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GIULIO CARLO ARGAN Projeto e destino SERIE TEMAS Volume 7 Arquitetura e design Titulo original Proggetoe destino (Copyright © Paola Gallet Argan Editor Fernando Paisao Preparacio de texto Otacli Nunes Revisto ‘Maria Sylvia Corréa Sandra Brazil (coord,) Editor dearte Marcello Araujo Editoraassstente de arte Suzana Laub Capa e projet grafico Germana Monte-Mér Imagens da cape Le Corbusier, deseno efoto do Palicio dl Secretariado, Chandighar, India, 1971. In: Obras completas. W. Boesiger, les étions d’ Architecture, Zurique Eaitoragio cletrénica Esto O.L-M. ISBN 85 08 07511 1 2000 ‘Todos os direitos reservados pela Editora Atica Rua Bardo de Iguape, 110+ CEP 1507-900 Caixa Postal 2937 + CEP 01065-970 ‘Tes (O11) 3346-3000 «Fox (0_11) 3277-4146 ‘Sao Paulo - SP Internet: hep/owrwcatica com be ‘Sumario Projeto e destino 7 Aarquitetura modema na alia. . 175 Sobre a concsito de tipologia O pensamento de Sant‘lia 179 arquiteténica 2... 6 Novembergruppe . 107 Arquiteturae ideologia n ‘A arquitetura do expressionismo . . 191 ‘Apropésito de espago interno... 79 Valor de uma plemica Condigdes histérieas do urbanismo .. 95 (Giuseppe Pagano) ao Modulo-medidae méduloobjeto ... aa Alateade Ronchamp Le Corbusier) 208 Arquiteturae arte nao figurative . 137 Para uma mostra de F.L. Wright “Eliot” ov da erquitetura (Certa a Cesare Brandi) 19 Marcel Breuer Acultura des cidades eee ea bel meen . Arquiteturae ténica construtiva A"terceirapihagem’ de Rome ...107 pt Ne ans ( desenio industial 5 outils a Grin i Avalide, fngoe valor ropes mectetogia 4 do desenho industrial 1% Arquitetura organic 263 Arelagéo arte-sociedade 18 Introdugdo @ Wright 269 mm 285 Aarquitetura moderna Ignazio Gardella Marcel Breuer Hé trinta anos o trabalho de Breuer se desenvolve com uma coeréncia que nado conhece crise, aventuras polémicas, involucdes nem tampouco grandes pro- blemas; tanto que, melhor que de coeréncia, caberia falar de humor constan- te, de atitude aberta e cordial, de tendéncia natural a ndo dramatizar as situa- ‘g6es. Eno entanto a sua figura de artista coloca alguns problemas que 2 critica ainda nao considerou com a necesséria profundidade. Breuer foi aluno e mes- ‘re na Bauhaus e todavia a sua obra nao entra em nenhum esquema, nem se- ‘quer no amplo esquema ideolégico da Bauhaus: quais sio as suas relagdes com essa escola? Breuer foi, durante anos, 0 colaborador de Gropius: por que afi- nidade eletiva ou atracdes de contrétios o maior ideélogo da arquitetura mo- derna escolheu, entre os antigos discipulos, justamente aquele que parecia nu- trir para com a ideologia mais desconfianca do que ceticismo? A tese ideolégica da Bauhaus ndo admite uma distingdo tedrica entre o ur- banista que projeta uma cidade, o arquiteto que projeta uma casa e 0 designer que projeta uma cadeira. Uma vez que o planejar é dado como atividade es- sencial da mente, entre os vérios niveis da projetacdo podem existir diferen- «as quantitativas ou de grau, ndo qualitativas ou de valor. Se, como em Breuer, o designer precede e condiciona o arquiteto, isso diz respeito apenas a0 pro- cesso especifico do seu operar artistico: veremos como da constancia deste processo depende a originalidade da sua contribuicdo 20 desenvolvimento da arquitetura moderna. Quanto a segunda pergunta, bastaré recordar que, como Gropius nao se cansou de repetir, a Bauhaus nao se propés criar um novo estilo, mas deter- minar e aperfeicoar um novo método de trabalho: elastico, indutivo, capaz de libertare orientar, sem nunca limité-las ou diminuf-las, as possibilidades cria~ tivas dos individuos e da sociedade. A sociedade que professores e alunos da Bauhaus esperaram ver nascer, defendendo corajosamente esta esperanga con- ‘SIULIO CARLO ARGAN tra a ameaga da ressurgente barbarie, ndo era nem caserna nem paraiso, mas a mais diferenciada e mével, a mais dialética e funcional organizacao social que se concebeu desde o iluminismo. Breuer é 0 homem do método, de um método que permite responder do ‘modo mais pertinente e oportuno as infinitas exigencias daquela sociedade; € jd que seré facil demonstrar que, permanecendo fiel ao seu método, nao sa~ crificou ou aviltou a propria liberdade expressiva, nao tem sentido perguntar se ele foi um fervoroso ou tépido ou aberrante seguidor da Bauhaus. Ele é exa- tamente 0 tipo de artista e de técnico que a Bauhaus se propunha formar, a demonstracdo viva da qualidade do método didético que naquela escola se praticava, A colaboracio de Breuer com Gropius comecou em 1920, quando aos de- zoito anos chegou a escola de Weimar; continuou, em plano bem diferente, de 1922 a 1928, quando foi professor e chefe do laboratério do mével na ve~ Iha escola de Weimar e na nova de Dessau; tornou-se associacao de igual para igual, entre 1938 e 1941, quando os dois artistas se encontraram nos Estados Unidos. Nesta fase (bastante importante para a hist6ria da assim chamada “superacio do racionalismo”) a colaboracdo foi integracao reciproca, em- preendida dia a dia na mesa de desenho e no canteiro de obras, e reconhect vel, na necesséria complementaridade dos dois fatores, até nas minimas solu- (goes formais. Diante das obras nascidas da colaboragio ¢ dificil dizer onde termina a parte de Gropius e comeca a de Breuer; mas seria preciso ser surdo para ndo reconhecer, como num didlogo, o timbre de duas vozes ¢ 0 ritmo de dois pen- samentos nitidamente distintos. Poder-se-ia dizer que, naqueles trabalhos co- ‘muns, Gropius tem sempre presente o “problema Breuer” e Breuer 0 “proble- ma Gropius"; e que cada um deles se esforca para definir seu proprio pensamento formal em relagao ao do outro. Mas € possivel ser mais preciso: no ambito da tese ideoldgica da Bauhaus, voltada a realizar valores de quali- dade numa produgio quantitativa ou em série (e observe-se que os termos qualidade ¢ quantidade tém exatamente o sentido que Ihes deu o pensamento filoséfico contemporéneo), Gropius representa a instancia quantitativa, Breuer 2 instancia qualitativa. Ainda mais precisamente: Gropius parte do problema da série visando qualificacao das formas; Breuer parte da qualidade indivi- dual da forma, mas considera que essa qualidade € perfeita apenas quando pode quantificar-se ou repetir-se ilimitadamente na série. PROJETO E DESTINO Estes dois processos de trabalho, aparentemente diferentes, entram porém na circularidade, no movimento em espiral da fungdo técnica e social do ar- quiteto tal como foi definida pela Bauhaus. E uma fungio que se desenvolve por érbitas concéntricas mas animadas, respectivamente, por uma forca cen- trifuga e por uma forga centripeta: a primeira, alargando seus giros, leva & re- solugio do fato arquiteténico no planejamento urbano, regional e geral ¢ por- tanto a identificacao do arquiteto com o urbanistas a segunda, restringindo-os, leva & arquitetura do objeto, ao mével, ao utensilio, ¢ portanto a identificagao do arquiteto com o designer. Embora Gropius tenha sido sempre extremamente discreto, até reticente, a0 declarar um ideal ou um programa politico, toda a sua obra de artista ¢ de teérico pressupée a idéia de uma polis ou de uma sociedade ideal, imune a tensdes e contradigées politicas porque jé atingiu, na sua prépria funcionali- dade, um equilibrio absoluto entre as classes sociais. Breuer declara explicita- mente que o problema da arquitetura e os conexos ndo podem ter nenhuma implicagio politica: 0 arquiteto deve dar conta exclusivamente das exigéncias priticas,fisicas e psicol6gicas dos individuos. Para ele, a condicao primeira de ‘um bom projeto é a falta de preconceitos; e nao é dito que o preconceito seja sempre o fruto do obscurantismo: também o culto de uma racionalidade da- daa priori, aritmética ou geométrica, pode ser um preconceito, e nao dos mais, inécuos. Preconceito é, no fundo, a reveréncia ao sistemas falta de preconceito €0 método, porque na sua dialética interna contém uma exigéncia critica, E ainda a falta de preconceito que permite ao arquiteto cumprir a segunda con- digio de um bom projeto: o contato “imediato, objetivo com uma dada tare- fa, um dado problema”, Por este caminho o artista alcanga seu objetivo essen- cial, que é determinar o “prazer estético através do emprego ¢ do equilibrio de formas elementares”.O postulado pode parecer excessivamente pragmatis- ta, Também Gropius esté convencido de que a arte nao tem uma finalidade de conhecimento e inimigo de toda metafisica; mas tem presente toda a tradi- do que poe a arte como conhecimento, ¢ se a sua teoria formal se funda na critica dessa tradicéo, ela desemboca todavia numa nova concepgao do espa- 0, chega a designar um novo valor do “belo”, conclui na afirmagao de que 0 conhecimento nao é certamente menos auténtico pelo fato de realizar-se no agir em vez de no contemplar. Breuer, de uma geracao mais jovem, nao se co- loca sequer o problema de um possivel fazer cognoscitivo ou de um carter teorético da arte: parte do fendmeno ou do objeto com a intencdo de esclare- cer o fenémeno e de melhorar o objeto, de modo a tornar mais claras, produ- CIULO CARLO ARGAN tivas e agradaveis as relagdes dos homens com 0 mundo dos fendmenos ¢ dos objetos. Como Blake observou com razdo, Breuer sempre demonstrou um pungen- te interesse pelos resultados formais dos pintores e dos escultores contempo- raneos: sem recorrer a Klee, Mondrian, Kandinsky, seria de fato dificil expli- car a qualidade figurativa de seus méveis e das suas arquiteturas. Tem consciéncia de que a sua arquitetura medeia a assimilagao daquelas formas péeticas a linguagem falada; mas nao cré que a linguagem falada constitua ne- cessariamente algo de qualitativamente inferior e de esteticamente nao signi- ficante. Seu objetivo, mesmo nao confessado, é remeter toda a arte (e servin- do-se justamente da técnica mais moderna e aperfeicoada) ao plano da arte “popular”: que para ele nao , ¢ com razdo, arte ingénua contraposta & arte culta, arte de um estrato inferior contraposta a arte das camadas superiores. ‘A busca, que ird se aprofundando cada vez mais, das formas “elementares” 1ndo visard jamais 8 descoberta de um miicleo original, geométrico ou espacial, da forma, masa identificar a forma mais simples, aquela que tornaré 0 objeto imediatamente utilizavel, t20 instrumental quanto os utensilios elaborados pela mais sincera arte popular no curso de uma longa experiéncia de traba- Iho. © que ele quer alcancar nao é a forma nova, inventada, surpreendente, ‘mas a forma nova que responde a todo um conjunto de necessidades e de de- sejos, que é aguardada como a solugdo de uma série de pequenos ou grandes, problemas e que por isso se tornard subitamente habitual, entraré no ciclo da cxisténcia sem provocar nenhuma perturbacdo. Assim é que se explica 0 inte- resse deste civilizadissimo artista pela arquitetura que ele mesmo chamava vernacular: naquelas formas ele nao busca nem a ingenuidade do primitivo nem os sinais de uma mais profunda e arcaica eticidade, mas a funcionalida- de da forma. Que essa linguagem popular ndo é a mais adequada para expri- mir os modos de vida da sociedade moderna, Breuer é o primeiro a sebé-lo; ¢ por isso se aproxima dessas formas com um interesse puramente experimen- tal e de nenhum modo ideolégico. Reconhece sem dificuldade que essa arte popular, com as suas cadéncias tradicionais, étnicas e nacionais, e o “movi- ‘mento moderno”, com as suas aspiracOes internacionalistas, sio duas tendén- clas diametralmente opostas que tém no entanto em comum 0 carter impes- soal, a tipicidade das formas. E uma “simpatia puramente platOnica’: nesses objetos nascidos de uma tradieao secular ou de um inveterado empirismo ha ‘uma sorte de “beleza concreta, inconsciente” que pode ser igualmente alcan- ‘sada nos objetos que produzimos para a nossa existéncia cotidiana, ainda que PROJETO E DESTINO xa arte popular o “tipico” seja o produto de uma transmissao de experiéncias através das geracdes, ¢ na arte moderna seja, 20 contrério, o produto de um Procedimento ldgico, cientifico. No fundo, isso nao significa que o modo de vida da sociedade moderna esteja totalmente afastado do antigo, sedimenta- do empirismo. aqui que Breuer se afasta do utopismo, de certo modo cal nista, da Bauhaus. Fala-se de fungdes e de objetos ligados, aderentes a funcéo. Mas ¢ absurdo pensar que qualquer fungao humana se cumpra hoje pela pri- ‘meira vez, ese cumpra segundo um célculo matemético exato; e ¢ igualmente absurdo pensar que nenhuma nocdo de objetos ainda esteja ligada a ideia da- quela funcao. Nenhum objeto pode ser criado do nada, sobre as puras indica- goes de um “probléme bien pose”, como afirmava Le Corbusier; e nenhum pro- blema pode ser “bien posé” quando, para colocé-lo, se parte de zero. Tal como nao gosta de fazer filosofia ou ciéncia, Breuer também néo gosta de fazer tec- nologia: para ele (¢ declara-o) a missdo do arquiteto e do designer consiste es- sencialmente em “civilizar a tecnologia’, vale dizer, em melhorar um dado ti- Po de objeto melhorando o processo mediante o qual ele é produzido. Mas também é preciso que um tipo seja dado na partida: este é 0 verdadeiro mate- rial com que trabalho desigier. E todavia seria tolo supor que esse tipo seja © tltimo que foi produzido e que todo o trabalho do artista se reduza a corri- gir algumas imperfeigoes e a produzir um objeto melhor, talvez apenas por razbes de concorréncia. Neste caso, realmente, a arte seria apenas uma ques- to de tecnologia, ea industria tomaria sem mais 0 comando de toda a pro- ducdo de arte. Esse “tipo” nao deve ser buscado nos catalogos das fabricas, mas na mente das pessoas: trata-se de estender o inventdrio das nocdes comuns, de verificar 4quais sio as idéias mais radicadas na forma da casa, da cadeira, da mesa ou do armério e, depois, de trabalhar criticamente sobre esse dado até que uma no- vva forma se delincie, que possa substituir vantajosamente a nogdo comum. E assim se explica o apelo de Breuer nao jé a uma teoria cientifica do espaco ou @ uma mecanizacio l6gica da fun¢io, mas psicologia, a efetiva condicio men- tal que determina e orienta, e também diferencia, a funcao. Toda atividade ‘que visasse a prescrever os tempos ¢ os modos dessa funcao, ainda que em no- me de uma légica indiscutivel, constituiria no fundo uma viola¢ao da liber- dade que cada um tem de organizar a propria cxisténcia: e desta liberdade Breuer sem diivida € mais zeloso do que o iluminista, 0 racionalista Gropius. Desde o principio, Breuer escolhe como campo especifico 0 mobilirio: mas nenhum interesse pela decoracao o excita. Seu ponto de vista 6, rigorosa- CIULIO CARLO ARGAN mente, um ponto de vista de arquiteto: mas, na série vastissima da tipologia arquitetdnica, interessam-Ihe especialmente aqueles tipos que esto mais di- retamente em contato com a pessoa humana. Que os méveis de Breuer sio, propriamente, arquitetura, ninguém jamais poderia contestar; alids, pela primeira vez o mével é pensado como uma ar- ‘quitetura auténoma e nao deduzida. E uma arquitetura préxima, familiar, que adere como um habito ¢ se pode deslocar, decompor ¢ recompor segundo nos- so talento. O tema predileto, na série tipologica da mobilia, é a cadeira, que tem bem pouco a ver com a arquitetura da casa, mas realiza um nosso ideal secreto de comfort é apéndice ou complemento antes do corpo humano do que do ambiente arquitetOnico. Breuer nao se propde totalmente por 0 mével em relago com a arquitetura da casa porque isso impediria ou falsearia a re- lacio, bem mais interessante, entre o mével e a pessoa humana. Por isso Breuer se abstém também de formular uma teoria do mobilirio: ‘com intengo mais sutil, volta-se a busca de uma psicologia ou, se se quiser, de uma literatura ou uma poética do mobilirio. O que Breuer compreendeu melhor que os outros é que nossa relacdo com 0s objetos nao é apenas a rela- do univoca e mecanica da fungo, mas uma relagdo miltipla e complicada, a ponto de poder ser definida sem temor como psicol6gica ¢ social. Para sermos mais precisos, a contribuigdo de Breuer ao desenvolvimento do industrial design nao esta tanto em ter promovido ¢ determinado um pro- gresso técnico e formal, mas em ter esclarecido em que extensissima rede de relagdes se exprime o valor que tém, na existéncia humana, os objetos que constituem seu ambiente imediato. Certamente o conceito mesmo de indus- trial design implica o reconhecimento de um significado mitico do objeto, a convicgio da necessidade de entrelacar aos momentos sucessivos da funcio momentos de contemplagao, de pausa; e certamente a percepgdo fragmenti- ria ou de esguelha, propria daquele que age, é de natureza estética do mesmo ‘modo que a percepgio global ou frontal, propria daquele que se detém e con- templa. E nao hé razao para duvidar que o homem “em ago” nao objetive 0 proprio ser na natureza ou naquela sua configuragdo intelectual que se cha- ma o espaco. Toda a histéria figurativa ¢ grande parte da historia econdmica dos iitimos cingiienta anos esto cheias dessa mitologia do objeto que é sem duivida um produto do pragmatismo ¢ do ativismo que caracterizam a nossa época, mas € também compensagao ¢ evasao, defesa esponténea contra um mecanicismo cuja aceleragdo crescente acabaria por destruir-nos, subordi- nando-nos a maquina. A anilise do significado mitico do objeto é em Breuer ‘PROJETO E DESTINO ‘muito acurada: em cada um de seus méveis, embora de uma linha constante- mente sdbria, correta, elegante, é fécil retracar 0 “personagem” e identificar- Ihe 0 comportamento. Se tivéssemos 0 gosto pelo paradoxo, poderiamos di- zer que a sua arquitetura é retratista. A primeira cadeira desenhada por Breuer, em 1921, é, aparentemente, a ‘mais comum das cadeiras. Sente-se nela a orientagao expressionista ¢ tenden- cialmente populista impressa por Johannes Itten a Bauhaus de Weimar; 0 ape- Jo moralista ao artesanato, a simplicidade de seus procedimentos operativos, ao seu gosto sincero pelas matérias naturais ¢ pelas formas s6lidas, praticas, simples. Mas Breuer nao se ocupa do aspecto ideol6gico da questao: aceita 0 esquema tradicional da cadeira porque é o que corresponde a uma nogdo que nao ha por que contestar. Mas, apés té-lo aceitado, elabora-o: reestuda sua es- trutura, analisa ¢ registra as relagdes proporcionais entre as partes, passa-o por assim dizer a limpo. Entende-se que esta busca de simplificagao é condu- zida em vista da determinagdo de um standard, da produgio em sér bom aluno da Bauhaus, propde-se encontrar um juncao, estabelecer as passa- gens de uma evolucao natural das formas do artesanato as da industria, Re- flete que os processos artesanais correntes sio demasiado complicados para poderem ser transferidos & maquina, cuja poténcia no campo quantitativo é tanto grande quanto é escassa no campo qualitativo; e por isso simplifica 0 corte dos perfis, como se tivessem de ser talhados com um rudimentar traba~ lho de machado e formio, ¢ reduz os encaixes para limitar 0 trabalho de mon- tagem. E note-se: este pensamento de que a méquina, por mais aperfeicoada, permanece ainda algo de ristico, um aparelho ao qual o trabalho deve ser pro- posto nos termos mais elementares, permanecer constante em toda a obra de Breuer; ¢ a ele se contrapde uma altissima apreciagao da mente idealizado- ra ou do “desenho’; cuja principal virtude e cuja sutileza suprema consistem justamente em saber simplificar, descarnar a forma sem todavia sactificar na- da da sua qualidade formal De fato, ele se compraz em sublinhar o contraste entre a simplicidade, di- ria até a banalidade do esquema, ¢ 0 requinte quase secreto da forma. O sofa de tecido colorido, ligeiramente inclinado para a frente, é sentido como uma superficie de asa, que “toma” espago abaixo e acima, com aquele minimo des- lizamento que basta para justificar o leve, contido arqueamento do dorso; é ‘um convite discreto a um apoio mais comodo, a um minimo, imperceptivel relaxamento da posigdo ereta, em perpendicular. E um garboso jogo de con- trastes: ao corte sumério das pecas faz contraste a limpida nitidez das superfi- como Fy GIULIO CARLO ARGAN cies, ao esquadro rigido da armacao de metal o nitido perfilamento dos rele- vos, que enfatiza a delicadeza das junturas; no tecido, os motivos ornamentals dos tecidos populares hiingaros sio geometrizados segundo um gosto “culto” {que ja trai o conhecimento dos elaboradissimos formalismos neoplasticos. Que o motivo artesanal e popularesco é uma espécie de travestimento, néo desprovido de complacéncias literérias, esté provado por aquela complicada, artificiosa cadeira que, nao sem ironia, o proprio artista batizou “africana”, mas que, olhando-se bem, esté longe de ser uma brincadeira. Pode até tratar- se de uma sitira, de uma divertida alusao ao vago desejo de evasdo que se ocul- ta sob 0 tédio dos salées mundanos, a mascarada que compensa preguiicosa ¢ amargamente a platitude da vida urbana, Mas enfim essa cadeira semi-séria, com sua mix6rdia curiosa de exdtico camponés e esnobista, esta a demons- trar como a busca de Breuer jé se havia direcionado para uma psicologia, € nao decerto para uma teoria, do mévels ¢ explica, por contraste, a precoce di- vergéncia de Breuer daquela que, na hist6ria da Bauhaus de Weimar, poderia- ‘mos chamar a “linha Itten”. Tendo alcancado, por gosto ou por polémica, se- melhante excesso, nao havia outra escapatéria senao passar & margem oposta ce enfrentar o estudo de uma tematica ostensivamente, polemicamente, “civil” Sobre essa fase da formacio artistica de Breuer exerceu uma decisiva in- fluéncia a poética neoplistica. Theo van Doesburg havia chegado a Weimar, em 1921, com Mondrian e Rietveld, atraido pelo excitante programa ¢ pela evidente vitalidade da escola criada por Gropius: nenhum terreno podia ser mais propicio a experimentacao e & difusdo das novas teses formais. Mas, co- mo se sabe, as coisas nao foram tao suaves: um agudo conffito logo se del neou entre Doesburg e Gropius. No interior mesmo da Bauhaus houve uma séria ameaca de cisma; e foi grande mérito de Gropius ter conseguido, sem atenuar 0 impulso progressista da escola, fazer frente a um ataque que, par- tindo da mais avancada formacio artistica do momento, era de longe mais, perigoso que as continuas moléstias dos ambientes conservadores de Weimar. Hoje, os termos dessa polémica ficaram suficientemente claros: ela nao inci- dia tanto sobre a questo formal quanto sobre o problema maior da funcio social, econémica, didatica da arte. Gropius reconhecia que as propostas for- mais do grupo De Stijl eram, naquele momento, as mais lécidas, razoéveis cficazes; mas ele queria fazer da Bauhaus 0 elo entre a atividade artistica ea producio industrial, o centro de uma grande obra de reforma social, ¢ nao queria sob nenhuma hipotese ligé-la a um dogma estlistico, como era o pre- gado por Doesburg. A sua hicida teoria formal estava disposto a conceder 0 PROJETO EDESTINO mais amplo direito de cidadania nas classes da Bauhaus, mas nao queria que aquele “estilo”, para o qual no entanto se sentia até pessoalmente atraido, se tornasse o estilo oficial da escola. Gropius percebeu o perigoso equivoco en- tre racionalidade e génio, entre estilo artistico e estilo de vida, que se ocultava nas teorias de Doesburg, e nao quis que o vasto programa de reforma social da escola se ligasse unilateralmente aquele que, enfim, podia ser apenas um momento, ainda que o momento mais atual, do gosto. Embora 0 conilito dos dois Iideres tena sido atentamente estudado, nin- guém, que eu saiba, levou em conta aquele que foi, no momento, o compor- tamento da estudantada, que no seu conjunto, soube bastante bem distinguir centre o interesse das hicidas teses formais neoplésticas e a necessidade de uma reforma, que devia ser nao apenas formalista, mas metodol6gica. © pequeno grupo dos hiingaros, por exemplo, entre os quais Breuer devia ter uma posi- ‘clo emergente, oi dos primeiros @ apreender toda a importéncia daquelas no- vas teorias formais; mas foi também o que pareceu dar-se conta mais clara- mente de que o problema central continuava sendo ainda o da mediagao ou da passagem dos processos produtivos do artesanato para os da industria. ‘A posicao de Breuer em relagio & temética formal de De Stijl fica clara nu- ‘ma cadeira de braco desenhada em 1922, onde a estruturalidade entre frobe- liana e maquinista do modelo neoplistico fica sutilmente em surdina e no sem uma ponta de argiicia. Logo de sada, este novo “personagem” de Breuer tem o gosto pelo paradoxo. O assento, que deve suportar todo 0 peso da pes- soa, nao é mais do que uma lona em tenso; 0s bragos ficam suspensos no va- zio ¢ assim também o encosto. Le Corbusier provavelmente teria visto, nessa cadeira, uma perfeita “maquina para sentar”; e nao teria ainda colhido a suti- lissima veia de humorismo, a subentendida argticia dessa evocacio, nas linhas modernissimas, do modelo bonachao da poltrona do vov6, dessa ostentagao de uma estrutura maquinosa e complicada para depois deixé-la deliberada- ‘mente inconclusa, desse acurado aperfeicoamento de um mecanismo que pa rece dever funcionar a doida e no entanto, como contradigao tiltima, funcio- naa maravilha.& fécil demais limitar-se a dizer que um mével como esse nasce da remocao de uma série de preconceitos, da dbvia constatagao de que uma cadeira nao é 0 complemento da casa ou do quarto, mas da pessoa que vai sentar-se nela. Breuer nao s¢ limitou totalmente a isolar no espaco 0 molde de um corpo em repouso ¢ depois a construir por baixo e em torno dele um sistema de apoios correspondentes aos pontos de maior incidéncia do peso. Levou em considera¢do, conjuntamente, o corpo em repouso (que natural- 23 GGIUUO CARLO ARGAN mente ndo é a mesma coisa que um corpo imével) ¢ a forma tradicional da cadeira: observou que nesta tiltima os pontos de apoio nao correspondem exa- tamente aos pontos de incidéncia do peso e estudou por isso toda uma série de deslocamentos: recuot o plano do encosto em relagao 20 das pernas pos- teriores, identificou o ponto mais justo para o apoio da nuca e dos rins, criow todo um sistema de juntas externas ou periféricas para tornar menos rigido 0 mecanismo de suspensao, previu na elasticidade da estrutura os movimentos naturais da pessoa sentada. Obteve assim um objeto deliberadamente incon- cluso, que acusa a auséncia ¢ parece reclamar a presenga da pessoa humana: 86 quando alguém se sentar ¢ puser em movimento o sistema de forgas do ob- jeto ele podera realmente ser considerado completo. Mais tarde, Breuer escre~ verd que um bom arquiteto s6 faz uma metade do mobilidrio; a outra metade seté feita pelo dono da casa. Melhor ainda se poderia dizer que a outra meta- de é constituida, de fato, pelas pessoas que se servem daquele mével. Tem-se falado da importancia do neoplasticismo, da posicdo de Breuer no conflito entre Doesburg e Gropius. Hé no entanto um conflito paralelo, e até mais pro- fundo, embora ndo tenha originado nenhuma polémica, e é 0 conflito entre a visio de Mondrian e a visio de Klee. Quando se fala do esquematismo racio- nalista da Bauhaus se esquece que, tanto na escola de Weimar quanto na de Dessau, Klee nunca teve uma posigdo apartada e periférica: nao foi um hés- pede forasteiro, mas um dos maiores criadores do método didtico da escola, Assua aspiracio foi justamente transformar a sua singularissima e profunda experiéncia interior numa didatica, a sua poesia num método poético. Diante de Mondrian, entdo, a sua posigao é clarissima: a visio espacial de Mondrian € puramente quantitativa, a visao espacial de Klee é puramente qualitativa Mondrian elimina categoricamente o objeto, reduz a representacio a espacia- lidade pura, a mera extensio, a verdade simples e absolutamente chapada que se da, inteiramente e de um s6 golpe, na percepcao visual. Klee, opostamente, climina a espacialidade e reduz o espaco mesmo ao objeto, 2 um complicado objeto com sua remotissima hist6ria, ¢ 0 imerge numa profunda “temporali- dade” que o enriquece com mil significados simultaneos e contradit6rios, re- vela-o na sua miiltipla realidade, que nao pode ter extenséo nem corpo, mas apenas profundidade. Klee esta pronto a aceitar plenamente o grande progra- ‘ma da escola: salvar a qualidade na quantidade, o fato estético no fato econd- ‘mico, 0 individuo na massa. Mas talvez seja 0 tinico a se perguntar o que é enfim, esta qualidade que se quer a todo custo salvar. Gastou toda a vida para responder conscienciosamente a esta pergunta, para definir o que se devia en- PROJETO E DESTINO tender (¢ ndo em abstrato mas naquela particular condigdo histérica do mun- do) por valor de qualidade. Era bastante fécil dizer que salvar a qualidade na qualidade era um modo de salvar o valor do individuo no ambito unitério da sociedade; mas a grandeza de Klee foi ter intuido que esse problema no po- dia configurar-se de outro modo sendo em termos morais. Sem tantos discur~ 0s, com 0 empenho ¢ a coeréncia admiraveis da sua obra de artista e de mes- tre, soube transformar o drido culto da racionalidade ou do sistema no culto da consciéncia, entendida na sua absoluta integridade, e reconduzir a prime’ ro plano o valor da experiéncia vivida, que a racionalidade tendia sempre a postecipar e condicionat. ‘Ora, se entre os alunos da Bauhaus houve algum que compreendeu que a posigio de Klee ndo era nem abstrata nem evasiva, mas antes a mais engaja- da,a mais proxima da solugao integral dos problemas que estavam na boca de todos, este foi Breuer. Na origem de seu gosto pelas formas “vernaculas” ha justamente a civilizagao altissima, de quintesséncia, de Klee, a relacéo com a qual ela é demonstrada pelos desenhos figurados que Breuer fez durante os anos da Bauhaus; ¢ provam-no ainda melhor os méveis projetados para a ex- perimental “Haus am Horn” em Weimar (1923). Mas note-se: 0 que faz real- gar essa influéncia de Klee é justamente o esquema neoplistico da estrutura. Parece que Breuer, apés ter-se apoderado do novo modelo espacial proposto por Mondrian, quis verificar sua validade traduzindo-o na estruturalidade cfetiva, na estética do mével, e que justamente entdo se deu conta de que a hi- potese nao resistia a verificacio e que, para reencontrar 0 espaco, era preciso de todo modo repassar através do objeto. Aquele rigido médulo espacial de fato nao se pode reconduzir nem a cur- va terminal da cama nem a aproximagio dos dois espelhos, um redondo e ou- tro oval, da penteadcira. Naturalmente, essas formas tém sua razao pratica: a curva da cabeceira da cama reduz seu atravancamento, elimina a ameaga de pancadas agudas para quem se mover no ambiente exiguo. Mas também é fé cil descobrir nessas razdes praticas, ditadas pelo bom senso mais que pelo cal- culo, o pano de fundo psicolégico: por exemplo, o desejo de que os objetos entre os quais vivemos apresentem um aspecto benévolo ¢ propicio, nos déem ‘uma sensagao de intimidade e de seguranca. E dessas se pode passar a outras razdes mais complexas: 0 arquiteto tem de separar seus méveis da arquitetu- ra, respeitar a sua singularidade ou autonomia de objetos. Assim se passa, pa- ra cada um deles, raiz, a0 étimo. Certamente, a estrutura da cama € enxuta, a sua feitura é artesanal, mas por essa via o artista recupera o sentido original 295 GIUUO CARLO ARGAN da coisa, no caso especifico uma obliterada ligagdo entre a forma da cama ea forma do bergo ristico. Se nas formas da estilistica neoplistica hd, ¢ certamente ha, um intento pe- dagégico, é Breuer quem melhor que os outros 0 apreende e o sublinha com uma ponta de argiicia; porque, enfim, aquele ideal pedagégico é muito belo ‘mas ingénuo, ¢ ndo se pode pensar em reduzir toda a sociedade a um asilo modelo, a uma escola Montessori. A penteadeira é uma interpretagao aguda ‘mas ligeiramente céustica e tendenciosa da proposicao fundamental da tema tica neoplistica, a proporcionalidade assimeétrica: de fato, a assimetria ¢ franca- mente exagerada, como ostentoso é 0 contraste entre a fragilissima estrutura da penteadeira e 0 alto volume esquadrado do armario conexo, como indubi- tavelmente caricatural éa aproximagao do espelho redondo e do oval, do gordo edo magro. Note-se que o mével é estudado em relacdo com as precisas ne- cessidades da funcao: a mesma mesinha corredica serve de tampo para a pen- teadeira e de tampa para a gaveta, descobrindo um quando alguém se serve do outros o espelho oval é fixo ¢ 0 outro é montado num braso dobravel, de modo a permitir simultaneamente uma visio frontal e uma lateral. Mas jus- tamente: a meticulosa determinagao funcional destréi o mével como massa ou volume ¢ 0 reconstréi como tragado, como objetivagao da funco; e uma vex. que essa objetivacao nao pode ser apenas mecanica ou instrumental, ela deve desenvolver-se narrativamente, complicar-se com reflexdes, digressdes, comentarios. Os dois espelhos, incontestavelmente, so cortados & medida da pessoa humana, um reflete o busto, o outro apenas o rosto; mas observe-se ‘como essa justeza de corte serve também para retalhar a figura, para isoli-la do ambiente, implicé-la toda nessa moldura tenue e assimétrica do mével; sio formas precisas mas vazias, que aguardam para serem preenchidas pela ima- gem humana, Entdo o mével deixaré de ser apenas um objeto, tornar-se-4 0 elemento de um décor, assumiré uma parte importante na vivencia cotidiana. Justamente em ter recuperado a caracterizasio do mével esté a novidade da posicéo de Breuer em relagéo ao standard, elevado mas indiferenciado, do primeiro racionalismo. Nao que Breuer se esquive do standard: busca-o. Mas para cle o standard é antes um maior grau de qualidade social do que de qua- Iidade técnica; mais precisamente o standard técnico entra no standard social, porque a técnica é um carter especifico da sociedade que o envolve. Sendo ou nao um limite seu, o ideal humano de Breuer é 0 “profissional” moderno, que em todos 0s atos de um dia atarefado sabe deixar uma marca de licida distin- s#o, de inteligéncia, de gosto, do mesmo modo como nas suas horas de lazer PROJETO E DESTINO sabe desfrutar de um bom livro ou escolher um Picasso ou um Matisse para as paredes da sala de estar. O gosto pelas formas simples e talvez vagamente rurais, do mesmo modo que o gosto pelas formas funcionais ¢ tecnicamente perfeitas, é um cardter da sua personalidade realista, aberta, sem preconceitos; ‘mas ambos os gostos, mais do que momentos da poética do artista, sfo tragos do retrato que ele faz de uma sociedade, espelhando-a no seu ambiente. ‘Um modelo de cadeira para fabricagdo em série, de 1924, € um tipico exem- plo do mével de elite para uma elite social, que jé ndo faz seu prestigio con- sistir na opuléncia, mas na clareza e elegancia do modo, da forma. © esquema tradicional do objeto é de novo decomposto segundo os principios neoplisti- cos: a cada elemento estrutural corresponde um plano, articulado aos outros, por via de interseccdes, a estitica € exclusivamente confiada & computada jus- teza das proporcées. A estrutura se distingue do esquema tradicional somente pelo acentuado desenvolvimento em profundidade, pela largura do caixilho em relagdo ao assento, que ¢ apenas uma lona tensa entre os dois lados dele. A limpida distincdo dos planos, a sutileza acentuada das peas de madeira, a in- clinacdo do encosto, a evidéncia e a fineza das juntas anunciam ja a tensio, 0 jogo vivo de forcas dos méveis metélicos, a grande “invengio” de Breuer, que corresponde exatamente & passagem da primeira fase da Bauhaus, de Weimar, a segunda, de Dessau, Conta Blake que em 1925 Breuer comprou uma bicicleta Adler, que natu- ralmente tinha o guidao de aco cromado, Enquanto aprendia a pedalas, 0 nos- 50 arquiteto “intuiu que aquele tipo de ago em tubo podia ser dobrado com curvas continuas para formar o caixilho portante de cadeiras e mesas” Falow disso com um dos diretores da fabrica Adler, mas Ihe foi respondido que nin- guém jamais permitiria que se enfiassem em sua casa méveis de aco croma- do. Breuer perseverou na sua idéia e em meados de 1925 a primeira cadeira de tubo metélico vinha a luz. © argumento tecnolégico nao ¢ suficiente para explicar a invencéo. Para 0 aluno ¢ amigo de Klee a possibilidade de desenhar ou, melhor, de hipotetizar no espago um objeto que comecasse a existir com o signo mesmo que o traga no papel, ¢ conservasse desse signo a leveza ¢a elasticidade, devia parecer bas- tante mais atraente do que a exploragao técnica de um novo material. A pri- meira cadeira metalica de Breuer surge, a trinta anos de distancia, como uma invencao romantica, 8 qual parece ter presidido o génio sutil de Klee. Recor- demos a sua complicada teoria do movimento continuo de forgas invisiveis agindo no espaco, da continua passagem delas, mudando de sinal, de uma fa- GGIULIO CARLO ARGAN seativa a uma fase passiva, de momentos de queda a momentos de ascensio através dos pontos mortos ou de inércia: um movimento, portanto, que difi- cilmente se poderia isolar ou localizar numa figuracdo, e espontaneamente tende a uma configuracdo abstrata, mas que tanto melhor se imagina agindo —adiferenca da metafisica de Kandinsky — no espaco indistinto e mutavel do viver cotidiano, misturando-se como uma insuprimfvel presenga césmica aos humildes objetos que formam o ambiente habitual do homem, e dando- Thes um significado miiltiplo, polivalente, um sentido vagamente mitico. Ora, o problema de Breuer era apenas fletir um tubo metalico; mas essa flexao de- via ainda obedecer 2 uma lei secreta, concretizar-se numa designagio que no cessa de ser espacial pelo fato de fazer apelo antes a sensibilidade tatil do que a sensibilidade visual. Tratava-se sobretudo de tracar um sistema de forcas contrapostas, de peso e de impulso, sem jamais interromper a continuidade de um desenvolvimento; de mudar sinal e direcdo sem abrir cesuras, de dese har com 0 metal sem jamais afastar a mao da folha de papel ou, antes, sem jamais sair daquele espaco invisivel no qual nenhum objeto parece poder si- tuar-se se no atingir a imaterialidade da linha e do plano. Assim esta cadeira acampa no espago com a larga abertura dos elementos de apoio: mas estes ser vem sobretudo para sugerit a levera e a elasticidade da sustentagio, para dar molejo a cadeira. S40 como as longas pernas delicadas e articuladas de um in- seto: neutralizam 0 peso com um jogo de alavanca, liberam ou suspendem, mais do que sustentam, o corpo. Certamente, nesta estrutura ainda ¢ evidente a duplicidade do sistema de suspensao ¢ do sistema de apoio; mas os planos ‘obliquos jogam livremente dentro da gaiola aérea da moldura de sustentacdo, 4 qual os prendem juntas extremamente delicadas, meros pontos de encon- tro. De resto, a propria moldura de sustentago vem fazer parte do sistema de suspensdo com as curvas dos bracos, ¢ sio exatamente elas que formam os “pontos criticos” do sistema, porque retinem uma queda e uma subida da cor- rente de fora, medeiam a passagem de uma fase negativa a uma positiva, tra~ fveis tensdes que Klee sentia continuamente presentes e agentes no espaco. Assento, encosto e bracos sio simples faixas de tecido: planos elésticos ou de tragdo que transmitem o peso ao sistema linear dos tubos. Quando uma pessoa vier habitar este “sitio” espacial, parecerd co- ‘mo que suspensa, quase que enredada num material entrelacado de fios em tensdo: os planos do encosto, do assento e dos bragos desaparecerao, o meio elistico cederd e reagird ao peso e ao movimento com uma animagio vital de todas as suas linhas. A comparacdo com uma cadeira metilica de Le Corbu- duzem vi ‘elmente essas inv 298 PROJETO E DESTINO sier, de 1929, explica muitas coisas: esta cadeira ainda é uma transposic2o em metal da estrutura lignea, ainda é concebida por elementos distintos e con- juntos, toda a sua novidade esta no aproveitamento verificado da maior clas- ticidade e resisténcia do tubo de ago em comparagdo com a madeira. Le Cor- busier se serviu do tubo metélico como de um material de construcdo, Breuer viu nele um meio para desenhar, aliés para traduzir imediatamente em reali- dade a imagem desenhada. Por isso nao computa objetivamente, mecanica- mente as forcas, mas as intui em ato, por uma espécie de Einfithlung; nao ten- ta estabelecer quanto de espaco se deva atribuir ao mével para que possa cumprir sua fungdo de sustentagdo, mas tenta determinar as forcas nascentes dos movimentos de uma pessoa sentada. Esclarece-se assim qual é, desde aquele momento, a atitude de Breuer em relagao 20 problema do espaso, que ocupava entdo todos 0s arquitetos mo- dernos. Nao contesta que o espaco seja algo de real, mas contesta que ele cons- titua um problema. Vivemos no espago como estamos imersos no ar; pode- ‘mos nos mover no espago sem nos preocuparmos com sua estrutura, tal como podemos respirar sem nos preocuparmos com a composicao quimica do ar. Allids, sabe-se que as fun¢Oes fisiolégicas se cumprem tanto melhor quanto ‘menos se busca controlé-las; quando muito, tal como nos preocupamos em respirar ar puro, podemos nos preocupar em habitar um espaco claro, orde- nado, nao polutdo. O interesse cognoscitivo, que aflora continuamente através da polémica social de Gropius, nao tem mais influéncia sobre Breuer. Para ele, nao se pode dar um espaco a priori, que condicione a funcao, tal como nao se pode dar uma funcdo a priori, que constitua e manifeste o espaco segundo uma suces- sdo preordenada de atos. Naturalmente, é sempre a fungao que estabelece a relacdo entre as pessoas ¢ seu ambiente; mas o ambiente é coisa bem diferente do espaco, é composto de varias pessoas, de infinitas coisas bem distintas en- tre si, ainda que em continua e complexa relagio. Cada coisa, a rigor, resulta de um conjunto de relagdes, ea forma da coisa é sempre forma de uma rela~ ‘do. Portanto, a coisa nao esta no espaco, mas o espago, ou melhor o ambien- te, passa na coisa, se medeia através da coisa; a funcdo do design & definir a es- pacialidade interna, a relacionalidade da coisa. © objeto encontra assim a autonomia que o puro racionalismo arquitet6- nico lhe negava, reduzindo-o ao espaco. Mas, jé que o objeto é sempre rela~ «do, é também sintese de varias funsOes. Desde as primeiras cadeiras de Breuer observamos que havia distingdo entre um sistema de apoio, que se limita a 239 GSIULO CARLO ARGAN neutralizar 0 peso, e um sistema portante, que acompanha os movimentos da pessoa reduzindo-os gradualmente & vertical, isto 6, mais esquematica es- trutura do primeiro sistema. E quase uma suspensio cardanica, que faz da ca- deira um instrumento sensibilissimo, que permite uma série muito ampla de movimentos mas 0s reduz todos a uma tinica condicao de equilibrio, Quanto mais 0 mével perde consisténcia, como justamente ocorre nesses tipos de tubo metalico, tanto mais se precisa a sua funcéo de mera mediacio: doravante o mével nao mais pode ser pensado separadamente da pessoa hu- mana, como outrora nao podia ser pensado separadamente da arquitetura. Um décor vide, aqui onde o décor € criado a cada vez pela presenga e pela acao humana, é um absurdo. Mas, observe-se, renegando-se 0 mobilidrio estatico ‘ou monumental, renega-se também 0 mobilidrio dinamico, que finge 0 mo- vimento ou 0 impoe. Entao surgem outras preocupacdes. Antes de tudo, 0 mével ndo deve impor-nos a sua presenga, nao deve subtrair-nos nada do nos- s0 espaco; deve apenas “colocar-nos’, ajudar-nos a viver e respirar num deter- ‘minado ambiente. Quando o objeto nao serve mais, deve recolher-se, desapa- recer: ndo pode permanecer ali, vazio e inerte, como um pedestal ou um nicho depois de removida a esttua. As novas cadeiras metilicas também tém esta virtude: nao apenas ndo “ocupam” espaco, mas podem sobrepor-se, empi- Ihar-se, encolher-se ou, ao menos, tornar-se anénimas, quase invisiveis. E uma qualidade prética, mas também uma necessidade psicol6gica: 0 objeto pode existir apenas na fungio. Quando esses objetos s4o alinhados em série, como as cadeiras de um teatro, a constancia de suas formas nao nos faz pensar nas teorias de Gropius sobre a divisibilidade do espaco e a repetibilidade da for- ‘ma, mesmo se essa é certamente a sua origem: a uniformidade nos impede de perceber 0 objeto tinico, individualizé-lo. £ de novo um modo de fazer desa- parecer, de tornar invisivel a coisa na sua fase de inércia. E vird um dia — pre- coniza Breuer, divertido — em que os méveis serio totalmente invisiveis, ¢ os homens se sentardo em colunas de ar comprimido. ‘Mas como se conciliar com esta tendéncia a despersonalizar o objeto aque- la vontade de deixar-lhe toda a sua autonomia, de nao reduzi-lo a mero valor espacial? Aquilo que constitui o objetivo principal de Breuer nao é tanto o stan- dara formal quanto o “tipo” O perfodo de seus estudos sobre o mével metéli- co pode ser considerado como um perfodo de aprofundados estudos tipolégi- os. A gama dos tipos é das mais variadas. Alcancado que seja o “tipo”, toda a busca se reduz a uma progressiva simplificacao. Para indicar como a investi- gacdo de Breuer se voltou para um processo de simplificacao, mas nao de es- 300 PROJETO E DESTINO quematizagao, bastaria a variada escolha dos materiais integrativos, que so a cada vez associados aqueles méveis tipicos: ora € 0 tecido colorido, ora a ma- deira, ora a palha de Viena etc. E facil reconhecer no gosto desta escolha a ex- periéncia dos estudos sobre a qualidade das diversas textures que constituiam parte essencial dos programas da Bauhaus de Dessau; mas nao se pode deixar de observar que esses materiais, mesmo fazendo parte integrante do movel, vvisam sobretudo a mediar a relacdo entre estrutura ¢ pessoa, a corrigir 0 que de demasiado enxuto podia haver na estrutura metdlica, a transformar a mol- dura linear em algo de vivo, a impedir que do purfssimo linearismo das estru- turas nascesse no mais um ambiente, mas uma nova geometria espacial. Assim esse processo de simplificagao leva muito mais além da mera instrumentali- dade: leva a reencontrar, nao apenas uma autonomia, mas uma vitalidade in- terna do objeto, uma sua graa natural, animal até: como todos aqueles que possuem um método, Breuer pode se dar o Iuxo de rocar 0s limites do capri- cho, de jogar com o paradoxo, com as demonstragdes pelo absurdo. Em 1932 também Breuer deve se preparar para deixar a Alemanha, onde todo ato de inteligéncia, todo interesse vivo de cultura comegavam jé a ser considerados como crimes de lesa-patria. Viajou pela Itélia, Grécia, Espanha, pelo Marrocos; ¢ Blake sublinhou com razdo a importancia daquela aguda, aprofundada experiéncia das formas da arquitetura “vernécula” mediterra- nea. Em 1933, em Paris, ele obtém muito sucesso num concurso para méveis, de aluminio: pesquisas que desenvolveré pouco depois na Inglaterra, traba- Ihando para a [sokon. Apés ter experimentado todas as possibilidades de um ‘material resistente as méximas tensbes, como o tubo de aco, Breuer vai pouco a pouco se orientando para os materiais mais macios ¢ naturalmente flexiveis (o aluminio, a madeira) que permitem um desenvolvimento mais lento ¢ égil das forcas. £ evidente o seu interesse pelas experiéncias de Aalto com as ma- deiras flexiveis; mas nao esquece as pesquisas da Bauhaus sobre o desenvolvi- mento de uma espacialidade construtiva da superficie, Jé est convencido de que o problema da forca é muito mais um problema de forma do que de ma- téria: trata-se portanto de superar de uma vez por todas a questdo estrutural,, de desistir de obrigar as forgas a correr ao longo do fio continuo da linha, dos percursos preordenados de um encaixe. A faixa, a lamina, o perfilado tomam. ‘lugar do tubo; a variedade das larguras ¢ das espessuras se torna um elemen- to essencial na dosagem das forcas de resisténcia ¢ de tensdo; a maior compa- cidade do material permite saltos mais ousados, suspensées mais livres, incli- nagdes mais moduladas. Se o tubo implicava quase sempre o sistema fechado, am CGIULIO CARLO ARGAN a faixa ¢ a lamina favorecem a estrutura aberta: e neste sentido se desenvolve, até hoje, toda a pesquisa de Breuer. Com esse material mais macio e plistico, com essa estrutura mais aberta, com essas curvas mais lentas ¢ mais largas, também o cardter grafico do mével se transforma: nao é mais o sinal tracado com a ponta afiada de um lapis, mas o sinal denso e encorpado tracado por um pincel empapado de tinta. Os alcochoados, que antes se limitavam a cor- rigir aqui cali a secura ea frieza da estrutura de tubo metilico, adquirem ago- ra uma importincia cada vez maior: freqiientemente os elementos estruturais sio apenas o suporte das tenras massas plisticas e coloristicas das almofadas ¢ dos leves estofamentos de espuma. A partir de 1938 Breuer trabalha nos Estados Unidos: nos primeiros anos colabora estreitamente com Gropius, e a proximidade poe em maior relevo a diferente reacao de cada artista & experiéncia americana, Para Breuer, ela é ab- solutamente positiva. Gropius tinha um programa de reforma social, Breuer interesses predominantemente estilisticos e técnicos: todavia, até aquele mo- ‘mento, a obra de ambos estava voltada para a classe média, cujos problemas, na Europa, e sobretudo na Alemanha do pés-guerra, eram inegavelmente sé~ rios, Na América, em contrapartida, se acham diante de uma burguesia rica, bastante progressista, discretamente livre de preconceitos de gosto, natural- mente levada a apreciar todas as novidades no campo da producao. A ausén- cia ou a menor evidéncia de um problema social imediato incita Gropius a ever ¢ a ampliar os termos da stua metodologia e da sua didatica: praticamen- te,0 seu esforco visa a colocar e resolver todos os problemas do design em ter- mos urbanisticos, de planning. Breuer, por seu lado, esté contentissimo por nao ter mais de engajar a propria obra na transformagio de uma condigdo da sociedade, por ter somente de responder as solicitagoes precisas de uma clien- tcla. A sta investigacao seré, de agora em diante, uma investiga¢ao puramente formal; ¢ cada vez mais claramente tendera a demonstrar como 0 standard de~ ve ser antes formal do que técnico. As obras recentes, sejam edificios ou méveis, explicam por que se péde fa- lar, para Breuer, de “superacao do racionalismo arquitetonico”, de uma flexio ‘em sentido “orgénico’, de uma mensurada adesao a tematica naturalista de Wright. Na realidade, na nova tematica formal os ritmos dominantes remon- tam ainda a uma experiéncia figurativa européia, a plastica de Arp e a pintura de Mir6. O objeto doravante é pensado como unidade plastica integral, que se desenvolve livremente fora de toda estrutura espacial preordenada e acam- a com a seguranga, a prepoténcia do seu “cheio” num espaco que sua presen- 302 PROJETO E DESTINO a mesma basta para desbastar, para reduzir a “vazio’, (Por isso, acreditamos, esses objetos, aparentemente mais macigos e vistosos, resultam menos “estor- vantes” do que as molduras metélicas vazias; criam o vazio em torno de si com a forca da sua plastica e das suas cores; correspondem a progressiva elimina- fo de toda separacao entre espaco interno e externo; restituem, no ambien- te, a condicao ideal do plein-air.) Os planos que se fletem com natural elegin- ia, quase seguindo a tendéncia da matéria a estender-se ¢ dilatar-se no vazio, encontram assim um sentido concreto de superficie, insepardvel da plastici- dade e da cor, que sio as qualidades especificas da matéria; eo objeto nao mais aspira a inserir-se numa nossa preordenada concepeao do espaco, mas a ¢s- gotar toda problematica espacial na plenitude de uma sensacdo plastica ¢ co- lorista. Nem sequer por um momento, todavia, se coloca o problema daquele orginico crescer e desenvolver-se de um micleo plistico, daquele progressivo espacejar-se ¢ sublimar-se da matéria, que constituem 0 motivo fundamental da pottica de Wright. O fio logico que desenvolve a linha ¢ o plano na super ficie plastica e flexivel ainda tem a sua origem na didética da Bauhaus, com as suas pesquisas voltadas a desenvolver, topologicamente, a partir das premissas geométricas da linha e do plano, um efetivo movimento de superficies, uma efetiva espacialidade, uma construgao. De modo que parece perfeitamente coerente a reviravolta essencial na concepgao mesma do design, que antes pos- tulava o objeto como abstracao grafica, ou reproducio exata da nua lineari- dade do desenho, ao passo que agora postula a concep¢ao como intuicao in- tegral do objeto, na sua plena e miltipla desfrutabilidade, mas também na sua concreta realidade plastica e colorista. Os dois tempos da concepeéo, a invengio ¢ a projetacdo, que o construti- vismo da Bauhaus tendia a aproximar, mas mantinha ainda distintos ¢ suces- sivos, identificam-se totalmente nesta nova concep¢ao da idéia-objeto; mas {cil entender como a superacdo daquele dualismo implica a superagao do ou- tro e bem mais grave dualismo entre um espago conceitual ou geométrico € ‘um espaco natural ou empfrico. O que Breuer claramente intuiu € que essa superago nao pode ser entendida unilateralmente, como dristica eliminaga0 de todo conceito de espago e abandono ao empirismo da sensagao, quase ele- vada a categoria de conceito; mas, a0 contrario, como sintese de idéia e obje- to, assungao da idéia como fendmeno, invencao. A “racionalidade’, que cons- tituia 0 credo ideol6gico da Bauhaus, nao é renegada nem repudiada; é apenas gentilmente removida do céu das grandes ideologias, das utopias, dos mitos. ‘Nao é mais norma do comportamento humano, jé que é bem claro que o com- CULO CARLO ARGAN portamento humano, como tal, s6 pode ser racional; nem pode mais subsistir uma antitese de racional e irracional, de célculo e de invengao, porque toda inyencdo humana é sempre racional, e irracional é apenas 0 nao-inventar, 0 repetir. Explica-se assim por que Breuer fez da invencdo 0 carater e o objetivo essenciais do design, levando-se até a fazer do piiblico o seu colaborador dire- to, até a criar objetos que determinam, em quem os contemple ou os use, 0 prazer de reinventé-los ou recrié-los. Nao apenas cronologicamente Breuer € antes um construtor de méveis do que um construtor de casas: toda a sua arquitetura reflete essa experiéncia. E uma arquitetura feita de estruturas delicadas, de junturas meticulosamente estudadas, de encaixes perfeitos, de espacos calculados 20 milimetro: uma ar- quitetura na qual a busca qualitative predomina sempre sobre a busca quan- titativa, o interesse pelo objeto sobre o interesse pelo espaco, a preocupacio pelo bem-estar individual sobre o programa social. O edificio nunca é 0 ins- trumento mecanico, a imagem precisa de uma determinada funcio: a vida no é desempenho de uma fungao, mas uma sucessao de possibilidades; toda fangdo se desenvolve sempre através de uma sucessiva abertura de possibili- dades freqiientemente imprevistveis, portanto o ambiente no qual se vive de- ve ser um limite eldstico e imponderdvel, e mais que um limite um elo de li- gacdo, um meio de relacao, Também independentemente da coincidéncia cronol6gica com as pesquisas especificamente urbanisticas de Gropius, écom- preensivel que 0 elo de ligacao entre os méveis e as arquiteturas de Breuer se- ja um estudo urbanistico: a organizagao do trifego, decomposto em diversos niveis vidrios, na Potsdamer Platz de Berlim (1928). Os edificios so apenas 05 limites que circunscrevem um espa¢o animado pela sobreposicdo e inter seccdo das correntes de movimento, identificadas ¢ dirigidas segundo 0 mes- mo principio que canelizava as correntes de forga nas estruturas metalicas das cadeiras. Quanto a arquitetura, nesta data Breuer esta ao lado de Gropius no estudo sobre as casas altas, em fileiras largamente intervaladas. Mas nos pro- jetos para o bairro de Spandau-Haselhorst o interesse pela decantada estilisti- cade Mies van der Rohe é 20 menos tao vivo quanto o interesse pelo progra- sma social de Gropius: para citar um tinico tema, as escadas visiveis dentro dos grandes prismas envidracados resolvem, com uma dialética das mais sutis, 0 contraste entre a tese da arquitetura-espaco e a tese da arquitetura-objeto. projeto para o hospital de Elberfeld (1928) tem ja um tom original: uma construgio em terragos, uma sucesso de volumes ao longo de um plano inclinado, em relevo, sustentados por trés por altos pilares visiveis. Fica clara 300 PPROJETO E DESTINO a inspiracdo no mével, na prateleira; ea relagdo em escala do pequeno ao gran- de, Mas ha pelo menos dois fatos importantes: a liberagao do peso das mas- sas, obtida deslocando para fora os elementos de impulso; e 0 gosto com que é posto em evidencia o jogo mecénico desses elementos de tensdo. Estamos a ‘um passo do “maquinismo” precioso, ¢ em certo sentido ambiguo, dos cons- trutivistas russos. Também Gropius, de resto, nao era insensivel a essa poética revolucionéria, a esse lirismo da maquina-simbolo, que é como dizer da mé- quina inaitil. Decerto no ¢ por acaso que esse ideal de espiritualismo técnico encontra a sua expressio no teatro, ¢ num teatro projetado para uma cidade russa, Kharkov: o teatro é méquina cénica, instrumento que nao apenas refle- te mas provoca a fungao, Trata-se, na verdade, de uma fungio artificiosa, sim- bolica: mas jé os futuristas italianos, com Sant’Elia, tinham insinuado que a arquitetura devia criar o ambiente “artificial” para uma sociedade “artificial” No pensamento da sociedade “artificial” se baseiam os projetos de Gropius para o “teatro total” de Piscator e para o teatro de Kharkov: mas é preciso ter em mente que nenhum programa de reforma social é possivel se a sociedade for pensada como uma condigao “natural” em vez de como uma condi¢ao que os homens, a cada ver, determinam e modificam. Blake observou justamente que o projeto de Breuer para o teatro de Kharkov (1951) é influenciado pela poética maquinista de El Lissitzky, Tatlin, Ladowsky; mas € preciso acrescen- tar que Breuer parecia ignorar os pressupostos ideol6gicos dessa poética. Para cle, a maquina é apenas um mecanismo perfeitamente funcional, com sua es- tranha e incontestavel elegincia, seu ritmo nao natural ¢ infalivel. E fécil cons- tatar que a forma do edificio nasce de um estudo acurado, mais que da fun- «a0 objetiva, das correntes de movimento determinadas pela acdo cénica € pela circulacao do piblico: é de fato diferenciado em dois corpos articulados, sobre a plataforma rotatéria do palco, e as varias partes se desenvolvem em. niveis diversos, ao longo de planos transversais, inclinados, deslizantes. Al- guns elementos do mecanismo interno se prolongam ou se desenvolvem para © exterior: passarelas, escalas, terracos suspensos. Cabe pensar num motor, cujo ritmo pulsa intensamente dentro da protecao do invélucro, mas se trans- mite para o exterior por meio de bielas, de correias, de bragos de transmissio, “Mas, justamente, 0 acento cai sobre o invélucro, sobre as superficies que en- cerram o nticleo vivo e pulsante, separam-no do espaco externo, e todavia dei- xam transparecer algo desse movimento excitado e frenético. Sao, sem duivi- da, cesuras entre dois espasos; mas 0 que distingue esses dois espacos é a diferente intensidade de vibragao, o diferente potencial. Dentro, no teatro, 0 ‘GIUUO CARLO ARGAN ritino vital é intensificado, levado a0 diapasao mais alto pelo movimento ré- pido da acao (que, conformemente a teoria do “teatro total’, se estende a pla- tia e implica a participasdo direta dos espectadores); fora, hé uma atmosfera de espera e de distensdo, 0 movimento mais lento das pessoas que se prepa- ram para viver aquela experiéncia excitante do teatro ou que, acabando de té- la, se preparam para reentrar na dimensdo da normalidade. Entre um méxi- mo ¢ um minimo de experiéncia sens6ria, a forma do teatro representa um termo médio: ¢ ¢ isto que interessa o artista, muito mais do que a funcionali- dade interna ou mecénica do teatro ow o enquadramento dos seus volumes nna paisagem urbana. Também este “termo médio”, que é a caixa ou o invélu- cto do teatro, é aderente a uma fungio: mas trata-se, ese viu, de uma funca0 essencialmente psicolégica. Breuer, inventor de méveis, estudou a fundo o problema das forgas minimas, dos imponderaveis que podem produzir os mé- ximos efeitos: um movimento qualquer de uma pessoa sentada provoca, na arquitetura da cadeira, incitagoes ou destocamentos de equilibrio ao qual ne- nhum edificio jamais estar sujeito. Ora, projetando edificios, ele fica mais atento aos “imponderaveis” do que a previsivel mecanica da funclo, mais preo- cupado com as forcas internas, psicolégicas, do que com as forcas externas, fisicas, do movimento. E ume premissa importante. Quando se passa do teatro para a casa resi- dencial, o problema que se apresenta nao é mais apenas condicionar a articu- lagdo da planta & economia ou & praticidade de uma funcdo, mas estudar e de- finir a funcdo psicolégica da casa como ambiente da vida cotidiana. Nao se trata mais de estabelecer uma condicdo de necessidade, mesmo sendo a mais favordvel a uma existéncia ordenada e confortavel, mas de abrir as maximas possibilidades, de criar as condigdes psicolégicas mais propicias ao desenvol- vimento de uma existéncia civilizada. Coloca-se pois, a partir dese momen- to, uma questo especificamente estética: cada um aspira a viver numa bela casa e portanto a beleza é um aspecto da funcionalidade da casa. Mas é pre so acrescentar de imediato que a beleza nao é determinada pela perfeita fun- cionalidade, como nao é determinada por analogias naturalistas: como uma cadeira nao outra coisa sendo uma cadeira, uma casa é apenas uma casa e a sua forma atual ndo pode nascer sendo do desenvolvimento e da critica da no- gio de casa. O objetivo da articulacéo volumétrica da casa Harnischmacher é justamen- te este: realizar no interior do prisma a mesma abertura de espaco do exterior, substituir a tigidez do limite uma pura sugestao de limite. Por exemplo: nos PROJETO E DESTINO dois terracos, os pilares ndo coincidem com as arestas a fim de que estas se- jam simplesmente sugeridas pelo desenho dos planos em relevo e 0 volume inscrito nesses planos seja um volume de vazio; no corpo central, uma parede lisa e sem aberturas “vita” uma parede percorrida por duas vidragas conti- nuas, de modo que a aresta ndo separe mais duas paredes ortogonais, mas os dois aspectos opostos do prisma, como cheio e como vazio. Entao, exatamen- te como nos méveis, todo o interesse se concentra nas junturas: no caso espe- cifico, nas arestas e nos encaixes, sobre as linhas que assinalam 0 encontro ea divergéncia dos planos. Inuitil dizer que a colocagio sobre pilotis vem de Le Corbusier; mas aqui 0 objetivo é separar o edificio do plano de repouso, colo- cé-lo “em perspectiva’, cortar toda correlacao entre os cheios ¢ 0 terreno, en tte 0s vazios e a atmosfera. Assim se obtém a possibilidade de uma graduacao qualitativa ilimitada tanto dos cheios quanto dos vazios, ou, mais precisamen- te,as diferencas quantitativas (maior ou menor extensio das superficies em altura ¢ largura, maior ou menor abertura dos vazios) se transformam em di- ferencas qualitativas. Acombinaséo de materiais diferentes, de superficies diferentemente qua- lificadas, que tao freqtientemente é considerada como o primeiro fruto da ex- periéncia americana, remonta na verdade a temporada inglesa, como fica con- firmado também pelo edificio escolar construido por Gropius, com Maxwell Fry, em Impington. Mas 0 fato € que s6 teremos o pleno desenvolvimento des- sa investigagao nas obras surgidas nos Estados Unidos, a partir de 1938, da colaboracao dos dois artistas. Elas representam um momento muito importante daquela fase hist6rica da arquitetura moderna que vai sob 0 nome de “superagio do racionalismo”. A czise do racionalismo arquiteténico é, em grande parte, devida ao desmoro- namento das concepgdes democraticas, que constituiam sua sustenta¢io ideo Logica, sob a pressio de correntes reaciondrias. E mais que compreensivel que essa derrota no plano dos fatos determinasse, nos arquitetos mais meditativos, a critica do utopismo ¢ dos abstratos programas de reforma social; e é igual- ‘mente explicével que aqueles arquitetos, deixando a Alemanha pela Inglaterra ¢ pela América, onde nenhuma ameaca iminente rondava as instituicoes de- mocraticas, tenham sentido menos intensamente a necessidade de identificar © programa da arquitetura com um programa reformista ou revolucionério. O que precisa ser “superado”, portanto, nao é o racionalismo, mas sua rigida identificagao com o internacionalismo ideol6gico. O binémio arquitetura-de- mocracia é de Gropius como de Wright: mas para Gropius a democracia se GIUUO CARLO ARGAN identifica com a relacdo individuosociedade, para Wright se identifica com a relagao entre individuo e natureza. Numa situacdo de tenséo ideolégica, como aquela em que se encontrava Gropius quando teve de deixar a Alemanha, 0 contato com as democracias da Inglaterra ¢ dos Estados Unidos significa a re- cuperacio de uma fonte de pensamento democrético mais antiga ¢ genuina: de uma democracia entendida nao mais como a condigao ideal e dificilmente alcangével, mas como a condi¢ao original e natural da sociedade. A propria racionalidade deixa de ser um esquema rigido e imposto: nao é mais algo de “artificial” mas de profundamente natural; nao é mais um principio abstrato mas um modo de comportamento ou de experiéncia. E ndo mais se opée @ experiéncia dos mais auténticos impulsos criativos, mas os provoca; €0 impulso {que qualifica todo ato da vida dria como experiéncia positiva ou ato criativo, Para Breuer, como para Gropius, o problema do “americanismo” é coloca- do, portanto, com muita cautela. Jé na tese didatica da Bauhaus, voltada a con- ferir um cardter criativo & produgdo industrial, havia um traco de “america- nismo’, porque, para os intelectuais europeus do primeiro pés-guerra, a América aparecia como o pais do progresso industrial, da riqueza facil, das grandes metrépoles, dos arranha-céus. A experiéncia americana significa 0 fim da utopia americana: a América auténtica nao esta naquelas metrépoles, (que também Wright havia condenado, como a extrema e descomunal confi- gura¢ao da Sodoma européia), mas no campo. Estamos certosde que foi Brewer, mais do que Gropius, quem descobriu a frescura de um vernacular america- no, ndo menos auténtico do que a arquitetura espontanea mediterranea. E verdade que esse “verndculo’, Wright o descobrira quase cinquenta anos antes ¢ o interpretara com uma inspiragao poética quase whitmaniana. Mas agora Breuer descobre-Ihe a naturalidade, a racionalidade espontanea, sem formu- las, a atualidade, Ja se disse que toda tentativa de separar, nas obras construidas entre 1938 1941, a parte de Breuer da de Gropius s6 conseguiria fazer perder de vista o valor desse fato importantissimo que é a sua associagdo ea sua solidariedade criativa. O objetivo da investigacdo comum € a casa “civilizada” construida no campo ou nas vizinhangas das cidades: a casa para equeles que passam o dia fechados num escritério e necessitam, para reintegrar as forgas destruidas, imergir num ambiente “natural”, relaxante como uma banho quente. A rela- «do civilizacdo-natureza, que na Bauhaus era resolvida com toda a vantagem para o primeiro termo, é colocada agora, com dialética mais sutil, como um problema de equilibrio, de compensagao reciproca. Nas casas construidas por

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