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‘Tempo Social; Rey. Sociol. USP, S. Paulo, 2 151-176, 12 sem. 1990 FOUCAULT: 0 PODER E 0 DIREITO Ronaldo Porto Macedo Junior* RESUMO: A idéia de crise do Direito presente em grande parte da literatura jurfdi- ca contempordinea esté alicercada numa questo filos6fica mais ampla relacionada a crise dos conceitos clissicos de Racionalidade e Representacdo. Este texto mostra como as and- lises foucaultianas da crise da racionalidade juridica liberal explicam 0 advento de novas formas de racionalidade juridica, baseadas nos conceitos de Norma ¢ Normalidade, no in- terior do assim chamado Direito Social. Para tanto, so analisados os conceitos bdsicos en- volvidos na arqueologia do saber jurfdico e genealogia do poder jurfdico na sociedade do Welfare State, dando-se particular atencéo ao papel do conceito de soberania. UNITERMOS: Foucault, Ewald, racionalidade, representago, norma, normalida- de, direito social, soberania. Michel Foucault jamais tratou de maneira direta a questio da formacéo e do funcionamento das priticas que constituem 0 Direito Social. Nao obstante, 08 seus trabalhos so ricos em sugestées de como tratar este tema. Ademais, o recente livro de Francois Ewald (L’ Etat Providence. Paris, Grasset, 1986) realiza, de certo mo- do, este projeto de andlise do saber politico (€ juridico) que atravessa as préticas sociais, projeto que fora anunciado mas jamais realizado pelo proprio Foucault (1986, p. 220-221). * Bx-bolsista do CEBRAP, Promotor de Justica em S. Paulo, mestrando do Programa de Pés- Graduacdo do Departamento de Filosofia da FFLCH-USP. 152 MACEDO Je., Ronaldo Porto. Foucault: 0 poder eo direito. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 2): 151-176, L.sem. 1990, © objetivo principal deste trabalho é analisar 0 conceito de poder utilizado por Ewald e suas implicacées para a sua andlise do direito. Cabe lembrar que Ewald toma de empréstimo de Foucault 0 conceito de poder que norteia as andlises de seu livro. Pa- ra 0 ex-assistente de Foucault, “o Estado Providencialista realiza 0 sonho do bio-po- der” (Ewald, 1986, p. 374). ‘A minha intencdo € mostrar como 0 conceito de poder utilizado por Foucault per- mite uma anélise rica e coerente do Direito moderno (Direito Social). Ademais, ela ofe- rece pistas importantes para a anflise do papel do Estado (ponto que foi objeto de di- versas das mais duras criticas recebidas por Foucault) na configuracao do Direito So- cial, a partir de uma nova concepcdo de soberania, nem sempre explicita e apresentada de maneira inequfvoca em suas obras. Pretendo também mostrar como a questo da so- berania e do Direito Social articula-se com a questéo da Democracia. Esta, penso eu, € cada vez mais definida em termos de um Direito Social, isto é, em termos de uma ““De- mocracia Social”, cuja racionalidade define-se com base num princ{pio normativo se- melhante ao da normatividade juridica. ‘A minha estratégia tedrica € analisar preliminarmente 0 conceito de poder em Foucault e as dificuldades que sua compreenséo enseja e, posteriormente, analisar 0 i- vro de Ewald & luz desta premissas tedricas que pretendo explicitar. Do enunciado ao Poder O conceito de poder em Foucault tem sido objeto de grandes controvérsias, as quais, nao raro, pecam pela errénea compreensao dos objetivos do fildsofo do(s) sig- nificado(s) que ele empresta a palavra poder. E afirmado com relativa freqiiéncia que as obras Vigiar e Punir e Vontade de Sa- ber marcam uma mudanca de curso, objeto ¢ método por parte de Foucault. Penso que apontar a continuidade essencial do projeto filos6fico foucaultiano é uma tarefa impor- tante para a compreensio do quase enigmético conceito de poder presente em suas obras. Foucault afirmou em diversas oportunidades que nao era um te6rico do poder € que © poder como um problema em si mesmo jamais o interessou (Foucault, 1979; 1978, p. 6; 1983, p. 207-208; 1984). Como entender tal afirmagao aparentemente des- concertante? Em primeiro lugar, importa lembrar que ele € nominalista frente A questo do poder. Para ele néo hé o Poder, com mafuscula, que designe alguma esséncia. Exis- tem apenas relagdes de forga que constituem situacdes de poder. Foucault nao elabora uma ontologia do poder ou uma anélise do poder na sociedade modema tal como, fre- qientemente, lhe € imputado (Foucault, 1978, p. 77). MACEDO Jr, Ronaldo Porto. Foucault: 0 podere o direito. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 153 211): 151-176, L.sem. 1990, ‘A sua preocupacio maior nao é com a génese das instituigGes de poder, mas sim em saber como as instituigGes e redes de poder puderam se formar num dado momento hist6rico, Este ponto é essencial para compreender as confusées feitas acerca deste con- ceito tao caro a Foucault e seus criticos. Importa agora precisar melhor 0 que se deve entender por situagdes de poder (que sao freqtientemente chamadas de relag6es de po- der) ¢ sua fungao no interior da formulacéo da pragmitica do “‘miltiplo” foucaultiana. Em um de seus tltimos textos, Foucault observa que os seus trabalhos orientaram- se sobre “‘trés modos de objetivacdo que transformam os humanos em sujeitos” (1984, p. 297), a saber: 1) a formagao do sujeito enquanto objeto de saberes; por exemplo, “a objetivacdo do sujeito falante em gramética geral, em filologia e em lingiifstica, do su- jeito produtivo em andlise econémica ¢ do sujeito vivo em biologia”; 2) a objetivacao do sujeito em priticas “‘divisérias” (“divisantes”), por exemplo, a divisio do louco € do sao, do criminoso e do homem de bem, etc.; 3) a transformagéo do ser humano em sujeito; por exemplo, a maneira pela qual o homem aprende a se reconhecer como ob- jeto de uma sexualidade. “Nao 6, pois, 0 poder mas o sujeito que constitui o tema geral de minhas pesquisas” (1984, p. 298. Ver também 1987, p. 10). O primeiro modo de objetivacdo refere-se as pesquisas relativas as arqueologias do saber. O segundo refere-se as pesquisas denominadas genealogias do poder. O ter- ceiro modo trata das suas pesquisas nos tltimos volumes da Histéria da Sexualidade Os trabalhos de Foucault so, pois, unidos pela preocupacdo acerca da constituicao do sujeito. Cabe mostrar como a genealogia do poder esté prefigurada no projeto arqueolé- gico do qual vem a dar maior consisténcia tedrica. A arqueologia A arqueologia do saber procura estabelecer as regras pelas quais se pode analisar um conjunto de enunciados (discurso), Para Foucault, um discurso (por exemplo, a me- dicina clinica, a gramftica, a economia, a biologia, etc.) néio tem sua unidade garantida pelos critérios tradicionais de organizacao do saber. Ele no tem unidade dada: 1) nem pelo objeto ao qual se refere (a psicopatologia nao se constitui como unidade a partir do objeto louco); 2) nem pela forma de encadeamento ou estilo (visto haver enunciagdes heterogéneas no interior de um mesmo discurso); 3) nem numa “‘arquitetura concei- tual”, isto é, na formago de um sistema conceitual coerente e fechado (€ preciso expli- car a regra de formacio de conceitos que permite, inclusive, a coexisténcia de conceitos contraditérios entre si); 4) nem & a presenca de um mesmo tema (por exemplo, 0 evolu- cionismo na biologia, 0 fisiocratismo na economia). 154 MACEDO Jr., Ronaldo Porto, Foucault: 0 poder eo direito. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 21): 151-176, L.sem, 1990, Isto posto, segue a sua tese de analisar os discursos em sua disperséo, procurando estabelecer as suas flutuantes regras de unidade, isto é, as suas regras de formacao. Uma formagao discursiva pode ser definida como uma disperséo de enunciados que apresentam uma regularidade ¢, deste modo, pode ser individualizada segundo al- gumas regras. Estas se constituem em quatro niveis: 1) 0 nivel dos objetos; 2) o nivel das formacées enunciativas; 3) 0 nfvel dos conceitos; 4) o nivel das estratégias (aqui entendidas enquanto temas e teorias, isto ¢, construcées que apresentam algum grau de racionalidade interna). Estes quatro nfveis formam também um sistema que oferece cri- térios de ‘‘repartigao” (individualizacao) dos diversos tipos de enunciados discursos. Observe-se que nestes sistemas pode haver o privilégio de um nivel sobre os demais. Discurso e enunciado Para entender a complexa relacdo que Foucault pretende estabelecer entre 0 domt- nio do discurso (enuncifvel) ¢ 0 dominio do mundo (visfvel), importa decifrar a nature~ za da “unidade” (aparente) do discurso, isto 6, o enunciado. Em que 0 enunciado se distingue da proposigao légica, da frase lingiifstica e do ato de fala? Para Foucault, “‘pode-se ter dois enunciados distintos que se referem a gru- pamentos bem diferentes, onde ndo se encontra mais do que uma proposicéo" (1986, p. 91). Por exemplo: 1) “Ninguém ouviu” e 2) “E verdade que ninguém ouviu” sio indis- cemniveis do ponto de vista I6gico (Foucault nio cita nenhum autor em Arqueologia do Saber. Deve-se lembrar que tal observacio € valida se tomamos por /dgica uma légica como a do Tractatus, mas deixa de sé-lo se tomamos a Iégica de Frege, onde tal distin- co é justificada logicamente). Todavia, nao se pode encontrar 1) ¢ 2) em um mesmo lugar no plano do discurso. Por exemplo, num romance a afirmacao 1) pode ser feita pelo ator ou pela personagem. J4 a afirmac%o 2) somente pode ser afirmada no contexto de um monélogo interior. Quanto a frase, vale notar que toda frase € um enunciado. Porém, um constituinte de frase pode também ser um enunciado. Por exemplo: ““Vooé!"” Um quadro classifica- t6rio € constituido por enunciados e ndo por frases. Um outro exemplo seria um gréfico. Também a série de letras A, Z, E, R, T em um manual de datilografia nfo € uma frase, embora seja o enunciado da ordem alfabética adotada pelas méquinas de escrever fran- cesas. Para se realizar um ato de fala € necessério mais do que um enunciado (1986, p. 94), 0 que nao permite a iden ificago destes conceitos. MACEDO Jr., Ronaldo Porto. Foucault: © poder eo dircito. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 155 ‘11): 151-176, 1-sem. 1990, Feitas estas distingées preliminares, Foucault conclui que 0 enunciado é uma fiun- cdo. “Nao € de espantar que nao tenha podido encontrar critérios estruturais de unidade para o enunciado; é que ele nao € em si mesmo uma unidade, mas uma fungdo que cruza um dominio de estruturas e unidades possiveis e que os fa. aparecer com contetidos concretos no tempo no espaco”’ (1986, p. 99). O enunciado nao tem um correlato no mundo visfvel, isto é, um referente. Ele no descreve um estado de coisas que pode ou nao ocorrer no mundo. O seu critério de sig- nificatividade no € dado por uma correlacéo possfvel com 0 mundo, tal como € pressu- posto numa seméntica representativista a la Traciatus. O enunciado tem um “objeto discursivo” que nao consiste, de modo algum, num estado de coisas visado, mas deriva do préprio enunciado (Deleuze, 1986, p. 17). sentido do enunciado nao se constitui a partir do isomorfismo do dominio do discurso com 0 mundo, mas constitui-se no préprio jogo enunciativo. Foucault rompe assim com uma longa tradic&o filoséfica representativista instaurando uma espécie de “pragmédtica do miltiplo”. O espaco correlativo ‘A inexisténcia de um referente do enunciado no implica a inexisténcia de um “referencial”. Este € 0 correlato do enunciado, ¢ trata-se de um conjunto de dominios que sao “regras de existéncia para os objetos que af se encontram nomeados, designa- dos ou descritos, para as relagdes que af se encontram afirmadas ou negadas”” (Fou- cault, 1986, p. 104). Nao se trata da relagio do enunciado com outros enunciados, mas com seus sujeitos, objetos e conceitos. Mas 0 que seria 0 sujeito do enunciado? Trata-se de uma funco vazia, onde diferentes sujeitos podem vir a ocupar este lugar quando formulam 0 enunciado. “Se uma proposicao, uma frase, um conjunto de signos podem ser ditos ‘enunciados’, nfo €, portanto, na medida em que houve, um dia, alguém para proferi-los ou para depositar em algum lugar seu traco provisério; é na medida em que pode ser assinalada a posicéio do sujeito”’ (Foucault, 1986, p. 126), donde nao se poder identificé-la ao sujeito da frase. (Trata-se de um “‘fala-se"’, tal como Foucault 0 apre- senta em L’Ordre du Discours). O mesmo ocorre com os conceitos ¢ com os objetos (Ver Deleuze, 1986, p. 17-19). 156 MACEDO Jr. Ronaldo Porto. Foucault: 0 podereo direito. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 211): 151-176, 1 sem. 1990, O espaco colateral O enunciado exige um dominio a ele associado. Ele nao existe isoladamente. Ele 86 existe localizado, daf a necessidade de um “campo adjacente” ou “espaco colateral”” (Foucault, 1986, p. 104). Decorre também desta caracteristica do enunciado nova dife- renca em relacdo a uma frase ¢ uma proposicdo, visto que apenas estas so delimitaveis fora dos contextos em que sao proferidas, a partir de suas graméticas (1986, p. 111). 0 espaco colateral é um conjunto de formulagées constitufdo por aquelas onde o enuncia- do se situa como elemento, por aquelas as quais 0 enunciado se refere ou toma possfvel no futuro e, finalmente, pelo conjunto maior de formulagées que o caracterizam como um tipo determinado de discurso (1986, p. 129-130 fr). Deste modo, todo enunciado se liga a um jogo enunciativo (1986, p. 114). Ele nao é 0 4tomo significative auténomo (ver também 1986, p. 122 € 125). © espaco complementar Uma outra condigio do enunciado € a sua existéncia material. A materialidade é constitutiva do enunciado que precisa ter uma substncia, um suporte, um lugar e uma data. Quando mudam estes requisitos, muda a identidade do enunciado. Uma enuncia- cdo € uma emissdo de signos, o que a caracteriza como uma singularidade. Um enun- ciado, em contrapartida, € passivel de repeti¢do. Pode haver duas enunciagées de um mesmo enunciado. A materialidade repetivel do enunciado (isto é, a sua identidade) é de ordem institucional ¢ nao sensivel (vale dizer, nao € a tinta, som, disposicéo grifica, eic,). Por tal motivo, ela nio € definida pelo espaco ou data, mas por um “status” de coisa ou objeto, jamais definitivo, mas modificdvel (1986, p. 118). O espaco complemen- tar ou formaco no discursiva seriam as instituigdes, eventos politicos, préticas e pro- cessos econémicos, isto 6, como diré Foucault em textos posteriores, “‘situag6es de po- der”. A materialidade do enunciado que permite a sua repetibilidade refere-se a condi- Ges estritas, como: 1) 0 mesmo espaco de distribuicio; 2) a mesma repartigao de sin- gularidades; 3) mesma ordem de lugar e espaco; 4) mesma relacg4o com o meio institu‘ do (Deleuze, 1986, p. 20; Foucault, 1986, p. 184-185). E na andlise do espago complementar que Foucault estabelece um primeiro esboco de sua filosofia politica e lanca as bases de seus futuros trabalhos sobre o poder (De- leuze, 1986, p. 19). MACEDO Jr, Ronaldo Porto. Foucault: 0 poder eo direito. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 157 11): 151-176, L.sem. 1990, A pragmética foucaultiana se estabelece na medida em que a identidade do enun- ciado € relativa e oscila segundo 0 uso que dele se faz e a maneira pela qual é manipu- lado (Foucault, 1986, p. 120). A sua identidade é fungéo do campo de utilizagao no qual se encontra inserido. Este, por sua vez, define um campo de estabilizac@o que permite, apesar das diferencas de enunciacdo, repetir 0 enunciado em sua identidade. A partir de tais colocagées compreende-se que a anflise do enunciado nao pode ser uma andlise exaustiva da linguagem. O enunciado nao € um dtomo significativo (Foucault, 1986, p. 112-113). Neste ponto Foucault se opde novamente aos cénones de uma se- mantica légica radical como a do Tractatus (Ver I., 3.201; 3.2; 3.25; 4.221) e aproxi- ma-se, de certo modo, de Wittgenstein das /nvestigacées Filoséficas. Foucault chamaré de arquivo “o sistema geral de formacao e transformacao dos enunciados” (Foucault, 1986, p. 150). Ele é a lei do que pode ser dito, isto é, 0 sistema de enunciabilidade e sistema de funcionamento do enunciado enquanto acontecimento singular. Conforme aponta Deleuze, “neste nivel entre as formagdes no-discursivas de instituigdes e as formagées discursivas de enunciados, seria grande a tentacdo de esta- belecer um paralelismo vertical como entre duas expressdes que simbolizariam uma e outra, seja uma causalidade horizontal, segundo a qual os eventos ¢ as instituicdes de- terminariam os homens enquanto autores supostos de enunciados. A diagonal impée, entretanto, uma terceira via: relag6es discursivas com meios no-discursivos que nio so eles mesmos nem interiores nem exteriores ao grupo de enunciados, mas que cons- tituem um limite, 0 horizonte determinado, sem o qual tais objetos de enunciado nao poderiam aparecer, nem tal lugar ser assignado no préprio enunciado” (Deleuze, 1986, p. 19). Foucault observa que a série de letras A, Z, E, R, T, que se encontra numa mé- quina de escrever francesa ndo forma um enunciado. Ao grafarmos estas letras nesta or- dem num papel, elas passam a formar um enunciado, Isto se deve ao {ato de que a or- dem A, Z, E, R, T, presente na méquina é um “‘conjunto de configuragées de poder, um conjunto de relacées de forca entre letras do alfabeto na Ifngua francesa, segundo suas freqiiéncias, e os dedos da mao segundo as distncias que os separam”” (Deleuze, 1986, p. 21). Desde jé se percebe o papel central da concepgao foucaultiana do poder na ar- queologia. Todavia, Foucault apenas viria a descrever de maneira mais elaborada a sua concepgo de poder em obras posteriores. A abordagem arqueolégica permitiu analisar 0 discurso de tal modo que o texto literério, a fala do louco e uma proposi¢ao cientifica pudessem ser considerados enun- ciados sem nenhuma medida transcendental ou invariével (que pudesse, inclusive, dife- rencié-los em esséncia), como queria a seméntica légica a la Tractatus. A arqueologia distingue-se, deste modo, também da hermenéutica por nao buscar o sentido oculto (da- 158 MACEDO Jr., Ronaldo Porto. Foucault: 0 poder eo direito, Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, ‘AY:151-—, Lesem. 1990. do) dos enunciados (Foucault, 1986, p. 139). Para ela o discurso € um monwmento € nao um documento que é signo de outra coisa. A arqueologia nao é alegérica (Foucault, 1986, p. 159). O sentido define-se no interior de uma pragmética, de um jogo de poder discursivo, Deste modo, uma atividade nao pode ser determinada inteiramente por sua interpretagao, visto que uma regra nao determina completamente uma atividade. (A pro- pSsito, ver Foucault, 1980 e as respostas desse autor em Foucault, 1982, especialmente as paginas 67-72, onde sua posicao € contraposta & de Weber.) Do mesmo modo, um jogo de futebol nao pode ser interpretado inteiramente a partir apenas das regras for- mais do futebol (tal como estéo num manual). A regularidade de um jogo de futebol de- fine-se praticamente, muito embora tenha como referéncia prética importante as regras formais. A microfisica do poder Vigiar e Punir € um livro que marca uma nova orientagdo nas pesquisas de Fou- cault, muito embora ainda se deva falar de um mesmo projeto filos6fico. A andlise do nascimento da prisdo leva o filésofo a ter como objeto direto de ané- lise algo de que ainda no se ocupara, isto é, as formacdes ndo-discursivas. Grosso modo, pode-se dizer que a Arqueologia do Saber culmina numa anélise do saber en- quanto positividade referida a um arquivo. Vigiar e Punir e Vontade de Saber desen- volvem uma analitica do poder a partir da anélise dos diagramas ou relagées estratégi- cas de poder. A anflise foucaultiana dos micro-poderes desemboca, aparentemente, numa espé- cie de funcionalismo. O poder no é algo localizado no topo de uma hierarquia da qual se derivaria, mas € algo difuso, disperso na trama social. Contudo, contrariamente a um funcionalismo & la Parsons, 0 poder no tem esséncia, nfo € concebido como uma pro- priedade (nao € como dinheiro que dé poder a quem o possui), nem esté localizado em algum lugar. Ele € concebido como uma estratégia. poder disciplinar descrito em Vigiar e Punir néo se identifica a uma instituigo politica ou aparelho de Estado. Trata-se de um tipo de configuracao de poder que per- passa as instituicdes e discursos, como uma espécie de tecnologia. O poder no tem es- séncia, € apenas uma relacdo. Por tal motivo, ele ndo deve ser concebido como sendo fundamentalmente repressive nem confundido com a violéncia. “Uma relagéo de vio- Iéncia age sobre um corpo, sobre coisas (...) Uma relagdo de poder, pelo contrério, se articula sobre dois elementos que Ihe so indispens4veis para ser justamente uma rela- do de poder: que o ‘outro’ (aquele sobre quem ela se exerce) seja reconhecido e manti- MACEDO Jr., Ronaldo Porto. Foucault: 0 podere o direito. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 159 ‘): 151-176, L.sem. 1990. do até 0 fim como sujeito de ago; e que se abra diante da relagio de poder todo um campo de respostas, reagées, efeitos, invengdes possiveis” (Foucault, 1984, p. 313). Neste sentido, 0 exercicio do poder consiste num conjunto “de aco sobre aces poss{- veis”, do tipo da incitagio, inducdo, facilitagio, limitagdo, impedimento, etc. Foucault critica também a teoria juridica do poder do Estado, que se exprimiria na lei que serviria de critério absoluto de discriminacdo do dominio da legalidade ¢ da ile- galidade (Foucault, 1987). Para ele importa observar que existe uma correlagao mais sutil entre os ilegalismos e a lei, pela qual a lei passa a ser concebida como uma compo- sicdo de ilegalismos que ela diferencia e formaliza. O Direito seria uma gestio e nor- malizacdo dos ilegalismos. O discursivo e 0 nfo-discursivo. O lugar do poder Para Foucault, hé uma heterogeneidade entre as formacées discursivas € as nio- discursivas. Entre elas nao hé nem correspondéncia, nem isomorfismo, nem causalidade ou simbolizagdo. As formagées néo-discursivas constituem 0 domfnio do vis/vel (por exemplo a prisio enquanto regime pandptico de controle), enquanto as discursivas 0 dominio do enuncidvel (por exemplo Direito Penal). Entre os domfnios hé diversos pontos de contacto. Existe uma pressuposicao reci- proca entre as duas formas. Todavia, nao h4 forma comum entre elas. Conforme a fina interpretacdo de Deleuze, hé uma “espécie de correspondéncia muito embora as formas sejam irredutfveis” (Deleuze, 1986, p. 41). Isto se deve a0 fato de que “podemos con- ceber as puras matérias e puras fungées, abstracio feita das formas onde elas se encar- nam” (Deleuze, 1986, p. 41). Deste modo, o panoptismo tanto se refere a uma técnica de controle e disciplina que caracteriza 0 “agenciamento concreto” (dispositive) pri- séo, como determina uma “mdéquina abstrata”” que se aplica a uma matéria vistvel em geral (por exemplo o atelier, a caserna, a escola, o hospital, etc.) ¢ que atravessa tam- bém as funcées enuncidveis. Foucault denomina esta “méquina abstrata” que opera tanto no dominio do discursive como no dominio do nfio-discursivo de diagrama. As descrig6es dos diagramas foi também chamada por ele de cartografia (isto é, a carta das relagées de poder). Todo diagrama é inter-social e est em constante mutacdo. Ele produz um novo ti- po de realidade e modelo de verdade. Ele nao & um sistema fechado ¢ estavel (como a estrutura © era para os estruturalistas), ela est4 em constante devir (a propésito, ver Foucault, 1985, p. 94). 160 MACEDO Jr., Ronaldo Porto. Foucault: 0 poder eo direito. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 21): 151-176, 1.sem. 1990, Na Vontade de Saber (1985, p. 130-132) so caracterizados dois tipos de estraté- gias, técnicas de poder: a anétomo-politica e a bio-politica (bio-poder). Os dispositivos ou agenciamentos concretos tém uma dupla dimenso. Eles sio compostos de elementos do visivel e do enuncidvel combinados (Foucault, 1987, p. 276; Deleuze, 1986, p. 46). A andlise do poder permite a Foucault superar o dualismo aparentemente incomunicével do visivel (exemplo, priséo) com o enunciével (exemplo, Direito Penal). Deste modo, uma prisdo poderia ter uma existéncia nas sociedades pré- disciplinares; todavia, ela apenas se constitui num dispositivo quando o diagrama disci- plinar lhe concede uma dimensio tecnolégica peculiar (ver Deleuze, 1986, p. 48). ‘Ademais, cada dispositive pode realizar 0 mesmo diagrama segundo diferentes ‘‘coefi- cientes de efetivacio”. As prisdes podem também efetivar o diagrama disciplinar con- forme diferentes coeficientes. Neste sentido, pode-se tragar uma histéria da mudanca dos diagramas (Foucault, 1985, p. 134). Daf 0 erro em se pensar em Foucault como sendo © tedrico da prisio (dispositivo), esquecendo-se do seu interesse mais geral de descrever os diagramas de poder que esto em jogo nas prisées e suas mutacées (Fou- cault, 1987, p. 26). A partir deste conceito de dispositive, compreende-se porque 0 proprio saber vai se constituir como um dispositivo, isto é, como um agenciamento pritico de visibilida- des e enunciados. Conforme Deleuze, “se 0 saber consiste em entrelacar 0 visivel ¢ 0 enuncidvel, o poder € a sua causa pressuposta, bifurcagao, inversamente, 0 poder impli- ca o saber sem 0 qual ele nao passaria a ato” (1986, p. 46). “Nao hé relacdo de poder sem constituicdo correlata de um campo de saber, nem saber que no suponha ¢ néo constitua a0 mesmo tempo relagées de poder” (Foucault, 1987, p. 30). O Saber 6, por- tanto, uma relacdo entre duas formas (o enuncidvel ¢ 0 visvel) mediante a configuraco de poder, 0 qual, ele mesmo, nao é uma forma. O saber pertence ao dominio do arqui- Vo, a0 passo que o poder pertence a0 dom{nio do diagramético. Daf a sua heterogenei- dade de dominio. Eles ndo estio no mesmo plano, malgrado a pressuposicao reciproca existente entre ambos (Foucault, 1985, p. 93-94). “E preciso admitir um jogo complexo € instével em que 0 discurso pode ser, a0 mesmo tempo, instrumento ¢ efeito de poder O discurso veicula e produz poder” (1985, p. 96). O saber, deste modo, esté longe de ser uma ciéncia formada a partir de critérios de verdade a-historicos. S6 existem préticas (discursivas de enunciado ¢ ndo-discursivas de visibilidade) que so entrelacadas pelos saberes conforme uma dada configuragao de poder. E neste sentido que a propria nogdo cléssica de verdade como adequacéo € abandonada por Foucault. A verdade apenas se define no interior de um jogo de verda- de, 0 qual se exerce numa situaco de poder. Esta consideracdo impée alguma pondera- co & interpretacdo radical que Paul Veyne faz de Foucault. Para ele, a anélise de Fou- cault consideraria “‘a seméntica uma ilusio idealista”’ (Veyne, 1982, p. 177). Todavia, MACEDO Jr., Ronaldo Porto, Foucault: 0 poder eo direito. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 161 211): 151-176, Lsem. 1990. isto somente seria correto se concebéssemos a seméntica num registro teérico a la Tractatus (no que incluo também toda a légica de inspiracao aristotélica). Numa defini- cdo mais ampla de semantica, na qual esta seria uma forma de correlacionar producao enunciativa ao mundo (positividade e visibilidades), serfamos obrigados a admitir que h4 uma semantica em Foucault. E certo, contudo, que no mais se trataria de uma se- mantica representativista, onde o enunciado seria uma figuracao de fatos do mundo. Estabilizaco do poder (as instituig6es) A atualizagdo das redes de relagGes de poder que criam ¢ estabilizam os diagramas constituem um processo de estabilizacao (Foucault, 1985, p. 67 ¢ 90). Esta consiste em tracar uma linha geral de forga que permite ligar as singularidades, homogeneizé-las, colocé-las em série e fazé-las convergir (Foucault, 1985, p. 90). As instituigdes como a famflia, 0 Estado, a Religido, a produc&o, so os fatores integrantes. Tais instituicdes nao sao esséncias, mas sim préticas, mecanismos operatérios. E. neste sentido que para Foucault nao hé o Estado, mas sim préticas de “estatizacio” que variam na hist6ria (Foucault, 1984, p. 318). Deste modo, o Estado supée as relacdes de poder, ao invés de ser a sua origem. O Estado seria uma espécie de curva que reuniria uma série de pontos singulares; neste sentido ele seria uma regra, uma regularidade. O diagrama € a propria ‘emisso de singularidades, enquanto a instituicéo, a curva estabilizadora. Os pontos singulares so as relaces de forga. No dominio do discursivo, os pontos ao se institu- cionalizarem na figura de uma curva constituem-se em enunciados. A “‘curva-enuncia- do” € aquilo que integra as singularidades de poder, as relagées diferenciais de forca (Deleuze, 1986, p. 86). Numa terminologia proposta por Deleuze, a curva-enunciado seria a regulacao prépria dos discursos, ao passo que o quadro-descrico seria a regula- co propria das visibilidades (Deleuze, 1986, p. 87). Retomando as distingdes anteriores, o diagrama de forcas se atualizaria tanto nas curvas-enunciado como nos quadros-descrico. O diagrama cruza tanto as multiplicida- des discursivas como as multiplicidades nao-discursivas. Resta, entretanto, que 0 pré- prio conceito de poder utilizado por Foucault implica em multiplicidades de forga em relaco. E neste sentido que a filosofia de Foucault pode ser chamada, num sentido ra- dical, de uma pragmitica do miltiplo. 162 MACEDO Jr., Ronaldo Porto. Foucault: 0 poder ¢0 direito. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 211): 151-176, L.sem. 1990. Do poder as formas de poder Conforme foi visto, a instituico € um “locus” (curva) no qual as relagées de for- a se retinem, se organizam em torno de uma determinada instancia. O exemplo melhor analisado por Foucault deste esquema é a sua andlise do “'sexo” como “locus” de aglu- tinacdo do dispositivo da sexualidade. Em Vontade de Saber ele procura mostrar como “6 0 dispositivo da sexualidade que, em suas diferentes estratégias, instaura esta idéia do ‘sexo’; e o faz aparecer sob as quatro grandes formas — da histeria, do onanismo, do fetichismo € do coito interrompido — como sendo submetido ao jogo do todo e da parte, do principio e da presenca, do excesso e da deficiéncia, da funcéo do instinto, da fi- nalidade e do sentido, do real e do prazer. Assim, formou-se pouco a pouco a armagéo de uma teoria geral do sexo" (Foucault, 1985, p. 144). Este saber (teoria) sobre 0 sexo engendrou certas fungdes no dispositive de se- xualidade, como por exemplo: 1) serviu para agrupar elementos anatémicos, sensacdes, condutas, etc., funcionando como unidade artificial, ficticia, que pode operar como um significante tinico ¢ como significado universal; 2) péde marcar uma linha de contato entre a sexualidade humana e as ciéncias biolégicas da reproducao ganhando “por pri- vilégio de vizinhanca uma garantia de quase cientificidade"’; 3) permitiu “‘inverter a re- presentagao das relacdes entre o poder e a sexualidade, fazendo-a aparecer néo na sua relaco essencial e positiva com o poder, porém como ancorada em uma instfincia espe- cffica ¢ irredutivel que 0 poder tenta da melhor maneira sujeitar” (Foucault, 1985, p. 145). E neste sentido que o sexo permitiu que as situagdes de poder pudessem ser redu- zidas ao poder institucional, nao revelando 0 aspecto constitutivo da situago de poder. “A idéia ‘do sexo’ permite esquivar 0 que constitui 0 ‘poder’ do poder; permite pen- sé-lo apenas como lei e interdicéo” (Foucault, 1985, p. 145) (Grifo meu). Chegamos, pois, concluséo de que 0 sexo constitui uma ficgio necesséria ao funcionamento da sexualidade. “O sexo nada mais € do que um ponto ideal tomado ne- cessério pelo dispositivo de sexualidade ¢ por seu funcionamento” (Foucault, 1985, p. 145). O sexo € 0 “‘ponto ficticio” da sexualidade que desempenha funcées priticas tedricas importantes, como permitir aos homens 0 acesso a sua “inteligibilidade (j6 que ele €, a0 mesmo tempo, 0 elemento oculto € 0 principio produtor do sentido); & rorali- dade de seu corpo (pois ele € uma parte real e ameacada deste corpo, do qual constitui simbolicamente 0 todo); & sua identidade (j4 que ele alia a forca de uma pulsio a sin- gularidade de uma hist6ria)”” (Foucault, 1985, p. 145-146). MACEDO Jr., Ronaldo Porto. Foucault: 0 podere o direito. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 163 1): 1S1-176, 1-sem, 1990. Soberania e governo Minha tese € a de que a idéia da soberania desempenha uma funcéo andloga & idéia de sexo. Ela funciona como um ponto ideal, ficticio, que permite a totalizacéo € identificagdo de uma coletividade. A soberania é para o Estado aquilo que 0 sexo € para a sexualidade (Deleuze, 1986, p. 83), isto é, um ponto uno, ficticio e integrador da pré- tica. Nao se deve esquecer que em Soberania e Disciplina Foucault critica 0 modelo de poder de soberania, pensado, neste contexto, como um modelo de exercicio de poder politico baseado exclusivamente no poder do Rei (0 soberano). Desde a Idade Média, 0 direito “‘era encomendado pelo rei”” (Foucault, 1979, p. 180). O problema maior em re~ aco ao qual se organizava a teoria jurfdica era o da soberania do rei. “Enquanto durou a sociedade de tipo feudal, os problemas a que a teoria da soberania se referia diziam respeito realmente & mecdinica geral de poder, & maneira como este se exercia, desde 0s nfveis mais altos até os mais baixos. Em outras palavras, a relagao de soberania, quer no sentido amplo quer no restrito, recobria a totalidade do corpo social. Com efeito, 0 modo como 0 poder era exercido podia ser transcrito, a0 menos no essencial, nos ter- mos da relagdo soberano-stidito” (1979, p. 187). Nos séculos XVII e XVIII surge uma nova mecénica de poder que se opde & meciinica do mando-obediéncia tal como pensa- da pela teoria juridico-politica da soberania real. Trata-se do poder disciplinar que néio vai mais supor “‘a existéncia fisica do soberano”, o seu poder efetivo de mando. O po- der disciplinar nao eliminou, contudo, a mecdnica da teoria da soberania, na medida em que esta péde se transformar. “A teoria da soberania e a organizacdo de um cédigo ju- ridico nela centrado permitiram sobrepor aos mecanismos da disciplina um sistema de direito que ocultava seus procedimentos e técnicas de dominacio, ¢ garantia o exercicio dos direitos soberanos de cada um através da soberania do Estado. Os sistemas jurfdi- cos (...) permitiram uma democratizacdo da soberania, através da constituico de um di- reito puiblico articulado com a soberania coletiva, no exato momento em que esta de- mocratizacéo fixava-se profundamente, através dos mecanismos de coerco disciplinar”” (1979, p. 188-189). Ora, 0 que aqui apresento como idéia de soberania, no se resume & relagdo man- do-obediéncia exercida pelo rei sobre o stidito. Nao me refiro ao poder efetivo do rei, mas a existéncia de uma instncia que se apresenta como ponto de convergéncia de uma série de relagées de poder e que € suprema frente aos demais. Ela €, de algum modo, integradora das configuracées de forca existentes numa sociedade. O poder soberano (nao 0 poder do soberano) seria uma instancia capaz de expli- car alguns comportamentos coletivos dotados de finalidade e sentido. Longe de ser um I64 MACEDO Jr. Ronaldo Porto. Foucault: 0 podere o direito. ‘Tempo Social; Rev. Sociol. USP 21): 151-176, 1.sem. 1990, Sujeito-Estado hegeliano (“O poder uno néo esté em nenhum lugar”), a soberania do Estado (Una) seria uma ficgao totalizadora de todas as praticas de soberania exercidas pela sociedade. Neste sentido, ela seria constitutiva ¢ estabilizadora das préticas de poder que se combinam e articulam para a constituicdo do proprio sujeito. ‘“O Estado repousa sobre a integracao institucional das relagdes de poder” (Foucault, 1985, p. 92). ““Pode-se ver no Estado uma matriz de individuacao...’ (1984, p. 306). Conforme foi visto anteriormente, Foucault nem sempre distingue com clareza a acepcao e sentido em que usa os seus conceitos. Por tal motivo, sao freqiientes em Vi- giar e Punir identificagées entre 0 poder soberano € 0 poder do soberano (Rei) (Fou- cault, 1987, p. 82, 93, 168, 36, 45, 47, 49, 69, 81, 83). Esta identificagao leva a enganos ou, pelo menos, dificulta a leitura dos textos de Foucault. Todavia, deve-se ao menos lembrar de uma razéo para que ele proceda da maneira que o faz. A sua preocupacdo explicita em Vigiar e Punir e nos textos de Mi- crofisica do Poder € criticar um modelo estrito e, talvez, estreito de soberania. Ele cri- tica 0 modelo de soberania que vé na pessoa (corpo) do rei a tinica origem ¢ funda- mento do poder. A origem a qual se reduzem todos os poderes sociais. Os seus textos sao um contraponto teérico a esta concep¢ao estrita e estreita de soberania. Em Vontade de Saber, obra publicada um ano ap6s Vigiar e Punir, as distingées so mais precisas. No livro posterior, o autor j4 observa o duplo condicionamento exis- tente entre 0 dispositivo estatal e o dispositive familiar. O duplo condicionamento entre “estratégias globais”’ de poder e “focos locais” de poder (na mesma linha Foucault vai afirmar que 0 direito € um complemento necessério da disciplina (1979, p. 189), 0 que permite entender que a racionalidade das téticas de poder forma dispositivos de con- junto). “‘Deve-se pensar em duplo condicionamento de uma estratégia, através da espe- cificidade de téticas possiveis e, das téticas, pelo invélucro estratégico que as faz fun- cionar’” (Foucault, 1985, p. 95). Neste sentido, 0 poder na sociedade moderna, apenas no limite, somente seria pensdvel conjuntamente a uma concepgao do poder de Estado (soberania estatal) (Fou- cault, 1984, p. 304), assim como a sexualidade, no limite, apenas seria pensdvel com 0 sexo (“‘um elemento especulativo necessario ao funcionamento” do dispositivo da se- xualidade — Foucault, 1985, p. 147). Foucault somente viri a distinguir com clareza o poder de Aparelho de Estado do Poder de Estado (enquanto forma de poder) em seus tiltimos textos sobre o poder (Fou- cault, 1984, p. 304). Nestes textos, o Estado como totalizacao € apontado como sendo uma das caracteristicas do dispositivo juridico-politico moderno. MACEDO Jr, Ronaldo Porto. Foucault: 0 podere o direito, Tempo Social; Rev. Sociol. USP,S. Paulo, 165 21): 151-176, 1-sem. 1990. Estado e governo E a partir da concepcio nietzscheana de poder, que foi anteriormente analisada, que Foucault desenvolveré 0 seu conceito de governo. Visto que 0 exercicio do poder consiste numa “aco sobre a ago” dos outros, 0 governo seré definido como “a manei- ra de estruturar 0 campo de aco eventual dos outros” (Foucault, 1984, p. 314). Neste sentido, 0 Estado vai se determinando pelas téticas de governo em seu exercicio. Em outras palavras, o governo organiza a relacéo de poder de modo a produzir um processo de estatizacdo. Por outro lado, o Estado enquanto ilusio € um referente importante para © processo de centralizacéo e hierarquizacio (niio redugio) dos poderes. As relacées de poder foram, neste sentido, cada vez mais racionalizadas ¢ centra- lizadas na forma ou sob a caucdo das instituicdes do Estado (este processo define um sentido mais estrito de governo utilizado por Foucault) (1! 84, p. 318). Vale ainda lembrar que 0 sexo ¢ a soberania ocupam papéis andlogos enquanto ficgdes reguladoras que sao referenciais de préticas. Todavia, 0 sexo serve como ponto de referéncia para uma totalizaco setorial, ao passo que o Estado, na medida em que todos os tipos de relagio de poder a ele se referem, é a tinica totalizacéo global (1984, p. 318). O Estado ¢ a sexualidade definem, portanto, segundo Foucault, formas dife- rentes de poder. 0 Bio-Poder € 0 Direito Social (As teses de Ewald) Para Foucault, 0 bio-poder refere-se a uma estratégia nascida no século XVIII, fo- calizada numa preocupacio com a gestio e regulacdo da vida (a proliferagao, natalidade ¢ mortalidade, satide, duraco da vida, etc.). O bio-poder desenvolveu duas tecnologias bésicas, a andtomo-politica (controle do corpo) e a bio-politica da populagéo (Foucault, 1985, p. 131). Este novo poder iria apenas ser “um elemento indispensdvel para 0 de- senvolvimento do capitalismo” (1985, p. 132), como iria influenciar a formagao de ins- tituicdes como 0 Estado, o exército, familia, etc., nas suas novas configuracées. “Uma outra conseqiéncia deste desenvolvimento do bio-poder é a importincia crescente as- sumida pela atuagéo da norma, as expensas do sistema jurifico da lei” (1985, p. 135). O bio-poder 6 um poder essencialmente normalizador (1985, p. 136). Para F. Ewald, 0 “Estado Providéncia realiza 0 sonho do bio-poder” (Ewald, 1986, p. 374). O seu objetivo principal é analisar a mecanica deste Estado pés-liberal. 166 MACEDO JIr., Ronaldo Porto. Foucault: 0 poder ¢ 0 direito, ‘Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 211): 151-176, 1.sem. 1990. O Projeto de L’Etat Providence O projeto de L’Etat Providence, adverte-nos 0 seu autor, é constituido a partir de uma dupla démarche. Por outro lado, trata-se de um projeto arqueolégico sobre as mu- dangas que a problemética da institucionalizaco juridica dos acidentes de trabalho im- plicou para 0 significado do conceito de responsabilidade. “‘Nao havia solugao para 0 problema dos acidentes de trabalho que no passasse pelo abandono da racionalidade politica real’” (Ewald, 1986, p. 275). As transformagées de tal conceito somente podem ser compreendidas, segundo Ewald, a partir das mutag6es que ocorrem no interior da racionalidade juridica que pas- sa a predominar. Neste sentido, esta primeira démarche é também uma sociologia poli- tica da formagao deste novo tipo de sociedade no interior do qual tais mudangas sio ve- titicadas, isto é, das Sociétés Assurentielles. Por outro lado, trata-se de elaborar uma analitica do pensamento jurfdico, a qual se organiza em torno dos seguintes temas: ‘‘a experiéncia juridica (como quadro geral da anflise), a regra de julgamento (como principio de inteligibilidade das préticas juri- dicas) ¢ 0 positivismo critico (como programa para uma filosofia do direito)”” (Ewald, 1986, p. 29). Neste primeiro tema a preocupacéo primordial seria relativa as mudancas ocorridas no interior do sistema juridico (normas, organizacao, origens, etc.) que esto implicadas na mudanga do conceito de responsabilidade. Importa compreender as mu- dancas ocorridas no direito. Ewald, discipulo de Foucault, assume uma atitude nomina- lista frente ao direito. ““O Direito nao existe; aquilo que chamamos ‘direito’ é uma cate- goria do pensamento que néo designa nenhuma esséncia, mas serve para qualificar cer- tas priticas: préticas normativas, priticas de coergéo (contrainte) e da sangao social (sem diivida), prética politica (certamente) e prética da racionalidade (também) (...); po- de-se determinar a priori 0 que € o direito, quais sio as préticas que devem ser assim qualificadas, posto que isto depende daquilo que é reflexionado como direito no quadro de uma certa experiéncia juridica” (Ewald, 1986, p. 30). A perspectiva assumida por Ewald configura uma genealogia (entendida enquanto anélise histérica das condicées politicas de possibilidade dos discursos) da experiéncia juridica. As regras de julgamento, conceito chave na metodologia de Ewald, constituem-se na maneira pela qual uma determinada norma ou conceito juridico so interpretados numa determinada época. Sao as regras de julgamento que permitem verificar como vo ocorrendo mudangas nos contetidos das normas, primeiramente no Ambito da jurispru- déncia, mas, logo em seguida também no plano doutrinério, de acordo com uma certa regularidade. E importante lembrar que as regras de julgamento uma vez que implicam em critérios para decisées juridicas, constituem-se em referéncia obrigatéria na orienta- MACEDO Jr. Ronaldo Porto. Foucault: 0 podereo direito. Tempo Social; Rev. Sociol. USP,S. Paulo, 167 211): 151-176, L.sem. 1990, cdo das préticas politicas ¢ sociais. Neste sentido, elas so importantes na determinacao da racionalidade politica dominante. Por outro lado, e inversamente, elas so reflexio- nadas em fungéo das préticas as quais elas servem de referéncia, Em outras palavras, a racionalidade juridica constitui-se no interior de um sistema social e politico em funcao do qual ela mesma se reflexiona (Ewald, 1986, p. 37). Vale dizer, hé uma relacdo de determinagao recfproca entre poder e saber. O Direito Social Para Ewald, seriam trés as principais caracteristicas do Direito Social: (a) trata-se de um direito que se dirige menos aos individuos tomados isoladamente e mais a estes na medida em que pertencem a um grupo, classe ou categoria profissional. Neste senti- do, “os sujeitos de direito social so sujeitos qualificados em fungéo da situagdo parti- cular que ocupam: 0 direito social € um direito realista” (1986, p. 451); (b) ele no & mais “um direito de igualdade, cuja regra de julgamento passa pela igualdade de direi- tos, mas, pelo contrério, € um direito das desigualdades, um direito discriminat6rio, um direito das preferéncias” (1986, p. 451). E também nesta medida que hé novidade no instituto do contrato no Direito Social. O contrato pressupunha, para o pensamento libe- ral, a igualdade entre os contratantes e passa agora a definir uma relacao de desigualda- de (1986, p. 453), nao mais universalizAvel; (c) 0 Direito Social “é necessariamente um direito que tem por base a sociologia — € nao a filosofia como o direito civil classico — na medida mesma em que a sociologia se constituiu historicamente como critica da filo- sofia, de suas abstragées ¢ sua metafisica, em proveito de uma apreensdo dos sujeitos e grupos sociais que as tomasse no interior de sua realidade concreta’’ (1986, p. 451 € 352). Para Ewald, a sociedade do final do século XIX é marcada por uma estrutura de organizacao do direito que se apéia numa nova postura epistemolégica que determina os jogos de verdade deste periodo. Ele chama a matriz que permite a constituico dos jo- gos de verdade acerca da justica social de esquema de solidariedade. ““O esquema da solidariedade serviu de matriz para uma filosofia da responsabilidad como repartigao de riscos, em relac&o & qual a ideia de erro (faute) (com a qual a idéia de responsabili: dade esteve confundida por muito tempo) aparecia ela mesma apenas como uma maneira 168 MACEDO Jr., Ronaldo Porto. Foucault: 0 podere o direito. Tempo Socis 211): 151-176, L.sem. 1990. Rev. Sociol. USP, S. Paulo, muito limitada de pensar a questéo da imputagdo dos danos. O final do século XIX marca um momento decisivo na hist6ria da responsabilidade: toma-se consciéncia que ela € apenas uma pura relac&o que deve procurar apenas em si mesma os princfpios de sua propria legislacdo (Ewald, 1986, p. 350). As priticas de responsabilidade por risco, as instituigGes de seguranga, constitufam-se a partir de uma nova regra de julgamento diversa daquela do direito civil, instaurando uma nova positividade. “A sociedade nao tem mais exterior, ocorre a ela dar a ela mesma sua prépria legislacao; ela nao precisa procurar 0 seu direito fora de si mesma, numa referéncia de nao importa qual natureza"” (1986, p. 351). Diferentemente das sociedades antigas ¢ da idade classica, que busca- vam uma referéncia para a justica na natureza, em Deus ou na razo absoluta (mesmo que assumindo a consciéncia (negativa) de nossa finitude, a sociedade da seguranca (Assurentiel) € auto-referida. Ela se auto-gere encontrando em si mesma a medida de sua justica a partir de um critério de normalidade (Ewald, 1986, p. 481). A partir de entéo, 0 problema da definigao do conceito de justia social passa a ser o de saber se € possivel existir uma regra sobre a qual se possa chegar a um acordo e permitir a cada um medir-se em relacdo ao outro e medir o preco da solidariedade, com a condicao adicional de que o consentimento para 0 acordo néo é definitivo e esté- vel, mas deve ser renovado perpetuamente. Para Ewald, como j4 foi anunciado, tal re- gra existe, e € a norma. No Ambito do Estado Providencialista a norma tem um papel de medida comum que desempenha a mesma fungao da antiga nogéo de bem comum € 0 princfpio de igualdade (tratar igualmente passa agora a designar o tratamento anormal). Neste sentido, a norma permite pensar a relac&o entre igualdade e desigualdade, “ndo em funcio de uma regra proporcional, ou de um princfpio formal, mas em relacéo as idéias de média e de equiltbrio, isto é, sem referéncia a uma medida fixa ¢ transcen- dente, mas por uma constatacéo regular da relacao da sociedade com ela mesma’” (1986, p. 583). A norma funciona também como medida comum que permite que cada um pense 0 seu valor, sua identidade e lugar respectivo no interior da sociedade. Neste sentido ela “socializa o jufzo (jugement) e as identidades””. A norma constitui-se num “ponto ficti- cio onde aquilo que vive disperso na sociedade pode se ver como um”. Ela é 0 espelho das solidariedades, funcionando como um princfpio de totalizagdo, 0 qual assume um cardter muito especifico. A norma 6, deste modo, o prinefpio regulador das préticas que constituem 0 Estado (as priticas de governo (Foucault, 1984, p. 314) e estatizacao) Providencialista, esta nova forma de poder pastoral (Foucault, 1984, p. 305). Nao se trata de encontrar um interesse ou um bem geral e comum universaliz4vel, mas antes de constituir-se numa sociedade que concretamente se apresenta dividida por elementos por vezes antagonistas ¢ somente por vezes solidérios, um lugar onde se pode repre- sentar 0 fato da solidariedade. Nesta dimensdo, a norma como medida comum opera MACEDO Jr., Ronaldo Porto. Foucault: 0 podere o direito, Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 169 1}: 151-176, L.sem. 1990. como um indicador do estado e identidade de cada individuo ou grupo e como instru- mento do jogo social. Por fim, a norma seria também a forma moderna do vinculo so- cial, na medida em que ela define as condicdes do consenso (0 qual substitui a fungao do contrato social na sociedade liberal). Ela serve de referéncia para uma negociacao que ela torna permanente. Ela é também aquilo que a negociago deve corrigir. Instaura uma desigualdade para logo retificé-la. Ela serve para reinserir os privilégios no con- texto da nonmalidade. Importa ainda notar que uma norma remete a outras nommas. “As normas séo rela- tivas umas as outras dentro de um sistema, pelo menos em poténcia” (Ganguilhem, 1982, p. 185, cit. por Ewald, 1986, p. 591). As normas so matrizes de producéo de enunciados do jogo jurifico moderno. As leis séo tipos de enunciados jurfdicos. Neste sentido, elas néo tém sua garantia ou fundamento dado pela referéncia a um principio ‘ou constituigao, mas sim na articulagéo com outras normas. A “‘normas das normas"’ € um ponto de convergéncia (Canguilhem, 1982, p. 185, cit. por Ewald, 1986, p. 591) que define uma estratégia de normas. Na medida em que a normalizagao se constitui em torno de uma referéncia (no um objeto nem forma pura ¢ ideal) formada a partir da in- teragio de multiplicidades (enunciados juridicos) convergentes ¢ concorrentes, Ewald fala de um “fetichismo da norma” (Ewald, 1986, p. 591). ‘A “Norma das normas” é, assim, a propria soberania estatal. Francois Ewald re- sume 0s pontos fundamentais que o levam a pensar a norma como 0 tipo da racionalida- de que ordena as sociedades de seguranca. Sao cles: 1) A norma constitui um principio de totalizacéo sem universal. Do ponto de vista da norma hé apenas particularidades em conflito. A noma constitui uma medida que varia de acordo com a mudanca de uma hegemonia que uns esta- belecem frente aos outros. Por tal razio, a norma exprime um consenso que permitiu uma estabilizagao precéria que mantém momentaneamente o equilibrio social. 2) O princtpio do equiltbrio. As normas por serem plurais ¢ nao tinicas, ¢ nem sequer redutiveis a um principio fundador tnico, produzem-se no interior de um proceso normativo polémico (no sentido etimolégico da palavra). “Uma ordem normativa institui: uma espécie de competicao entre o bom ou o melhor, competicéo dentro da normatividade (...) © Bem esté sempre por ser desco- berto. Ele € menos um objeto do que um proceso: processo de melhoramento que nao se pode definir sendo como procedimento — capacidade de exprimir 0 equilfbrio sempre em movimento dos interesses que esti presentes — ¢ no como um fim assinalével” (Ewald, 1986, p. 593). O equilfbrio designa a forma 170 MACEDO Jr., Ronaldo Porto. Foucault: o poder eo direito. ‘Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 1): 151-176, 1.sem, 1990. pela qual os direitos e deveres serio balanceados no interior de uma dada so- ciedade. A norma “é filha de uma sociedade conflitual”, € 0 seu papel € 0 de manter aberto o jogo politico estabelecido entre os grupos e interesses. Por tal motivo, a justiga passa a se definir em termos de uma politica do direito que re- flete 0 conflito social. Assim sendo, o direito assume um carter prudencial, constituindo-se a partir de uma légica que ndo deixa de levar em consideragao 08 efeitos que a aplicacéo da norma produziré na realidade. 3) A norma assume um papel andlogo ao papel que 0 conceito de contrato social tinha para o pensamento classico. Ela consiste numa forma de produzir a ob- Jetividade (como 0 contrato social 0 era), que nao mais dispée, todavia, de uma referéncia objetiva (como o era a estrutura a priori da Razdo Pura ou a referén- cia da harmonia de um “evolucionismo”’ (“natural”) ). Ela nao tem o seu lugar no sujeito, visto que a prépria nogio de sujeito individual de direitos entra em crise, mas sim no fato das solidariedades. Neste sentido, compreende-se a afirmacdo de Ewald de que “a norma suposta como exprimindo 0 estado de equilibrio da sociedade, toma o lugar da vontade geral num espaco politico on- de nao hé mais generalidade possfvel”” (1986, p. 595). Dai a norma, assim co- mo a vontade geral de Rousseau, ser necessariamente sempre certa, justa (ten- do-se em vista que os conceitos de certeza e justiga nao permanecem os mes- mos). 4) O social torna-se a medida de todas as coisas. “A norma testemunha a forma- do de um novo tipo de relagao saber-poder. O poder deveré agora exercer-se sem referéncia a uma natureza das coisas, 0 poder remete-se apenas A imagem de seu préprio exercicio, Nada existe seno como correlato de uma relagao de poder” (1986, p. 595). O saber da norma é de tipo sofistico: “uma coisa so- ‘mente comeca a existir a partir do momento em que ela é querida, investida por um interesse, designio de uma vontade de poder” 5) Uma retérica jurtdica. Visto que 0 processo de produgao da verdade implica ‘num trabalho que visa a producdo de uma opinio, o discurso da norma ganha um caréter retérico. “A opinido, a condensacéo da intersubjetividade sobre uma idéia € 0 grande regulador de uma ordem normativa, 0 tinico critério de verdade. A norma secreta a opinido como o Unico juiz possivel de seu valor” (Ewald, 1986, p. 595). Neste sentido, a opiniao assume 0 papel do antigo di- reito natural no interior de uma ordem normativa, Desde j4 se percebe 0 enor- me papel que terdo os meios de comunicacéo enquanto instrumentos de forma- ao de opiniao e, neste sentido, de controle do saber-poder de tipo normativo. MACEDO Jr., Ronaldo Porto. Foucault: 0 podereo direito. Tempo Social; Rev. Sociol. USP,S. Paulo, 171 21): 151-176, L.sem, 1990. 6) Tudo é politico. Uma vez que a norma tem um prinefpio de comensurabilidade de natureza politica, a politica transforma-se na moeda universal que torna co- mensurdveis 0 econémico e 0 politico, que permite ponderar, por exemplo, en- tre a construgao de um hospital e uma estrada (Ewald, 1986, p. 597). A politi- ca, como medida comum que é auto-referente, tem como principio a dissuasdo. A discussio consiste neste regime de constituigéo da verdade no qual as pala- vras no mais dependem de uma referéncia objetiva, mas de um mero reportar- se ao outro. A politica nuclear internacional é um bom exemplo de politica dis- suasiva, na qual as armas servem para no serem usadas, apenas para influen- ciar no célculo das inteng6es dos poderes envolvidos (Ewald, 1986, p. 597). Soberania, Norma e Decisao Frangois Ewald observa que 0 Direito Social abandona cada vez mais 0 conceito de soberania (1986, p. 341). Mas de qual concepgao de soberania fala ele? A concepgao a que se refere € a mesma concepgdo tradicional “estrita e estreita”, criticada por Fou- cault, ora identificada ao poder coercitivo (Ewald, 1986, p. 344), ora a fonte de toda norma, poder e sancdo legal (1986, p. 335). Segundo esta concepcao, o Estado (sendo soberano) no pode agir ilegalmente. Este nao € 0 caso do Estado Providencialista, cu- jas aces podem ser ilegais e injustas (Ewald, 1986, p. 335 € nota 35 desse capitulo). Isto leva Ewald a afirmar, citando Duguit, um dos grandes teéricos do Direito Social, que “é a extensdo sempre maior dada & responsabilidade do Estado que revela, melhor do que qualquer outra coisa, a transformagao profunda do Estado moderno ¢ a desapari- do constante e progressiva da nogao de soberania” (Traité de Droit Constitutionnel, Paris, ILI, p. 459, cit. por Ewald, 1986, p. 341). ‘O mesmo Ewald reconhece que a norma tem sua origem numa decisio, “Normali- zar consiste em determinar uma referéncia ou um modelo para um objeto ou uma ativi- dade. A operaciio tem duas caracteristicas notéveis. A escolha da norma, primeira- ‘mente procede uma decisdo necessariamente arbitréria em relacdo dquilo que 0 objeto da normalizacdo faz. Se hé necessidade de uma norma, € porque nao hé uma referéncia natural para este objeto. A deciséo normativa se dirige, a seguir, a uma coletividade de atividades solidaérias e concorrentes. A norma fixaré a sua objetividade a qual lhes per- mitiré articularem-se umas &s outras”” (1986, p. 592) (grifo meu). Para Ewald, a soberania nao remete a uma vontade politica fundadora, mas a uma deciséo produzida a partir de uma série de priticas de poder. Neste sentido, a soberania 172 MACEDO Jr., Ronaldo Porto. Foucault: 0 poder eo direito. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 2}: 151-176, 1.sem. 1990, seria a decisdo politica em tiltima instncia gerada pelo vetor de forcas dominante numa situagdo de poder. A soberania de Estado seria um ponto de convergéncia necessério para a estruturagdo de alguns mecanismos de poder. Ela seria 0 “‘ponto ficticio” neces- sério para o funcionamento do dispositivo do Direito. Soberania ¢ Governo Penso que 0 conceit de soberania enquanto ficcio totalizadora (ponto de conver- géncia ficticio) € absolutamente compativel com o pensamento de Foucault. Mas o que seria a soberania neste registro tedrico pouco explorado em suas obras? Quem exerce 0 poder soberano e como 0 faz? Os trabalhos de Ewald langam alguma luz nestas ques- t6es. Para ele € a prdpria sociedade que decide sobre os limites da normatividade jurfdi- ca (tanto nas situagdes de normalidade politica, isto €, em que h4 consenso sobre os li- mites do juridico e do nao-juridico) como nas situagées limitrofes, de excecdo. A socie- dade exerce, pois, 0 poder soberano, ¢ o faz. mediante uma série de priticas de poder ‘como, por exemplo, a representagdo parlamentar, a opinido publica, presses de grupos, lobbies, etc. Um exemplo de tal procedimento observa-se no momento de determinacéo dos critérios de “‘necessidade social’. “Visto que nao existe objetividade da necessidade social (“besoin social”), ela € marcada por um arbitrario constitutivo” (Ewald, 1986, p. 401). “A necessidade se decreta”. Isto se dé apés consultas, estudos, etc., mas refere-se necessariamente a uma decisdo politica. Tal deciséo apesar de arbitréria segue uma certa racionalidade (contrariamente a hipétese decisionista de C. Schmitt). Esta racio- nalidade se liga Seguranca Social ¢ aos critérios de Justiga Social a ela subjacentes. Estes devem levar em conta néo apenas a necessidade e as cotas pagas pelas partes ne- cessitadas, mas deve seguir um princ{pio de solidariedade, o qual se constitui num dos eixos do conceito de Direito Social, o qual instaura uma nova racionalidade politica (Ewald, 1986, p. 401-402). Adiante aprofundarei este ponto. Vale notar que a decisio nao € feita por um Estado, se o entendemos numa acep¢ao tradicional (kantiana, hobbe- siana ou mesmo weberiana), mas sim pela sociedade através de préticas de poder e go- MACEDO Jr, Ronaldo Porto. Foucault: 0 podere o direito. ‘Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 173 211): 151176, L.sem. 1990, verno; a despeito destas convergirem para uma instancia totalizadora denominada Esta- do (Foucault, 1984, p. 300) ou Norma (Ewald) '. ‘As medidas de avaliacéo de necessidade social, periculosidade social, etc., sao postas pela sociedade a partir de priticas de poder difusas ¢ no por uma vontade polf- tica soberana nos moldes cléssicos contratualistas. Estamos longe de uma filosofia poli- tica da vontade. Do mesmo modo, a decisio de um juiz ao proferir uma sentenca estaria também limitada pelas priticas sociais que lhe serviriam de medida. “‘O juiz nao cria a cons- ciéncia coletiva, seu referente, nem os princfpios, sua tradugdo juridica; ela produz ape- nas a juridicidade, o direito. Isto limita bastante 0 seu poder de criagdo: sua decisao se deve limitar a um certo consenso. E Ihe dé uma responsabilidade decisiva: vista a fun- ao dos princfpios gerais de Direito, nao € tolerével para a ordem juridica que a opi- nido, aqui, soberana, venha a rejeité-los” (Ewald, 1986, p. 510) (grifo meu). A opi- nido torna-se, pois, uma das formas pelas quais a sociedade decide soberanamente ¢ “o juiz torna-se, deste modo, praticamente, segundo 0 programa formulado no comego do século, esta espécie de lugar onde a sociedade transige em permanéncia consigo mes- ma” (Ewald, 1986, p. 511). O Parlamento seria 0 6rgio de representaco da sociedade que usualmente (na maioria das vezes) decide sobre a “Norma das Normas”’, fazendo-o a partir de um acordo ¢ seguindo, portanto, 0s mesmos mecanismos politicos de constituicéo das de- mais normas. O poder soberano no se localiza numa nica instituigo ou vontade. A soberania € administrada pela propria sociedade através de acordos baseado num consenso. Nao h4 razo, deste modo, para pensarmos que 0 jogo politico que constitui a “norma das normas’’ seja distinto do préprio jogo juridico das normas. Em outras pala- vras, 9 jogos politicos da soberania (pelos quais a sociedade decide so os mesmos jo- 208 juridicos da norma. O Direito torna-se essencialmente politico ¢ a sua racionalidade 1 Ewald em seu artigo sobre Foucault observa que em Vigiar Punir, “L'tat n'a pas de privilege de la 1o1alité: c'est une autre ‘partie” qui s'oppose aux autres, s‘articule avec les autres” (Ewald, 1975, p. 1250). Todavia, Foucault em um de seus diltimos textos afirma que “le pouvoir de I'Etat = est IA une des raisons de sa force —est une forme de pouvoir & la fois globalisante et totalisa- tice” (Foucault, 1984, p. 304). Tais afirmagdes, ao meu ver, no estio em contradicao na medida em que para Foucault © poder de Estado é uma nova espécie de poder pastoral constitufdo a par- tir de préticas sociais. O Estado € um ponto de convergéncia destas préticas ¢ nao a sua origem. Ele é constituido a partir de praticas de governo (Foucault, 1984, p. 314). Tais préticas, para Ewald, convergem para um principio de totalizacdo (sem universal) que ele chama de Norma (E~ wald, 1986, p. 593 e 420) 0 qual regula as praticas de governo e, portanto, o Estado 174 MACEDO Jr., Ronaldo Porto. Foucault: 0 podere o direito. Tempo Socia; Rev. Sociol. USP, $. Paulo, 211): 151-176, L.sem. 1990. define-se em termos de uma racionalidade politica. A deciséo soberana nao é um meta- discurso sobre o discurso juridico. Ela nao Ihe € externa, como pretendem algumas ané- lises juridicas do ponto de vista de uma pragmética comunicacional (por exemplo, os trabalhos de Tércio S. Ferraz JIr.). Neste sentido, a legitimidade da decisao soberana esté assentada num consenso assim como a norma. Tal colocacao leva-nos, creio eu, a um outro ponto, qual seja, a questéo da Demo- cracia. A Democracia como regime politico capaz de melhor administrar os conflitos sociais no sentido de alcangar a Justiga Social. A Democracia no Estado Providencialista passa a ser concebida como um valor vinculado a Justia Social. Ela nao mais concebida como um valor universal a priori, nem tampouco se define a partir de regras do jogo formais dedutfveis também a priori, mas vai se definindo mediante um processo reflexionante. Quais decisées devem ser objeto de plebiscito, prerrogativa do Congresso, dos 6r- gos da burocracia ou descentralizadas? valor que anima o debate sobre os limites do regime democratico sao definidos a partir do que € 0 normal. Assim, a questao de saber se € ou nao um direito de uma comunidade decidir sobre a instalagdo de uma Usina Nu- clear em suas proximidades, passa a definir um exemplo de como se formam os valores que balizam o conceito de uma democracia moderna. Numa concepséo liberal la Pop- per ou Hayek ou mesmo na versio de um Bobbio, a democracia seria o respeito as re- gras do jogo politico que assegura certos “direitos ao individuo"’. Todavia uma tal con- cepgdo considera as regras como dadas e/ou definiveis a priori a partir de uma concep- cao classica de razao. Na verdade 0 que se tem sao apenas principios democraticos que funcionam do mesmo modo que os prinefpios gerais de direito, servindo como pontos de partida para a obtengao do consenso (ver Ewald, 1986 a). Por fim, vale lembrar que 0 longo percurso que foi feito desde a teoria do enun- ciado de Foucault até a sua concepcao de poder justifica-se na medida em que € a partir das categorias explicitadas que se pode compreender a relacdo existente entre o dominio do discursivo e 0 dominio das visibilidades na andlise do Direito Social. O direito € um agenciamento pritico de visibilidades (burocracias, instituigdes, etc.) € enunciados jt dicos (doutrina e dogmética juridica). O poder € a causa pressuposta na configuracao entrelacamento destes dominios. Ambos determinam-se a partir de um mesmo diagrama normativo, articulando-se em estruturas de saber-poder. Recebido para publicaco em agosto/1989. MACEDO Jr., Ronaldo Porto. Foucault: 0 poder eo direito. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 175 241): 151-176, L-sem. 1990, MACEDO Jr., Ronaldo Porto. Foucault: the power and the Law. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 2(1): 151-176, 1.sem. 1990. ABSTRACT: The idea of crisis of Law that can be found in the great part of the contemporary legal literature is based on a deeper question related to the crisis of the classical concepts of Rationality and Representation. Thies paper shows how the Foucauldian’s analysis of the crisis of the liberal legal rationality explains the advent of new forms of legal rationalities, based on the concepts of Norm and Normality, in the, so called, Social Law. Thues, the main concepts involved in the archaelogy of legal Knowledge and genealogy of legal powers in the Welfare State society are analysed. Finally, the paper pays special attention to the concept of sovereignty. UNITERMS: Foucault, Ewald, racionality, representation, norm, normality, Social Law, sovereignty. REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS BOBBIO, Norberto. Qual socialismo? Rio de Janeiro, Paz ¢ Terra, 1984, CANGUILHEM, Georges. O normal e o patolégico. 2 ed. Rio de Janeiro, Forense Universitéria, 1982, DELEUZE, Gilles. Foucault. Paris, Ed. Minuit, 1986. DREYFUS, L.H. & RABINOW, P. Michel Foucault. Un parcours philosophique au-dela de Tobjectivité et de la subjectivié. Paris, Gallimard, 1984. EWALD, Francois. Anatomie et corps politique. Critique, n° 343, Paris, dec. 1975. L'état providence. Paris, Grasset, 1986. Une experience foucauldienne: les principes généraux du droit. Critique, n° 471/472, Paris, ago./set. 1986a. FERRAZ Jr., Tércio Sampaio. 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