficientemente as market friendly reforms com a criagio de con- digGes institucionais capazes de estabilizar as expectativas dos decisores econémicos. Esta literatura voltada, sobretudo, para a a¢do do BIRD nos pafses apoiados por seus programas de ajustamento e reformas estruturais, tem um viés claramente policy oriented. Mas seu enfoque nao difere ba- sicamente daquele que orientou um amplo estudo comparativo, sobre as condigées polfticas dos ajustamentos econdmicos, desenvolvido na segunda metade dos anos 80 por um grupo de cientistas politicos norte-americanos liderados por Joan Nelson, Stephan Haggard ¢ Robert Kaufman. Uma das avaliagdes mais extensas e completas das dificuldades ¢ condigées politicas de impiementagiio do programa de polfticas econémicas que John Williamson apelidou, em 1990, de Washington Consensus: um programa de convergén- cia ov homogeneizagao das politicas econémicas dos paises latino-america- nos, desenhado pelas burocracias internacionais ¢ nacionais de Washington, combinando austeridade fiscal e monetaria, com desregulag&o dos mercados e liberalizagio financeira, abertura comercial, privatizagdes e eliminagio de todo tipo de barreiras ou discriminagdes contra os capitais forineos. Esta pesquisa acabou definindo, a partir do que considerou como “experiéncias bem-sucedidas”, uma espécie de programa politico informal, normative e estratégico, ndo tio explicito nem consensual quanto 0 Washington Consensus, mas que também retine um conjunto de “sugestdes” de como levar a cabo, com sucesso, 0 programa econédmico resumido por John Williamson. Governabilidade ou good governance, neste caso, passou a ser sinénimo ou resultado da capacidade dos “reformistas” de acumularem ini- cialmente “an unusual concentration of power” (Nelson, 1989: 16) mediante a formagao de uma coalizio ampla, sélida e permanente de poder que obtivesse a “allegiance of the bourgeoisie” (Whithead, 1989: 80) uma vez que “in practice it may take very little in material rewards to purchase the allegiance of the lower class” (idem: 81). Para isto, os autores sugerem PHYSIS: Rev. Sade Coletiva, Rio de Janeiro, 7(1}¢ 137-161, 1997145 José Luis Fiori igualmente a “impermeabilizagao burocritica” de um micleo de technopols (Williamson, 1992) que possa comandar a economia distante das pressdes corporativas. Além do gue, como “the adjustment process is one of administered hardship, and the distribution of the losse should be not transparent and to minimize opposition, governments may need to downplay or obfuscate losses and benefits that result from reforms but do not serve as importante economia signas” (Waterbury, 1989: 27). Na mesma diregao, visando estabilizar as expectativas dos agentes econdmicos, so sugeridas reformas politico-eleitorais capazes de aumentar 0 “indice de governabilidade” da economia, assegurando a continuidade no poder da maioria obtida pela coalizao construida em apoio das politicas e reformas liberais. De tal manei- ra que, no inicio dos anos 90, na academia como nas agéncias multilaterais, “governabilidade” ¢ “reformas estruturais” passaram a ser definidas, cada vez mais, de forma circular: a governabilidade era condigao das reformas como estas eram o caminho mais seguro para consolidar a propria governabilidade. Que ligdes podemos extrair desse debate inconcluso sobre o significado do conceito de “governabilidade”? Em primeiro lugar, que © significado analitico € normativo da idéia de governabilidade variou de acordo com o tempo ¢ 0 espaco. E, em segundo lugar, que através do tempo as definigdes ora apon- taram para “condicg6es sistémicas de exercicio eficiente do poder”, tao ge- rais quanto infinitas, ora desceram 4 discussdo da “boa maneira de gerir os recursos publicos”, tio detalhada que fica praticamente impossivel de asse- gurar sua validade universal. Como conseqiiéncia, 0 conceito de governabi- lidade na sua acep¢io mais ampla ou mais especifica, ficou indeterminado do ponto de vista teérico, tratando-se, na verdade, de uma “categoria es- tratégica”. De tal forma que, se num primeiro momento, nos anos 60, ele apontou normativamente para a necessidade de restringir as “demandas democraticas excessivas”, num segundo momento, nos anos 80, ele reco- mendou que se reduzisse o papel do Estado e se desregulassem os merca- dos, enquanto, finalmente, nos anos 90, a mesma preocupagfio com a ingovernabilidade acabou transformada num programa de politicas ¢ refor- mas visando a assegurar a homogencizacio internacional das politicas eco- némicas de corte liberal-conservador. No caso brasileiro, foi na segunda metade dos anos 80 que se colocou a questo da governabilidade como tema académico ¢ preocupagio politica. Uma profunda crise econémica de natureza estrutural, somada ao desafio da construg&o de uma nova institucionalidade democratica e 4 velocissima trans- 146 PHYSIS: Rev. Saiide Coletiva, Rio de Janeiro, 2(1): 137-161, 1997 Globalizagio e Governabilidade Democritica formagao da ordem politica ¢ econémica internacionais, multiplicaram con- flitos e indeterminagées que afetaram profundamente a capacidade deciséria do Estado e a eficdcia de suas politicas ptiblicas. Mas, também aqui, 0 enfoque variou durante essa década, desde uma versio inicial preocupada com a “explosao das demandas sociais reprimidas” pelo regime autoritaério ¢ inadministraveis por uma democracia ainda pouco consolidada, até uma versio que nos anos 90 “convergiu” com as preocupagées dos académicos e policy makers que j4 vinham estudando o “melhor governo” para levar até o fim o ajuste econdmico da periferia capitalista 4 nova ordem mundial globalizada. A proposta e o argumento central deste artigo apontam numa dire¢do um pouco diferente de toda essa literatura. Em primeiro lugar, porque no tem nenhum objetivo normativo ou programatico. Em segundo lugar, porque nao est4 preocupada com as condigées de viabilizagio da agenda neoliberal. Em terceiro lugar, porque jd assume como “um dado de realidade” que nesta metade da década de 90, quase todos os pafses latino-americanos, e o Brasil em ultimo lugar, jé se alinharam com o Washington Consensus. Em quarto lugar, porque considera que a partir da sua liberalizagao financeira e abertura econémica, feitas sem nenhum tipo de politica de reestruturagao produtiva de longo prazo, esses paises adotaram uma estratégia de “ajuste passivo” ao processo da globalizacdio que se acelerou vertiginosamente a partir da se- gunda metade dos anos 80. E, em quinto ¢ ultimo lugar, porque explora a hipétese de que a agenda de problemas ligados, hoje, ao tema da governa- bilidade est associada estreitamente & evolugio desse tipo particular de estratégia econémica. Por isso a pergunta central deste artigo j4 nao é sobre qual seria o “melhor governo” para chegar a uma “economia de mercado”, mas sobre qual seria o impacto do funcionamento de um mercado desregulado e internacionalizado, sobre a governabilidade democratica de uma sociedade periférica e socialmente desigual como é 0 caso brasileiro. A Nova Ordem Econémica Emergente O conceito de globalizacao ainda permanece impreciso, apesar do uso extensissimo que dele tem sido feito na andlise contemporanea das mudan- gas nas relagées internacionais, econ6micas e politicas que o mundo vem assistindo nestes ultimos vinte anos. Assim mesmo e apesar desta impreci- séo, ninguém tem duvidas de que o conceito nasceu com a inteng&o de dar conta de uma nova forma capitalista gerada nas Ultimas décadas pelo inces- PHYSIS: Rev, Sate Coletiva, Rio de Janeiro, 7(1): 137-161, 1997 147 José Luts Fiori sante processo de acumulagiio e internacionalizagiio dos capitais. Uma nova forma econémica que vem se cristalizando a partir das aceleradas trans- formagées a que todos vimos assistindo nos planos das mutagGes tecnol6- gicas, organizacionais, politicas, comerciais ¢ financeiras que, ao se inter- telacionarem de forma dindmica, vém provocando uma completa reorgani- zagao espacial da atividade econémica e uma indiscutivel re-hierarquizagao de seus centros decisérios. Re-hierarquizacio que, segundo Samuel Huntington, deu lugar a dois Diretérios Mundiais: 0 primeiro, constituido pelos Estados Unidos, Alemanha e Japao, responsdvel pela gestéo da nova ordem econémica mundial; e o segundo, composto pelos Estados Unidos, Franca e Inglaterra, responsdvel pelas grandes decisGes geopoliticas e mi- litares, depois do desaparecimento da Unido Soviética. Re-hierarquiazagao que aparece também, quando olhamos para as novas relagdes econdmicas que vao se estabelecendo rapidamente entres os espagos econémicos naci- onais ¢ regionais, determinada pela realocagdo global dos capitais produtivos que vai ocorrendo na trilha aberta pela desregulagao financeira e bancaria e pela abertura comercial dos mercados locais. Essas novas realidades, ainda que inconclusas, jé nos permitem responder a algumas questdes decisivas para saber até que ponto a chamada globali- zacao inova ou altera radicalmente a ordem econémica e politica internacio- nais, Neste ponto, as perguntas decisivas, do meu ponto de vista, so, ba- sicamente, trés: i) as transformagées econdmicas € politicas mundiais ocor- ridas a partir da crise de 1973/75 alteraram qualitativamente ou nao o pro- cesso secular de internacionalizacdo do capitalismo? E caso a resposta seja sim, qual a sua marca distintiva? ii) o fenémeno da interdependéncia, essen- cial ao conceito de globalizagao, altera ou ndo a forma econémica e politi- camente hierarquizada da organizacio capitalista em ambito mundial, e, portanto, a existéncia ou nao, dentro dela, de posigées centrais e periféricas? iii) a nova organizagao desterritorializada da estrutura concentrada da oferta mundial e do funcionamento desregulado dos mercados financeiros permite ou nfo falar ainda de economias ou sociedades dependentes, quan- do muitos consideram sucateados os préprios Estados nacionais? A reposta a estas perguntas envolve a consideragdo de certos fatos e tendéncias que ja vao se delineando no avango da globalizacao, mesmo quando nao se tenha claro sobre 0 ponto terminal para o qual estarao apontando. O que primeiro se deve sublinhar é que esta nova realidade vem se impondo como resultante da interagdo dindmica entre decisées econémicas e polfticas, tomadas no plano das empresas e dos governos, em geral na 148 PRYSIS: Rev. Satide Coletive, Rio de Janeiro, 7(1): 137-161, 1997 Globalizagio e Governabilidade Democritica forma de reag&o defensiva frente aos grandes chogues que se condensaram no inicio dos anos 70, 80 e 90. As respostas dadas a estes desafios pelas distintas economias nacionais é 0 que vem se chamando indiferenciadamente de ajustes estruturais. E ao processo e realidades que vio se desenvol- vendo ¢ nascendo as costas dos produtores ¢ dos governos, sobretudo dos Estados centrais e da Triade em particular, é que se tem chamado de globalizacao. Um processo que aumenta grandemente as interdependéncias entre os atores de todo tipo, mas que nao é de jeito algum sinénimo de convergéncia ou, muito menos, de solidariedade crescentes (Touraine, 1995). Em segundo lugar, se a internacionalizagao foi e € condigdo essencial do processo de valorizagao do capital ¢, portanto, uma constante na expansio capitalista desde sua origem, a verdade é que ela gerou formas distintas de organizagio espacial dos capitais produtivos e de inter-relacionamento des- tes com a forga de trabalho e com os capitais mercantis e financeiros. Assim, s¢ a internacionalizagao foi uma constante, também foram distintas as formas como os capitalismos origindrios se relacionaram, em seu movi- mento expansivo, com as suas periferias coloniais ou independentes. Sendo perfeitamente distingufveis, por exemplo, a etapa em que as periferias se integraram 4 economia internacional, trocando seus produtos primdarios, ex- plorados, em geral, pelos capitais fordneos, por produtos manufaturados provenientes dos paises centrais, daquela quando esta mesma produgaio manufatureira se transferiu, na forma de filiais, para os paises periféricos. E hoje parece ja bastante provavel que este mesmo movimento expansivo e internacionalizante tenha entrado em uma nova fase, anunciada pela crise mundial de 1973/75, mas cujo perfil s6 adquiriu maior nitidez nos anos 80. E, como em outros grandes momentos de inflexéo deste mesmo processo, algo qualitativamente novo vem se desenhado na forma com que se expan- dem, organizam e se inter-relacionam, entre si e com a forga de trabalho, 0s capitais produtivos, comerciais e financeiros. Num outro plano, se deve ter presente que esta inflexao que individualiza © momento da globalizagao ocorreu como efeito combinado de um certo tipo de progresso tecnolégico, sobretudo no campo eletrénico-informacional, com um conjunto de decisdes politicas desregulacionistas que se universalizaram, nos anos 80, a partir do eixo anglo-saxiio, sob a égide da hegemonia liberal- conservadora. A partir daf, foram, sobretudo, as mudangas no funcionamen- to dos mercados financeiros que permitiram e estimularam a operagao das grandes firmas multinacionais dentro de estruturas de oferta extremamente concentradas, mas com processos produtivos que se segmentaram, gracas PHYSIS: Rev. Sade Coletiva, Rio de Janeizo, 7(1): 137-161, 1997 149

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