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Som de cabra-macho: sonoridade, nordest idade e masculinidades no forr6é Masica de macho: sonoridad, nordestinidad y masculinidad no forr6 Sound of males: sonorities, masculinities and northeasterness in forr6 music Felipe Trotta! Resumo Neste artigo sero diseutidas as complexidades da construgdo da identidade nordestina articulada a partir de determinadas sonoridades assumidas coletivamente como “caracteristicas”. Parte-se da ideia de que a nogdo de nordestinidade estd esireitamente relacionada com a ideia de masculinidade. O tipo nordestino, cabra-macho e sertanejo forte, é deserito em sons, imagens e narrativas que estabelecem um modelo de maseulinidade efetivo, compartilhado em cangoes ¢ timbres. Como um género musical esireitamente identificado com 0 Nordesle, 0 forr negocia em seu repertorio modos de pensar e acionar essa maseulinidade nordestina, ligada as ideias de forca e virilidade. Suas sonaridades instrumentais mais caracteristicas — a sanfona e, atualmente, 0 naipe de metais — acionam tais modelos e, deste modo, processam ¢ alualizam tanto o pertencimento regional quanto cerlos modelos de masculinidade. Palavras-chave: Miisica popular. Identidade regional. Masculinidade. Sanfona. Naipe de metais " neullade de Cigneias Sociais¢ Humanas, Universidade Nova de Lisboa 26 P.ASL-172 NOV.2012 COMUNICAGAO, MIDIA E CONSUMO SAO PAULO ANOS VOL.ON 152. SOM DE CABRA-MACHO Resumen Este trabajo discutird las complejidades de la identidad “nordestina” en Brasil articulada con ciertas sonoridades tomadas colectivamente como “caracteristicas”. Se inicia con la idea de que la nocidn de nordestinidad esta estrechamente relacionada con la idea de la masculinidad. El tipo de brasileiio del nordeste, macho fuerte y viril, se describe en las muisicas, imdgenes y narraciones, estableciendo un modelo de masculinidad compartida en canciones y sonidos. Como género musical estrechamente identificado con esta region, el forrs negocia en su repertorio modos de pensar y activar esta masculinidad, vineulada a las ideas de fuerza y virilidad. Sus sonoridades instrumentales mds earactertsticas -el acordedn y, en la actualidad, la seceién de metales — proveen los modelos de activacién de esta identidad y actualizan tanto la pertenencia regional como algunos modelos de masculinidad Palabras-clave: Muisica popular. Identidad regional. Masculinidad. Acordeon. Seecidn de metales. Abstract This paper discusses male identity in Northeastern Brazil, which is closely related to certain types of sonorities. We argue that the Northeastern male is a cultural construction built on a very specific idea of masculinity. The typical representation is that of a strong male goat, widely described in sounrds, images and narratives. As a musical genre closely identified with the Brazilian northeast region, forrs negotiates different ways of thinking in its repertoire and elicits this model of masculinity linked with the ideas of strength and virility. ‘The most characteristic instrumental sonorities in this genre are the accordion and, currently, the brass section. Together they process and update regional belonging as well as certain typical models of masculinity: Keywords: Popular music. Regional identity. Masculinity. Accordion. Brass Section. Data de submissdo: 21/03/2012 Data de aceite: 29/06/2012 ESCOLA SUPERIOR DE PROPAGANDA EF MARKETING PELIPE TROTTA 153 Sonoridades e timbres ftulo Em 1985, Luiz Gonzaga langa o LP Sanfoneiro macho, cuja faix: estabelece uma associago entre a masculinidade do sanfoneiro e a ideia de identidade nordestina. No refrao, sua habilidade no instrumento € um indicio nio somente de suas qualidades musicais, mas também de sua “macheza”. Kita, sanfoneiro bom, eita sanfoneiro macho Ele toca em qualquer tom Toca dos oito aos 120 baixos Parceria de Gonzaga com Onildo de Almeida, a cangao nos interessa aqui como ponto de partida para uma reflexdo sobre a identidade nor destina ¢ sua associagao com referenciais de valentia ¢ masculinidade, materializadas ¢ tensionadas, no caso, a partir da sonoridade da sanfona ¢ do personagem do sanfoneiro, Pensar sobre a sonoridade de determinado artefato musical implica em discutir aspectos relativos 4 constituicao do timbre, que, por sua vez, se relaciona a um conjunto de repertérios ¢ memérias sedimentados no interior de um circuito cultural. O reconhecimento de um timbre de- pende do actimulo de uma cerla quantidade de informages sobre a fon- fe sonora € se processa através de comparagées de iniimeros parametros (altura, ataque, volume, “decay”, harménicos ete), Para José Miguel Wis- nik, so “os componentes de sua complexidade (produzida pelo objeto que 0 gerou) que dio ao som aquela singularidade coloristica que cha mamos de timbre” (WISNIK, 1999, p. 24). $6 reconhecemos os timbres previamente ouvidos, cadastrados em nossa meméria, Os timbres acionam pertencimentos estéticos e repertérios culturais que se tornam elementos da comunicabilidade da misica provocando 6 ticas e comerciais no mercado sao travadas em torno de sonoridades adeses e recus Na miisica popular midiatizada, as disputas especificas, que ocupam posigdes variadas de legitimidade. Em 1993, COMUNICAGAO, MIDIA E CONSUMO SAO PAULO ANOS VOL.9 N.26 P.151172 NOV.2012 154 SOM DE CABRA-MACHO 0 jornalista Tarik de Souza reclamaya da “invasdo da tecladeira brega” que estava atingindo 0 samba. O timbre do teclado era, naquele mo- mento (¢ alé hoje), entendido como parte de um conjunto de valores di surdo e pandeiro), que ameagava a integridade estética e simbdlica do prestigiado género. As noticias hoje ris tantes dos referenciais consagrados do samba (a base de cavaquinho, Wveis da passeata contra a guitarra elétrica no Bra sil de 1967, protagonizada por cantores ¢ compositores de destaque no cendrio da musica nacional podem servir como um termémetro da den- sidade emocional que cerca as disputas por sonoridades. A sonoridade elétrica do instrumento serviu de base para a internacionalizacao da cul- tura jovem ¢ de uma estética associada ao “moderno”, assim como um simbolo do proprio capitalismo tardio. A manipula guitarra permite a experimentacao de timbres ¢ intensidades variados, dio elétrica do som da matizando um som que pode ser amplificado ¢ adotado por uma juven- tude identificada em plano mundial (MILLARD, 2004, p. 8). A rejeigao. a guitarra e ao teclado é, portanto, uma negagao de um conjunto de cédigos culturais relacionados com esse universo simbédlico, somado ao que Keith Negus chama de “tecnofobia”, um medo um tanto paranoico de que a eletrificagao pudesse levar a uma perda das “qualidades huma- nas e auténticas da criatividade musical” (NEGUS, 201], p. 28). Porém, na contradigae dos conflitos cullurais, 0 mesmo som da guitarra gera uma identificagio juvenil Lansnacional associada a contracullura, que permite interpretagées variadas dos timbres e seus usos. Assim, artistas (como Gilberto Gil) que aderiram a pitoresca passeata contra a guitarra nao hesitaram em se apropriar de seu timbre alguns meses depois, como forma de refletir sobre a importancia dessa articulagao juvenil transna- cional em seus aspectos politicos e estéticos. Nao havia nada de confor midade ideolégica capitalista ou de dominacio cultural, por exemplo, na performance de Jimi Hendrix em Woodstock. O som distorcido da guitarra de Hendrix é fundamental para “distorcer” os significados esta- belecidos de dominagao e matizar outras ideias em torno do instrumen- toe da juventude do perfodo ESCOLA SUPERIOR DE PROPAGANDA EF MARKETING PELIPE TROTTA 155 As sonoridades participam ativamente das negociagdes cotidianas de simbolos, gostos, estilos de vida disputas culturais, econdmicas e politi- cas. Assim como a guilarra, a sonoridade da sanfona encarna uma série de cédigos culturais compartilhados, apre(e)ndidos culturalmente no univer- so da miisica popular midiatizada, No referido LP de Luiz Gonzaga, to- das as cangSes so acompanhadas pela sanfona, que executa introdugées, contracantos e levadas; eo instrumento € mencionado em 6 das 13 faixas, moldando uma unidade conceitual ¢ sonora para 0 disco. O som da sanfo- na é um marco estilfstico de praticamente toda a obra de Luiz Gonzaga, que estabeleceu em quase cinco décadas de atuacao no mercado uma in dissociagao entre seu som, sua imagem ¢ 0 sua figura mididtica. Maso que interessa reter aqui mais detalhadamente é a construgao de uma continui- dade semAntica entre as nogdes de identidade nordestina e masculinidade viril, que se apresenta explicitamente na faixa-titulo do LP. Nordestinidade e macheza A ideia de Nordeste comega a se desenhar a partir da segunda metade do século XIX ¢ ganha forga nas trés primeiras décadas do século XX. Em obra referencial sobre 0 processo, 0 historiador Durval Muniz de Albuquerque Jr. interpreta a “invengdo” da regio a partir do movimento regionalista da década de 1920, no qual sao elaboradas, pelas elites eco- nomicas, politicas, intelectuais ¢ artisticas da regido, diversas referéncias ao Nordeste e a nordestinidade (ALBUQUERQUE Jr., 2009). Segundo © autor, 0 que o regionalismo buscava era de alguma forma reverter 0 declinio econdmico e politico da regio O Nordeste é, portanto, filho da modemidade, mas ¢ 0 filho reacionério maquinaria imagético-diseursiva gestada para conter 0 processo de dester- ritorializagao por que passavam os grupos soci: is da drea, provocada pela subordinagao a outra area do pais que se modernizava rapidamente: o Sul. (ALBUQUERQUE JR, 2009, p. 342) COMUNICAGAO, MIDIA E CONSUMO SAO PAULO ANOS VOL.9 N.26 P.151172 NOV.2012 156 SOM DE CABRA-MACHO No desenvolvimento de uma estratégia de valorizagdo de sua econo- nia agraria, o eixo unificador de discursos e sentidos sobre a regio sera o sertio, articulado estreitamente a seca, “flagelo” que atravessa as repre- sentagdes de Nordeste na literatura, na pintura, na fotografia, nos discur- sos politicos, no cordel € na miisica, Assim, “o discurso regionalista das elites nordestinas procurava criar uma coesao interna, tanto com relagio ao espago — a visio da regio como um conjunto proprio — quanto em relagdio a esfera social” (PENNA, 1992, p. 50). O sentiment de nordesti- nidade ira repousar, em parte, na construgéo de uma classificagdo capaz de unifiear um tipo humano habitante da regiao: o “nordestino”. Aclima- tado na Inta pela sobrevivéncia num ambiente natural hostil, o sertanejo seré personagem chave dessa construgao, estabelecendo uma espécie de narrativa genérica de “nordestino”, materializada em variantes como o vaqueiro, 0 retirante, 0 cangaceiro, 0 jagungo, o beato, o coronel, 0 la~ vrador explorado. Todos esses personagens tem em comum a sua origem gcografica ¢ suia condigao de “machos”, que se associa também a prépria identidade regional. O nordestino € definido como um homem que se situa na contramao do mundo modemo, que rejeita suas superficialidades, sua vida deli da, artificial, histérica. Um homem de costumes conversadores, risticos, Gsperos, masculinos. O nordestino € definido como um macho, capaz de resgatar aquele patriarcalismo em crise, um ser viril capaz de retirar a regidio da s (ALBUQUERQUE JR., 2003, p. 91). juagiio de passividade e subserviéneia em que se encontrava Em todas as exemplificagdes do sertanejo-nordestino estereotipado esta presente a valorizagao de seus atribulos de coragem e resistencia para enfrentar as dezenas de adversidades do sertao contra as quais cle se do trabalho, a depara cotidianamente: a natureza cruel, as exploragé« seca, a pobreza, a fome, a violencia Emblematica na sedimentacao das associagées entre sertao e nor- destinidade, a obra de Lmiz Gonzaga inaugura na seara da cancio ESCOLA SUPERIOR DE PROPAGANDA EF MARKETING FELIPE TROTIA 157 popular uma narrativa sobre o Nordeste, “assentada no consércio um- bilical entre homem e natureza” (ALVES, 201], p. 114), Em sua obra, ater » entre a experiéncia urbana € 0 referencial sertanejo, vivencia- da pela situag’o da migragdo aparece como uma constante, colocan- do o sentimento da saudade como transversal a praticamente todo seu repertorio, seus atos, seus discursos e posicionamentos midiaticos. A miisica de Gonzaga se articula com a construgio do Nordeste como “espaco da saudade”, voltado para 0 passado, para 0 rural ¢, no caso, para a situagao de migrante (ALBUQUERQUE JR., 2009, p. 175). O sertio, entio, se tarna uma imagem poética e sonora que atravessa seu discurso como uma espécie de miragem idealizada pelos sentimentos de quem esté longe E assim que se conta o nascimento dessa muisica, que, saindo do sertao para a cidade, reinventa um sertao pé de serra, um sertao-lembranga, um sertdo cartao-postal, um sertio paraiso. Um sertio agora visto pelos olhos de quem partiu, mirou a cidade e mergulhou num mundo maior. (VIEIRA, 2000, p. 90). Sertao sonorizado por sua sanfona, que ser audivel também em seu sotaque, sua voz encorpada € no uso de expressdes regionais; serd visivel em sua indumentéria, em seu sortiso aberlo € nas imagens descritas de- lalhadamente em sui cangées, Numa série de correspondéncias eruza- das, 0 migrante é tema principal do repert6rio gonzagueano ao mesmo tempo em que € um personagem autobiogrdfico e, complementarmente, € 0 proprio ptiblico primordial do artista. Desterritorializado, 0 migran- te reafirma sua identidade nordestina no compartilhamento de habitos, cangdes e festas com outros migrantes, criando uma coesio afetiva € fortalecendo os elos solidarios e saudosos com um Nordeste imaginado. Mas h4 um aspecto importante na claboracéo dessa identidade mi- grante: ela é essencialmente masculina. Os elementos constitutivos da masculinidade sertaneja migrante s4o postos A prova no ambiente con- turbado da cidade, sobretudo no choque causado pelos habitos citadi- COMUNICAGAO, MIDIA E CONSUMO SAO PAULO ANOS VOL.9 N.26 P.151172 NOV.2012 158 SOM DE CABRA-MACHO nos relativos a sexualidade. Um exemplo interessante dessa exibigao de masculinidade € a cangdo Deixa a tanga voar (Luiz Gonzaga/Joio Silva), faixa de abertura do LP Sertanejo macho; na qual o personagem “Zé Malulo” se impressiona com as “tangas” das mulheres na praia, su- gerindo que elas afrouxem as “rabicholas” E, deixem “a tanga voar’. Ao se deparar com outros cddigos culturais, o sertanejo retirante reafirma sa nordestinidade também através da sua virilidade ¢ se impressiona com os “costumes” da capital. Zé Matuto foi a praia s6 pra ver como é que é Mas voltou mim da bola De ver tanta rabichola nas cadeiras das mulé A cena reproduz 0 modelo tradicional de posigdes masculinas ¢ femininas, na qual 0 olhar ativo masculino se di ge a mulher que, passiva, exibe seus “dotes”. Em artigo classico sobre esse regime do olhar no cinema, Laura Mulvey descreve 0 homem como dono do olhar ¢ a mulher como a imagem “para ser olhada” (MULVEY, 1983, p- 444). Como afirma Bourdieu, a sexualidade masculina repousa na ideia de virilidade, que acarreta uma visdo agonistica da masculini- dade, que se situa na “légica da proeza” (2009, p. 29). Ver o que as tangas escondem seria uma dessas proezas, que se completaria com a conquista efeliva, ou, em oulras palayras, a realizagdo do alo sexual. Contudo, 0 que me parece mais interessante nesse exemplo nao é exatamente a reprodugdo de modelos tradicionais de masculinida- de ativa, mas a forma com que essa masculinidade se articula com um referencial de identidade nordestina, O retirante assolado pela seca, explorado pelo coronel e expulso para a cidade grande em busca de dinheiro e alimento 6, ao mesmo tempo, um macho viril ‘i rabicholas. A masculinidade migrante se torna simbolo também de que olha des samente para as mogas na praia com suas tangas e sua identificacao regional, reverberando narrativas de coragem, vi- rilidade ¢ macheza ESCOLA SUPERIOR DE PROPAGANDA EF MARKETING PELIPE TROTTA 159 Espagos particularmente favordveis para manifestagdes da masculi- nidade, os contextos de festa ocuparao parte significativa do repertério e do imagindrio do forr6, produzindo uma mitica em torno da festa ser- taneja caracterfstica. No ambiente da festa forrozeira, a resisténcia fisica do sertanejo-macho estereotfpico € posta a prova na dindmica da danga e da tensdo da paquera. O forré é lugar onde os homens frnem a presenca das mulheres ¢ exercem ostensivamente sua prépria masculinidade, afirmando-se como verdadei- ros machos perante as fémeas ¢ perante outros homens. A danga, assim como a briga, é um momento de comprovacio do vigor fisico ¢ da pleni- tude sexual (MATOS, 2007, p. 433), Movido pela licenciosidade da danga, vez por outra temperado com enfrentamentos violentos, o forré se consolida como festa, como lugar de sociabilidade, como repertério cultural, como afirmacgao de uma identidade regional e como compartilhamento (e processamento) de cédigos culturais em transito, em conflito. Nesse espaco social, a nor destinidade ganha uma sonoridade que matiza as negociagoes sobre seus clementos constitutives ¢ seu conjunto de regras morais. O trio sanfona, zabumba e tridngulo — com ébvio protagonismo do primei- 10 ~ fornecerd, nos forrés, 0 som caracteristico para construgae de um reperlorio ¢ de um imaginario sonoro compartilhado, ligado 8 identi- dade nordestina. A sanfona e o “fungadinho” Inventado na primeira metade do século XIX na Europa, 0 acordeao ileiro na virada do s chegou ao Nordeste bras éculo, onde se populari- zou no sertio, ganhando 0 carinhoso apelido de sanfona. A adogao da sanfona como instrumento simbolo do forré tem relacao com suas caracteristicas fisicas ¢ sonoras, Trata-se de um instrumento portatil COMUNICAGAO, MIDIA E CONSUMO SAO PAULO ANOS VOL.9 N.26 P.151172 NOV.2012 160 SOM DE CABRA-MACHO e com grande volume, o que representa uma eficdcia enorme para a animagao de festas. Seu timbre gerado pela passagem do ar pelo fole € bastante analogo ao timbre do 6rgio ¢ do coral humano, sonori- dades historicamente dotadas de grande poder de evocagao e utili- zadas A exausto pelo repertério littirgico da Igreja Catélica. Com essas caracterfsticas, a sanfona se torna um instrumento importante nas festas, o que possibilitaria sua adogio como simbolo identitirio. Mas € necessario registrar, contudo, que a sanfona é um instrumento versatil, trafegando com desenvoltura por valsas, tarantelas, tangos, choros, dobrados, xaxados ¢ até mesmo pelo repertério de misica eru- dita. O que vai sedimentar a associagao entre a sanfona, Nordeste e 0 forrd 6 a construgio de um repertério de cangdes ¢ de procedimen- tos composicionais ¢ estilfsticos que se tornam referéncia de “miisica nordestina”, Em outras palavras, é a sanfona tocada de determina- da maneira ¢ associada a um conjunto tematico nas letras que ird sedimentar uma sonoridade ligada & nordestinidade. Uma descrigao pormenorizada dos mecanismos de execugao instrumental e das nu- ances estilisticas que conferem identidade musical ao repertério do forré foge do escopo desse trabalho, mas convém apenas mencionar que os sanfoneiros de forré desenvolveram um certo stingue no acio- namento rapido do fole que caracteriza a sonoridade do proprio géne- ro. O acompanhamento do “resfolego” do fole promove um convite & metforas entre o suor, a danga ¢ paquera, moldando insinuags proximidade dos corpos na danga, a respiragao e 0 sugestivo vai e vent ritmado da sanfona, o “fungadinho’” ‘lho de um reconhecido sanfone Luiz Gonzaga, o da regido do Araripe, ao migrar para a capital aplica a sanfona um jeito de tocar que incorpora o “suingue” do fungadinho, midiatizando-o. A sanfona fungada e midiatizada serd tema de varias letras e matriz para o es- tabelecimento da mitica do sanfoneiro, que, com a sanfona grudada strumento. Muitas no peito, ter4 uma continuidade atdvica como 0 ir vezes, no repertério de Luiz Gonzaga, a sanfona se torna personagem com atributos humanos ¢ é capaz de chorar (Sanfoninha choradeira, ESCOLA SUPERIOR DE PROPAGANDA EF MARKETING FELIPE TROTTA 161 1984), de gemer (Fole gemedor, 1964) ¢ de sentir. Uma ideia recorrente na construgdo do imagindrio do sanfoneiro é sua resisténcia em “tocar a noite inteira Sendo a forga fisica e a bravura atributos associados 3 propria identidade nordestina, 0 tocador animador de festas também deve ser possnidor de energia para aguentar a sanfona e segurar a fes- ta. Sua resisténcia é um termémetro da qualidade do evento e de sua puxada de fole. Sanfona e forré formarao uma espécie de simbiose tao poderosa que, no inicio da década de 1990, quando a vertente cletronica do gé- nero busca reconstruir s bases da identificagao entre forré e identida- de nordestina, no prescinde da sanfona. O disco de estreia da banda Mastruz com Leite, Arrocha 0 né (1991), é inteiramente acompanhado por uma sanfona vigorosa, presente em acompanhamentos, introdu- es € contracantos. E! claro que isso ndo significa que a sonoridade da Mastruz reproduz fielmente os referenciais consagrados do género. Em muitas cancdes dos primeiros discos da banda, 0 acompanhamento in- corpora bateria ¢ contrabaixo e a levada é baseada em um violao folk que articula o contratempo das miisicas, ora dobrando a sanfona, ora sozinho. Além disso, em varias gravagées € possivel ouvir um didlogo entre 0 solo de sanfona ¢ o saxofone alto, que muitas vezes substitui 0 fole na condugdo de introduces e intermezzos. Com essas caracteristicas timbristicas, a Mastruz, de fato, soa dife- rente da tradigiio do forré, mas no exatamente pela auséncia da sanfo- Soa diferente também na ou por uma dimimuigao de sua importénci por adotar de forma heterodoxa 0 repertério tradicional consolidado do forré, fundindo-o com outros estilos. A heterodoxia da Mastruz per- mite A banda gravar discos inteiros em homenagem a grande nomes do forré como o proprio Luiz, Gonzaga (1996), Jackson do Pandeiro (1996), ‘Trio Nordestino (1998) ¢ Dominguinhos (1999) ¢, simultane amente, regravar ¢ ssicos do mainstream da inckistria musical como 6 pot pourri de cangdes sertanejas Pense em mim/E! 0 amor/Cadé voeé, lancadas pelas duplas Leandra & Leonardo (em 1989) e Zezé di Ca- margo & Luciano (em 1991). COMUNICAGAO, MIDIA E CONSUMO SAO PAULO ANOS VOL.9 N.26 P.151172 NOV.2012 162 SOM DE CABRA-MACHO Um aspecto fundamental nessa liberdade tematica da Mastruz é precisamente essa associagio com 0 universo da cangio sertaneja do interior do Centro-oeste ¢ Sudeste do pais, que assumia 0 protago- nismo do mercado musical desde da década de 1980 com as duplas: Chitdozinho & Xororé e Leandro & Leonardo. No mesmo ano de langamento do primeiro disco da banda, Zeaé Di Camargo & Lucia- no explodem com seu classico Fo amor e sedimentam um merca- do sertanejo que também reprocessa 0 referencial rural do género. A emergéncia dessa novas formas de narrar 0 universo rural pode ser pensada a partir de uma hierarquizacao de valores na qual 0 urbano e 0 moderno assumem definitivamente a posi¢ao de prestigio, em detri- mento do agrario arcaico, que permanece confinado 2 nogao de atra- so. Num mercado cultural globalizado ¢ voltado para 0 jovem, a ideia de modernizacao passa a ser uma necessidade latente. O vaqueiro, 0 pedo ¢ 0 préprio sertao nao sao mais, necessariamente, exclusividade da identidade nordestina, mas podem se tornar referenciais jovens, articulados ao universo do mundo pop, mas mantendo referencias ao imagindrio rural modernizado. $e a viola de dez cordas era um refe- rencial a ser descartado no universo da musica sertaneja (NEPOMU- CENO, 1999, p. 203), no caso do forré a sanfona tinha uma posigao mais sdlida e nao foi imediatamente descartada, mas progressivamen- te associada a outras sonoridades que geravam um forr6 menos “san- fonado”. A negociagio de sonoridades é também uma negociagao de valores, de referenciais compartilhados e de experiéncias vividas, de modelos de sociabilidade e de identificagées. O embate entre um for- 16 baseado na sanfona e um forré mais variado sonoramente niio é apenas sobre preferéncias estéticas, mas sobre estilos de vida e refe- réncias culturais profundas: o tradicional e 0 novo; 0 consagrado € 0 recente, 0 “familiar” € 0 “jovem’. Atendéneia de “des-sanfonizagio” do forts iré se intens ificar a partir do final da década de 1990, quando novas bandas comegam a entrar em cena ¢ estreitar ainda mais as referéncias sonoras com 0 mundo pop (1180. de teclados, baladas romanticas, megaeventos ete.) ¢ com a propria mti- ESCOLA SUPERIOR DE PROPAGANDA EF MARKETING FELIPE TROTTA 165 sica sertaneja (indumentaria “country”, chapéus de cowboy, canto em. lergas, énfase temiilica nos rodeios € vaquejadas). O universo “country” dos pedes modernos nao se via representado na cultura do couro € na sonoridade da sanfona. [a sonoridade do naipe de metais, coadjuvados por uma banda pop (baixo, guitarra, bateria e, eventualmente, teclados) € por uma sanfona onipresente, mas com destaque nulo, que formaré a base de um novo conjunto imagindrio forrozeiro nordestino, sem nostal- gia pelo passado nem valorizacao do sertdo inocente ¢ sofrido; nordes- tino pop, moderno, do litoral, das praias, da alegria, da resistencia, da bravura, da macheza. Os metais e o volume: imaginarios e sons em tensao Emerge com 0 forré eletrénico um outro modelo de masculinidade atravessado por uma categoria até entéo ignorada pelo modelo cons- tituido de nordestinidade rural e viril: 0 jovem. A categoria “jovem” é bastante complexa e sua definigao, escorregadia. Lm sua forma subs- tantiva, busca delimitar uma certa condicao social ligada a faixa etd- ria ¢ 4 ctapa de transigao entre a infancia ¢ as responsabilidades da vida adulta (RONSINI, 2007, p. 23). Tal classificagao muitas vezes aponta para uma associagao do jovem com um sentido de ruptura, de revolta e violéncia (CASTRO, 2009) e corre o risco de homogeneizar as narralivas sobre grupos humanos identificados pela “condig&o jo- vem” (FREIRE FILHO, 2007, p. 54). Porém, utilizada em sua forma adjetiva, a categoria adquire novos contornos ainda mais complexos, associados a estilos de vida, habitos de consumo e priticas de sociabi- lidade (MARTIN-BARBERO, 2008). Falar, portanto, numa “mtisica jovem” implica em acionar modelos de pertencimento e de experién- cia musical compartilhados a partir da mtisica por grupos identifica dos como “jovens”. Mas significa também referir-se a determinadas sonoridades que historicamente se consolidaram concomitante ao surgimento de uma “cultura jovem” ¢ que auxiliaram essa cultura a COMUNICAGAO, MIDIA E CONSUMO SAO PAULO ANOS VOL.9 N.26 P.151172 NOV.2012 164 SOM DE CABRA-MACHO se sedimentar no imaginario transnacional. Ao mesmo tempo, con- vém ter em mente que esse som comum nao apaga as distingdes entre SINI, 0s jovens nem as complexidades das identificacées juvenis (ROD 2007, p. 163). De modo resumido, poderiamos apontar dois elementos constitu- tivos da sonoridade jovem. Km primeiro lugar, uma sincera predilegio pelas novas tecnologias do som, que tem como marco o surgimento da guitarra elétrica ¢ dos sistemas de amplificagiio cletronica do som apli- sados aos varios instrumentos. O processamento cletrénico do som molda uma outra matriz sonora A base de bits e de batidas regulares, que ser o referente sonoro mais caracteristico da musica eletrénica a partir da década de 1980, Mas 0 que me parece mais significativo na possibilidade de manipulagao direta do som é a possibilidade de criagdo de efeitos ¢ de sonoridades “artificiais”. O som sintético ou artificialmente gerado, em contraposigdo ao som gerado efetivamente da vibracao fisica de um corpo sonoro, constréi sonoridades antinatu- rais, que integram uma ideologia de valorizacao do urbano, do asfal- to, da “modernizagao”. i 0 som das fabricas, do ago, dos prédios, dos computadores, sons de um mundo que também se afasta do mundo. “natural”, Sons cletrificados e/ou processados cletronicamente que se tornam os principais timbres de qualquer musica passivel de ser clas- sificada como jovem. Como um desdobramento a busca pela inova 9 tecnolégica na sea- ra do som, um segundo elemento da sonoridade jovern esté relacionado a intensidade. A eletrificagao do som permitiu um substantivo aumento nos volumes praticados pelas bandas, sobretudo em shows ao vivo, se tornando um valor qualitativo da banda, Dj ou aparelhagem. Molda-se, assim, uma sensibilidade musical baseada na estética da saturagio. O an- tropélogo José Jorge de Carvalho, em um artigo sobre 0 universo musical contempordneo, exemplifiea essa sensibilidade analisando um show dos Rolling Stones, em 1994: ESCOLA SUPERIOR DE PROPAGANDA EF MARKETING FELIPE TROTTA 165 Tratase de um espetéculo projetado para saturar inteiramente os senti- dos do espectador. Como j4 € comum nesse tipo de show, as dimensdes do cendrio so Ho monumentais e permite deslocamentos tio amplos dos performers que faz-se necessirio colocar enormes teldes para que 0 ptiblico possa acompanhié-los visualmente. Assim, tornou-se possivel que 6s Stones de came ¢ oss0 fossem vistos simultaneamente as suas imagens projetadas. Ainda que participando de um show 20 vivo, eu me encontra- va igualmente frente a uma gravacto de um programa de televisto. (..) Uma serpente gigantesca soltou fogo pela boca, deixando-me cego por mais de um minuto; (...) fogos, explosdes frequentes, contrastes intensos de iluminagao, fimaca, trocas de roupas sucederam-se ao longo do show; a mtisica foi tocada a uma altura tal que por trés dias senti meus ouvidos afetados por um ruido interno. (CARVALHO, 1999, p. 15). Ao expor seu assombro com o espetaculo € os impactos do mesmo em suias retinas ¢ timpanos, Carvalho evidencia um choque geracional fun- dado na sonoridade e num conjunto de fatores que se tornam valorizé- veis numa performance ao vivo destinada a jovens. Se nos desviarmos do pessimismo do autor com essa nova sensibilidade, € possivel pensarmos que uma énfase na intensidade ¢ a predilecao por timbres eletronicos ¢ pesados constituem um marco sonoto capaz de ser adjetivado como “jo- ye”. Certamente os roqueiros dos Stones estavam, em 1994, de certa forma imbufdos em reafirmar seu pertencimento ao universo juvenil, apesar de sua idade fisica j4 madura. O som (alto ¢ elétrico) € possivel- mente 0 melhor atalho para a concretizagiéo desse pertencimento. A descrigo da experiéncia de Carvalho no show dos Stones ecoa em um exemplo quase didatico do repertérie de Avides do Ford, faixa de abertura do CD “Volume 6”, langado em 2009: Quem nao aguenta que corra, corra, corra Corta, corra do men paredio Ea galera esta no posto curtindo 0 som Os carango equipado, oh duclo bom! COMUNICAGAO, MIDIA F CONSUMO SAO PAULO ANOS VOL.9 N.26 P1511 Nov.2012 160 SOM DE CABRA-MACHO Formado por dezenas de caixas de som empilhadas, o “paredio” € um signo de qualidade do evento, seja ele na festa com as apare- Thagens completas, ou mesmo no “posto”, onde os automéveis (e seus donos) disputam para aferir quem possui o som mais potente. Nesse ponto tocamos (com intensidade) numa associagdo bastante linear entre a poténcia sonora e desempenho sexual. Tocar alto e “agnentar” sio atributos indicadores de masculinidade, sendo medidas de poder fflico. Ha por tras de toda essa mensagem uma apologia da forca como elemento primordial da constituigdo do masculino, que ser4 representada sonoramente na intensificagao do volume, nos ritmos afirmativos, na danca enérgica. Energia, forca e poder compartilham © mesmo campo seméantico quando ligados ao mundo do macho vi- ril, que tanto no baile rural quanto no “posto” deve demonstrar sua masculinidade. I! interessante observar que esse referencial nao se restringe a uma localidade, sendo uma constante no repertério do pop/rock transnacional’. Porém, no caso do forré eletrénico, a énfase no volume e na so- noridade eletrificada (presente na formagao das bandas com baixos, guitarras ¢ teclados) é dividida com 0 naipe de metais, que se tor- naram nos tiltimos 10 ou 15 anos uma marca estilistica da vertente. Formado predominantemente pelo trio trompete, sax ¢ trombone, 0 naipe executa sempre em bloco melodias em introdugées, interme- 2208, comentarios e codas. A execucéio em bloco implica numa indis- tingZo entre os trés instrumentos, que “timbram” para soar como um inico corpo de vibragdo, aumentando a amplitude das ondas sonoras geradas. dura, agress A sonoridade resultante do naipe de metais em bloco é forte, a, intensa. Nao por acaso, 0 naipe de metais tem sido empregado por séculos para execugaio de marchas militares, hinos, dobrados ¢ contetidos efvicos. Associado ao rufar da caixa de percus- so, © naipe molda uma sonoridade brilhante ¢ enérgica, propicia ‘No mesmoartigo, Carvalho citaa eangao “All men playon ten”, do grupode heavy metal Man O'War, que celebra ‘poder do ruido cnmirclecedor © afima “tern ¢ homem tem que tear no vel 10° (CARVALHO, 1999, p.6). muxculinicde ne heavy metal, ssi como no for eletrdniea, no funkou no 1ock, Galeria também pelo volume ESCOLA SUPERIOR DE PROPAGANDA EF MARKETING FELIPE TROTTA 167 para encarnar auditivamente os modelos de forga necessarios para demonstragao de poderio militar € relacionados ao poder monarqui- co (também militar)’. Na miisica popular, a utilizagio sistematica do naipe de metais co- mega com o rock da década de 1940 ¢ se populariza em quase todos 0s géneros musicais mundializados como signo de “modernidade”. A propria ideia de “metal” esta fortemente vinculada a industrializacao eA modernidade, sendo a sonoridade de ferros e “metais” reconhecida como pertencente a esse universo simbélico. Esta em jogo, nesse mo- mento, um novo padrao de escuta, que valoriza o timbre metélico e/ou cletrificado, 0 rufdo, o volume. Mas esta em jogo também, uma valo- tizacdio da jovialidade enérgica, especialmente conformada em torno da sexualidade. O uso do naipe de metais no forré eletrénico incorpora o processamen- to enérgico da masculinidade pop transnacional a uma certa narrativa de nordestinidade, que se fard presente através dos signos do rural reprocessa- do, de expresses de linguagem distintivas ¢ do proprio conservadorismo moral das letras. Compartilhando o pessimismo de Carvalho, Durval Mu- niz. de Albuquerque Jr. descreve assim 0 alto som das bandas: A estridéncia das sonoridades, ampliada com a introdugéo dos metais io dos sons das bandas de forré, como lrompete ¢ tombone na composi ‘volume cada vez mais alto com que so executadas e ouvidas essas mii- sicas, a0 mesmo tempo em que respondem a um dado regime de escuta, fruto da vivéncia no meio urbano, com a poluigdo sonora requerendo ouvidos que operam ¢ desejam sonoridades com volumes cada vez ma altos, ampliam ainda mais 0 que poderiamos chamar de uma surdez ¢o- letiva, contraditoriamente prochizida por vohimes maiores em decibéis, (ALBUQUERQUE JR., 2010, p.47) Na cinema, es asia izada em til moras cle eastlos, rei, rainhas, princesas.e ccoruas, Ecutioso notar, por exemple, que muitasvinhetas de apresentagao das rareas des grandes estidis cine. matogréficos (Disney, Fox, Columbia) sio eeom panhadas pelo naipe de metas, sempre numa ahmosfora visual de brithos e grandiosidade yer dois videos didaticos produzides para demonstrat esa associagao: htp:/iww. youtube. comivatel =r Pb 414 © tpadrrw youtube comAvatch?y=yUnien-nangjM COMUNICAGAO, MIDIA E CONSUMO SAO PAULO ANOS VOL.9 N.26 P.151172 NOV.2012 168 SOM DE CABRA-MACHO Nao posso deixar de registrar que a nogao de uma “surdez coleti- va” é um eco aimorfo das combalidas ideias de “regressio da audigado” de Adorno’, j4 exaustivamente criticadas para que se gaste mais tinta com elas (Cf. MIDDLETON, 1990, p. 34-63). No entanto, 0 autor é preciso quando aponta para a fusdo entre o naipe de metais e 0 a to volume como elemento constitutive de uma sensibilidade jovern hordestina. Mais do que isso, a nog&o de energia viril audivel na in- tensidade do naipe opera um reprocessamento da propria nogio de nordestinidade, atualizando seus referenciais. Ao analisar as letras (¢ somente as letras) de duas das principais bandas do mercado forro- zeiro - Calcinha Preta ¢ Saia Rodada -, Albuquerque Jr. sintetiza os modelos de homem que dela emergem: Estas cangdes parecem eleger como modelo de masculinidade vencedo- ra, como uma nova figura do nordestino, rapaz filho de classe média, aquele boy que tem um carrao, onde instala m enorme aparelho de som, simbolo de seu status, com os quais ira impressionar as mulheres ¢ obter sucesso em stias conquistas. (...) Uma masculinidade vivida como potén- gar em todo canto cia e como prepoténcia, achando-se no direito de bagur que chegar, ligar o som a toda altura independentemente de momento ou lugar, um personagem individualista e autocentrado, uma personalidade egoica e nare(sica com pouca nogiio de solidariedade ¢ convivencia co- munitiria e social. (ALBUQUERQUE JR., 2010, p. 35). Apesar de expor um preconceito indisfargével (talvez oriundo de um lapso geracional ou mesmo relacionado a classe social), Albuquerque Jr. toca num ponto primordial do debate. A oposigao entre um modelo de masculinidade tradicional fandado na moral conservadora do sertéio — essencialmente coletiva e social — e uma masculinidade jovem e urbana * No atigo“O fetichismo na mnisica ea regressto da audio", W. Adorno diagnostics uma rogessfo na cappaci- ede audits moderna, na qual os ouvintes eomportamse como criangas exigem sempre de novo, com malcia & pattinaeia, o mesmo alimento que uma vez. thes i oferecida” (1999, p.9). Assim, perdema“ibetdade de eseotha £1999, p. 89) numa esc baad a “descent” (1999, p02). ESCOLA SUPERIOR DE PROPAGANDA EF MARKETING FELIPE TROTTA 169 — basicamente individualista — talvez seja a chave para a compreensio das distingdes entre a sanfona ¢€ o naipe de metais. Sem abrir mao dos modelos de constituigéo do macho nordestino, mas tensionando essa identificagdo regional viril com outros cédigos masculinos da cultura internacional-popular, o forré das bandas, movido a metais em bloco em alto volume, reprocessa imaginarios e sonoridades, mantendo 0 pé firme num certo conservadorismo machista. Guitarra, teclado, naipe de metais, som alto ¢ uma sanfoninha ao fundo para negociar essa nova identidade masculina regional em festas, vaquejadas, shows e mesmo na televisfio em rede nacional, Sanfoneiro macho e um caminhao de raparigas O referencial de masculinidade nordestina processado pelo forré cle- trénico busca afastar 0 sentimento de nordestinidade do paradigma rural e sertanejo, entendido como algo “do pasado”. Porém, seria sim- plista imaginar que se trata de um processo de substituigao do estere- 6tipo de identidade sertaneja tradicional — ao som da sanfona — pela referéncia transnacional do pop — com acompanhamento de naipe de metais. Em todo o Nordeste contemporaneo, os dois modelos de iden- lidade nordestina convivem € compartilham espagos sociais e simbé- licos, com maior ou menor grau de enfrenlamento e/ou conciliagio. Artistas como Jorge de Altinho ou Geraldinho Lins processam sonora mente um “caminho do meio”, utilizando fortes referéncias 4 sanfona, assim como narrativas de nordestinidade joyem e urbana, sonorizada em alto volume e com vigorosos naipes de metais. Por outro lado, al- guns artistas consagrados no mercado musical, como Santana, Flavio José ov 6 compositor Xico Bizerra, hitam (o verbo é pertinente) pela valorizagao do referencial idilico da identidade nordestina, recusando novos imagindrios ¢ utilizando a sonoridade da sanfona de maneira quase ortodoxa. Ao mesmo tempo, as bandas de forré eletrénico (como. Avides do Forté, Calcinha Preta ¢ Saia Rodada) negam veementemen- COMUNICAGAO, MIDIA E CONSUMO SAO PAULO ANOS VOL.9 N.26 P.151172 NOV.2012 170 SOM DE CABRA-MACHO te o referencial sonoro da sanfona e apostam nas narrativas de um Nor- deste cosmopolita e jovem, antenado com o pop internacional e seus referenciais comportamentais € sonoros. Apesar dessas distintas formas de negociagdo da identidade nor- destina, ndo € muito arriscado afirmar que todas elas se apoiam fortemente na nogao da virilidade € da resisténcia masculina como terreno seguro de afirmagao da nordestinidade. A condigao de macho e de nordestino é continuamente referenciada nas letras ¢ sonorizada em instrumentos de grande poténcia sonora (sanfona ou metais). O nordestino é um “macho hiperbélico” (ALBUQUERQUE JR., 2003, p. 106), que “toca em qualquer tom”, a noite toda, seduz, conquista ¢ resiste. Quando se reconhece como jovem e urbano, aumenta o som do seu carro ¢ enche 0 veiculo de “rapariga com as quais exerce sua superlativa virilidade, como na cangao Parar meu carro na frente do cabaré (SALA RODADA, 2007): Eu vou parar meu carro na frente do eabaré fai ter muita mulher, vai ter muita bebida Todo o puteiro me conhece, eu sou o cara Que alugou um caminhio pra encher de rapariga Enquanto identidade regional masculinizada, a nordestinidade se apresenta ela mesma como um ato de macheza, feito numa terra on- de “até ay mulheres devem ser machos” (ALBUQUERQUE JR., 2003, p. 141). O sanfoneiro que loca em qualquer tom com seu volumoso instrumento compartilha tais em que aluga o cédigos viris com 0 jov caminhao e contrata as raparigas. Ambos sfio construgdes estereotipa- das de um imagindrio cultural que vineula, rimando, 6 Nordeste com os “cabras da peste”, conquistadores de terras ¢ mulheres, no sertio ou na cidade. Depois da praia, Zé Matuto alugon um caminhdo e parou na frente do cabaré. Kita, nordestino macho! ESCOLA SUPERIOR DE PROPAGANDA EF MARKETING FELIPE TROTTA 171 Referéncias ALBUQUERQUE JR, Durval Muniz de. A invengda do Nordeste © outras aries. 4, edigfo. Sito Paulo: Cortez, 2009. “O nordestino de Saia Rodada e Calcinha Preta ou as novas faces do regiona- lismo e do machismo no Nordeste”. In: QUEIROZ, André (Org.). Arie & pensamento: a reinvengao do Nordeste, Fortaleza: Servigo Social do Gomércio, 2010. p. 44-65. Nordestino: uma invengao do falo. 2003. ADORNO, Theodor W. O fetichismo na mtisica € a regressao da andigdo In: Colegao Pensadores. Sao Paulo: Nova Cultural, 1999. ALVES, Elder P. Maia, A economia simbética da cultura popular sertangjo-nordestinas KAUPAL, 2011 BOURDIEU, Piette, A dominagdo masculina. 6". edigdo, Rio de Janeiro: Bestrand Brasil, 2009. Maceii CARVALHO, José Jorge de. Transformagées na sensibilidade musical contemporanea. Série Antropologia. N. 266. 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