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Vista cansada

Otto Lara Resende


(...)
Se eu morrer, morre comigo um certo modo de ver, disse o poeta. Um poeta s isto:
um certo modo de ver. O diabo que, de tanto ver, a gente banaliza o olhar. V novendo. Experimente ver pela primeira vez o que voc v todo dia, sem ver. Parece
fcil, mas no . O que nos cerca, o que nos familiar, j no desperta curiosidade. O
campo visual da nossa rotina como um vazio.
Voc sai todo dia, por exemplo, pela mesma porta. Se algum lhe perguntar o que
que voc v no seu caminho, voc no sabe. De tanto ver, voc no v. Sei de um
profissional que passou 32 anos a fio pelo mesmo hall do prdio do seu escritrio. L
estava sempre, pontualssimo, o mesmo porteiro. Dava-lhe bom-dia e s vezes lhe
passava um recado ou uma correspondncia. Um dia o porteiro cometeu a descortesia
de falecer.
Como era ele? Sua cara? Sua voz? Como se vestia? No fazia a mnima idia. Em 32
anos, nunca o viu. Para ser notado, o porteiro teve que morrer. Se um dia no seu lugar
estivesse uma girafa, cumprindo o rito, pode ser tambm que ningum desse por sua
ausncia. O hbito suja os olhos e lhes baixa a voltagem. Mas h sempre o que ver.
Gente, coisas, bichos. E vemos? No, no vemos.
Uma criana v o que o adulto no v. Tem olhos atentos e limpos para o espetculo
do mundo. O poeta capaz de ver pela primeira vez o que, de fato, ningum v. H
pai que nunca viu o prprio filho. Marido que nunca viu a prpria mulher, isso existe
s pampas. Nossos olhos se gastam no dia-a-dia, opacos. por a que se instala no
corao o monstro da indiferena.

Texto publicado no jornal Folha de S. Paulo, edio de 23 de fevereiro de 1992.


Em nossa formao como Psiclogos somos convidados a
desenvolver olhos que Vem, que percebem o outro, em sua
individualidade, em sua singularidade. Como ajudar ou outro sem
conhec-lo? A Antropologia faz parte de nossa formao, pois
precisamos conhecer o ser humano tambm em seu aspecto social e

cultural, saber os caminhos que nos trouxeram at aqui, ao longo da


histria, e as relaes que nos unem no presente.
O Psiclogo precisa ter interesse pelo ser humano, gostar de gente,
ter uma mente aberta e um profundo respeito pela histria de cada
ser.
SAS

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