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5 JUSTICA E CAPACIDADE ABASE INFORMACIONAL DA JUSTICA Qualquer jufzo avaliatério depende da verdade de alguma infor- magao e é independente da verdade ou falsidade de outras. A “base informacional de um jufzo” identifica a informagao da qual 0 jufzo € diretamente dependente e — de forma nfo menos importante — afirma que a verdade ou falsidade de qualquer outro tipo de informagao nao pode influenciar diretamente a correo do jufzo. A base informacional de jufzos de justica especifica, desse modo, as varidveis que esto diretamente envolvidas na avaliagdo da jus- tiga de sistemas alternativos de ordenamentos (sendo o papel de outras varidveis, se tiverem algum, puramente secundério). Por exemplo, na concepgdo utilitarista da justiga, a base informacional consiste somente nas utilidades dos respectivos indivfduos nos es- tados de coisas sob avaliagao. Procurei sustentar, em outro lugar, que o exame da base informacional de cada abordagem avaliatéria fornece uma orientacio titil para investigar e analisar a abordagem.' A maioria das teorias da justiga também pode ser proveitosamen- te analisada em termos da informagao usada em duas partes diferen- tes — ainda que inter-relacionadas — do exercfcio, que sdo (1) a selecao de tracos pessoais relevantes, e (2) a escolha de caracteristicas combinatérias. Como exemplo, para a teoria utilitarista padrao, os tini- cos “tragos pessoais relevantes” intrinsecamente importantes sao as utilidades individuais, e a Gnica “caracterfstica combinatéria” € a soma, resultando no total dessas utilidades. O conjunto de teorias “welfaristas”, das quais o utilitarismo é um exemplo particular, re- tém a primeira parte (i. e., considera as utilidades como os tinicos 128 AMARTYA SEN tragos pessoais relevantes), mas pode usar outras caracterfsticas combinatérias, p. ex.,o maximin baseado na utilidade (ou o maximin lexicogr4fico),* a soma de transformagées concavas de utilidades (tal como a soma dos logaritmos de utilidades).? Exemplos de selegao de “tragos pessoais relevantes” que nfo sejam utilidades incluem liberdades e bens primdrios (Rawls, 1971), direitos (Nozick, 1974), recursos (R. Dworkin, 1981), pacotes de mer- cadorias (Foley, 1967; Pazner & Schmeidler, 1974, Varian, 1974, 1975; Baumol, 1986) e varios espagos mistos (Suzumura, 1983; Wrilesworth, 1985; Riley, 1987). Observe-se que, em alguns ca- $08, Os tragos pessoais so, de modo abrangente, do tipo resultado [outcome type] (p. ex., pacotes de mercadorias desfrutados), como nas teorias “welfaristas” (exemplificadas pelo utilitarismo), enquan- to, em outros casos, eles se relacionam com oportunidades, definidas de uma ou outra forma (p. ex., bens primérios, direitos, recursos). A selegao de tragos pessoais tem de ser complementada pela escolha de uma férmula de combinagio, p. ex., maximizagdo da soma,? prioridades lexicogrdficas e maximin,* igualdade,> ou uma das varias outras regras combinatérias.® Os contetidos substantivos de teorias da justiga incluem, por- tanto, bases informacionais amplamente diferentes e também usos bem divergentes da respectiva informagio. Essa variagdo informa- cional corresponde intimamente ao problema da pluralidade de varidveis focais no qual estamos interessados neste livro. Como foi *O principio maximin baseado na utilidade afirma que os estados sociais devem ser ordena- dos em termos das ordens individuais de bem-estar (interpretado como utilidade) e que 0 “melhor estado social” & aquele em que o bem-estar do “individuo na pior situagéo” [the worst-off individual] est maximizado. O maximin lexicogréfico prescreve uma “ordenagdo lexicogrdfica” dos estados sociais, definida da seguinte forma: 1, maximizar 0 bem-estar do individuo na pior situago; 2.igualado o bem-estar dos individuos na pior situago, maximizar o bem-estar do indivi- duo na segunda pior situagao; rigualado o bem-estar dos individuos na pior situagdo, dos individuos na segunda pior situagdo, ... dos individuos na (n-1) pior situagéo, maximizar o bem-estar do individuo na melhor situagio. Cf. Sen 1970: 137-8. (N. do T) DESIGUALDADE REEXAMINADA 19 antes argumentado, cada teoria da justia inclui a escolha — ex- plicita ou por implicagado — de uma exigéncia particular de “igual- dade basal”, que, por sua vez, influencia a escolha da varidvel focal para avaliar a desigualdade. As respectivas pretensdes de diferen- tes concepgoes de justicga tém conex4o intima com a relevancia das correspondentes concepgées de igualdade. JUSTIGA RAWLSIANA E A CONCEPCAO POLITICA De longe, a teoria da justiga mais influente — e acredito que a mais importante — apresentada neste século foi a da “justiga como eqiiidade” de John Rawls. Os principais aspectos dessa teoria sio bem conhecidos e foram longamente discutidos.’ Alguns tragos re- ceberam particular atengao. Isso inclui o uso de Rawls do disposi- tivo da “posig&o original” — um estado hipotético de igualdade primordial no qual as pessoas (sem saber exatamente quem virdo a ser) so concebidas como escolhendo, entre princfpios alternati- Vos, os que vo governar a estrutura b4sica da sociedade. Este pro- cedimento € visto como eqiiitativo, e os princfpios concernentes & estrutura basica da sociedade escolhidos por meio deste procedi- mento eqiiitativo sao tomados como justos. As regras da justiga incluem um par de princfpios. A formula- 40 desses princfpios sofreu algumas mudangas desde sua apresen- tagao em A Theory of Justice (Rawls 1971: 60, 83, 90-5), em parte para tornar claro o que estava ambfguo, mas também para respon- der a algumas das primeiras criticas (p. ex., a feita por H. L. A. Hart 1973). Em suas Conferéncias Tanner de 1982, Rawls expressou esses princfpios da seguinte forma: 1. Cada pessoa tem igual direito a um esquema plenamente ade- quado de liberdades basicas iguais que seja compativel com um esquema similar de liberdades para todos. 2. As desigualdades sociais e econémicas devem satisfazer duas condigées. Em primeiro lugar, devem estar associadas a cargos e 130 AMARTYA SEN posigdes abertos a todos sob condigées de igualdade eqiiitativa de oportunidades; e, em segundo, devem ser para o maior bene- ficio dos membros da sociedade que tem menos vantagens.° O primeiro princfpio inclui um enfraquecimento da condigao da liberdade (“um esquema plenamente adequado” exige menos que 0 requisito original de “o mais abrangente sistema total” espe- cificado na versao de 1971). O segundo princfpio continua a in- cluir o assim chamado “Prinefpio da Diferenga”, no qual 0 foco est& sobre a produgao do “maior beneficio dos que tém menos vanta- gens”, onde a vantagem é estimada pela parcela de “bens primarios” (Rawls 1971: 90-5). Mas a “igualdade eqititativa de oportunida- des” recebe aqui uma énfase renovada. Ainda que esses tragos da teoria de Rawls tenham recebido uma grande atengdo mesmo entre os economistas, € importante in- terpreté-los 4 luz de alguns dos aspectos politicos de sua abordagem. Em particular, Rawls mesmo insistiu na necessidade de conceber sua teoria como “uma concepgdo politica da justiga” (ver Rawls 1985, 1987, 1988a, 1988b, 1988c, 1990). Comego com um exame deste trago e da influéncia que pode ter sobre a importancia de quest6es sobre a igualdade em circunstncias sociais particulares. Dois tragos distintos da caracterizacAo feita por Rawls de sua con- cepco politica da justiga podem ser proveitosamente separados. Um se relaciona com 0 objeto de estudo da concepgao politica: “uma con- cepgao politica da justiga (...) € uma concepgao moral desenvolvida para um tipo especifico de objeto, a saber, as instituigdes polfticas, sociais e econédmicas”.* Isso nao especifica qualquer principio parti- cular que precise ser usado para que uma concepgo moral seja po- litica. O problema depende de saber se 0 objeto é “politico”, no sentido de lidar com “instituigGes polfticas, sociais e econémicas”. O outro trago, em contraste, relaciona-se precisamente com 0 princfpio particular a ser usado, que é 0 de “uma democracia constitu- cional”, na qual “a concepgao ptiblica da justiga deve ser, tanto quan- to possivel, independente de doutrinas filoséficas e religiosas DESIGUALDADE REEXAMINADA. BI controversas”. “Para formular uma tal concep¢o, nds aplicamos o principio da tolerancia a prépria filosofia: a concepgao publica da jus- tiga deve ser politica, nfo metafisica.”!” Nesta caracterizago, o objeto de estudo nao € critico por si mesmo, e o traco “politico” crucial é a “tolerancia” de doutrinas abrangentes possivelmente divergentes (su- jeitas a idéias do bem que satisfazem elas mesmas certos tracos de to- lerancia, quer dizer, “as idéias incluidas devem ser idéias politicas”). Na anilise de Rawls, estes dois tragos esto de tal modo relacio- nados que ele parece vé-los como inseparavelmente juntos. Contudo, € possivel que uma abordagem seja “politica” no sentido do objeto de estudo (como especificado por Rawls) sem que endosse o traco da “to- lerancia” como uma condigao qualificativa para que uma teoria tenha pretensdes de justiga. Exponho este ponto aqui nao por considerar a questo da tolerAncia sem importancia; bem ao contrério, considero- auma das questées centrais quando se pensa politicamente sobre a jus- tiga.'' Mas também pode haver questées importantes de justiga e injustiga na escolha de “instituigdes polfticas, sociais e econémicas” ‘mesmo quando a tolerancia pluralista esbogada por Rawls simplesmen- te nao se verifica. Embora a “tolerancia”, no sentido discutido por Rawls, de diferentes concepgées abrangentes do bem seja, indubitavelmente, um dos mais importantes aspectos politicos da vida emsociedade, ela nao é, contudo, a tinica coisa “politica” desta vida." A exclusio por definigao contida na “concepgao politica” de Rawls limita drastica e abruptamente a abrangéncia do conceito de justica, e freqiientemente tornaré dificil identificar os verdadeiros fatos politi- cos de que uma teoria da justiga deve tratar. Especificamente, com base na auséncia de tolerancia, todo um grupo de doutrinas abrangentes pode ser excluido de consideragao (na verdade, em algumas situagées sociais nenhuma das que sao re- almente defendidas por diferentes grupos politicos poderé ser mantida), e ainda pode haver problemas bastante evidentes de de- sigualdade, privagdo e injustiga nas disputas entre os diferentes la- dos. Ficar sem uma teoria que possa lidar com tais problemas (quando os diferentes lados sao intolerantes) e ver as disputas como fora do 132 AMARTYA SEN alcance da assim chamada concepgio politica da justiga, pareceria ser limitador do domfnio de uma concepgio polftica da justiga. Considere-se, por exemplo, o bem conhecido dito de escolha social enunciado, ao que parece, pelo imperador Haile Selassie durante a fome na Etiépia em 1973, explicando a auséncia de medidas, por parte de seu governo, para aliviar a fome: “Foi-nos dito que a riqueza tinha de ser ganha por meio do trabalho 4rduo. Foi-nos dito que aqueles que nao trabalham passem fome.”? Ob- viamente este € um velho princfpio “lugar comum”, que freqiien- temente ganhou expressdo, e que poderia mesmo ser visto — se assim concedemos — como encontrando certo respaldo na Biblia."# Esse “princfpio” de fato foi colocado em pratica na Etidpia de Selassie de forma muito eficiente, e no auge da fome de 1973 hou- ve pouca ajuda organizada pelo Estado.'* Nao é diffcil argumentar que a ética politica do imperador re- lativa a escolha de instituigdes sociais e politicas, como se expressa no dito, viola — de modo bastante vigoroso — requisitos de justi- ca. De fato, em um nfvel substantivo, pode-se facilmente apontar as drdsticas desigualdades nas capacidades entre vitimas da fome e o resto da sociedade, e também — neste caso — as grandes desi- gualdades nas parcelas de bens primérios. O argumento pode se- guir apontando o erro em negar a vitimas da fome que estéo desempregadas — impossibilitadas de encontrar trabalho remune- rado para sobreviver — suas razodveis pretensdes A ajuda por par- te do resto da sociedade.'* Ha varios modos de desenvolver este argumento na ética politica; invocar o dispositivo da “posigo ori- ginal” de Rawls seria um dos mais eficazes. Porém, nem o imperador, nem os oponentes de seu regime, que terminaram por depé-lo numa revolta sangrenta no momento em que a fome grassava, deram qualquer sinal de aceitar algum princf- pio de tolerancia da concepgao de bem do outro. De fato, cada lado buscava seus préprios objetivos sem dar quartel aos objetivos dos outros e, até onde € possfvel julgar, nao tinha nenhum interesse em procurar uma solugo politica baseada na tolerancia e no desejo de DESIGUALDADE REEXAMINADA 133 viver em sociedade. Em termos de uma concepgao politica da justi- a que exige tal tolerdncia, seria dificil aprovar qualquer juizo sobre a justiga neste caso. Ainda assim, seria peculiar a reivindicagao de que nenhuma questo decidivel de justiga numa concepgio politica esté envolvida na disputa sobre o alfvio institucional da fome e de que os princfpios de escolha social incorporados na afirmagao de Haile Selassie (nenhum socorro prestado pelo Estado as vitimas da fome que estao desempregadas) simplesmente esto fora do dominio da concepedo politica da justiga. A justiga, nesta concepgio politica restritiva, parecer4 ter um prego alto para ser admitida.!7 Nao se necessita ver tudo isso como embaragoso para uma teo- tia da justiga que se sabe “partindo de dentro de uma certa tradigdo polftica” e que é apresentada com a “esperanga de que esta concep- cao polftica da justiga possa ao menos ser respaldada pelo que cha- mamos de um “consenso superposto” [overlapping consensus], quer dizer, um consenso que inclui todas as doutrinas opostas filosdficas e teligiosas provaveis de persistirem e ganharem adesOes numa socie- dade democratica constitucional mais ou menos justa” (Rawls 1985: 225-6). Desta forma, nao existe aqui qualquer problema real para a anélise de Rawls em termos de seu préprio programa. ‘Todavia, € importante perguntar se esta concepgao politica par- ticular faz jus a idéia de justiga — mesmo A justica num sentido po- Iitico. Muitas injustigas flagrantes no mundo se dao em circunstancias nas quais invocar o “liberalismo polftico” e o “princfpio de toleran- cia” pode nao ser facil e nem ajudar particularmente muito. Contu- do, deixar esses problemas fora do Ambito de uma “concepgao politica da justiga” seria reduzir severamente seu dominio. Ha muitas ques- tes evidentes de justiga e injustiga envolvidas na escolha politica de instituigdes sociais no mundo todo, e nao é facil aceitar a definigao de uma concepgio politica da justiga que as exclui de consideragaéo por serem ideologicamente distantes das democracias constitucionais. Os limites do “politico” nao necessitam ser vistos como tao estrei- tos.'® Os problemas generalizados de desigualdade e injustiga no mundo demandam uma abordagem menos restritiva. 134 AMARTYA SEN Embora a discussao anterior chame atengao para o alcance li- mitado do conceito rawlsiano de justiga, especialmente a luz da én- fase que Rawls recentemente colocou sobre o aspecto da “tolerancia”, €é importante reconhecer que a perspectiva rawlsiana — particular- mente o Principio da Diferenga — tem sido amplamente emprega- da na literatura sobre desenvolvimento econ6mico e social. Os insights obtidos da andlise de Rawls da “justiga como eqitidade” parecem ir bem além dos limites que ele mesmo impés, e nao est4 claro para mim se estes insights so derivados de modo equivocado ou se séo maldirecionados. Quando se trata de avaliar a teoria da justiga de Rawls como um todo, é claro que é necessério concebé-la dentro das restrig6es espectficas impostas pelo proprio autor, mas a “atitude rawlsiana” numa forma menos restrita teve um profundo impacto sobre um domfnio bastante amplo do pensamento politico, social e econémico contemporaneos. Em especial, a literatura sobre a avaligao da desigualdade nao tem sido mais a mesma desde que 0 livro clas- sico de Rawls apareceu pela primeira vez. BENS PRIMARIOS E CAPACIDADES Ha varias abordagens focalizando a igualdade de oportunidades — caracterizada de diferentes maneiras — na literatura recente sobre ajustica. Rawls concentra sua atengao sobre a distribuigdo de “bens primérios” —incluindo “direitos, liberdades e oportunidades, renda e riqueza, e as bases sociais da auto-estima”!® — no seu Princfpio da Diferenga, o que pode ser visto como um movimento naquela dire- do. Esta abordagem também pode ser interpretada, como sustentei_ anteriormente neste livro, como nos conduzindo na diregdo da li- berdade abrangente realmente desfrutada pelas pessoas, e isso temo efeito de reorientar a andlise da igualdade e justiga em diregao as liberdades desfrutadas em vez de manté-la restrita aos resultados alcangados. Um problema importante surge do fato de que bens pri- mérios nao sao constitutivos da liberdade como tal, sendo melhor DESIGUALDADE REEXAMINADA 135, concebidos como meios para a liberdade (ponto que discutimos no capitulo anterior). O argumento de Ronald Dworkin (1981, 1987) defendendo a “igualdade de recursos” também pode ser visto, de modo amplo, como pertencente ao mesmo género de concepgiio substantiva, j4 que recursos também sao meios para a liberdade, e Dworkin de fato apresentou um modo especifico de conceber os recursos e julgar “a igualdade de recursos”. Um problema € 0 da valoragao. J que meios sio valorados, em Ultima instdncia, por causa de alguma outra coisa, nao é facil esta- belecer um esquema de valoragdo de meios que sejam realmente in- dependentes dos fins. Foi usando, de modo habilidoso, desta conexao que John Roemer (1986b) estabeleceu um resultado matemético que interpretou como “a igualdade de recursos implica a igualdade de bem-estar” [welfare] (0 titulo de seu artigo). O resultado foi baseado em um intrincado conjunto de axiomas, mas 0 insight basico por tras do resultado pode ser visto como buscar o valor dos recursos em ter- mos do que os recursos produzem. Uma vez que os recursos nao so valorados pelo que eles mesmos possam valer, uma tal conex4o tem alguma plausibilidade evidente. Adotando um modelo no qual o tnico fim ultimo [ultimate end] € o bem-estar [welfare], o resultado de que a igualdade de recursos deve produzir igualdade de bem-es- tar [welfare] surgiu do teorema de Roemer. A congruéncia da valoragao de recursos com a valoragdo de bem-estar pode de fato ser substitufda por uma congruéncia simi- lar com o que quer que seja considerado como o fim cuja promo- ao € a razio para atribuir valor aos recursos. O problema real por tras deste interessante resultado é a dependéncia da valorago dos meios da valoragao dos fins (e nao especificamente a interdepen- déncia de recursos e bem-estar). No que se segue, vou estar basicamente interessado na teoria da justiga como eqiiidade de Rawls, mas alguns dos comentarios também se aplicarao a abordagem de Dworkin. A principal questo é a adequagao da base informacional dos bens prim4rios para a concepgio polftica da justiga no sentido de B36 AMARTYA SEN Rawls, e da necessidade, se houver alguma, de focalizar as capacida- des. Bens primérios so “coisas que toda pessoa racional presumi- velmente quer”, e incluem “renda e riqueza”, “liberdades basicas”, “liberdade de movimento e escolha de ocupagao”, “poderes e prer- rogativas de cargos e posigdes de responsabilidade” e “as bases so- ciais da auto-estima”.”° Bens primérios sao, portanto, meios para qualquer propésito ou recursos titeis para a busca de diferentes concepgées do bem que os indivfduos podem ter. Anteriormente neste livro (especialmente no Capitulo 3), ques- tionei a suposta adequa¢ao, para uma “apreciagao orientada pela liberdade” da justiga, desta concentragéo nos meios para a liberda- de, e nao na extensdo da liberdade que uma pessoa realmente tem. Uma vez que a conversio destes bens primérios e recursos em li- berdade de escolha entre combinagées alternativas de funciona- mentos ¢ outras realizagGes pode variar de pessoa para pessoa, a igualdade de parcelas de bens primérios ou de recursos pode seguir lado a lado com sérias desigualdades nas liberdades reais desfruta- das por diferentes pessoas. A questao central, no presente contex- to, € se tais desigualdades de liberdade sio compatfveis com a satisfagao da idéia subjacente da concepgio politica da justiga. Na apreciagdo “baseada na capacidade” [capability-based assess- ment] da justiga, as pretensdes individuais nao devem ser avaliadas em termos dos recursos ou bens primérios que as pessoas respectiva- mente detém, mas pelas liberdades que elas realmente desfrutam para escolher as vidas as quais elas tém razdo para dar valor! E esta liber- dade real que é representada pela “capacidade” de uma pessoa para realizar varias combinagées alternativas de funcionamentos. E importante distinguir a capacidade — que representa a liberda- de realmente desfrutada — tanto (1) dos bens primérios (e outros tecursos) quanto (2) das realizagées (incluindo as combinagées de funcionamentos realmente desfrutados e outros resultados realizados).. Para ilustrar a primeira disting4o, uma pessoa com alguma deficiéncia pode dispor de mais bens primérios (na forma de renda, riqueza, liber- dades, e assim por diante) mas ter menos capacidade (devido a sua DESIGUALDADE REEXAMINADA 137, deficiéncia). Tomando outro exemplo, agora de estudos sobre a po- breza, uma pessoa pode ter uma renda maior e ingerir mais nutrientes, mas ter menos liberdade para viver bem nutrida devido a sua taxa maior de metabolismo basal, maior vulnerabilidade a doengas parasitérias, seu corpo maior, ou simplesmente devido a gravidez. Similarmente, ao lidar com a pobreza em pases mais ricos, temos de considerar 0 fato de que muitos daqueles que sao pobres em termos de renda e outros bens primérios também tém caracterfsticas — idade, deficiéncias, pro- pensio a doengas etc. — que lhes dificultam a conversao de bens pri- mérios em capacidades bdsicas, p. ex., ser capaz de se locomover, levar uma vida saudével, tomar parte na vida da comunidade. Nem os bens primérios, nem os recursos, definidos de modo abrangente, podem representar a capacidade que uma pessoa realmente desfruta. Tlustrando a segunda distingdo, uma pessoa pode ter a mesma capacidade que outra, mas ainda assim escolher um pacote dife- rente de funcionamentos, de acordo com suas metas particulares. Além disso, duas pessoas com as mesmas capacidades reais [actual capabilities],* e até com as mesmas metas, podem terminar com resultados diferentes devido a diferengas nas estratégias ou taticas que seguem respectivamente ao usar suas liberdades. Respondendo a minha critica, Rawls se inclinou a pressupor que ela se baseia na suposigdo de que todas as pessoas tém os mes- mos fins comuns — os objetivos compartilhados buscados por todos. Isto se baseia na crenga de que, se elas tivessem objetivos distintos, ento as taxas diferenciais de conversdo de bens pri- mérios em capacidades nao poderiam ser estimadas. Tal suposi- g4o (os mesmos objetivos para todos), se feita, certamente iria contra a concepgao politica da justiga de Rawls, que admite va- riagdes interpessoais de fins, com cada pessoa tendo sua propria “viséo abrangente do bem”. Rawls resume desta forma a sua in- terpretagdo da minha objegao: *Ver Glossério. (N. do T.) 138 AMARTYA SEN «a idéia de bens primérios deve estar errada. Pois eles nfo so oque, desde dentro da doutrina abrangente de qualquer pessoa, pode ser considerado como fundamentalmente importante: eles néo sao, em geral, a idéia de pessoa alguma dos valores basicos da vida humana. Portanto, colocar o foco sobre os bens primérios € trabalhar, poderia ser objetado, geralmente no espaco errado —no espago de tragos institucionais e coisas materiais e nfo no espaco de valores morais bésicos.”2 A resposta de Rawls a sua interpretagao da minha objegio é a seguinte: Em resposta, um fndice de bens primérios nao é concebido como uma aproximagio do que é fundamentalmente importante tal como especificado por qualquer doutrina abrangente particular com sua concep¢ao dos valores morais.” O problema principal desta resposta repousa na interpretagio errénea da natureza da objegdo. A capacidade reflete a liberdade de uma pessoa para escolher entre vidas alternativas (combinages de funcionamentos), e sua valorag&o nao necessita pressupor una- nimidade com respeito a algum conjunto especifico de valores (ou, como Rawls o chamou, “uma doutrina abrangente particular”). Como foi discutido anteriormente, é importante distinguir entre liberdade (refletida pela capacidade) e realizagao (refletida pelos funcionamentos realizados), e a avaliagdo da capacidade nao neces- sita ser baseada em alguma doutrina abrangente particular que ordene as realizagées e os estilos de vida.’ O segundo problema, relacionado com o primeiro, diz respeito 4 afirmagdo de Rawls de que os bens primérios “no [so] concebido[s] como uma aproximagao do que é fundamentalmente importante tal como especificado por qualquer doutrina abrangente particular” (&n- fase minha). Esta é uma preocupagao suficientemente legftima para a “concepgao politica da justiga” de Rawls, mas a falta de correspon- déncia com os bens primdrios nao reside somente af. Reside também DESIGUALDADE REEXAMINADA 139 no fato — mais importante no presente contexto — de que uma pes- soa em desvantagem pode conseguir com os bens primérios menos do que outras, nao importando qual doutrina abrangente ela tenha. Para ilustrar 0 topico, considerem-se duas pessoas 1 e 2, estan- do 2 em desvantagem em algum aspecto (p. ex., inaptidao fisica, deficiéncia mental, grande propensao a doengas). Elas ndo tém os mesmos fins ou objetivos, ou a mesma concepgao do bem. A pes- soa 1 dé mais valor a A que a B, enquanto a pessoa 2 valora de maneira oposta. Cada uma dé mais valor a 2A que a A, e mais a 2B que a B, e as ordenagées das duas (representando as partes rele- vantes de suas respectivas “doutrinas abrangentes”) so as seguintes: Pessoa 1 Pessoa 2 2A 2B 2B 2A A B B A Com o conjunto dado de bens primérios, a pessoa 1 pode con- seguir 2A ou 2B, e também — ainda que possa nao haver mérito nisso — A ou B. Por outro lado, dada a desvantagem de 2, com exatamente os mesmos bens primdrios pode conseguir somente A ou B. A pessoa 1 vai ficar com 2A (0 melhor resultado factfvel para ela), enquanto 2 se contenta com B (0 melhor resultado factivel para ela). O problema nao € somente que 2 est4 em desvantagem em termos de uma doutrina abrangente particular (a sua propria ou a da pessoa 1), mas que tem um quinhio pior que o de 1, ndo importando qual doutrina abrangente consideramos. A igualdade de bens primérios deu a 2 menos liberdade para realizar e nao so- mente menos realizagdes com respeito a uma doutrina abrangente. Se as comparagées fossem feitas nao em termos de bens primé- trios, mas em termos de capacidades, o quinhio pior de 2 seria cla- ro. O conjunto capacitério da pessoa 1 consiste em (A, B, 2A, 2B), | 140 AMARTYA SEN enquanto a capacidade de 2 € somente um subconjunto préprio dele, (A, B), onde se perderam os melhores elementos — nao im- portando qual doutrina abrangente é considerada. A capacidade representa a liberdade, ao passo que os bens primérios nos falam somente dos meios para a liberdade, com uma relagio interpes- soalmente varidvel entre os meios e a liberdade efetiva para reali- zar. Rawls esta certo ao pensar que minha objegdo se relaciona com bens primdrios apenas enquanto meios, mas esse problema nao desaparece dizendo-se que eles nao sao concebidos como uma aproximagao de “alguma doutrina abrangente particular”.’> DIVERSIDADES: FINS E CARACTERISTICAS PESSOAIS Ha, na verdade, duas fontes de variago na relago entre os meios de uma pessoa, na forma de bens primérios (ou recursos), e a realizago de fins. Uma € a variagao interfim — diferentes concepgdes do bem que pessoas diferentes podem ter. A outra € a variago interindividual na relagdo entre recursos (tais como bens primérios) ea liberdade para buscar fins. Rawls mostra grande sensibilidade para a primeira varia- do, e est4 empenhado em preservar 0 respeito por esta diversidade (0 que est4 correto, em concordancia com sua concepgio politica pluralista). Para lidar com este problema, Rawls pressupde que os mes- mos bens primérios servem para todos os diferentes fins.2° No que diz respeito a variagdo interindividual (quer dizer, na re- lado entre recursos e liberdades), o problema criado nao é de modo algum reduzido pela existéncia da primeira variagao (isto é, de fins e objetivos). A liberdade substantiva de uma pessoa para buscar seus fins depende tanto de (1) quais fins ela tem, como de (2) qual poder ela tem para converter bens primérios em satisfagao desses fins. O tiltimo problema pode ser grave mesmo com fins dados, mas nao € certo que possa ser grave somente com fins dados. O alcance ea relevancia do segundo problema nao so reduzidos pela exis- téncia do primeiro. DESIGUALDADE REEXAMINADA 141 Para concluir, os seres humanos so diversos, mas diversos de di- ferentes modos. Uma variagdo se relaciona com as diferengas nos fins e objetivos. Nés entendemos agora muito melhor as implicagées éticas e polfticas desta diversidade como resultado da anilise rawlsiana da justiga como eqiiidade. Mas existe outra importante diversidade — variagdes no nosso potencial [ability] para converter recursos em liberdades substantivas. VariagGes relacionadas com sexo, idade, dotes genéticos, e muitos outros tragos, nos dao poderes bastante divergentes para fazer da liberdade um constituinte de nossas vidas, mesmo quando temos o mesmo pacote de bens primérios.”” A abordagem rawlsiana da justiga transformou o modo como pensamos sobre 0 assunto, € sua teoria teve 0 efeito de mudar nos- sos interesses por desigualdades apenas de resultados e realizagdes para aquelas de oportunidades e liberdades. Porém, por se concen- trar nos meios para a liberdade e nao na extensdo da liberdade, sua teoria de uma estrutura bdsica justa da sociedade deteve-se antes de prestar uma atengdo adequada a liberdade como tal. Embora a motivaco para focalizar os meios para a liberdade possa ter-se ba- seado, como parece, na crenga de Rawls de que a tinica alternati- va seria escolher uma particular concepgao abrangente de resultados e realizag6es, esta suposigdo nao é, como foi mostrado antes, bem correta. A liberdade pode ser distinguida tanto dos meios que a mantém como das realizagdes que ela mantém. A teoria da justiga de Rawls tem muitos tragos distintos, e as questdes levantadas aqui ndo devem ser vistas como uma tentativa de minar a abordagem inteira. Na verdade, seria dificil tentar cons- truir hoje uma teoria da justiga que nao fosse fortemente influenci- ada pela iluminagdo que a andlise profunda e penetrante de Rawls permite.”® © objeto da critica relaciona-se especificamente com a tenso entre a atengAo que Rawls concentra sobre os bens primarios sua preocupagao com as liberdades que desfrutamos para buscar nossos fins. No que diz respeito as liberdades, existe, como tentei argumentar, um modo diferente — e mais acurado — de examinar a questo distributiva. Rawls de fato também esté interessado em 142 AMARTYA SEN muitas outras coisas, incluindo a importancia de certos processos e instituig6es liberais e a necessidade de restringir a politica piblica quando a liberdade pessoal € ameagada. A discussdo sobre a igual- dade de liberdades substantivas apresentada aqui néo coloca em questio estes aspectos das preocupagées de Rawls. O problema em questo pode ser ilustrado tomando-se o papel dado a liberdade na teoria rawlsiana da justiga. Rawls atribui completa prioridade ao princfpio da liberdade com relagdo a outros princfpios de justiga, e esta formulagao bastante extremada foi convincente- mente questionada por Herbert Hart (1973).?’ Por outro lado, pode ser sustentado (sobre isso, ver Sen 1970a, 1983a) que se necessita algum reconhecimento adicional da liberdade, além da atengdo que ela pode receber como um bem primério, ou como uma influéncia sobre o bem-estar, ou mesmo como um dos determinantes causais da capacidade de uma pessoa. De fato, a capacidade de uma pessoa pode ser reduzida exatamente do mesmo modo em dois casos: (1) através da violagdo de sua liberdade (por alguém que viole sua liber- dade quanto a um dom{nio pessoal); e (2) através de algum enfra- quecimento interno que a pessoa sofra. Ainda que os dois casos nao sejam distingufveis no espago de capacidades, uma teoria adequada da justiga nao pode realmente ignorar as diferengas entre eles. Nes- te sentido, a perspectiva da capacidade, central como € para uma teoria da justiga, nao pode ser inteiramente adequada para isso. Existe uma necessidade real de introduzir as exigéncias da liberdade como um princfpio adicional (mesmo se nao se atribui a ele a prioridade total que Rawls recomenda). A importdncia desta liberdade abrangente [over-all freedom] para realizar nao pode eliminar 0 signi- ficado especial da liberdade negativa.?° Nosso foco, na presente discussao, € somente uma parte especifi- ca da teoria da justiga de Rawls e da relagdo entre um de seus interes- ses ea maneira que propde de lidar com ele. Mas nessa parte especifica —e creio que crucial — da teoria da justiga de Rawls, 0 ponto que surge a partir de nossa andlise tem — eu sustentaria — certa impor- tancia conceitual e prdtica. A igualdade de liberdade para buscar nos- ee DESIGUALDADE REEXAMINADA. 143 sos fins nao pode ser gerada pela igualdade na distribuicéo de bens primdrios. Nés temos de examinar as variagGes interpessoais na trans- formagio de bens primérios (e recursos, mais genericamente) em res- pectivas capacidades para buscar nossos fins e objetivos. Se nossa preocupagao € com a igualdade de liberdade, nao é mais adequado exigir a igualdade de seus meios do que buscar a igualdade de seus resultados. A liberdade se relaciona com ambos, mas ndo coincide com nenhum. NOTAS 1. Os diversos papéis das bases informacionais da escolha e dos jufzos normativos foram discutidos em Sen (1974, 1977b, 1979d, 1985). O pa- pel desempenhado, em especial, pelas “restrig6es informacionais”, que sio comumente impostas implicitamente, pode ser complexo e abrangente. 2. Argumentos a favor de caracteristicas combinat6rias bem diferentes, inclu- sive no mesmo espaco de utilidades, podem ser encontrados, dentre outros, em Suppes (1966, 1977), Kolm (1969, 1976), Sen (1970a, 1977b), Mirrlees (1971), Rawls (1971), Phelps (1973), P J. Hammond (1976a), Strasnick (1976), Arrow (1977), Blackorby & Donaldson (1977), d’Aspremont & Gevers (1977), Maskin (1978), Gevers (1979), Roberts (1980a), Blackorby, Donaldson & Weymark (1984), d’Aspremont (1985), Thomson & Varian (1985). Embora as axiométicas de estruturas combinatérias exploradas nessas contribuigdes e em outras afins sejam, em sua maioria, definidas no espaco de utilidades, elas também podem, na maior parte dos casos, ser facilmente apresentadas em outros espagos, envolvendo outros tracos pes- soais (tais como indices de bens primérios, ou de recursos, ou de capacida- des). Logo, as estruturas axiométicas so, de fato, de interesse mais amplo do que a natureza do espago poderia sugeri. 3. Ver Harsanyi (1955), d’Aspremont & Gevers (1977), Maskin (1978). 4. Ver Rawls (1971), Hammond (1976a), Strasnick (1976), d’Aspremont & Gevers (197), Sen (1977b). 5. Ver Foley (1967), Nozick (1974), R. Dworkin (1981), Van Parijs (1990a). 6. Ver Varian (1975), Gevers (1979), Roberts (1980), Suzumura (1983), Blackorby, Donaldson & Weymark (1984), d’Aspremont (1985), 18. 1 a so AMARTYA SEN Wriglesworth (1985), Baumol (1986), Riley (1987), Moulin (1989, 1990), entre muitas outras contribuig6es. . Um primeiro grupo de respostas pode ser encontrado na coletanea Reading Rawls, organizada por Norman Daniels (Daniels 1975). Ver também a co- letanea de Phelps (1973) sobre a “justiga econémica”. . Reimpresso em Rawls et al. (1987: 5). . Rawls (1985: 224). . Rawls (1985: 223). « Sobre isso, ver Sen (1970a, 1985a). . Existe uma questo afim — mas mais ampla — relacionada com 0 papel exato da “neutralidade” no liberalismo politico e com a exeqiiibilidade e desejabilidade da imposigéo de neutralidade a teorias da justica e eqiiida- de. Para diferentes apreciacées deste problema, ver p. ex. Dworkin (1978, 1985), Fishkin (1983), Raz (1986), Larmore (1987), Ackerman (1988), Rawls (1988a), Pogge (1989), Van Parijs (1991). A discusso aqui se rela- ciona com aquela questo, mas nfo vou tratar desse problema mais amplo de forma mais detalhada. . Citado em L. Wiseberg, “An International Perspective on the African Famines”, em Glantz (1976: 108) . “Se alguém nao quiser trabalhar, que também deixe de comer!” (273 3, 10) . Os principios do imperador nao foram, na verdade, a Gnica raao para a desastrosa demora para organizar a ajuda pablica, e houve outros fatores envolvidos, incluindo um diagnéstico equivocado da natureza da fome co- letiva e do que a causa (sobre isto, ver Sen 1981a, cap. 7, e também Glantz 1976). Mas no estou preocupado aqui com estas questdes. . Este caso, aliés, também ilustra adequadamente a forga do argumento geral de Judith Shklar (1990) de que o senso de injustiga é um ponto de partida especialmente convincente para a anilise e avaliag’o sociais. . Obviamente, é facil acusar Selassie de intolerancia. Mas a injustiga em questo relaciona-se nao somente com isso, mas com os princfpios para aliviar a fome — mais corretamente, para deixar de aliviar — seguidos por seu governo. A insisténcia sobre a tolerncia como uma base comum acor- dada evitaria que essa questo fosse até mesmo levantada. Nio € 0 uso da palavra “politico” que esté em questo, mas antes a motiva- Go subjacente a idéia de uma concepgdo politica. E possfvel, contudo, sustentar que Rawls usa uma definigdo particularmente estreita do termo politico. Ver Rawls (1971: 60-5). Ver Rawls (1971: 60-5); Rawls (1982: 162); Rawls (1988a: 256-7). a1. 22. 23. 24. a: DESIGUALDADE REEXAMINADA 45 Varios aspectos desta pretensao e suas implicagdes diversas foram discuti- das nos Caps. 3 e 4. Rawls (1988a: 256-9). Rawls (1988a: 259). Rawls também tem uma linha bem diferente de res- posta a minha critica em seu “Reply to Sen” (Rawls 1988b). Ele argumenta que sua teoria completa da justica tem mais “lexibilidade” do que eu teco- nhego, e algumas das variages interpessoais em que estou interessado po- dem ser consideradas em estégios posteriores, tais como os “legislativo” e “judiciério”. Nao € tao simples estar certo de quais procedimentos abrangentes e princfpios de alocagéo seriam de fato satisfeitos por uma tal estrutura complexa de estdgios, mas se realmente todas as variagdes interpessoais relevantes fossem efetivamente consideradas em algum esté- gio ou outro, entio isso certamente reduziria a forga da critica. Algumas das questes surgidas devido as variagGes interpessoais na conversao de bens primarios em capacidades terminariam afinal recebendo atengao. No formato da capacidade, a realizago é dada por uma n-upla de fun- cionamentos relevantes, enquanto a capacidade é ela mesma um conjunto de tais n-uplas a partir do qual uma pode ser escolhida. Sobre algumas formas alternativas de representagdo e sua relevancia para a andlise da vantagem individual e, por isso, para o estudo da desigualdade, ver também Caps. 3 e 4. A dominancia no espaco de capacidades nao requer acordo sobre nenhuma doutrina abrangente, pois um “conjunto capacitério” pode ser um subconjunto préprio de outro (tal como no exemplo dado). Além disso, mesmo quando os conjuntos capacitérios no so subconjuntos uns dos outros, para existir acordo sobre seu ranking, ndo necessitamos da aceita- fo de nenhuma doutrina abrangente. Rankings parciais de capacidades podem ser baseados na superioridade em termos de cada uma das doutrinas abrangentes relevantes. Contudo, insistir numa ordenagdo completa pode ser problematico. (Existe um problema similar, para o Princfpio da Diferen- ca de Rawls, de indexagiio completa das parcelas de bens primérios, pois diferentes bens primérios podem ser desigualmente eficazes na busca de fins abrangentes diferentes; sobre esse problema e outros afins, ver Plott 1978, Gibbard 1979, Blair 1988, Sen 1992b.) Mas ordenagées parciais po- dem ser uma base adequada para muitos juizos avaliatérios, especialmente para lidar com problemas graves de desigualdade. Quio extensos resultam ser 0s rankings de conjuntos capacitérios dependeré da (1) divergéncia en- tre as concepgSes abrangentes relevantes e das (2) diferengas entre os con- juntos dos quais se farao rankings. Os problemas analiticos envolvidos séo discutidos em Sen (1970a, 1970b, 1985b). Ver também Cap. 3. 146 26. 27. 28. 29. 30. AMARTYA SEN Presumivelmente, por raz6es de eqilidade, nao deve 0 caso em que os fins de algumas pessoas sejam servidos tao imperfeitamente pelos bens primérios (comparados com os fins de outras) que elas tenham razio para reclamar legitimamente da avaliagéo dos quinhées individuais em termos de bens primétios. A afirmagio abrangente de Rawls de que nao se necessita da “aproximago” dos bens primérios a “qualquer outro espaco de valores” (de fato, ela tem de ser evitada) parece passat por cima da natureza deste pro- blema particular. Se toda lista possivel de bens primarios (e todo modo de fazer um indice) de fato serve muito bem aos fins de algumas pessoas ¢ muito mal aos de outras, entio o trago importante de “neutralidade” se perde, e toda a linha de raciocfnio da “justiga como eqiiidade” pode ser minada de forma significativa. Assim, alguns requisitos fortes séo impostos sobre a relacio entre bens primérios e os espagos de outros valores. Nao discutirei esta questo neste ensaio. Ver também Ruth Anna Putnam (: 1991). Alguns dos problemas empiticos envolvidos séo discutidos em Sen (1984, 1985b, 1988c) e Kynch & Sen (1983). Ao propor sua teoria politica altemativa, Robert Nozick diz: “Agora os fi- l6sofos politicos devem ou bem trabalhar dentro da teoria de Rawls ou bem explicar por que ndo o fazem. As consideragées e distingdes que desenvol- vemos sao iluminadas por, e ajudam a iluminar, a magistral apresentagao, de Rawls de uma concepgao alternativa. Mesmo aqueles que continuam sem se convencer depois de lutar com a viséo sistemética de Rawls apren- derdo muito ao estudé-la de perto” (Nozick 1974: 183). E escusado dizer que esta tltima observago se aplica ainda mais Aqueles que permanecem sem se convencer apenas de partes particulares da concepgao abrangente de Rawls. Mas aqui estamos interessados especificamente em uma dessas par- tes, € por isso a atengdo concentrada sobre as diferengas com relagdo a Rawls, e nao sobre os muitos pontos de acordo e o grande débito Para com Rawls por nos ensinar em que consiste examinar a justiga. Note-se, contudo, que © préprio princfpio da liberdade que recebe esta prioridade € tornado menos exigente na dltima formulagSo escolhida por Rawls, citada anteriormente neste capitulo, comparada com a versio de 1971. A mudanga é feita, em grande parte, em resposta convincente crf- tica de Hart (1973). Sobre isso, ver Sen (1970a, 1976c, 1985a: Conferéncia 3).

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