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Escrita Criativa e Física: a contribuição da

narrativa para a escrita científica

Sonia Rodrigues
Resumo
Doutora em Literatura pela PUC-RJ. Este artigo trata da experiência realizada no
srodrigues@autoria.com.br Instituto de Física da Universidade Federal
Endereço para Correspondência Universidade Fluminense, no segundo semestre de 2007, em curso
Federal Fluminense. Instituto de Física, Niterói, interdisciplinar de iniciação à escrita criativa em
Brasil
ciências para a apresentação de tópicos de Física .
A experiência faz parte da pesquisa “Poesia para
físicos”, cujo objetivo é avaliar como o algoritmo da
narrativa contribui para desenvolver as competências
de leitura, de escrita e de pesquisa dos estudantes de
ciências exatas e para aplicação final em conteúdo
específico de suas áreas.

Abstract
This paper presents an educational experience
carried out during the second semester of 2007, in a
college introductory class of creative writing, with an
interdisciplinary approach between Physics and
narratives, in the Physics undergraduate course of
Universidade Federal Fluminense.
This educational experience is part of the
interdisciplinary research “Poetry for physics”, which
aim is to evaluate how the narrative algorithm could
improve the skills of reading, writing and solving
problems in Engineering and Science undergraduate
classes.
Escrita Criativa e Física ANO I VOL 1 NUM 01

O relato de um experimento de implícito.


A Escola, no Brasil, é a principal instituição
laboratório implica em narrar eventos. No
destinada a incluir as novas gerações à enciclopédia
relato, as sete perguntas do algoritmo da cultural acumulada em nossa civilização, da qual
narrativa – O quê, Onde, Quando, Quem, fazem parte o conhecimento científico e tecnológico.
Parece não ser suficiente, no entanto, o espaço
Como, Por quê e Para quê – precisam
oferecido na Escola para o desenvolvimento da
aparecer respondidas. Quando o aluno da expressão escrita, eficaz, dos resultados da interação
área de ciências descobre a semelhança do estudante com essa enciclopédia. Analisando os
entre a narrativa em geral e a narrativa do dados referentes ao desempenho dos alunos em
meus cursos, e observando as taxas de repetência e
que se passa na bancada, a atitude em
evasão do curso de Graduação em Física da UFF,
relação à escrita muda para melhor. minha hipótese é a de que a Escola avalia por escrito,
mas, não ensina seu aluno a produzir textos. No
O projeto de pesquisa “Poesia para Físicos” se máximo, promove a leitura e a interpretação.
propõe a usar o algoritmo da narrativa para A avaliação da expressão do conhecimento
desenvolver as competências de leitura, de escrita e adquirido contribui, portanto, para a exclusão do
de pesquisa dos estudantes de ciências para aluno. A não ser que a “sorte e as circunstâncias” o
aplicação final em conteúdo específico de suas áreas. favoreçam: um ambiente familiar culturalmente rico,
De agosto a outubro de 2007 ministrei, como parte professores em condições materiais e psicológicas de
das minhas atividades relativas a essa pesquisa, exercerem “atitudes heróicas”, aluno com
cursos de escrita criativa para ciências. Os cursos predisposição razoável para aprender sozinho o que a
envolveram um conjunto de 11 graduandos de Física Escola não consegue ensinar, um professor mais
da UFF e 28 pós-graduandos de Biologia e condescendente com as dificuldades do aluno, etc.
Bioquímica na Fiocruz e na Universidade Federal do Em todos esses exemplos, excluído o do professor
Rio de Janeiro. condescendente, a Escola dependerá da exceção do
Os indivíduos que participaram dos cursos, com empreendedorismo. Do aluno que seja empreendedor,
carga horária de 30 horas, passaram todos por exame do aluno de um professor mais empreendedor e do
vestibular para ingresso na universidade, onde a aluno de uma família com uma postura mais
redação é um quesito importante. Vários cursaram ou empreendedora em relação à educação. Esses
estão cursando mestrado em instituições federais com escaparão.
elevado conceito acadêmico da CAPES. Quem não possuir essas circunstâncias a favor
depende da sorte de encontrar um professor
Pesquisa e ensino condescendente na avaliação. O aluno será
A partir da observação das lacunas nos textos promovido, não porque seja competente em expressar
elaborados pelos participantes desses cursos, por escrito, com clareza e precisão, o que pensa e
desenvolvi um roteiro do que seria importante comunicar o que sabe (ou o que não sabe) e sim
observar na interação entre leitor e texto e na porque o professor considera que não vai conseguir
expressão escrita do pensamento. ensinar, e o aluno não vai conseguir aprender.
Durante esses cursos, me ocorreu o quão Portanto, deve ser ajudado a ir adiante mesmo sem,
preocupante é a ausência de um roteiro de avaliação ao menos, expressar se tem ou não o conhecimento.
anterior à elaboração de exercícios. Se eu não sei o É possível considerar essa opção – a da avaliação
que procuro saber do que meus alunos sabem ou não condescendente, a que não exclui – como a mais
sabem do conteúdo estudado, como posso avaliar o generosa. Mas é possível também se pensar numa
que aprenderam? Mais grave ainda, como posso ter alternativa mais difícil, mais trabalhosa: a de abrir
certeza se avalio com justiça? espaço no planejamento de ensino para suprir as
O desempenho dos alunos durante a pesquisa me lacunas que impedem que o aluno expresse com
faz conjecturar que, devido a ausência desse roteiro clareza o que sabe e o que não sabe, e aperfeiçoe ou
prévio, a Escola funciona num contexto em que o desenvolva hábitos de trabalho que permitam
binômio “sorte e circunstâncias” atua como elemento

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1
aprender o que não sabe . cultural e psicossocial de quem lê.
Para fazer isso de forma eficaz, é preferível que as Para os que detêm o poder representado pela
lacunas sejam preenchidas através do competência de leitura parecerá, talvez, de pequeno
desvendamento rápido de um algoritmo que permita alcance a identificação do tema a que se refere o texto
ao aluno integrar um conhecimento que deveria pragmático ou a identificação da história que o texto
3
possuir antes de entrar na universidade. Caso narrativo desenvolve. Chamamos de pragmático os
contrário, o professor de conteúdo específico viverá a textos jornalístico, dissertativo, argumentativo, de
contradição de deixar de ensinar as leis de Newton difusão científica e científico. No caso do jornalístico,
para ensinar a escrever quando o seu papel é formar vale o reparo de Luís Fernando Veríssimo de que no
novos físicos. jornal diário, às vezes, a única coisa verdadeira é a
Existe algum algoritmo para se aprender a data.
escrever, na idade adulta, na universidade, em O texto narrativo, parte do qual se classifica como
especial na área de Ciências? literatura, tem outra obrigação que não a veracidade.
Sim, existe. Mas para que esse algoritmo possa Searle (1975) afirma que o texto literário, “nasce” com
ser acessado, precisamos saber se é possível a pretensão de surpreender, quebrar, em alguma
estabelecer um roteiro mínimo de avaliação das medida, a expectativa de algum leitor.
lacunas do aluno, como subsídio para o planejamento Para quem lê com freqüência e interpreta com
do ensino da expressão escrita em Ciências. facilidade textos narrativos ou pragmáticos, talvez a
aplicação de chaves interpretativas seja o atributo
A leitura de quem escreve mais importante para a prática de uma leitura
O Existem várias maneiras de conceituar leitura, qualificada. Interpretar o que o outro diz não
mas a que interessa na presente abordagem é a transforma, porém, o leitor em um indivíduo capaz de
leitura voltada para a intenção do texto. Umberto Eco expressar por escrito seu conhecimento ou
2
(1990) identifica, no texto, três tipos de intenção : interpretação, da mesma forma que ouvir música não
 A do autor, a que nem sempre o leitor tem faz com que o ouvinte componha.
acesso, e que, mesmo no caso do autor explicitá- A comprovação, porém, depende da recepção. É
la, pode não representar a sua intenção real, por na interação do leitor com o texto que essa dinâmica
esquecimento do que o autor pretendia, por vai ser desvendada, se o leitor estiver preparado ou
desejo de manter segredo do seu processo de atento a essas articulações.
criação ou por qualquer outro motivo; Uma pequena dificuldade do curso de escrita
 A do leitor, que construirá o sentido e a criativa, na área de Ciências, é convencer os alunos a
interpretação do que lê em função, inclusive, do participarem de exercícios orais ou escritos no
seu repertório psicossocial; contexto de “pedagogia da imaginação”. Italo Calvino
 A do texto, que se explicita por suas “marcas”, por (1990) discute, em “Seis propostas para o próximo
evidências comprováveis. milênio”, a necessidade de uma pedagogia da
No curso, priorizei trabalhar com a leitura que imaginação que nos prepare para “controlar” as
privilegia a materialidade do texto, descrevendo, antes imagens que permeiam nosso interior, sem sufocar a
de mais nada, o que o texto diz para, em seguida, visão, mas sim a ordenando. Assim se expressa o
descobrir como o texto foi construído. escritor italiano:
O texto tem um patamar de materialidade que, “A fantasia é uma espécie de máquina
devidamente observado, deveria servir de base para a eletrônica que leva em conta todas as
interpretação/intenção do leitor. Essa interpretação ou combinações possíveis e escolhe as que
atribuição de sentido ao texto depende do repertório obedecem a um fim, ou que simplesmente são
as mais interessantes, agradáveis ou
1
Hábitos de observação e trabalho são essenciais para um curso de 3
exatas e devem ser adquiridos nos primeiros períodos, conforme citado Uso aqui o termo texto pragmático (em oposição ao texto de ficção)
pelo Prof . Dr. Jorge S. Sá Martins em relato sobre as experiências do como aquele que pressupõe comprovação e ou confirmação de
curso “Física por atividades”. expectativas. O texto científico implica (além da comprovação) na
aceitação dos pares, penso que textos veiculados em periódicos
2 (científicos ou não) pressupõem comprovação e a confirmação de
Umberto Eco em “Interpretação e Superinterpretação” (p.75 ) e no
exemplo divertido da leitura do bispo Watson, no século XVII, sobre a expectativas.
“materialidade” e intenção do texto (p.9) .

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divertidas”. É possível que isso indique que o ensino da escrita


A iniciação à escrita criativa consiste em colocar na Escola ignora a possibilidade de desenvolver essa
em andamento a “máquina de narrar” que habita todos habilidade fora dos cursos de Letras e da Pós-
os seres humanos, mas que em muitos se “atrofia” por Graduação em Literatura..
falta de percepção acerca de sua importância, ou por Não se pode subestimar a importância de
falta de iniciação aos seus mecanismos. Esse parece desenvolver a capacidade de expressão escrita do
ser o caso de estudantes na área de ciências. conhecimento adquirido. Com clareza, rapidez,
Peter Brooks (1984), professor da Universidade de precisão, consistência, implicando, inclusive, esta
Yale, argumenta que uma criança não alfabetizada, última, em multiplicidade de conexões.
mas, no entanto, estimulada pelo contato com O desenvolvimento dessa competência é
histórias, é capaz de perceber perfeitamente a lógica especialmente importante no caso de futuros
e a composição da narrativa literária. Percebe, professores ou futuros cientistas, supondo-se que os
portanto, o algoritmo da narrativa. estudantes dessa área já estejam sendo iniciados às
No entanto, graduandos da área de ciências linguagens matemática e computacional; nesse caso,
demonstram ter “desaprendido” essa lógica. se forem iniciados, também, à expressão escrita do

Figura 1 – Desempenho dos alunos de graduação (a) e pós-graduação (b) do curso de física da UFF nas habilidades de LER
enunciados; SEGUIR os enunciados; DESCREVER o que está no texto; IDENTIFICAR o que não sabe; EXPRESSAR o que
aprendeu, mudou ou discordou a partir do texto e ESCREVER o que aprendeu, mudou ou discordou a partir do texto. Antes e
depois do treinamento no algoritmo da literatura

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pensamento, os ganhos profissionais e sociais podem


ser enormes.
Autoria
Para facilitar a compreensão e o domínio do
Desvendando o algoritmo
algoritmo da narrativa, criei o jogo “Autoria” que
Começando a responder à pergunta sobre a
propõe o seguinte caminho:
existência de um algoritmo para ensinar adultos, na
Primeiro, responder às sete perguntas da
área de ciências, a escrever, as hipóteses iniciais são:
retórica latina: O quê, Quando, Onde, Quem, Por
 A leitura e o desvendamento do algoritmo da
quê, Para quê, Como.
narrativa, seguida da identificação das
Em segundo lugar, construir os personagens:
semelhanças e diferenças entre o texto narrativo
nome, atributos profissionais, sociais, psicológicos,
e o texto pragmático, representam uma alternativa
aparência física, objetivo na história.
de método de iniciação à escrita criativa.
Finalmente, desenvolver as etapas das
 Deixando de lado, para fins de clareza de
narrativas, que são:
exposição, os fatores individuais que influenciam
1. Início, ou apresentação da situação e dos
a facilidade para a escrita, considero que aprende
personagens;
a escrever aquele que desenvolve a competência
2. Perda ou ruptura, quando a situação de
cognitiva de descobrir a dinâmica interna do texto
equilíbrio inicial é quebrada;
alheio. Desvendar esta dinâmica é o que entendo
3. Divisão, quando os personagens assumem
como leitura qualificada. Essa é a leitura que
papéis em função da Perda,
forma escritores: de narrativas, de
4. Decisão, quando a Perda é reparada ou se
correspondência eletrônica, de artigos científicos.
instaura para sempre e
Portanto, para ensinar um adulto a escrever é
5. Conclusão, quando um novo equilíbrio se
importante, primeiro, ensinar a ler de forma
estabelece.
qualificada. É prudente começar por narrativas visto
Essas etapas costumam ser intercaladas com o
que é a forma mais comum de comunicação de
que optei por chamar de Obstáculo e Auxílio (ações
eventos que conhecemos. Quanto mais próxima do
de personagens que expandem a narrativa e adiam
repertório do aluno for a narrativa, mais fácil será a
a resolução ou intensificam as etapas principais).
identificação do algoritmo.
Este é o algoritmo básico da narrativa, e sua
Quanto maior for o domínio do algoritmo, mais
compreensão permite ao aluno identificar a maneira
facilidade se terá para a escrita de narrativa, e maior
pela qual autores – de literatura, cinema, TV – o
possibilidade da transferência de domínio do texto
utilizam. Permite, inclusive, identificar o uso do
narrativo para o pragmático. De novo, pragmático no
algoritmo em narrativas do cotidiano, escritas ou
sentido de pressupor comprovação ou confirmação de
orais. Memórias, histórias de vida, notícias de
expectativas.
jornal, discursos. Isso qualifica a leitura e permite,
Um passo adiante na escrita de narrativas – que
finalmente, a “leitura de mundo” que precede a
corresponde a uma lacuna na leitura que se pratica
leitura da palavra, como dizia Paulo Freire.
em relação às narrativas alheias – é a identificação do
Precede, é verdade, mas também se ensina a ler o
como o texto se organiza, a identificação de quais
mundo. O mundo físico, material, observando,
estratégias textuais foram utilizadas pelo autor.
identificando, descrevendo, analisando suas
Então, quatros lacunas na leitura necessária para
características. O mundo das relações humanas,
escrever foram identificadas no curso ministrado por
idem.
mim no segundo semestre de 2007 (Figura 1).
No conjunto de graduandos de Física – que estão Nota: Aplicação de discussões da minha tese de Doutorado.
Desde a defesa de tese, na prática de oficinas de produção de texto
agrupados nos gráficos acima, como graduação – a para professores regentes, observei que é uma expectativa destinada
ao fracasso esperar que um profissional sobrecarregado com três
maioria não conseguia identificar nas primeiras aulas: turnos de trabalho estude Aristóteles, Todorov e Propp para descobrir
1. Do que o texto tratava. como ensinar seus alunos a gramática da narrativa. Considerei mais
produtivo transformar minha tese num jogo de criar histórias que o
professor pudesse aplicar em sala de aula com seus alunos.

2. Menos ainda quais os elementos principais da


trama no caso de texto narrativo.

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3. Nem tão pouco com quais elementos estava trilha de 14 trechos selecionados por mim.
construído o tema no caso do texto pragmático. 2. Exercício escrito com elaboração de um diário
4. A maioria também não identifica como se ficcional, de três dias, consecutivos ou não, de
articulam as estratégias que dão ao texto uma um personagem que estivesse vivendo uma
dinâmica própria. São leitores que não tragédia carioca nos dias de hoje.
percebem, por exemplo, que, em dez páginas de 3. Leitura em classe e extra-classe de um texto
um texto pragmático, Norbert Elias inicia 80% dramático que aborda, entre outros temas, o
dos parágrafos por duas ou três frases que desrespeito ao direito à privacidade.
4
definem o que será explanado em seguida . 4. Exercício escrito com preenchimento de um
formulário descritivo sobre o texto dramático lido.
Não devemos, no entanto, ser severos demais 5. Leitura extra-classe de dois ensaios sociológicos
com esses leitores. Toda uma educação voltada, nos como base para discussão da diversidade e
últimos anos, para a “intenção do leitor”, a “construção preconceito.
do sentido” por cada um, independente e acima da 6. Apresentação oral, em classe, dos pontos
materialidade do texto, deve ter contribuído para a principais dos ensaios lidos.
incapacidade de descrever, simplesmente, o que o 7. Exercício escrito com jogo narrativo.
outro disse. É o domínio do individualismo intelectual, 8. Exercício escrito em ambiente digital separando
a pretexto de privilegiar a diversidade de opiniões. “trilha do texto” (o que o texto diz) da “trilha
A boa notícia, também comprovada na pesquisa, é pessoal” (a opinião do leitor sobre o texto).
que é muito rápido o processo de corrigir as lacunas e 9. Leitura de livro de ficção de conteúdo de
qualificar a leitura para a escrita em ciências. É uma atualização de mito grego acompanhada de
questão de iniciação, parceria interdisciplinar e exercício escrito para identificação das principais
método (figura 1). características e estratégias observadas no texto.
10. Estudo de caso sobre filme de ficção com
Encontrando lacunas identificação de estratégias narrativas.
O curso no IF-UFF contou com a particularidade 11. Repetição dos exercícios escritos, no mesmo
de ser realizado com a assistência de um físico, formato, mas com modificações no enunciado de
professor do Instituto e coordenador de Graduação, o forma a incorporar o conteúdo trabalhado nas
Professor Nivaldo Lemos. A participação de um atividades e avaliações parciais feitas
professor da área foi decisiva para se entender o peso anteriormente.
da leitura e da escrita na expressão do conhecimento
específico. O desempenho dos alunos em contato Durante o curso aperfeiçoei um pré-gabarito ou
com textos narrativos, descritivos, dramáticos, pré-roteiro que me ajudasse a definir, com precisão, o
argumentativos e as dificuldades de leitura e escrita que os alunos ignoravam para seguir adiante num
relacionadas a esses textos não mudaram pela processo de ensino e aprendizagem que depende de
participação de um professor de Física, mas, seria leitura e escrita. No roteiro – que chamei de Modelo
mais difícil convencê-los da importância do algoritmo de Avaliação – procurei aferir as competências de:
da narrativa para aprendizagem da escrita em 1. Leitura de enunciado.
ciências sem um professor deles acompanhando 2. Imaginação/abstração em contexto determinado.
como articulam o pensamento e o expressam. 3. Aplicação de conceitos ensinados para produção
Durante o curso propus aos alunos do IF as de texto.
seguintes atividades: 4. Aplicação de estratégias narrativas incorporadas
1. A leitura em classe de um livro de ficção, com ao repertório dos alunos.
narração em primeira pessoa, com uma 5. Auto-avaliação.
6. Descrição de elementos dados no texto.
4
Foi o caso do posfácio de Norbert Elias à edição de 1985 sobre 7. Dissertação sobre textos lidos apresentando e
estabelecidos e outsiders (Elias, 1965). Não é de espantar essa
dificuldade de identificar estratégias textuais que configuram, ao final, um justificando apreciação ou discordância.
“estilo”. Indagados sobre a idéia central do primeiro parágrafo do mesmo
texto ninguém acertou em dizer que o eixo do parágrafo (e do texto 8. Exposição e resolução de problemas de Física
inteiro) é a desigualdade entre grupos e indivíduos durante toda a história ou de jogo de personagens.
da humanidade.
Dentro da perspectiva interdisciplinar, o Prof.

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Nivaldo preparou um roteiro para resolução de problemas apresentados.


problemas de Física e o apresentou à leitura dos Em outro momento, valerá à pena investigar se a
alunos quando esses já estavam mais atentos, mais dificuldade de tornar significativos, para o contexto, os
conscientes da importância da materialidade do texto elementos dados, afeta a resolução de problemas de
e de suas próprias limitações na expressão do que Física. É provável que sim.
entendiam ou não entendiam. Quanto à aplicação de conceitos ensinados para
Esse roteiro específico foi: produção de texto: quem errou a leitura do enunciado
1. Ler atentamente o enunciado até ter clareza de errou também o quê?, como?, por quê? e para quê?
que entendeu o enunciado Aliás, o por quê? (problema) e para quê? (objetivo dos
2. Fazer diagrama que represente personagens) estão pouco claros na maioria dos
esquematicamente a situação descrita no textos produzidos na primeira fase.
enunciado.
3. Identificar os dados fornecidos e quais as Três fatores me levam a concluir que o leitor
quantidades a serem determinadas ou os que escreve é o que percebe como o texto alheio
resultados a serem obtidos.
foi escrito: a observação de grupos de jogadores
4. Entender a situação física do problema antes de
de Roleplaying Game desde o início do doutorado,
pensar em fórmulas.
5. Tentar identificar as leis gerais da Física que se em 1993 (Rodrigues, 2004); as oficinas para
aplicam ao problema. professores e público leigo que ministro em locais
diversos; e minha própria experiência como

Barreiras para a aprendizagem docente e escritora.


As dificuldades dos alunos foram observadas na Consciente ou inconscientemente,
leitura de textos narrativos ou pragmáticos, e na
quem escreve nota como os outros
expressão escrita. As dificuldades foram:
1. Ler o enunciado.
escrevem, se apropria das estratégias
2. Seguir o enunciado. de escrita e as molda segundo seus
3. Descrever o que está no texto (ou o que o texto objetivos ou estilo.
pede, no caso de problemas de Física).
Nota: Minha tese de doutorado “Roleplaying Game: a ficção
4. Identificar o que não sabe (ou o que precisa enquanto jogo”, defendida na PUC-Rio, em 1997, aparece citada nos
trabalhos acadêmicos sobre jogos e interatividade com a referência
descobrir, no caso de problemas de Física). MOTA, Sonia Rodrigues. Atualmente, está publicada com a
referência Rodrigues, Sonia.
5. Expressar o que aprendeu, mudou e discordou,
a partir do texto.
No entanto, a maioria escreve as etapas da narrativa
6. Escrever o que aprendeu, mudou e discordou,
com competência razoável. A razão disso,
a partir do texto.
possivelmente, está na capacidade de fabulação e no
repertório de narrativas com que os alunos têm
Em relação à capacidade de imaginação e
contato no cotidiano.
abstração, os estudantes de Física, na primeira
Descrever elementos dados no texto narrativo não
avaliação, conseguem abstrair a sua realidade
é difícil para alunos de Física. Entretanto, quando eles
imediata e propor personagens (ou circunstâncias)
lidam com a resolução de problemas, quer sejam de
verossímeis.
Física ou de jogos de personagens, a descrição falha.
Na primeira aplicação do modelo de avaliação com
Nas aulas de conteúdo específico, os alunos
os alunos do IF/UFF os resultados foram em relação à
afirmavam entender claramente o primeiro item do
leitura do enunciado: erro de identificação do que
roteiro específico para resolução de problemas de
precisava ser feito ou resolvido, erro sobre como
Física: “Ler atentamente o enunciado até ter clareza
deveria ser escrito o texto ou resolvida a questão
de que entendeu o enunciado”. No entanto, quase
proposta pelo enunciado.
todos, várias vezes, deixavam de lado todos os outros
No entanto, eles demonstraram dificuldade em
itens.
tornar os personagens e circunstâncias significativos
Ocorre que, nesse tipo de leitura, a de conteúdo
para o texto que escrevem ou para a resolução de

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específico de Física, entender o problema significa Nessa experiência interdisciplinar no IF/UFF, elegi
fazer esse tipo de caminho, usar essas etapas de oito estratégias narrativas observáveis (ou
raciocínio. Muito semelhante, aliás, ao que é seguido comprováveis) na leitura para que os alunos
quando se escreve um texto narrativo ou pudessem procurar nos textos lidos e incorporar aos
argumentativo. seus próprios textos. As estratégias foram:
Os alunos do IF/UFF, quando “abandonam” um 1. Embutir na narrativa algum sinal de onde se
enunciado, fazem o que a maioria das pessoas faz: quer chegar.
passam a acreditar que leram o que não está escrito 2. Equilibrar informação e opinião a favor da
no texto. É a auto-ilusão que leva ao erro. clareza da narrativa.
Outro problema fundamental é o erro de substituir 3. Equilibrar descrição, caracterização de
a descrição dos elementos dados ou a identificação personagens e emoção.
das leis da Física envolvidas por equações e fórmulas. 4. Provocar a imaginação do leitor: deixar em
Pelo que observei, algumas vezes o aluno erra o suspenso detalhes e aguçar curiosidade.
resultado quando o problema não é pensado 5. Usar sucintamente e com precisão as palavras.
“fisicamente”. 6. Confirmar expectativas com o objetivo de
Nessa direção, aponto, como uma das lacunas seduzir o leitor.
mais importantes, a dificuldade de se ater ao texto por 7. Reverter expectativas com o objetivo de
dificuldade de ler o quê o enunciado pede. Essa surpreender o leitor.
dificuldade foi observada em todos os cursos, da 8. Dialogar com outros textos ou áreas de
graduação a pós-graduação. Na interação com o conhecimento.
enunciado específico de Física aparece uma
dificuldade grave: a do aluno não conseguir visualizar Na primeira avaliação, dois alunos usaram as três
o que o enunciado pede. Sem essa visualização, o primeiras estratégias e tentaram usar todas. A maioria
aluno não consegue identificar quais os elementos não conseguiu usar mais de uma das três primeiras e
físicos, concretos e conceituais, necessários para a maior dificuldade foi em incorporar ao texto as
alcançara resposta. estratégias quatro e seis, o que compromete o efeito
Nesse ponto, a “quebra” do pensamento lógico é da estratégia sete, mesmo que a proposta seja a de
espantosa. Utilizando em sala de aula o roteiro para reverter expectativas.
conteúdo específico ficou clara a falta de hábito de Em função do resultado das primeiras experiências
fazer o passo a passo do raciocínio necessário para com textos narrativos e resolução de problema de
construir respostas (ou textos) consistente. Física, refiz meu planejamento. Reprogramei duas
aulas mapeando as estratégias em texto e filme,
O algoritmo demonstrando como localizar as estratégias e como
Quem escreve sempre segue inconscientemente incorporá-las ao texto. Foram acrescidas aulas de
um roteiro, mas, se prestar atenção no que fez, verá conteúdo específico, com o professor de conteúdo
que seguiu um passo-a-passo preciso. Em todo específico, onde insistimos na necessidade de seguir
processo cognitivo, está pressuposto um o roteiro de execução para a resolução dos
“enunciado/premissa”, e quem escreve faz um problemas. Quando os alunos erravam
desenho mental da situação, identifica os elementos identificávamos o ponto em que o roteiro foi
envolvidos (o que implica numa boa prática de abandonado.
descrever personagens e situações), o objetivo final a Refiz enunciados de exercícios de escrita, para
ser atingido (um artigo, uma tese, um conto, um que os alunos testassem, a cada aula, seus
romance) e o contexto geral que se aplica à premissa. progressos.
Na competência de dissertar sobre textos lidos –
Ensinar a identificar as estratégias ou realidades observadas –, apresentando e
justificando apreciação ou discordância, houve pouco
narrativas ou argumentativas é fácil,
progressos dos alunos, correspondente a um curso
rápido e essencial para a escrita criativa com essa carga horária (figura 1).
em ciências. Ensinar escrita criativa para ciências, usando o
modelo narrativo como facilitador e o

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ANO I VOL 1 NUM 01 Escrita Criativa e Física

empreendedorismo como norte, segundo a do professor errar ao escrever o


experiência no Instituto de Física da UFF, depende de
enunciado.
algumas atitudes e decisões pedagógicas por parte do
Durante a pesquisa, descobri que isso é muito
professor:
comum e que, somado a chance do aluno ler errado o
1. Disponibilidade para o trabalho interdisciplinar.
enunciado, acrescenta à avaliação um risco
No caso, a atuação de uma professora
desnecessário (e alto) de fracasso. Definir com
especialista em teoria da narrativa com um
clareza objetivos e atividades, em consonância com
professor de Física.
competências cognitivas, não resolve o problema da
2. Coesão entre objetivos, atividades e avaliação.
avaliação com exclusão. Essas definições serão
3. Compreensão de que a avaliação voltada para a
insuficientes sem a identificação pelo professor de
inclusão pressupõe identificação de dificuldades,
quais são as lacunas que levam o aluno a “cair” e
atividades para corrigir dificuldades, avaliação
“quebrar” o próprio pensamento na resolução de um
intermediária com o propósito de assegurar que
problema ou na compreensão de um conceito.
as dificuldades identificadas foram corrigidas e
Para a avaliação se configurar como um
avaliação final.
instrumento pedagógico de razoável precisão é
necessário que esteja explícito para o professor o que
Mea culpa
ele quer identificar do que o aluno sabe ou não sabe.
O que esta pesquisa ensinou a mim, e que eu não
Toda área de conhecimento possui pré-requisitos de
sabia, apesar de uma longa experiência docente, é
conteúdos, habilidades, atitudes sem os quais não se
que a avaliação que praticava anteriormente,
consegue ir adiante.
dependia muito de intuição. Por imprecisão, esse tipo
A avaliação mais eficaz é a que identifica as
de avaliação pode levar, por falta de eficácia, à
lacunas a tempo de evitar a exclusão. Conhecedor do
exclusão do aluno e à frustração do professor.
que o aluno ainda não sabe o professor poderá
Se a avaliação continuar dependendo da
reforçar ou refazer seu planejamento de ensino.
expressão escrita é preciso que se ensine o aluno a
Poderá informar ao aluno, também com precisão e
escrever e ler de forma qualificada, em qualquer área
clareza, o que ainda não sabe e precisa aprender,
do conhecimento.
antes do final do processo.
Pude perceber, nesse esforço de não usar a
avaliação como exclusão, que refazer planejamento
Autodidatismo das aulas no meio do processo – a partir da
Ouvi várias vezes, no decorrer da pesquisa, a identificação do ponto exato que impede o aluno de
defesa do autodidatismo na aprendizagem de conseguir incorporar o conteúdo necessário para ir
ciências. É inegável que existe a aprendizagem adiante – é essencial. Nem sempre o professor está
autodidata. Seu limite é que está relacionada à preparado para executar a reprogramação e precisa,
predisposição para compreender conhecimentos ele mesmo, se auto-avaliar e corrigir deficiências
novos numa determinada área. A relação ensino- suas.
aprendizagem não pode depender disso.
Na área de ciências, mesmo que o Conclusões
autodidatismo funcione para a linguagem Nessa experiência percebi que faltavam à minha
matemática ou computacional, ele não resolverá a prática em sala de aula rapidez e precisão na forma
questão da avaliação, da repetência e da evasão, de expor um conteúdo particularmente difícil. Atribuo
se não houver uma iniciação consistente à essas lacunas a três motivos:
expressão escrita. O primeiro é que me faltava um diagnóstico
preciso, a identificação do ponto em que o aluno
estava se perdendo. Se eu não sabia, com exatidão,
em que ponto do conteúdo o aluno deixava de
A inexistência de um roteiro prévio acompanhar a disciplina, se não sabia qual é o hábito
para a avaliação, que contemple itens de trabalho intelectual que ele não tinha adquirido, se
não sabia a habilidade que lhe faltava para seguir
muito precisos, aumenta a possibilidade

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Escrita Criativa e Física ANO I VOL 1 NUM 01

adiante, como refazer meu planejamento inicial? Foi a Para conseguir identificar as lacunas de expressão
construção de um pré-gabarito ou pré-roteiro de escrita listadas acima, ajudou bastante o fato da
avaliação que me permitiu esse diagnóstico. avaliação estar acompanhada do pré-gabarito, ou pré-
O segundo é que, muitas vezes, consideramos roteiro de avaliação. A partir daí é possível elaborar
que o fácil e óbvio para nós é fácil e óbvio para todos, atividades que reforcem o que conduz ao sucesso e
e ficamos surpresos de precisar explicar 200 vezes o eliminem as lacunas que produzem o fracasso.
que entendemos “de primeira”. Imbuídos dessa Conforme o preconizado pelo estudioso russo L.S.
crença, não nos ocorre que, talvez, em algum ponto Vygotsky, a singularidade do caminho tem o poder de
da explicação, seja preciso rever a maneira de expor. transformar “o negativo da deficiência” no “positivo da
O terceiro é que nem sempre quem escreve com compensação” (ver Sacks, 2006). Acredito que as
facilidade expõe o que pensa e sabe com facilidade. desvantagens cognitivas causadas por percalços no
Habituada a um estilo próprio de pensar onde a processo de ensino e aprendizagem também possam
multiplicidade de conexões está acima da ser supridas por uma intervenção competente no fator
necessidade de rapidez e clareza, aprendi, a partir ensino, já que a aprendizagem é interna, individual e
dessa experiência, que, em geral, subestimo o quanto difícil de mensurar a curto prazo. O ensino é o
pode ser difícil ouvir uma explicação oral com essas território no qual nós, professores, podemos exercer
marcas. As mesmas características que facilitam a nossa criatividade e autoridade.
minha escrita podem prejudicar a compreensão dos
meus ouvintes. Agradecimentos
Foi fundamental, para minha prática docente, A autora agradece o acompanhamento das aulas pelo
estabelecer também, a partir dessa experiência, uma Prof. Nivaldo Lemos do IF/UFF. Sonia Rodrigues tem
lista de observações mais freqüentes em relação ao bolsa de Pesquisadora Visitante da FAPERJ,
desempenho individual dos alunos. Algumas dessas Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de
observações foram comuns à escrita de textos Janeiro.
narrativos ou dissertativos e à resolução de problemas
de Física. Alguns alunos acrescentam elementos que Referências Bibliográficas
contrariam o enunciado. Outros têm pouca extensão BROOKS, P. 1984. Reading for the Plot: Design and Intention in
no texto que produzem, ou seja, escrevem como se Narrative. Harvard University Press. 392pp.

três palavras pudessem representar 20. Outros ainda CALVINO, I. 1990. Seis Propostas para o Proximo Milenio. Companhia
das Letras. 141pp.
escrevem como se fossem ter a oportunidade de
ECO, U. 1990. Os limites da interpretação. Editora Perspectiva. São
esclarecer oralmente ao leitor o que pensaram em Paulo. 428pp.
escrever, como se a sua pessoa fosse acompanhar o ELIAS, N. 1965: The Established and the Outsiders. A Sociological
texto escrito. Enquiry into Community Problems. Frank Cass & Co. Londres. 240pp.

Com alguma freqüência alunos RODRIGUES, SR. 2004. Roleplaying Game e a Pedagogia da
Imaginação no Brasil. Editora Bertrand. Rio de Janeiro. 210pp.
respondem várias coisas, entre as quais SACKS, O. 2006. Um antropólogo em Marte. Cia .das Letras. São Paulo.
360pp.
apenas uma diz respeito ao enunciado.
SEARLE, JR. 1975. The Logical Status of Fictional Discourse, New
Esta última é uma prática discente preocupante Literary History. 6 (2): 319-332. Em: Winter, 1975. On Narrative and
porque pode representar a expectativa ser tratado de Narratives., The Johns Hopkins University Press.

forma condescendente pelo professor, pode significar


a esperança de que o professor aproveite alguma
coisa “certa” numa resposta errada. Nesse ponto,
além da deficiência de expressão escrita está
envolvida uma questão ética importante.

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