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DO ACONTECIMENTO DA VERDADE EM UMA AULA DE FILOSOFIA Francisco de Moraes Se néio se espera ndo se encontra o inesperado.. Heraclito Dentre as coisas as quais costumamos atribuir a qualidade de serem verdadeiras, dificilmente colocariamos uma aula, quanto mais uma aula de Filosofia. Consideramos verdadeiras nossas intengdes e propésitos, quando estes se fazer acompanhar de ages correspondentes; vemos também como verdadeiras as coisas que reconhecemos ser 0 que esperévamos que elas fossem: cadeira de verdade & a que serve efetivamente para nos sentarmos nela; por fim, tomamos por verdadeiras também as proposig®es, na medida em que estas concordam com estados de coisas verificaveis. Em todos esses casos, nao temos nenhuma dificuldade em qualificar algo de verdadeiro, ¢ isso pelo fato de que sempre, de modo distinto a cada vez, di-se 0 que podemos chamar de concordancia. A intengio concorda ou corresponde a agiio, a coisa corresponde ou concorda com nossa expectativa prévia a seu respeito, a proposigao concorda com a situagdo ou estado de coisas verificado. Estamos, portanto, no terreno da concordancia quando qualificamos algo de verdadeiro. Supondo que uma aula de Filosofia possa ser qualificada de verdadcira, com o que ela concordaria? Com aquilo que ja esperivamos dela, responderfamos. Mas ha, finalmente, alguma coisa que, de modo natural e irrefletido, podemos jé estar esperando de uma aula de Filosofia? Temos de comegar questionando 0 que acontece em torno de uma aula em geral. Sabemos, por experiéncia, que hé muitas maneiras de se dar aula. Sabemos que ha professores empenhados ‘outros nem tanto, professores competentes ¢ outros nem tanto, professores que dominam o conteiido ¢ outros nem tanto, professores que planejam suas aulas ¢ outros nem tanto. Sabemos também que ha alunos que querem aprender e outros nem tanto, alunos que se dispdem a reverem o que ja consideram saber outros nem tanto, alunos que se preparam para as aulas lendo o material disponibilizado pelo professor e outros nem tanto, alunos com facilidade de acompanhar o raciocinio do professor e dos colegas e outros nem tanto. De todo modo, parece que a aula, toda aula, acontece mediante uma experiéncia de correspondéncia entre 0 que ¢ passado pelo professor © 0 que é recebido pelo aluno. O professor ensina ¢ 0 aluno aprende, o professor passa 0 contetido ¢ o aluno o assimila. Quando esta relago acontece na mais perfeita ordem, dizemos que uma’ aula aconteceu ou acontece “de verdade”, que estamos de verdade tendo aula. J4, pelo contrario, quando, por algum motivo, no acontece a reciprocidade esperada ¢ ficamos sem saber exatamente 0 que estamos fazendo ali na sala de aula, entio sentimo-nos propensos @ dizer que nada est4 acontecendo de verdade ¢ que no existiu propriamente aula. Essa sensagtio penosa ¢ normalmente experimentada, em primeiro lugar, pelos alunos e, em segundo lugar, pelo professor, 0 qual pode tentar, com maior ou menor sucesso, contornar 0 embarago € fingir que nada fora do normal esti propriamente acontecendo. Do que dissemos acima, depreende-se que a experiéncia de correspondéncia atuante ali onde se espera verdade de uma aula consiste em uma espécie de sincronia entre 0 ato de ensinar por parte do professor e 0 ato de aprender por parte dos alunos. Uma aula estaria acontecendo de verdade somente enquanto os alunos nutrem a sensa¢do de estarem aprendendo e o professor a sensagao de estar ensinando. De nada adiantaria ao professor planejar a sua aula nos minimos detalhas ¢ executar 6 seu planejamento de modo rigoroso e no tempo previsto se os alunos, por seu turno, nio acompanhassem a aula e demonstrassem_ mio estar compreendendo o assunto. A verdade da aula nio esté, portanto, na correspondéncia entre planejamento ¢ execugao estrita daquilo que se planejou. A aula no é alguma coisa que se possa fabricar em conformidade com as intengdes do fabricante, Por mais que o planejamento seja necessdrio para que uma aula acontega de verdade, muitas vezes é preciso que esta‘iiltima tome um rumo préprio a partir do que nela se manifesta. Nao temos como saber antecipadamente qual ser a reagio de uma turma dquilo que planejamos para uma determinada aula, Neste caso, quando o professor & capaz de acolher 0 que se manifesta na aula ¢ modificar planejamento a fim de tomd-lo adequado a0 que se manifesta ou até mesmo abandoné-lo, dizemos que cle é de verdade um professor; quando, porém, ele fracassa constantemente nesse aspecto e fica preso ao planejamento, dizemos que ele no sabe ensinar, que ele nao é um professor de verdade, por mais que ele possa “dominar o contetido”. Para que uma aula acontega de verdade seria preciso, ento, que professor se mostrasse capaz de adequar seu planejamento aquilo que ocorre na aula independentemente de sua vontade. Sendo assim, e este € 0 ponto para o qual queremos chamar a atengao, hi em toda aula uma primazia da manifestagiio da verdade ou da verdade manifestativa sobre a verdade como correspondéncia, no sentido da maior ou menor capacidade do professor de adaptar seu planejamento as circunstancias dadas na aula. Bem, mas do que estamos falando agora ao falarmos de verdade manifestativa? Podemos entender verdade de modo distinto daquele anteriormente mencionado, a saber, como correspondéncia? Em diversas ocasiées ao longo de seu caminho de pensamento, Martin Heidegger uscou questionar a concepsio tradicional de verdade como concordancia do emunciado com as 20 coisas, chamando justamente a atengio para uma espécie de primado da verdade manifestativa sobre a verdade predicativa. No segundo capitulo de 4 esséncia da verdade, por exemplo, 0 qual tem como subtitulo: “A possibilidade intema da concordancia”, essa compreensdo corrente de verdade como a concordancia do emunciado apresentador com as coisas ¢ colocada em questio. Heidegger mostra ali que todo enunciado cumpre a sua func&o & medida que alcanga apresentar as coisas “assim como elas si”; isso quer dizer que todo enunciado busca, a partir de si mesmo, realizar essa concordancia. Aristételes distingue o enunciado apresentador (/égos apophantikés) de outras modalidades de discurso igualmente dotados de significagio pelo fato de ele poder ser verdadeiro ou falso, ou seja, pelo fato de ele jé possuir em si mesmo uma pretensio de ser verdadeiro.* Um enunciado nao esté af simplesmente, sem nenhuma referéneia propria, para somente depois, num segundo momento, ser remetido as coisas. Em todo enunciado jé se faz presente, conjuntamente, um enunciar. Como agio especificamente humana, 0 enunciar é, como tal, um comportamento. O que esté em jogo nesse comportamento? f: isso 0 que propriamente se pergunta Heidegger no capitulo acima referido. Sendo o enunciado, em iltima instancia, um enunciar, pode dizer-se que a referéncia as coisas visadas pelo enunciado ja deve estar, de alguma maneira, aberta. E que nenhum comportamento humano pode ocorrer no vazio de uma total auséncia de referéncia. Como poderiamos ser, de alguma maneira, se ja ndo retirissemos a medida de nosso comportamento de algo que previamente se encontra acessivel? S6 ¢ possivel um comportamento a partir de um espago aberto desde o qual as coisas comparecem tais como sao, viabilizando a familiaridade do uso ¢ da lida. E, portanto, no uso e na lida que as coisas se manifestam, em primeira mao, assim mesmo como clas sdo, ¢ isso sem que seja possivel iludirmo-nos a seu respeito. Quem sabe usar um utensilio qualquer como, por exemplo, uma caneta, nao pode iludir a si mesmo e nem aos outros quanto a isso. De todo modo, a caneta ndo é, assim, primeiramente, um objeto que esti diante de nés ¢ que possui estas ou aquelas propriedades, mas alguma coisa que propriamente descobrimos no uso, isto é, em seu manuseio. Se nfio soubéssemos manusear uma caneta nao saberiamos o que ela é. Caso nio soubéssemos, absolutamente, 0 que significa escrever — e escrever € um comportamento possivel como tantos outros — jamais terfamos acesso a (ndo veriamos) uma cancta como caneta. Isso quer dizer que nio temos acesso, primeiramente, as coisas enquanto simples dados disponiveis ¢ verificéveis, mas antes as préprias coisas ja comparecem como tais fazendo sentido, desta ou daquela forma, para um comportamento possfvel. 4 Da interpretacéo, 17 a 1 21 Se as coisas ja no fizessem sentido nao poderiamos sequer visé-las, discuti-las ou esclarecé- las mediante enunciados. E que todo enunciado, enquanto um cnunciar, guarda em si mesmo uma referéncia privilegiada A presenga de alguma coisa que, em primeira instncia, jé se revelou para o —uso para a lida. Desse modo, nio se pode dizer que é 0 enunciado que como tal cria, pela primeira vez, a referéncia descobridora para com as coisas que nos cercam. E 0 que Heidegger pretende dizer quando afirma que “a verdade nao tem a sua morada originariamente no enunciado” Isso fica mais claro se pensarmos no seguinte: 1) Nao precisamos que nos expliquem primeiro o que € uma coisa para somente enti podermos usi-la adequadamente; 2) Mesmo quando recebemos instrugdes a respeito de algo sé sabemos realmente o que cle é quando aprendemos a usé-lo, isto 6, quando ele se faz presente para um comportamento possivel. E o que fica visivel na seguinte passagem de Mystique et Poésie, de Henri Brémond: és niio aprendemos a nadar. Acontece apenas que um dia, na primeira tentativa ou ao cabo de imimeras outras, constatamos surpresos que 0 chido nos fugiu dos pés e nés nfo afundamos, ‘mas nos movemos dentro da 4gua sem andar. E que estamos nadando!* De certa forma, o que Heidegger procura demonstrar é que a verdade manifestativa ¢ a condigio de possibilidade para a verdade do enunciado no sentido da concordancia ou adequagéo. Se as coisas se passam desse modo, como fica a relag&o entre verdade manifestativa, de um lado, ¢ verdade como concordancia, de outro, na situago de uma aula de Filosofia? Vimos que para que uma aula acontega de verdade é preciso que 0 professor alcance expor seu planejamento aquilo que se manifesta na aula, independentemente da sua vontade, da mesma forma que um enunciado verdadeiro deve ser capaz de apresentar as coisas assim mesmo como elas se manifestam sendo. Enquanto pensivamos a aula como uma produg&o por parte do professor, sua verdade parecia depender inteiramente deste tltimo no sentido de uma correspondéncia simples entre planejamento ¢ execugiio. Agora parece que a situacio se modificou inteiramente, pois surgiu-nos que é antes a receptividade dos alunos ao desempenho do professor que cria as condig6es para que uma aula acontega de verdade. $6 que pensando assim talvez ainda no tenhamos atingido o essencial. E que a receptividade dos alunos ao desempenho do professor no depende tanto, em primeiro lugar, dos proprios alunos por si mesmos, mas antes daquilo que a fala do professor toca ou deixa de tocar, ou 5 HEIDEGGER, M. Marcas do caminho. Petropolis, RJ: Vozes, 2008, p. 197. SCitado por Emmanuel Carneiro Ledo em “O problema filoséfico da logica” In Revista filosdfica, Petrépolis, RJ: Vozes, 1991, p. 17- 22 22 seja, do sentido daquilo que se est aprendendo’. mediante a receptividade cultivada ao sentido que 0 professor pode ensinar e ser professor e 0 aluno, por seu turno, pode também aprender e ser aluno. Por outro lado, & aprendendo que o aluno ensina e pode ensinar, é ensinando que o professor aprende ¢ pode aprender. O que se manifesta na aula independentemente da vontade do professor e que toma corpo através da atitude de perplexidade dos alunos nada mais é do que uma insistente reclamagao de sentido, a qual constitui a vida de todo aprender ¢ ensinar. E essa reclamagao de sentido que ninguém pode propriamente nem aprender e nem ensinar, mas jé deve chegar possuindo, pois sem ela nenhuma aula poderia acontecer de verdade e/ou nao acontecer. Esta tiltima nfo pertence propriamente nem ao professor e nem tampouco aos alunos, sendo antes o que faculta a cada um ser oqueé. Até agora percorremos 0 caminho que nos entregou ao questionamento da verdade no contexto de uma aula, Aquilo que propriamente se ensinava e aprendia nesta aula em geral teve de ser deixado fora de questo. Tratava-se de uma aula qualquer, independentemente de seu contetido. Vimos que o planejamento e a competéncia do professor de nada serviriam sem a receptividade dos alunos ¢ sem aquilo que se manifesta através dela: a reclamagao de sentido. O professor s6 seria de verdade professor pela prontidao com que acolhe e toma para sia perplexidade dos alunos, pois estes liltimos, amitide, tendem a desconhecer a importincia e o alcance de sua propria reclamagao de sentido. Somente por isso o professor se faz necessirio e até mesmo imprescindivel; ge fato, nao temos como estar, desde o inicio, em plenas condigdes de aprender a partir de.nossas proprias perplexidades. Um professor nao ¢ importante porque nos faz aprender determinados contetidos de maneira mais pritica e facilitada; um professor é importante porque, mediante o cultivo da reclamagdo de sentido, nos faculta reconhecer a fonte de todo genuino aprendizado: a nossa propria petplexidade. Se isso & verdadeiro para todo e qualquet empenho de ensinar e aprender, mais verdadeiro ainda se mostra ser quando se trata do empenho de ensinar e aprender Fjlosofia. Podemos decerto ensinar e aprender Filosofia como se se tratasse de um contetdo qualquer. possivel mesmo salientar a importincia de determinados temas tipicamente filoséficos para a cidadania e para a avaliagfo critica do que acontece de mais relevante no mundo atual: pense-se, por exemplo, nas questdes do meio ambiente e da politica, da cultura da arte, do trabalho ¢ da conyivéncia. A reflexo filosdfica, por sua natureza generalizante ¢ libertadora, tem muito a contribuir para a conquista de uma postura mais esclarecida e livre de preconceitos ingénuos em 7 £ claro que mais que este ema em questo, tamos nos referindo aqui a una situagio em que mio ¢ o carisma do professor que desempenha 0 papel principal, por ‘imo no seja irelevante, mas antes aquilo em funglo de que a aula esté se orientando: a coisa mesma, 0 assunto, 0 23 relagiio a todas essas tematicas. No entanto, pode acontecer, ¢ isso tem acontecido mesmo com muita fiequéncia, que o ensino de Filosofia acabe resvalando para a simples exposigo superficial dogmiatica dos sistemas e doutrinas filosficos do passado. Neste caso, o que tem acontecido equivale a mais completa desfiguragao da propria Filosofia. Esta, mais do que qualquer outra disciplina ou tipo de conhecimento, representa a ousadia de assumir a perplexidade do ndosaber como aquilo que pode haver de mais rico e promissor. E isso significa que é exatamente em uma aula de Filosofia que a verdade, no sentido de sua manifestagao, deveria acontecer da maneira mais distinta e perceptivel possivel, sendo acolhida sem temores e/ou subterfiigios. Jamais deveriamos temer a manifestagfo da verdade como insistente reclamagao de sentido em uma aula de Filosofia; esta tiltima € que deveria dar 0 tom e ditar o ritmo da aula, sem que o professor sentisse os temores habituais de nao estar “andando com a matéria”. Também os alunos deveriam a cada vez ser orientados a questionar as suas proprias expectativas prévias de que as coisas fagam logo e imediatamente sentido, como se fosse possivel em Filosofia alcangar um entendimento gradual e progressivo do “conteiido”. Imagine uma situagio na qual um professor de Filosofia se esforea para esclarecer 0 significado da maiéutica socrdtica ou da nogao de imperativo categérico em Kant. A primeira pergunta que’o aluno fard a si mesmo em siléncio ¢ que, num segundo momento, poderd talvez explicitaf, seré aproximadamente a seguinte: que importancia tem aprender algo assim? Que diferenga faz saber ou nfo saber essas coisas? Tais perguntas nao so irrelevantes; elas fazem parte do que anteriormente chamamos de reclamagao de sentido e nao podem ser simplesmente ignoradas pelo professor. Por outro lado, por mais que o professor saiba por experiéncia que est longe de ser irrelevante familiarizar-se com tais nogdes, ele nio tem nenhum recurso pratico imediato e A mao para persuadir 0 aluno sobre a importancia de semelhante aprendizado. De nada adiantaré, por exemplo, apelar para a boa vontade do estudante ¢ pedir-Ihe que tenha confianga, dizendo-lhe que muitas coisas s6 adquirem importéncia com o tempo; ou, entio, esconder-se atrés da presumida importancia histérica ¢ cultural de tais conhecimentos. Pode-se também ignorar semelhantes pontos ¢ tratar apenas das “questdes atuais”, na esperanga de assim ganhar a atengao dos alunos. Este talvez seja o caminho mais curto para a completa banalizagao da propria Filosofia. Que fazer diante dessa situagao? O primeiro passo decisivo seria 0 reconhecimento de que se trata de uma dificuldade real e inerente a0 préprio exercicio da Filosofia; sendo assim, deve-se assumir logo de cara que tal dificuldade é incontornével. Nao podemos abrir mao de esclarecer determinadas nogées estritamente filos6ticas sob pena de descaracterizarmos o proprio ensino de Filosofia, Por outro lado, também nao 24 temos como transformar essas nogdes em algo que faga sentido imediatamente para os alunos. Temos de caminhar junto com a dificuldade. O primeiro movimento seria o de fazer nossa a perplexidade do aluno. Nao se trata de fingir que ndo sabemos 0 que de fato sabemos. Isto nfo seria possivel ¢ logo tal atitude acabaria sendo percebida pelos alunos como uma pedanteria insuportavel de nossa parte, e também como uma falta de confianga. Precisamos, ao contrério, lembrar que no sabemos; precisamos dar lugar para que o ndosaber acontega em sua propriedade. Como tal coisa seria possivel? Pensemos um pouco mais no caso acima mencionado. Quem jé compreendeu algo daquelas nogGes sabe da sua importincia, Por outro lado, de que tipo essa importincia? Nao se trata de uma simples utilidade. Nao podemos usé-las para resolver nenhum problema pratico imediato. De fato, olhando bem, temos de confessar que elas nao servem para nada. Elas nao se prestam a nenhum uso para fins cotidianos. Nao podemos sequer localizar, no mbito da vida, uma regitio determinada e ja reconhecida a partir da qual essas nogdes ganhem relevancia. Ora, precisamente isso é 0 que podem fazer e fazem constantemente todas as ciéncias particulares. Elas ja partem de certos ambitos especificos em fungdo dos quais sempre se podem antever aplicagdes ¢ utilidades para o que se esta aprendendo. A Filosofia, por seu tumo, est4 completamente deslocada da perspectiva cotidiana. ‘Acaso deveriamos ensiné-la ignorando esse fato fundamental? De forma alguma. Portanto, nao cabe tentar transformar a filosofia em alguma coisa de similar 4s ciéncias particulares. Precisamos assumir que n&o temos como demonstrar a validade de tais nogdes a partir do que ja possui valor © € reconhecido como valido. Mas isso justamente nao precisa ser feito de maneira explicita, ao modo de uma permanente justificagao. A Filosofia — para exercer-se ¢ ser o que é — nao precisa ficar se justificando. Basta que ela seja capaz de acionar 0 espago de liberdade, aquele fundo sem fundo de nossa existéncia integral. E assim que ela se justifica e de nenhuma outra forma. Mostrar 0 sentido do didlogo socrético ou do imperativo categérico jé seria ent&o, por si mesmo, um empenho de libertagio para a liberdade de pensar, que outra coisa nfio é do que o cultivo da reclamagdo de sentido presente desde sempre em todos e em cada um. Para quem se move nesse espago, 0 que menos importa é 0 esforgo de tentar provar alguma coisa, apresentando-a como a conclusio necesséria de determinado raciocinio. Para essa diferenga fundamental de procedimentos nos acena Heidegger em uma passagem muito significativa da conferéncia O que quer dizer pensar?: ‘Quem quer ainda demonstrar e ter provado algo que somente se revela a medida que aparece a partir de si mesmo ¢ nisso que, 20 mesmo tempo, se recolhe - este, de modo algum, julga segundo um critério mais elevado ¢ mais rigoroso de saber. Ele pura e simplesmente calcula fa, na verdade, inadequada. O que somente se anuncia aparecendo 25 em seu proprio recother-se — a isso correspondemos, & medida que para isso acenamos ¢, assim, nés mesmos nos orientamos nisso que se mostra em deixando-o aparecer no seu proprio desencobrimento. Este mostrar-se simples é um trago fundamental do pensamento, 0 caminho para aquilo que, desde sempre e para sempre, dé 20 homem o que pensar. Toda e qualquer coisa se deixa demonstrar, isto é, derivar a partir de pressuposigdes adequadas. Poueas coisas, porém, ¢ estas ainda raramente, deixam-se mostrar, isto é num aceno, liberar para um encontro.* texto acima citado fala de alguma coisa que justamente dé ao homem a pensar 4 medida yxque se mostra e se recolhe, Nao estamos de posse daquilo que assim se da ao encontro. Podemos, * _contudo, corresponder a essa presenga, ¢ isso acontece quando pensamos. Ninguém pensa apenas “com os seus botes”. Todo esforgo de pensamento retira o seu direito de ser e a sua propriedade de um acolhimento prévio do que se mostra em se recolhendo. Como isso? Parece uma pura contradigao dizer que alguma coisa, ao mesmo tempo, se mostra e se recolhe. Haveria algo assim? Se olharmos mais de perto ¢ com calma, poderemos pereeber que todas as vezes que nos deixamos ficar junto a alguma coisa que ndo possui cidadania em nosso mundo familiar, deixando espago para ela se manifestar a partir de si numa espécie de cordialidade, sem a pretensio de reduzi-la ao jé conhecido e costumeiro, dé-se uma presenga que em si mesma se mantém recolhida, Essa presenga é fascinante. Ela nos preride por seu fascinio e, ao mesmo tempo, deixa livre o nosso olhar indagador. Tomados em seu Campo de atracao, j4 nfo temos como saber exatamente onde estamos ou quem somos, por mais que os vinculos familiares com as coisas e com os outros nao desaparecam. Seria perfeitamente imitil e improcedente tentar provar qualquer coisa aqui. Toda prova supde a exterioridade de um modo de manifestagio mais raso e banal. No entanto, o que assim nos requisita e nos prende ndo nos desvia de nés mesmos, no sentido de um extravio, mas antes nos entrega ao nosso préprio fundo de liberdade. Numa aula de filosofia, quando tudo acontece da melhor forma, é isso que propriamente esté acontecendo. Deixando livre aquilo que s6 pode ser acessado livremente, o professor se entrega ao esforgo de determinagao pensante do que assim se apresenta e, ao mesmo tempo, convida os alunos para participarem do mesmo empenho. Sua fala soa amigvel ¢ convidativa, sendo antes um mostrar do que um demonstrar. Nao hé garantias de sucesso nessa fala, no se pretende provar algo que j se presume saber, jamais podemos estar certos de atingir 0 alvo e de reali ar “progressos”, mesmo assim, somente a ousadia de sondar o inesgotivel, de investigar 0 que a cada vez toma a encerrar-se em si mesmo, j4 parece conferir suficiente legitimidade a esse empenho. SHEIDEGGER.M. Ensaios e conferéncias. Trad. Gilvan Fogel, E. Cameiro Leto e Marcia Schuback. Petropolis, RI: Vozes, 2002, p. is. 26 Toda nogdo de natureza filosfica ¢ alguma coisa que sé aparece em seu proprio desencobrimento, Explicar tais nogdes com recursos adventicios equivale simplesmente a ignorar sua natureza especffica e aquilo que ela pode proporcionar. Encontrar-se com semelhantes nogbes corresponde a uma possibilidade privilegiada de encontro. Se elas nao nos oferecem nada de stl, nfio se prestando a este ou aquele propésito cotidiano, elas podem, entretanto, precisamente por esse motivo, garantir-nos um espaco de liberdade extremo a partir do qual toda ¢ qualquer coisa pode ser encarada. Mediante a convivéncia apropriada com as questdes filos6ficas, é préprio mundo que a nds se desvela em suas possibilidades tltimas e decisivas. Pelo exercicio da Filosofia, e somente por ele, que nos inserimos livremente no mundo, coisa que nenhuma ideologia poderia nos proporcionar. Caso isso se tome visivel concretamente na aula, mediante o exercicio do didlogo, entdo uma aula de Filosofia teré acontecido de verdade. Nao ¢ nada simples que algo assim ocorra ¢ pode muito bem dar-se que tal acontecimento passe despercebido para a maioria dos alunos, 0 que nif significa, de forma alguma, que ele fique sem consequéncias. No esclarecimento da maiéutica socritica, por exemplo, professor e alunos poderdo experimentar o sentido mais extremo da convivéncia aberta entre os homens ¢ aquilo por meio de que ela é possibilitada, Podertio experimentar também o que significa ter uma opinido ¢ de que modo a refutaglio de nossas opiniées pode ser uma via importante de autoconhecimento, por mais desagradavel que ela tenha de nos parecer de inicio. O que, entdo, se esta experimentando sio possibilidades extremas da existéncia humana, possibilidades essas que, sem 0 esclarecimento dessa nogdo, talvez ficassem encobertas para nds em todo seu alcance. E 0 melhor de tudo é que todas essas coisas podem ser aprendidas sem que ninguém propriamente as tenha ensinado, ao modo de algum contetido transmitido de forma doutrinéria. Nao por acaso, Sécrates dizia munca ter ensinado nada a ninguém. E que com ele e junto a ele todos aprendiam apenas por si mesmos. Da mesma forma, também, a nog de imperative categérico, em Kant, oferece-nos a possibilidade de um puro encontro. Basta pensarmos no problema das diversas motivagdes de nossas agdes, Saber que a possibilidade de uma aco moral tem seu fundamento tiltimo no fato de sermos sores finitos, expostos a miiltiplas inclinagdes e desejos, ¢ que somente por isso podemos sentir ¢ assentir em algo que se impée incondicionalmente a nosso arbitrio a maneira de uma ago moralmente boa, nao é nada de pouca importéncia. © simples entendimento de que a liberdade niio se identifica sem mais com o livre arbitrio, sendo antes a coragem de acolher uma imposigao que nos € ditada por nossa propria raziio, ja constitui por si sé um ganho considerivel. Por mais que 0 entendimento da ago moral como um imperative categérico possa ser percebido, mais adiante, como digno de ser posto em questo, jamais tal entendimento deixar de ser significativo no que diz, a respeito @ nossa experiéncia historica de liberdade. E é isso que, no fundo, cada um precisa urgentemente conquistar por si mesmo. Voltando agora a pergunta inicial, tentemos respondé-la em fungdo do que vimos até aqui. A pergunta soava da seguinte maneira: supondo que uma das possibilidades de afirmar o carter verdadeiro de uma aula de Filosofia seja sua concordéncia com aquilo que j4 esperavamos dela, haveria entdo alguma coisa que, de modo natural irrefletido, isto é, sem nenhuma erndig&o, jé poderiamos estar esperando dessa aula? Haveria alguma possibilidade de reconhecermos uma aula de Filosofia naquilo que ela possui de mais catacteristico, ou estariamos entregues, de maneira definitiva, a uma identificagio classificatéria pautada apenas pelo contetido formal do ensinamento? Teriamos de reconhecer uma aula de filosofia apenas pelo fato de ela tratar de coisas comumente rotuladas de filoséficas ou teriamos ainda a possibilidade, mesmo que rara, de reconhecer a Filosofia diretamente em ago? Pelo que vimos até aqui, esta Ultima possibilidade existe. A Filosofia manifesta-se primordialmente no “uso” ¢ na atividade ¢ n&o naquilo que se divulga a seu respeito, | por mais que tudo isso também diga respeito a ela. Se isso for verdadeiro, temos de admitir que todos nés ja esperivamos sempre algo como aquele puro encontro de que falamos acima. A aula de Filosofia, acontecendo em sua propriedade, &, na melhor das hipéteses, uma excelente oportunidade para qife tal encontro aconteca. Nao silo assim certas nogdes que, devido a sua gencralidade e carter abstrato, emprestariam 4 Filosofia sua identidade. Estas nogdes no possuem dignidade em si e por si, O que Ihes confere dignidade ¢ antes 0 exercicio de compreensiio dos fendmenos nelas encerrados. A aula de Filosofia, bem como todo exercicio autenticamente filoséfico, deve esforgar-se por liberar os fenémenos que esto encerrados naquelas nogées. H desse modo, ¢ mais de nenhum outro, que a Filosofia se deixa reconhecer ontem, hoje e amanha, ou seja, por seu procedimento fenomenoldgico, o qual néo deixa diividas sobre o sentido extraordinario dessa atividade: a atividade |de liberar para um puro encontro aquilo que, por si mesmo, nos dé a pensar. Referéncias bibliogréficas ARISTOTELES. Categories, On interpretation, Prior Analytics. London: Harvard University Press, 1938. HEIDEGGER, M. Ensaios e conferéncias. Trad. Gilvan Fogel, E. Carneiro Lefio e Marcia Schuback. Petrépolis, RJ: Vozes, 2002. . Marcas do caminho. Trad. Enio P. Giachini. Petropolis, RJ: Vozes, 2008. LEAO, E. Cameiro. Aprendendo a pensar. Petropolis, RJ: Vozes, 2007. 28

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