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continuava a moldar o “espirito do paulista”, omi- tindo-se no discurso 0 imigrante ¢ 0 imigeante dos demais esiados brasileiros, determinando que 0 trabathador era o paulista (grifo da autora). Appar do carter militarista, presente em muitas das hist6- rias do Brasil, € evidente (ainda que a autora nao faga 0 destaque) que essa figura forte c enérgica, essa figura cora- josa, é uma figura masculina, Todos os adjelivos que the siio agregados esto carregados de representagbes ligadas a virilidade, Na légica que esta implicita nessa historia, cabe aos outros/as (ou seja, aos homens de outras origens ou de outro “feitio” ¢ as mulheres) seguirem esse lider. Ela acrescenta, adiante: A historia dos bandeirantes legitimava a constitui- gio de um Estado autoritirio, disciplinado, com uma populagio que deveria ser “obediente a firme unidade de comando” O passado bandeiristico legi- timava ainda a dominagio paulista frente ao Brasil, porque havia sido o bandeirante quem dilatara a pai- ‘ria, implantando uma conduta disciplinadora pela sua ago “guerreira e mistica’ (BITTENCOURT, p. 62). Se em algumas freas escolares a constituigio da iden- tidade de género parece, muitas vezes, ser feita através dos discursos implicitos, nas aulas de Educagio Fisica esse processo é, geralmente, mais explicito e evidente. Ainda que varias escolas ¢ professores/as venham trabalhando em regime de coeducagiio, a Educagao Fisica parece ser uma drea onde as resistencias ao trabalho integrado persis- 16 tem, ou melhor, onde as resisténcias provavelmente se re- novam, a partir de outras argumentagées ou de novas teori- zagies. Uma historia dessa disciplina, muito vineulada a Bio- logia e, entao, & manutengao da satide e da higiene, contri- buiu para que ai fossem acionadas justificativas de ordem biolégica (da ordem da “natureza”) para a separagiio das tur- mas femininas e masculinas. Mesmo com o aporte das no- vvas teorias ¢ com os questionamentos provenientes dos Estudos Feministas, o debate sobre as “diferengas de hal dades fisicas” entre os sexos continua controverso. Mais importante, contudo, do que determinar se as distingdes percebidas sao naturais ou culturais, talvez.seja observar 0 efeito que essa questo vem tendo na organizagiio e na pri- a da disciplina, Embora se valendo de discursos de diferentes matri- zes, muitos professores € professoras atuam, ainda hoje, com uma expectativa de interesses e desempenhos distin- tos entre seus grupos de estudantes, A ideia de que as mu- Iheres sao, fisicamente, menos capazes do que os homens possivelmente ainda é aceita. Como observa Sheila Sera- ton (1992, p. 53), comentando a bibliografia utilizada pela Educago Fisica no final dos anos 60, “considerava-se as mulheres como homens diminuidos: como ‘homens trun- cados” ou ‘homens pela metade”. Concepgdes como essas vém impedindo que seja proposta dis meninas a realizagao dejogo ouatividades fisicas tidos como mase' melhor das hipdteses, obrigam aque se ajustem ouse criem 108, Ou, na 1 novas regras para os jogos —a fim de que esses se ajustem a “debilidade feminina, Mais uma vez se consagra a ideia queo feminino éum desvio construido a partir do masculi- no. No entanto, as transformagGes que vém sendo introdu- zidas em varias priticas esportivas, ao longo dos tempos, motivadas pelos mais distintos argumentos (alteragdes nos equipamentos, emprego de novos materiais ou recursos tecnoldgicos, uso de espagos fisicos distintos) parecem ser incorporadas ou absorvidas mais facilmente, ou, pelo me- nos, sem que se recorra a uma logi eda“ex- cegio’ A Bducagao Fisica parece ser, também, um paleo p legiado para manifestagdes de preocupagiio com relagio & sexualidade das eriangas. Ainda que tal preocupagiio esteja particularmente explicita numa area que est, constante- mente, voltada para o dominio do corpo. Muitos/as e sos/as do género — em especial aqueles que se dedicam a0 estudo das masculinidades ~ destacam o papel dos esportes eda ginistica no processo de formagiio dos sujeitos. Mess- ner (1992a, 1992b) & um dos que afirmam a centralidade dessa rea na formagio dos meninos, mostrando em suas pesquisas que, para varios homens, praticaresportes durant a vida escolar era considerado como “natural coseuoposto, ou seja, ndo praticé-lo, era visto como um in- dicador de que “algo esti (ou estava) errad te & “parte da existéncia” masculina, Sem divida, Messner estava se referindo 4 masculinidade hegem@nica na socie- 78 dade americana, seu objeto de estudos; mas essa também parece uma observagaio pertinente em relagdo & nossa socie- dade: gostar de futebol é considerado quase uma “obriga- G0” para qualquer garoto “normal” e “sadio”. ferenciada (KIRK & SPILLER, 1993). 0 uso de mento, a formagdo de grupos e outras estratégias dessas aulas permitem que o professor ou professora exer- cite um olhar escrutinador sobre cada estudante, corrigin- do sua conduta, sua postura fisica, seu corpo, enfim, exa- minando-o/a constantemente, Alunos ¢ alunas sfo aqui particularmente observados, avaliados e também compa- rados, uma vez que a competigao é inerente a maioria das praticas esportivas. Nao se pode negar que ser o melhor, no esporte, pode representar, especialmente para um menino ou um jovem, um valorizado simbolo de masculinidade. Sheila Scraton (1992), por outro lado, ocupa-se de ‘modo particular das meninas e afirma que os cuidados com relagio a sua sexualidade levam muitas professoras e pro- fessores a evitar jogos que supdem “contato fisico” ou uma certa dose de “agressividade”. A justificativa primordial se- ria que tais atividades “vio contra” a feminilidade, ou me- Thor, se opdem a um determinado ideal feminino heterosse- ligado a fragilidade, 4 passividade e graga. Agre- gam-se ai outros argumentos, como o fato de que tais ativi- 9 dades podem “machucar” os seias ou os Srgdios reproduto- res das meninas (curiosamente esse argumento no €, se- sgundo a autora, colocado em relaso aos meninos), bem co- ‘mo podem estimular contatos entre as garotas que nfo seriam desejaveis. Reproduzindo palavras de Iris Young, Sheila lembra que, desde a infancia, tradicionalmente as meninas aprendem niio apenas a proteger seus corpos como ‘2 ocupar um “espaco corporal pessoal muito limitado”, de- senvolvendo, assim, ao longo da vida uma espécie de “timi- dez corporal”. Talvez por seu olhar ter se voltado apenas para as ga- rotas, Sheila deixe de observar os constrangimentos ou as disposigdes que operam; também, sobre os garotos € 0s jo- vens do sexo masculino, No entanto, é indispensavel que nos demos conta de que as preocupagées e a vigilincia em relagiio & sexualidade nao se restringem as alunas, nem ‘mesmo apenas aos alunos, mas a todas as pessoas (inclusi- ve aos adultos) que convivem na escola. Se pretendemos ultrapassar as questdes eas caracteri- zages dicotomizadas, precisamos reconhecer que muitas das observacdes —do senso comum ou provenientes de es- tudos ¢ pesquisas~se baseiam em concepgdes ou em teorias {que supdem dois universos opostos: 0 masculino eo femi nino, Também aqui é evidente que a matriz que rege essa dicotomia &, sob 0 ponto de vista da sexualidade, restrita- ‘mente heterossexual. Como uma consequéncia, todos os sujeitos ¢ comportamentos que niio se “enquadrem” dentro 80 dessa logica ou nao so percebidos ou sao tratados como problemas e desvios. Barrie Thorne (1993), atenta as relages de género en- tre criangas, questiona o que chama de “teorias de culturas diferentes entre meninos emeninas” ¢ aponta para o fato de que a representago sobre essas culturas usualmente se volta para uma série de contrastes. Esse “modelo contrasti- yo”, como ela o denomina, vai marcar néio apenas as ques- tes, mas o proprio design das pesquisas e, em decorréncia, vai também marcar os resultados encontrados. Dificul- ta-se, assim, a descoberta das situagées e das praticas que nio se “ajustam” ao modelo ¢ deixam-se tais situagdes sem qualquer apoio explicativo. Sugerindo-se que se veja com um “certo grau de ceticismo” essas abordagens dualistas, Barrie Thorne (1993, p. 96) diz: .-] por ser baseada em dicotomias, uma aborda- gem baseada na nogio de culturas diferentes exa- geraadiferenga de género e negligencia a variagio no interior do género, as fontes de divisiio e de co- munalidade que 0 atravessam, tais como classe social ¢ etnicidade. Esses fatos abalam, seriamen- te, o ordenado conjunto de contrastes que formam a visio de culturas diferentes e colocam o desafio de como se pode aprender os padres complexos de diferenga © comunalidade, sem estereétipos perpetuadores, Certamente esti implicito nesse modelo de anilise 0 esquema binatio rigido que procuramos problematizar. Nos estudos voltados para as criangas, esse esquema teria de ser, entiio, questionado duplamente: de um lado, devido 8s limi tagdes jf apontadas com relago 4 polarizagio masculi- no/feminino (polarizago que nos impede de contemplar as distingdes no interior de cada um desses polos e a “comu- nalidade” que pode atravessar os polos) e, de outro lado, pela tendéncia em se utilizar préticas comportamentos adultos como parametros para compreensao das relagdes entre as eriangas. (Note-se que se busca estabelecer uma correspondéncia entre as priticas infantis ¢ as dos adultos tomando sempre como referéncia os adultos considerados “normais”, ou seja, os heterossexuais.) Contudo, situagGes escolares nas quais é possivel ob- servar um questi ‘a polarizagio talvez. sejam m pie. Barrie Thorne (1993), em extensa pesquisa etnografi- ca com criangas pequenas, descreve inimeras situagdes de brinquedos e jogos que subvertem o senso comum de “la- dos opostos” entre meninos e meninas. Ela reconhece, & verdade, que a situago de escola muitas vezes favorece 0 agrupamento das criangas por género, mais do que ocore nas amizades de vizinhanga ou nos playgrounds, onde gru- pos mistos sio frequentes, Isso talvez ocorra devido a orga- nizagio escolar graduada por idade, por ser esse um espago que reiine muitas pessoas (oferecendo, assim, mais oportu- nidades de contatos sociais) ou também pelo carater de avaliago constante (no apenas formal, mas avaliagao por parte das miiltiplas “testemunhas”) que al smento dessa esquem: jo mais frequentes do que a priori se su- 2 separagdo de meninos e meninas 6, entio, muitas vezes, es- timulada pelas atividades escolares, que dividem grupos de estudo ou que propdem competicdes. Ela também é pro- ‘yocada, por exemplo, nas brincadeiras que ridicularizam um garoto, chamando-o de “menininha”, ou nas persegui- ‘ges de bandos de meninas por bandos de garotos. Por ou- tro lado, também se constréi na escola uma série de siti des que representariam um “cruzamento de frontei ou seja, situagdes em que as fronteiras ou os os géneros siio atravessados. E provavel que para algumas criangas — aquelas que desejam participar de uma atividade controlada pelo outro ‘genero—as situagdes que enfatizam fronteiras e jam vividas com muita dificuldade. Como aponta Barrie Thome, a “interagdo através das fronteiras de género”, ou seja, 0 contato com o outro, tanto pode abalar ¢ reduzir 0 sentido da diferenga como pode, ao contrario, fortalecer as distingdes € os limites. A pesquisadora também registra que muitas dessas atividades de fronteira (borderwork) so carregadas de ambiguidade, tém um cardter de brincadeira, de humor. No terreno das relagdes de género é possivel ob- servar muitas vezes essa caracteristica mai “frouxa”, que permite, Aqueles/as que se vem questiona- dos numa situagio de contato ou cruzamento das frontei- 1S, 0 uso da justificativa: “nés s6 estivamos brincando”! [es se~ Deborah Britzman (1996) vai mais longe nessa ques- to, ao discutir as estreitas imbricagées entre género se- 3 lade e as consequéncias dessa inseparal tando Jeffrey Weeks (p. 96), ela afirma que usualmente confundimos ou vinculamos género (a “condigtio social pela qual somos identificados como homem ou como mu- Ther”) e sexualidade (“a forma cultural pela qual vivernos nossos desejos e prazeres corporais”). Assim, diz Weeks que “0 ato de cruzar a fronteira do comportamento mascu- lino ou feminino apropriado (isto é, aquilo que'é cultural- mente definido como apropriado) parece, algumas vezes, a suprema transgresstio”. Como ja observamos, a vigilancia acensura da sexualidade orientam-se, fundamentalmen- te, pelo alcance da “normalidade” (normalidade essa re- presentada pelo par heterosexual, no qual a identidade sntidade feminina se ajustam as represen- masculina & tages hegem@nicas de cada género). E importante notar no entanto que, embora presente em todos 0s dispositivos de escolarizaco, a preocupacio com a sexualidade geralmente nao ¢ apresentada de forma aberta. Indagados/as sobre essa questio, ¢ possivel que di- rigentes ou professores/as fagam afirmagées do tipo: “em nossa escola nés nao precisamos nos preocupar com isso, ri6s nao temos nenhum problema nessa area”, ou, enti, “ns acreditamos que cabe a familia tratar desses assun- tos”. Dealgum modo, parece que se deixarem de tratar des- ses “problemas” a sexualidade ficard fora da escola. dispensavel que reconhegamos que a escola niio apenas re- produz ou reflete as concepgdes de género e sexualidade que circulam na sociedade, mas que ela prépria as produz. 4 Podemos estender as andlises de Foucault, que demonstra- ram 0 quanto as escolas ocidentais se ocuparam de tais questes desde seus primeiros tempos, aos cotidianos es- colares atuais, nos quais podemos perceber 0 quanto ¢ como se esté tratando (¢ constituindo) as sexualidades dos sujeitos. Essa presenga da sexualidade independe da gio manifesta ou dos discursos explicitos, da existe no de uma a de “educagao sexual”, da inclusio ounnfio desses assuntos nos regimientos escolares. A sexua- lidade est na escola porque ela faz parte dos sujeitos, ela nfio ¢ algo que possa ser desligado ou algo do qual alguém possa se “despir”. tuico de sujeitos masculinos e femininos heterossexuais — nos padrdes da sociedade em que a escola se insereve. Mas propria énfase no caréter heterossexual poderia nos levara questionar a sua pretendida “naturalidade”. Ora, se a identi- dade heterossexual fosse, efetivamente, natural (e, em con- trapartida, -gitima, artifi- cial, no natural), por que haveria a necessidade de empenho para garanti-la? Por que “vigiar” para que os alu- nos e alunas néo “resvalem” para uma identidade “desvi- ante”? Por outro lado, se admitimos que todas as formas de sexualidade siio construidas, que todas sao legitimas, mas, também frégeis, talvez possamos compreender melhor fato de que diferentes sujeitos, homens e mulheres, vivam de varios modos seus prazeres e desejos. identidade homosexual fosse to 85 Alguns estudiosos e estudiosas tém se ocupado, mais recentemente, em examinar como a escola opera na produ- io das sexualidades de meninos e meninas. Mairtin Mac ‘An Ghaill (1996, p. 197), analisando a formagio de estu- dantes masculinos e algumas escolas secundérias, apontou “formas contraditorias de heterossexualidade compuls6- ria, misoginia ¢ homofobia”, como os elementos culturais que siio acionados na formagio das subjetividades destes garotos. Para esses jovens, o “outro” passava a ser as mu- Iheres ¢ 0s gays; ao mesmo tempo, eles deveriam expulsar de si mesmos a feminilidade e a homossexualidade. ‘Uma situagao escolar, relatada por Deborah Britzman (1996), pode ser interessante para a compreensio destas ‘questées: uma menina, desempenhando com muito suces- 30 a fungio de goleira num jogo de futebol feminino, & questionada por um pai do time adversérrio, que exige “pro- vas” do seu género, O exemplo serve para refletirmos ares- peito de quais “caracteristicas”, como diz Deborah, sao le- vadas em consideragio a fim de que se possa identificar 0 género “normal” ou para que se torne o género “normaliza- do”. Além disso, a situago também nos permite pensar & respeito do que é feito para “garantir” que as criangas “ob- tenham 0 género ‘correto™. A estudiosa especula sobre uma série de possiveis caminhos que poder seguir essa menina: a possibilidade de que seu comportamento seja construido como “desviante”; a de que ela se torne “o pro- jeto pedagégico” de um professor ou professora o/a qual iri, entio, tentar “refeminizé-1a”; ou, quem sabe, a de que 86 ela tenha.a chance de encontrar pessoas, livros ou situagdes gue Ihe mostrem outras mulheres que ousaram transgredir a normalizagao do género para “construir novos desejos e novos estilos”. Parece impossivel esquecer, a partir do instigante tex- to de Deborah, que essa menina (¢ 0 mesmo poderiamos pensar sobre um menino que assumisse uma atitude andlo- ga) tera provavelmente muito ‘mais chances de aprender que seus desejos nao sao normais, que nfio devem ser ex- pressados, que cles precisam ser escondidos. Na medida em que seus desejos se dirigem para préticas consideradas inapropriadas para seu género, ele ou ela é levado/a a aprender uma ligio significativa: a ligdo do silenciamento eda dissimulagao (“aprender a se esconder toma-se parte do capital sexual da pessoa”, diz Britzman, 1996, p. 83). Ha ainda uma dificil barreira de sentido a superar: para que um/a jovem possa vir a se reconhecer como ho- mossexual seri preciso que ele/ela consiga desvincular gay e lésbica dos significados a que aprendeua associé-los, ou seja, sera preciso deixar de percebé-los como desvios, patologias, formas nao naturais ¢ ilegais de sexualidade. Como se reconhecer em algo que se aprendeu a rejeitar ea desprezar? Como, estando imerso/a nesses discursos nor- malizadores, é possivel articular sua (homo)sexualidade ‘com prazer, com erotismo, com algo que pode ser exercido sem culpa? Questées como essas sem diivida nos remetem para a tematica da diferenga, das desigualdades, do poder. Os va- rios exemplos servem apenas como uma referéneia para sugerir onde olhar e como othar tais diferengas ¢ desigual- dades no espago escolar. Procurei me voltar para as prati- cas rotineiras, mais do que para os discursos legais, as dire- trizes pedagogicas ou as teorias educacionais, néio por con- siderar que esses deixem de estar atravessados, também, pelas distingdes de género, etnia, classe ou sexualidade, De quem falam, afinal, as teorias de desenvolvimento ou as psicopedagogias sendo de um sujeito universal ~ preten- dendo que o que se diz. sobre ele seja valido para a compre- ensiio de meninos ¢ meninas, da vila ou da grande cidade, brancos/as, negros/as, indios/as? Se acentuei as priticas co- ‘muns foi por supor que “prestamos pouca atencio” a eficién- cia da normalizagao cotidiana, continuada, naturalizada. Cabe, agora, perguntar: por que se importar com tudo isso? Por que observar a construgiio das diferengas? A res- posta reafirma uma das proposigGes fundamentais. dos Estudos Feministas: porque esse & um campo politico, ou seja, porque na instituigao das diferengas estio implicadas relagdes de poder. A linguagem, as titicas de organizagao e de classifica~ Gio, 0s distintos procedimentos das disciplinas escolares sio, todos, campos de um exercicio (desigual) de poder. Cur- riculos, regulamentos, instrumentos de avaliagao e ordena- mento dividem, hierarquizam, subordinam, legitimam ou desqualificam os sujeitos. Tomaz Tadeu da Silva (1996, p. 88 | | 168) afirma que o “poder esta inscrito no curriculo”. Como jf observamos, a selegdo dos conhecimentos ¢ reveladora das divisdes sociais e da legitimago de alguns grupos em detrimento de outros, Para Tomaz, o poder é precisamente “aquilo que divide o currieulo ~ que diz 0 que é conheci- mento €0 que nao é~e aquilo que essa divisio divide—que estabelece desigualdades entre individuos e grupos so- " Neste sentido, o autor propde uma série de questées que permitiriam nao apenas identificar quais conhecimen- {os ou grupos sociais so inchuidos ou excluidos do curri- culo (¢ também “de que forma estio inelufdos”), mas tam- bém verificar, “como resultado dessas divisdes, dessas in- clusdes ¢ exclusées, que divisdes sociais —de género, raga, classe ~ sto produzidas ou reforgadas”, cial Portanto, se admitimos que a escola nfo apenas trans- mite conhecimentos, nem mesmo apenas os produz, mas que ela também fabrica sujeitos, produz identidades étni- cas, de género, de classe; se reconhecémos que essas iden- tidades estio sendo produzidas através de relagdes de desi- gualdade; se admitimos que a escola esta intr comprometida com a manutengio de uma sociedade dda e que faz isso coti ou omissiio; se acreditamos que a pritica escolar é histori- camente contingente e que & uma pritica politica, isto é que se transforma e pode ser subvertida; ¢, por fim, se niio nos sentimos conformes com essas divisdes sociais, enti, certamente, encontramos justificativas nao apenas para ob- secamente namente, com nossa participagao servar, mas, especialmente, para tentar interferir na continui dade dessas desigualdades. Para que possamos pensar em qualquer estratégia de intervengo necessirio, sem ditvida, reconhecer as for- mas de instituigGo das desigualdades sociais. A sensibili- dade e a disposigao para se langar a tal tarefa so indispen- siveis, mas as teorizagdes, as pesquisas ¢ os eisaios prove- nientes dos Estudos Feministas (¢ também do campo dos Estudos Negros, dos Estudos Culturais, dos Estudos Gays € Lésbicos) podem se tornar elementos muito importan- tes para afinar o olhar, estimular inquietagdes, provocar questées. Sem alimentar uma postura reducionista ou ingénua— que supde ser possivel transformar toda a sociedade a par- tir da escola ou supde ser possivel eliminar as relagdes de poder em qualquer instncia — isso implica adotar uma ati- tude vigilante e continua no sentido de procurar desestabi- lizar as divisdes © problematizar a conformidade com o “natural”; isso implica disposigao e capacidade para inter- ferir nos jogos de poder. Nota 1, Emboraeu esteja aqui “criando” um quadro, vali-me do traba- Iho de José Murilo de Carvalho para construir este tipo de repre~ sentago, Carvalho faz uma interessante andlise dos simbolos & da construgao do imaginatio brasileiro no livro A formacao das almas (S40 Paulo, Companhia das Letras, 1990). Ali ele exami- na, em um capitulo especial, a figura da mulherna construgo do imaginario republicano no Brasil. Observa que a representacio 90 damulher com erdade”, tal como aparece na fa- smosa tela de Delacroix, 4 liberdade guiando o povo (a qual guardaria muita semelhanga com 0 quadro que deserevo neste texto), nao éuma alegoria muito presente entre os repul brasileiros. Segundo ele, no Brasil, a figura feminina ligada & Repiblica foi a da “mulher pablica”, ou seja, a prostituta, utili- zada pelos caricaturistas da época para representar a desilusio ‘com 0 novo regime. 91

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