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PENSAR A GUERRA: ARON E CLAUSEWITZ Raul Francois R. C. Martins PENSAR A GUERRA: ARON E CLAUSEWITZ 1. Introdugao © meu primeito contacto com a vastissima obra desse grande vulto do pensamento europeu que foi Raymond Aron fez-se através do que era sntio, ¢ talvez. ainda seja, 0 mais conhecido dos seus livros em Portugal (© «Paix et Guerre entre les Nations». Esse livro foi para mim uma esti- mulante surpresa, nfo tanto, ou talver mais exactamente, n&o apenas pelo que de novo trouxe ao meu conhecimento, mas pela globalizago sistematizada de um muito vasto conjunto de factores, incluindo largos ¢ profundos conhecimentos de sociologia, de politica, de histéria, de relagées internacionais de estratégia, tudo isso numa linguagem clara, ligado por uma argumentacdo tranquila ¢ inteligente, que me pareceu comprometida apenas com uma honesta busca da verdade. Naturalmente, procurei aumen- tar o meu conhecimento da obra daquele autor. Artigos de fundo sobre actualidade internacional, ensaios, outros livros. $6 alguns anos depois, em 1979 ou 80, tive oportunidade de let o «Penser la Guerre: Clausewitz © livro conquistousme desde o primeiro momento. Ensaio profundo ¢ brilhante de um grande pensador francés e judeu, contemporineo, sobre a obra de um grande pensador prussiano do inicio do século XIX, tinha desde logo no contraste das origens, das respectivas formagées culturais, dos ambientes em que viveram, mesmo do antagonismo das ligagées afec- tivas (Clausewitz era antifrancés © «vagamente anti-semita») um primeiro ‘motivo de interesse. Mas Raymond Aron no se limita a analisar a obra escrita, Procura muito mais do que isso, procura interpretéla a luz do «sistema de pensamentor do seu autor, € 0 livro escrito € sobretudo, @ procura desse «sistema de pensamentoy, utilizando todos os indicios que os esctitos de uma vida inteira, os momentos marcantes da sua biografia, as suas amizades ¢ relagdes, as vicissitudes da Histria europeia que viveu, 0s autores que teria lido eo teriam influenciado, as proprias hesitagdes © contradigées do que escreveu, Ihe poderiam facultar. Mas ainda isso é 7 NAGAO E DEFESA NAGKO E DEFESA pouco para Raymond Aron que procura, depois, averiguar do destino desse pensamento, do resultado das diversas interpretagdes que sofreu—e de que a de Raymond Aron, afinal, € mais uma—, enfim, da sua vitalidade e adequagao 25 novas realidades do moderno sistema mundial de Estados. ‘Nesta obra, escrita em dois volumes, densos ¢ extensos, com mais de 700 paginas, mas apesar disso de leitura agradével, entrelagam-se as con- ‘copes © formas de pensar dos dois grandes pensadores, de forma que nem sempre & fécil distingui-los. E, seguramente, o proprio R. Aron o recomhece, alguma coisa do que 2 Clausewitz & atribuido, ndo seré exacta~ mente 0 que Clausewitz penseva, mas o que Aron pense que ele pensava, ou seja, em parte, o Clausewitz que nos aparece, o Clausewitz segundo ‘Aron, seré néio tanto ele proprio—¢ como seria exactamente ele proprio? ‘mas, inevitavelmente, um ponco 0 reflexo da forme de pensar de Raymond ‘Aron. Duas obras, «Da Guerra ¢ «Penser la Guerrea, dois autores da maior importancia no sector da teoria estratégica, Clausewitz ¢ R. Aron, duas épocas histéricas, ou, mais precisamente, uma larga pincelada da Historia da guerra e dos grandes conflitos do séc. XVIII aos nossoss dias, tudo isso nos é oferecido, num trabalho em que a procura do rigor conceptual, da verdade, & constante, ¢ me parece evidente. ‘Clausewitz , seguramente, tal como Tocqueville, um dos autores preferidos de R. Aron, que constantemente o cita em outras obras suas. Conforme R. Aron refere, nas entrevistes concedidas a Jean Louis Missika ¢ Dominique Wolton (9, 0 sea primciro contacto com pensamento de Clausewitz verifica-se entre 1930 1933, durante a sua permanéncia na Alemanha, logo ap6s a prestagéo do servigo militar que se seguira & conclusio do seu curso de filosofia na Escola Normal, Sem que nessa altura The tenba dado particular atengio, voltou a estar em contacto com aquele pensamento cerca de 10 anos mais tarde, em Londres, através de um colaborador polaco, Szymonzyke, da revista «La France Libren, edi- tada pelo movimento gaulista na Gré-Bretanha, de cuja redacgéo R. Aron faz parte (*). Foi, aliés, nessa altura, que comecou a interessar-se pelo tema «guerras. Conforme afirmou, nas entrevistas a que j& nos referi- mos (), «Antes de 1940, porque destestava a guerra, nunca tinha reflectide © . 1) 20 Espertacor Comprometidey, edigso Moras, nég. 182. 118 PENSAR A GUERRA: ARON E CLAUSEWITZ sobre ela. Durante a guerras fui compelido a reflectir sobre esse assunto... Também me foi necessério compreender, na medida do possivel as relagSes fernacionais, tarefa em que me lancei a partir de 1940, durante a guerra, ¢ que prossegui, ainda que destestando a guerra. Mas tenho de confessar que 0s acontecimentos diplométicos ©, em especial, a guerra, so um objecto de reflexdo bastante fascinante, porque. comportam 20 mesmo tempo 0 drama e 0 célculon. Como jornalista, R. Aron néo podia deixar de se interessar pro- fundamente pelo que se passava no perturbante Mundo que se estava formando apés 0 fim da Segunda Guerra, como filésofo nao podia deixar de fentar compreendé-o, como professor de tentar explicé-lo. Conforme ag, suas proprias palavras (‘): «Comecei ento a escrever livros sobre as relagdes internacionais, Foram «Paix et Guerre entre les Nations», depois um outro que € mais legivel por ser mais curto: «Le Grand Débat. Initiation 4 Ia Stratégie Nucléaircy e, finalmentc, um livro pelo qual tenho talvez um cetto fraco: «enter la Guerre: Clausewitz»... Tentei neste livro, no s6 interpretar A minha maneira o maior estratego do passado, como encontrar na obra deste estratego-fildsofo as origens das interpretagées contraditérias que deram do seu pensamento.» Neste curto trabalho proponho-me nfo s6 chamar a atencdo daqueles que porventura o lerem, para o grande interesse deste livro, ainda mal conhecido em Portugal, como, também, aproveitar 2 oportunidade para abordar, menos que superficialmente, alguns dos grandes problemas teéricos a elaboragio conceptual sobre temas estratégicos, & luz dos pontos de vista de Clausewitz ¢ (ou?) de R, Aron, permitindo-me introdueir alguns comentarios pessoais. Claramente, a pequena dimenstio prevista para este artigo impossibi- lita uma cobertura completa da obra. Serei obrigado a optar por uma sintese muito breve dos dois livros em que se divide, apenas para dar uma ideia da sua estrutura e dos pontos que julgo mais relevantes do sew contetido. Tarefa que, aliés, se torna extremamente embaracosa porque todo 0 muito que neles se contém nos aparece como importante. Final- mente, nas tltimas paginas, esbogarei uma reflexdo, tal como referi, sobre alguns conceitos ¢ problemas teéricos da ciéncia/arte da estratégia. () 40 Espectador Comprometidon, edicko Morais, pég: 246. 19 \°KO E DEFESA Wek (DEMS SI ee 2. A date Europeia «Ffomem de acco, Clausewitz foi-o com toda a sua alma; mas, também, com toda @ sua alma, cle quis pensar a sua accio, ¢ a acco, Na Europa spariguade, de 1816 © 1830, este oficial prussiano (...) con- sagrou as suas forgas ¢ os seus écios a uma obra que nfo tencionava publicar enquanto vivo, mas que destinava as geragdes vindouras, orgulhoso € modesto(...}. Procurar a verdade ¢ morrer no momento de a atingir, defender valores pereciveis, que discipulos infitis perverteriam um século mais tarde, tal foi o destino de Carl von Clausewitz.» E com estes palavras que R. Aron termina 0 prefécio do primeiro dos dois iivros em que se divide 0 «Penser la Guerre. Neste primeiro livro, cajo subtitulo € «A Téade Europeias, Clausewitz, como homem integrado no seu tempo © nas suas relagdes, e 0s escritores referidos s circunstincias objectivas e subjectivas com que se podem relacionar, estfo no centro da andlise. ‘No prembulo, R. Aron, expée o método que utiliza para a sua interpretacdo. Apoiando-se na Hist6ria, porque «os pensadores pertencem ao sex tempo mesmo quando eles o ultrapassamy. Procurando «com- preeader o que ele disse, partindo da hipétese sensata de que cle disse 0 ‘que queria dizer». Mas, atendendo a que o «Tratados (°) nunca foi ter- aminado, e foi escrito durante os tiltimos 15 anos de vida do autor, € que este reviu algumes (poucas) partes dele ¢ manifestou até ao fim a intengio de o rover totalmente. Atendendo ainda a que, conforme se deprecnde do resto da sua obra, sconcebeu muito cedo alguns dos temas, algumas das ideias directrizes, que os historiadores Jhe atriouemy, mas ‘que echegou muito tarde & organizagfo sistemética do seu pensamento @, segundo toda a probabilidade, no foi sendo nos 3 iiltimos anos da sua vida, entre 1827 e 1830, que plenamente apreendeu a distingéo entre 0 conceito ¢ 2 realidade» ‘no que respeita & definigdo de guerra, Atendendo a tndo isso, R. Aron postula a necessidade de comecar pelo estudo da formagio do pensamento de Clausewitz, e de diferenciar os textos consoante fa data em que foram escritos ou revistos. Seguidamente, Aron recorda- =n105 que, tal como acontece com todo o actor, a interpretagio de Clausewitz, actor em relagéo & sua obra», exige que se rencontre o seu fim ou a © Neste tabelbo, tal como o fox R. Aron ap xtenser la Gusts, rferi-nesemos & bra principal de Clausewitz, «Da Guerra> per 0 «Tratadon, i20 PENSAR A GUERRA: ARON E CLAUSEWITZ sua intenclo. A intenglo de Clausewitz, acrescenta Aron mais adiante, aapresenta-se por si mesma a quem quer que consinta em lélo atenta- menter. No decarso de um periodo de cerca de 15 anos, quis elaborar uum sistema conceptual, uma teoria, que permita pensar, com toda a lucidez, © conceito ¢ as realidades da guerra, Mas, actescenta ainda Aron, «se a intengo nio se presta a divides, nfio acontece 0 mesmo com a obra inacabada. Sobre alguns pontos importantes, as duas espécies de guerra, a relagdo entre as duas definigdes de guerra(...), sobre a revisio que tinha em vista 0 livro VI—o debate continua ¢,(...), continuard indefinida- mente. O livro esté dividido em trés partes. Na primeira, intitulada «Do homem. bray, por sua vez dividida em trés capitulos, ¢ feito o estudo da formagéo do pensamento de Clausewitz, comecando por um curto esbogo biogrdfico, de cerca de 45 péginas, em que s8o postos em relevo os factos ais significativos da sua vida profissional ¢ afectiva, bem como os aspectos mais relevantes das suas origens 0 tracos mais marcantes do seu cardcter. ‘Segue-se um capitulo dedicado & andlise comparada dos textos de Clausewitz. segundo a ordem cronologica da sua elaboracdo, procurando seguir a evolugéo de alguns conceitos principais, bern como a afirmagio de algumas as caracteristicas especificas da sua forma de pensar (o antidogmatismo, a recusa das receitas doutrinérias) e do seu método de raciocinio (oposigio dos contrarios de forma quase dialéctica), na «Estratégia de 1804», no artigo publicado na «New Bellonar, em 1805, em que critica com dureza um livro de Von Billlow sobre estratégia, no resumo das ligdes dadas 20 principe herdeiro em 1812, ¢ no proprio ¢Tratadon. Finalmente, um capitulo dedicado & anilise do significado das «duas espécies de guerran, através do estudo comparado dos livros VI, VIII, e I, e das teses de Hans Delbriick, Schering, Bernhardi (contraditando-se uns aos outros quanto & interpretaglo da teoria de Clausewitz, e da pritica de Frederico TI e de Napoledo), termina esta primeira parte. A segunda parte trata do plano do «Tratadoy e das suas ideias mestras, politicas e militares. E, pois que Clausewitz pensava dialecticamente, utilizando pares de coneeitos opostos, R. Aron procurou destacar as oposi- ges essenciais que melhor permitissem clucidar a forma ¢ 0 contetdo do «Tratado». Depois de longas hesitagdes, Aron escolheu trés pares de conceitos em toro dos quais se desenvolveu, na sua opin&o, o sistema conceptual de Clausewitz: meio-fim; moral-fisico; defesa-ataque. Estes pares 121 NAGAO E DEFESA NAOKO EE de conceitos constituem os temas em torno dos quais so escritos 0 4.° capi tulo, em que trata de relago entre estraégia © téctica, entre politica condata da guerra; 0 5° capitulo, em que trata dos aspectos morais, sua origem ¢ influéncia nos soldados, nos «partizans», nos chefes © nas decisBes politicas, nas eespéciesn de guerra; ¢ 0 6.* capitulo, em que aborda os conceitos de defesa ¢ ataque aos varios niveis da acco, sua relago, causas da maior forca da defesa, ligagio da nogo de defesa com as guerras de usura, de Paz negociada, e com as guerras populares ¢ civis, de destruigo do inimigo. Estes trés capitulos no seu conjunto constituem a segunda parte, intitulada: «A dialécticas. & aqui, nas suas ‘cerca de 130: paginas, que a andlise se concentra na obra principal de Clausewitz, «Da Guerray. Exaustiva e profundamente, recorrendo 2 abun- dantes exemplos ¢ comparando as diferentes formas que por vezes assumem nos 8 livros do «Tratado», todos os principais conceites de Clausewitz nos so apresentados e explicados. Na verdade, estas paginas, se no substituem uma leitura directa de «Da Guerras, so extremamente tteis, talvez mesmo indispensdveis, a quem queira melhor entender 0 «Tratado», e de tal mancira claras © completas que me parece que quem nunca tenha lido Clausewitz poder& ficar a conhecer relativamente bem a sua obra através apenas da leitura desta segunda parte do primeiro livro do «Penser la Guerre». ‘A terceira parte, intitulada «O project tedricon, trata daquilo que ‘Aron designa por «a heranca de Clausewitz», isto é, conforme e:ereve no fim da introdugio a esta terceira parte, «Em que consiste 0 projecto de Clausewitz? O que o toma original? Até que ponto o realizou? Que equivocos subsistem?». A resposta a estas perguntas, segundo Aron, ¢ a forma como os contemporineos ¢ os sucessores imediatos de Clausewitz, durante o século XIX, entenderam o «Tratadon, sfo o tema dos trés ‘capitulos finais do 1.° livro. Opondo-te desde muito jovem aos «fazedores de sistemasy, aos proponentes dogméticos de receitas pera a vitéria, Clausewitz, 20 contrfrio dos escritores militares do seu tempo, no propée uma doutrina mas elabora uma teoria. R. Aron apresenta-nios nestes capi- tlos a concepeao de Clausewitz sobre as leis ¢ prineipios, ¢ as leis © prin cfpios, que aparecem no «Tratado». Sdo também analisadas as ligagées deste com 0s conhecimentos historicos do autor, ¢ as referéncias ¢ exemplos da Historia que este utiliza, tendo 0 cuidado, Clausewitz, de distinguir os ‘exemplos para esclarecer ou ilustrar uma ideia, dos que se destinam a 122 PENSAR A GUERRA: ARON B CLAUSEWITZ mostrar a possibilidade de um fenémeno, ¢ dos que podem servir para tirar uma liso ou provar ou demonstrar uma preposig&o geral. Segundo a interpretagao de Aron, as multiplas vias tragadas por Clausewitz «numa matéria mal desbastaday (°) a «historicidade de uma teoria estratégicay, submetida as mudangas inevitaveis da tctica, ela prépria ligada A evolugao das armas ¢ do movimento, a dualidade das totalidades (das guerras) estru- turadas seja pela decisio ultima, seja pela adigéo de sucessos parciais, e, enfim, a dualidade das guerras, de que umas visam abeter 0 inimigo para Ihc ditar as condigics da Paz ¢ as outras a assegurar-se de vantagens limitadas, teriam, pela dificuldade de obter uma compreenséo global, levado 05 leitores de Clausewitz a preferirem fixar-se nas formulas simples, suges- tivas, em que o «Tratadoy abunda, mas que, quase sempre, reflectem apenas uma parte de um todo muito complexo cujo verdadeiro significado s6 no conjunto se poderé encontrar. por isso, salienta Aron, que alguns autores, como Liddel Hart, apresentam Clausewitz como o te6rico que teria interpretado grosseira- mente, € acabado por caricaturar, a maneira napoleénica de fazer a guerra, ignorando ou desprezando a manobra, procuranéo o choque directo, em gue © méimero decide o resultado, doutrinério dos oxércitos nacionais ¢ da conscrisio, A estas interpretagdes extremadas da obra de Clausewitz, injustas © s6 possfveis por uma leitura incompleta, ope R. Aron a sua, desenvolvida ao longo de todo este livro, em que o acento é posto no esforgo analitico sobre a guerra, ou seja 4 sistema conceptual cujos principais elementos se organizam com os dois movimentos opostos de ascensio 20s extremos e de descida, em sentido inverso, até uma situago de simples observacdo armada, sob influéncia das condigées politicas (politica objec- tiva) © das vontades politicas (politica subjectiva). A contribuigéo essencial de Clausewitz para a teoria da guerra teria sido entiio a subordinagio, levada até ao scu limite I6gico, do instrumento militar & intengdo politica. Conforme R. Aron escreve(") «Durante um século, Clausewitz foi lido como ele temia sé-lo, por homens gue nele procuravam receitas, formulas prontas a servir, e n&o pot homens que nele aprendessem a pensar a guerray. No «Tratadon, efectivamente, os textos nos quais se defende a prioridade da destruiclo das forges armadas do inimigo, que tratam da decisio pelo combate, do derrube do Estado inimigo, so inimeros, deri () ePenser la Guerre: Clausewitz, edieo Gallimard, 1976, 1 Vol, pig. 341. (0) aPecser 1a Guerre: Clausewites, edigto Gallimard, 1976, 1° Vol, lg. 339. 123 NAGAO E DEFESA du das definigdes analiticas da guerra como tal (conecito abstracto isolado das contingéncias reais) e da naturcza do seu meio, a violéncie Os textos que sublinham a legislagio superior da politica, e que no limitem 4 sua intervengio mesmo na conduta das operagées, que exprimem a defi- ‘edo das guerras reais (a definigdo trinitéria) sio, pelo contrario, em pequeno nimero, concentrados no livro I (@ que foi revisto e reformulado por Clausewitz no fim da sua vida) ¢ no livro VIII (deixado sob a forma de esbogo). Cerca de oitenta paginas de notas completam este primeiro volume, notas a propésito de outros comentadores de Clausewitz, de episédios da sua vida, de trechos e de conceitos da sua obra, de exemplos histéricos nela utilizados, todas clas extremamente interessantes ¢ instrutivas, de leitura indispensével para se tirar todo 0 proveito do texto a que se referem, © que clucidam, ilustram, e completam, de forma notével. 3. A Made Planetéria 4A partir de que ideia directriz compreender a intengio de Clausewitz? intérprete toma por ponto de partida: ou a supremacia da politica sobre 6 instrumento militar ou o aniquilamento (*) das forgas armadas do inimigo como objective natural do acto guerreiro, e o derrube (ou desarmamento) do Estado inimigo como objectivo ideal dx guerra» (. Neste segundo livro, efectivamente, R. Aron centra a sua andlise nas principiais interpretagSes softidas pelo «Tratedo», do fim do sée. XIX até aos nossos dias, Conforme escreve, «Clausewitz, no segundo livro desta obra, figuraré por vezes como acusado, por vezes como acusador, a maior parte das vezes como testemunha» (%). Mas como sempre, Aron procura ir mais longe,-e interroga-se sobre a validade actual dos conceitos de Clausewitz, sobre a adequabilidade do seu pensamento aos novos dados politicos, diplomaticos, estratégicos, do mundo dos nossos dias, 0 mundo do sistema planetério, na idade nuclear. © A idsia de sniquilarento das forgat armades do inimigo, em Clausewitz, néo signifies necessaiamente a destulglo pela morte da maior parte dos seus efectivos, mar sim @ sue Gtrorganizacio, desmoralizagie on Sncapectepio para influirem no desfecho de guerra, scia ‘oval for a fora de isso se. consegut ©} sPenser Ie Guerre: Clausewites, Tomo 11, pag. 10. (Cy sPemser Ia Guerre: Claurewitas, Tomo 1, pig. 9. 324 PENSAR A GUERRA: ARON E CLAUSEWITZ livro esté dividido em duas partes, Na primeira, sob o titulo «Acusa- dor ou acusados, so colocadas sob o nossa atengio as duas grandes guerras da primeira metade deste século, bem como a explosiva dinamica das gucrras de libertagio nacional, ¢, ou, revoluciondria, que acompa- ° mharam ¢ sucederam & segunda daquelas grandes guerras, Os trés capitulos fem que esta primeira parte se divide sio orgenizados, cada um deles, em tomno de cada um de trés temas «clausewitzianosy, € de trés leituras dife- rentes do «Tratado» No primeiro, sio os generais franceses ¢ alemaes, Foch, Schlieffen, Falkenhayn, Hindenburg, Ludendorff, que buscam a decisio pela batalha de aniquilamento, ¢ acabam, depois de sangrentas carnificinas, por chegar a um final teoricamente inesperado: a cepitulago incondicional de uma das partes, sem que as suas forcas armadas tivessem sido destruféas ou sequer dertotadas. A influéncia dos sucessos de Moltke em 1870, @ anélise a forma como se processaram as relagGes entre Moltke ¢ Bismark, entre o ‘estratego ¢ 0 politico, a influéncia do pensamento de Clausewitz na for- magGo tedrica dos estados-maiores franceses ¢ alemaes, a forma como, de certo modo, essa influéacia se liga aos acontecimentos da guerra franco- -prussiana, os crros de interpretagéo, eas vezes de «bom senso» que ten taram opér-se a esses erros (A. Grouard, Emile Mayer, Delbriick), bem como a anélise, sob 0 ponto de vista estratégico € politico, dos momentos decisivos da Primeira Grande Guerra, tudo isso preenche cerca de 40 paginas ‘que, no seu conjunto, constituem uma excelente sintese interpretative da guerra de 1914-1918, vista de uma forma que nio é usual, isto é, vista atra- vvés dos esquemas conceptuais dos principais responsiveis pela sua conduta. No segundo capitulo desta primeira parte, Lenine, leitor atento do «Tratado», Staline e Hitler, «chefes de guerras nao’ mais A maneira dos generais tradicionais, mas sim como ideol6gicos conquistadores, 0 perfodo entre as duas guerras ¢ todo o drama da segunda, constituem os actores principais ¢ 0 cenitio, Aron comega por recordar © conceito de «guerra absolutay de Clausewitz ¢ distingui-lo do conceito de eguerra total», com fo quel muitas vezes foi confundido. Recorda depois a posigao de Clausewitz quanto as relagdes Politica-Guerra «... em nenhum caso a arte da guerra pode ser considerada como a perceptora da politica, pois que nés consi- deramos a politica como a representante de todos os interosses da sociedade 125 NAGAO E DERESA inteiray (*), concluindo que «um instrumento, por definigdo, nfio pode transformar-se em percepior daqueles que o empregam. O Estado ndo pode estar ao servigo da guerra. Ao que Ludendor!f responde que o Estado, nna nossa época, ndo pode ndo se por ao servico da guerra, e Lenine responde que a politica nao pode representar todos os interesses da socie- date inteira» (2). Dest modo, Aron resume 0 essencial dos cesvios iater- pretativos dos dois célebres leitores de Clausewitz, em cuja continuidade se situam Hitler e Steline. Desenvolveu depois, com algum dctalhe, o aproveitamento politico de Clausewitz por Lenine, sobretudo na tipologia marxista das guetras justas e injustas e na teorizago do imperialismo capitalista, concluindo que o pensamento de Clausewitz, interpretado por um marxista, serviu de quadro teérico ou de ideclogia justificativa a Lenine ¢ aos marxistes-leninistas desde 1915 até aos nossos dias. Quanto a Hitler, supe que, provavelmente, nunca teria lido o «Tratado», mas em ‘compensago conhecen pessoalmente Ludendorff e, tal como este, inverteu a «férmula> (), isto €, considerou a politica instrumento da guerra, em vez desta instrumento daquela, No terceiro capitulo, sio Mao Tsé-Tung, os revolucinatios chineses fe argelinos, os resistentes na Europa ocupada pelos nazis, ¢ 0 Livro VI do parece ir no mesmo sentido, de afirmer uma ainda maior intervengio da politica na guerra. Enquanto que da primeira definicdo, que corresponde a um coneeito de guerra absolusa, ou ideal (no sentido de puramente conceptual, existente no mundo das ideias) se deduz a necessidade légica da ascensio aos fextremos, da segunda, que corresponde a um conceito de guerra real (no sentido de guerra verdadeira, existente no mundo dos factos) pode conceberse a possibilidade de movimentos nos dois sentidos, aumento ou diminuigéo ‘da Violtncia, pela intervengio das circunstincias decisies politicas. A natureza dos fins em vista, o valor atribuido 20 que esté em jogo, a violéncia das paixdes ateadas, a duragdo ¢ condigées das hostilidades, fa variaggo das relagSes de forga, as relagies com teresiros, 0 desgaste, etc., tudo isso intervém nas guerras reais, ¢ as module, Conforme firme @) «De Guerres, Livro 1, capflo 1°, pig. 28 132 PENSAR A GUERRA: AKON E CLAUSEWITZ SEES ESS R. Aron, a definigdo trinitéria da guerra permite considerar, ao lado da ei da ascensio aos extremos, que decorre da natureza ano controladay da guerra, uma lei de «descida até simples observacéo armada», que pode decorrer da intervengdo politica. Intervencdo politica que, para Clausewitz © para R. Aron, se pode e deve verificar durante a guerra, na propria conduta das operagdes (*). ‘As duas definig6es correspondem, pois, dois conceitos de guerra. Mas a guerra sendo uma totalidade, esta totalidade pode ser definida, ¢ assim acontece por vezes, a partir do scu sltimo combate que decide tudo e, por assim dizer, apaga ou invalida todos os sucessos anteriores (R. Aron utiliza a imagem de um torneio desportivo, tipo taga, em que cada episédio é decisivo), Essa totalidade pode também ser definida a partir da acumulagio de sucessos parciais (R. Aron utiliza entdo @ imagem de um campeonato). ‘Ao primeiro tipo de guerra corresponderé, naturalmente, como fim, uma Paz ditada. Ao segundo, uma Paz negociada. E, @ cada um, uma ¢estru- turay diferente, pedindo estratégizs, ou condutas gerais, diferentes também. Por isso Clausewitz (¢ R. Aron) salienta que é papel fundamental para © politico whefe da guerray diagnosticar, desde 0 inicio, qual @ natureza da guerra b. © «novo conceito de «guerra Para Clausewitz, 0 conceito de guerra implicava sempre o uso do seu meio especifico, a violéncia. A Pez era a situacko da relagao cntre ‘os Estados em que a violéncia estava ausente, a guerra era a situagio em que ela se desencadeava. ‘Apés @ Segunda Guerra Mundial numerosos comentadores, pensa- dores, politicos, analistas das relacées internacionais, vém afirmando 2 existéncia de ume situagio especifica, no Ambito das relagdes interna. cionais, nem paz, nem guerra, a que alguns tm chamado mesmo guerra, a «3.* guerra mundial j& em curso» conforme a designou Soljenitsine, fe, muitos, «guerra friax. Designagdes como paz/guerra, paz armada ¢ paz de terror, tém também sido utilizadas. Basicamente, o cardcter bélico, ow semibélico, da situagdo das relagdes internacionais «formslmente paci- (69 Ene 6 um pono que tem estado, © alnda permancce, no centro dos debates teérisos sobre as relagéee entre Politica Estratégia. A longo do linro +Penscr Ia Guere>, por fiverses veces Re Aron volta a ele, anabsondoo de divers formts e 1 luz de diversor fxempice as relagdes entre Bismarck © Molike, por exemplo) © de diversas intorpreiayces, 133 NAGKO B DEFESA ficas», pelo menos em termos do que, tradicionalmente, se usava designar por paz, viria da competicio ideolégica inconcitiével entre os dois tipos de organizagio sociopolitica (ocialismo marsista-leninista e democraci liberal), & escala mundial, que, impedida de encontrar uma decisio através do confronto armado devido a existéncia das armas nucleares, se sublimaria através de uma teia de diversissimas formas de intervengio mais ou menos disfercada, fomentando lutas internas ¢ apoiando uma das partes, quer directamente, quer através de «procuradores», utilizando a propaganda, © terrorismo, a sabotagem, provocando ou tirendo partido de guerras convencionais limitadas em determinadas zonas néo cobertas pela «san- tuarizagao nucleare, etc. Enfim, pela imbricagio de «fidelidades trans nacionais», o coafronto ideolégico daria uma «dimensfio de guerra civily, para utilizar a imagem de R, Aron, as relagdes internacionais, © essa dimenso materializar-se-ia em diversos surtos de violéncia, assumindo diversas formas, desde as crises, pasando pelas sabotagens e pelo te rorismo mais ou menos avulso, até as guerras populares, revolucionérias ow de libertacdo, e as guerras convencionais limitadas. Clausewitz nfo conhecia situagées semelhantes, pelo que, naturalmente, pera ele 0 problema nao se punha. No seu tempo, néio era preciso Preocuparse em distinguir a guerra da paz. Essa distingo impunha-se, era evidente. R, Aron, pelo contrério, homem do nosso tempo ¢ profundo conhecedor daquilo que hoje se vem chamando «cincia das Relagdes Intemecionaiss, aborda o problema, analisa-o, discute-o, e formula a sua opinige. Ele 180 nega a caracierizagio da nova situagao, que, alifs, descreve magistralmente, Mas nega que ela implique uma alteragio dos conceitos tradicionais de guerra e de paz. Conforme escreve, num dos diversos passos do 2.° volume, em que aborda esse tema «A distingdo entre a paz absoluta © a guerra fria tal como se encontra, por exemplo, nos livros do general Beanfre, nfo aprésenta, a meus olhos, valor conceptual. Estas duas modalidades de ndo guerra apreseatam diferenges de grau, nao de natureza, Logo que cvcxistam Estados que se reclamam de ideolo- sias incompativeis, uma ao menos como vocacio universal, as relagbes entre as sociedades, & margem das relagdes entre os Estados, revestem, por uma parte, a cardeter de um conflito civil, de uma Iuta de «partizanss. Se a ideologia com vocagéo universal de um dos grandes Estados en- contra, para a encemar e difundir, um partido no interior dos outros Estados, a acgdo paicopolitica de cada Estado, para salvaguardar a sua 134 PENSAR A GUERRA: ARON E CLAUSEWITZ Unidade © dissolver a do adversério, torma-se inevitavel. As guerras de religido ofereceram um exemplo desta imbricagio de lutas internas © externas, militares e ideolégicas, comparavel A dos anos que se sucederam Segunda Guerra Mundial. Pode-se mesmo dizer que os Estados, no século XX, limitarem mais eficazmente, mais tigorosamente, a ascensio da luta ideolégica para a violéncian @). Poder-se-i objectar que, justamente, a competiséio ideol6gica nos sé- culos XVI e XVII encontrou a saida tradicional, nas guerras conhecidas por guerras de religido, as quais traduziram os diversos paroxismos desse conflito, e que, no seu conjunto, se podem considerar quase como uma série de episodios de uma mesma «grande guerra» entrecortada de tréguas, enquanto que a situagio actual, em que a guerra entre as poténcias prin- cipais se tornou aimpensivel» (embora, infelizmente, nunca se possa con- siderar impossivel) difere daquelas apenas na forma como os «paroxismos» do conflito, © 0 préprio decurso deste, tem encontrado tradugo. Poder-se-6 argumentar que as intervengdes ¢ influéncias em guerra populares, e em guerras limitadas, © a formagdo ¢ gestio de crises, sero epissdios que se substituem as guerras entre as poténcias principais, por causa do factor nuclear. ¢ que, assim, toda a complexa situaclo em gue esto envolvidas desde 1945 as grandes poténcias equivale a uma «grande guerra» néo declarada nem travada directamente entre elas, mas que se vai desenvol- vendo em miitiplas formas de violéneias vérias em locais diversos, alter~ nando com procedimentos de diplomacia tradicional. Quando R. Aron afirma que as duas modalidades de no guerra, aguelas a que Beaufre chama Paz, abscluta e guerra fria, nfo apresentam diferenga de natureza, ele tem cm mente a utilizagdo ou ndo da violéncia na competi¢&o das vontades como critério da distingao entre guerra © paz. ‘Mas também agui muitos autores modernos questionam 0 significado de violencia, ¢, conforme cada um, alargam-no de forma a cobrir a ameaga da violéncia, a coacslo, a injustica social, a propria ordem social. R. Aron insurge-se, a justo titulo em nossa opinido, contra esse alargamento des- caracterizador do conceito. Critica a generalizacdo abusiva de certos soci6- logos ¢ fil6sofos, entre os quais Sartre, que viio a0 ponto de denominar avioléncia simbélica» a préptia acco de educar, isto é de «moldar uma conscifucia vazian, por isso pura e livre, carregando-a com os costumes, () aPenser la Guerre», Volume 11, pis. 249. NAGAO E DEFESA regras, tradigics, que a sociedade the impde. «Vocabulario bizarro», escreve Aron @), porque nao permite distinguir as modalidades da socializagéo, @ inevitével e difusa influéncia sobre os individuos do grupo social que tende a reproduzir-se a si proprio, da imposi¢do, que supde uma resistencia, consciente ou mio, de aqueles sobre os quais pesa o medo ou o poder. A violéncia néo guarda uma significacdo especffica senfio na condigo de designar uma relaszo entre os homens, que comporte uso, ou a ameaga de uso, da forga fisica, A seguir, Aron critica também a ideia de violéncia como fundamento da ordem interna nos Estados e da propria sociedade dos Estados. Esta ideia parece-Ihe, contudo, menos injustificada. «A ordem inigualitéria, esta- belecida em todas as sociedades, contém de certeza um clemento de violéacia clandestina.» Mas, de qualquer modo, «podem-se distinguir os regimes que suportam ser postos em causa, daqueles que o recusam; pode-se distinguir os métodos das diversas instincias de socializaclo, os poderes que toleram © aqueles que interdizem as heresias religiosas ou ideolégicas, as reinvidicagies e as manifestagiess. Por outro lado, Aron admite a existéacia de dominantes ¢ dominados entre os Estados no tema intemacional, bem como a desigualdade econémica, mas recorda que nfo so semelhantes as situagdes de dominio econémico ¢ as de dominio politico, criticando assim outra generalizacio de um conceito, esta vex o de imperialismo, E termina esta sua critica a generalizagao do conceito de violéacia com estas linhas: «N&o me proponho discutir aqui esta teoria do imperialismo, medir os inconvenientes © as vantagens para 03 paises subdesenvolvides da insersfo no mercado mundial de que os Estados Unidos ocupam o centro, Ea interrogo-me sobre 0 vocabulario © 0s conceites. S¢ se considera «violentay toda a ordem social, todo © sistema interestados que se considera néo equitativo e contra 0 qual se levanta uma fracgZo dos dominados, a violéncia torna-se incaracteri- vavel pela mesma razio a sua ubiquidaden. Creio que Aron tem razio, © que devemos preservar, na medida do possivel, o significado tradicional dos conceitos, enquanto continuarem a existir 03 factos ¢ situagées reais, a que correspondem. O alargamento do conceito de guerra as situagées em que ndo :do utilizadas forcas at- madas, isto € no existe violéncia com utilizagio da forca fisica, como (9 ePeser te Guesres, Volume UT, pég. 255. 136 PENSAR A GUERRA: ARON E CLAUSEWITZ iz Aron, levanta o problema de encontrar um termo que caracterize, separadas das outras, as situagdes em que, efectivamente, as forgas armadas so empregues. A adopsio da designacio de «guerra fria leva, por isso, & necessidade de se falar em «guerra quentes. A designago de guerra aplicada a situagSes de conflito sem utilizago de armas obriga a, quando se xefere um conflito em que os canhdes fazem ouvir a sua voz, se tenha que qualificar o substantivo, para desfazer equivocos, dizendo «guerra armada» ou eguerra com utilizagio de forgas armadasn, etc. E claro que as pessoas que preferem 2 designacdo de paz/guerra, guerra fria, ow sim- plesmente guerra, para a actual situagio do sistema mundial, sabem muito bem tudo isto que aqui temos dito, ¢ o que Aron a este respeito escreveu, Julgo que, apesat disso, preferem manter a sua opiniio porque as palavras so simbolos, e consideram importante utilizar a simbologia ligada palavra guerra para chamar a atengao da opiniio pablica para os perigos reais que ameacam as nossas sociedades, nos tempos que estamos vivendo, apesar de uma situacfo que parece Paz. Partilho a convicgdo dessa necessidade de mobilizar as opini6es ¢ as vontades, de alertar as consciénciss, mas também penso que isso poder ser feito sem confundir o$ conceitos. Do que atrés fica escrito, parece poderem estabelecer-se 0s seguintes pontos: —No cssencial, as duas definigées de guerra, de Clausewitz, man- tém-se ambas vélidas. Elas so abstractas, ¢ por isto intemporas. ‘So também complementares. Todas as guerras sflo, na sua esséncia, ‘confrontos violentos, de vontades colectivas, ¢ todas elas se inserem no mundo real, incluindo por isso a «cega paixdov, «a livre acti- videde da alma» © 0 «puro entendimenton. Consoante 2 parte que couber a cada um desses elementos, assim a guerra se apro- ximaré mais do modelo da guerra absoluta, com a ascensfo aos extremos, ou se afastaré dele, com a descida a observacdo ar- mada. —A nova situagio do sistema mundial ¢ efectivamente nova. O pro- prio R. Aron a tem caracterizado em varios dos seus livros, também o faz neste, Embora ele diga que a procura de objectivos de domfnio entre Estados sem emprego da violéncia bélica sempre fez, © ndo basta para chamar a essa siluacdo «guerra», a ver- dade € que nunca, como agora, se tem recorrido & intervencao, 137 NAGA E DEFESA mais ou menos aberta, por parte de uns Estados na politica interna de outros Estados sem que isso seja considerado causa de guerra, a0 contrério do que acontecia outrora, nem nunca se utilizeram tanto; e-com tanta eficécia, formas de violéncia e de coaccéo no militares, em varios graus, também sem que isso scja consi- derado causa de guerra, como seria outrora. Nao se trata, como diz R. Aron, de guerra. Mas também nio se trata de uma ver- dadeira paz, mas sim de uma situagéo muito semelhante a um periodo de pré-guerra, Sé que a dissuassio nuclear ver «adiando» fa guerra que sem cla jé teria eclodido. —A coacgio, isto é a capacidade de compelix, obrigar, contra vontade, ‘outrém a fazer ou néo fazer algo, tem outras formas, nas Relagies Internacionais, para além das que implicam 0 emprego dos meios militares. Existem acgOes econdmices, politicas, formas de violencia clandestina, «encomendadas» ou apoiadas, que podem forcar outros Estados, € a Historia contemporanea ter-nos fornecido exemplos disso. —A tecnologia dos armamentos, 0 seu clevado custo, a grande efi- cigncia dos meios militares tornando possiveis acgSes de facto con- somado de grande envergadura em muito curtos prazos de tempo, tornam hoje, mais do que nunca, decisive 0 problema de preparagio suficiente e atempada. Mas a mobilizacio das vontades, a accitagio por parte das opinides pubblicas dos elevados sactificios que a afcc- tagdo dos recursos para a Defesa impée, tornam cada vez mais dificil realizar essa preparacao, nos Estados onde se pra‘ica a der>- cracia liberal, A ameaga nfo é evidente, e, quando se torna evi- dente, & tarde. Este 6 o problema central da Defera. E 6, prova. velmente, o argumento mais forte a favor da traigio & pureza dos conceitos contida no alargamento da designagiio de guerra a uma situagéo que, formelmente, é de paz. Mas a compreensio da gra- Vidade das ameacas também pode ser obtida através do esclazeci- mento, e esse parece-me ser o caminho correcto. c. A arte da guerra Sob esta designagio, Clausewitz inciufa, mos seus primeiros esctiios, como no de 1804, a estiatégia, a téctica, a organizagio dos exércitos Geerutamento, armamento, equipamento ¢ treino), 0 reabastecimento das 138 PENSAR A GUERRA: ARON E CLAUSEWITZ tropas, a fortificagio ¢ o assalto das cidades. No «Tratado», a expresso carte da gucrran é utilizada como equivalente de «conduta da guerray ‘ou de «teoria do emprego das forgas armadas», ¢ tem o seu sentido res- ‘tringido 20 conjunto estratégia mais thctica, sendo o que se refere a Preparagéo ¢ ao reabastecimento dos exércitos, bem como a fortificagso € assalto das cidades, apresentado como conhecimentos auxiliares da arte da guerra. De facto, misturam-se aqui duas nogées. Uma 6 a de emprego dar forgas armadas durante a guerra, outra & a de preparacdo das forcas armadas para a guerra. A estratégia ¢ a tdctica pertencem claramente & primeira, mas também o assalto das cidades, © © reabastecimento dos exércitos em campanha. A organizagéo dos exércitos, 0 seu equipamento, a fortificagéo das cidades, devem ocorrer antes da guerra, mas podem ccorrer também durante ela, No entanto, no século XIX, a influéncia que estas tarefas, selativamente simples entdo, ¢ estercotipadas em alguns procedimentes bem conhecidos poderiam ter no evoluir dos acontecimen- tos da guerra, era relativamente pequena. A evolugo da guerra dependia, sobretudo, do resultado dos combates, ¢ isso era com a téctica, que Clausewitz cefinie como 2 arte do emprego das forgas armadas para atingir a vitéria, © do aproveitamento das vitorias obtidas pera atingir os fins fixados pela politica, e isto era com a estratégia, que Clauscwitz definia como a utilizagio dos resultados dos combates para atingir os fins da guerra. A estratégia competia escolher os locais © os momentos, © concentrar as forgas para os combates. A téctica competia utilizar, durame eles, as forgas atmadas para conseguir a vit6ria. O resio era necessirio, mas a sua influéncia era menor. A verdadeira arte da guerra ppodia entender-se reduzida a estratégia e a téctica, Nos tempos modernos a importincia dos reabastecimentos e dos mo- vimentos tomouse vital, decisiva: a melhor téctica do mundo torna-se ineficaz se ndo dispucer da capacidade de movimento, remuniciamento, e de abasiecimento de combustiveis, em tempo oportuno © nas enormes quantiéades que os exércitos © 05 combates modemnos reclamam. Isto é, 8 logistica tornow-se complexa, ¢ talvez tdo importante, como a thctica Assim € que pare os autores modernos, como, por exemplo, para o general Beaufre, que aliés nfo utiliza a expressio arte da guerra, mas sim a de arte militar, esta se divide em estratégia, tactica € logistica, 139 NAGAO B DEFESA Permanece porém a necessidade de distinguir as nogSes de emprego, © de preparacio. A verdadeira arte reside no emprego, mas na mesma medida em que este reclama maior especializago, € isso vem acontecendo tanto nas taretas técticas como nas logisticas, a prepareco torna-se mais necessiria, mais influente nos resultados, mais complexe ¢ também mais demorada, d. O conceito de estratégia Para Clausewitz, «a estratégie liga os combates uns aos outros para stingic os fins da guesra. Dentro da «arte da guerra», competelhe @ conduta geral das operagies. Cabe-the dispor as forcas nos locais € oportunidades mais conve- nientes, nas relagdes de forca mais favordveis, de modo a que a téctica possa, depois, slcancar o seu fim natural, a vitéria@®). A estratégia faz parte da arte da guerre, s6 durante ela se pratica ‘A estratégia, portanto, utiliza os combates, mas também os prepara, 44 que Ihe compete escother 0 local, 0 momento, ¢ ter disponiveis as forcas ‘convenientes para cles. A medida que a importancia da preparago prévia dos meios, ¢ dos locais (pragas fortes, para a estratégia terrestre, portos situados em locais favordveis, para a estratégia naval), se foi tornando mais importante, naturalmente, os teorizadores da estratégia passaram a incluir no conceito, aié ai completamente contido na conduta da guerra, também a preparagio das forgas militares, e dos seus pontos de apoio. E bem conhecida a definigdo do almirante Mahan, marinheiro norte- -americano do fim do século XIX, @A estratégia naval tem por finalidade eriar, favorecer, acrescentar, tanto durante a paz como durante a guerra, © poder maritimo de um pais» (), em que aparece claramente explicita uma extensio no tempo: a estratigia j& nfo & concebida apenas como uma actividade do tempo de guerra, mas sim, também, do tempo de paz, devendo intervir na preparagdo ¢ obtencdo dos meios de que prevé vir a necessitar. Esta extensfo no tempo esté ligada também @ uma outra exten- sdo, No entendimento de Clausewitz, ¢, aliés, no dos seus contempordnces, a estratégia estava ligada explicitamente a ideia de emprego, & conduta, Contorme Clausewitz afrma, Aron diversos vez sallenta, a vitéis € um objec tivo ttico, mio estradg, Para a sstraléla, a vitéia € um melo, ndo & um fim. () sinluence de la Pussance martimme ane THistoves, Cade pelo alaivante Cast, cm «Thsoree Straégiquess, Vol. I. 1 parte, pigs. 8 © 9. 140

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