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Doutrina A REVOLUCAO E O DIREITO A SITUAGAO DE CRISE E O SENTIDO DO DIREITO NO ACTUAL PROCESSO REVOLUCIONARIO Pelo Doutor A. Castanheira Neves I 1. A darmos relevo a determinados factos, dos quais alguns mais significativos apontaremos adiante, e a terem fun- damento certos testemunhos que se fazem ouvir de meios di- versos, que néo apenas o meio juridico, o direito estaria a ser atingido, pela dinamica da condicg&o revolucionéria que vivemos, em termos que, de acordo com esses pensamentos proclamados, seriam inaceitaveis ¢ revolucionariamente nao necessarios. Quer isto dizer que aqueles factos se oferecem como fenémenos ajui- zados negativamente, em nome do direito, e que para eles nao seria a revolugio alibi suficiente — ser& porventura a revolugao @ oportunidade que os explica, mas nao seria fundamento que os legitime. Vai-se mesmo ao ponto de se ver aqui uma carac- terizada situagao de anti-direito (‘) —uma situagao de delibe- rado e consciente atentado a valores irrenuncidveis do direito. ) Assim, no comunicado do Conselho Geral da Ordem dos Advogados, Segundo 0 texto publicado em A Capital de 14 de Fevereiro de 1975; e no to-resposta do Bastonério da mesma Ordem, publicado no Didrio Popular de 10 de Marco do mesmo ano. a A. CASTANHEIRA NEVES Sé que, nfo é un&nime este juizo, nem se tém por univer- salmente validos os imediatos valores que ele levaria pressupostos e por que se avalizaria. Antes, segundo outros, estariam caducos esses valores, porque vinculados a uma estrutura politico-social que justamente a revolugao quereria por em causa e mesmo radi- calmente negar. Tratar-se-ia de uma verdadeira revolugio — tal como aquela que provocou a réplica do mensageiro: «Non, sire, ce n’est pas une révolte, c’est une révolution» —, se é que se nao deva dizer que se trata de a revolugio (*), portanto de uma dialéctica histérica que atingiria «os principios», no sentido de CAMUS (*), ou onde a «histéria comega subitamente no novo», para usarmos também as palavras de ARENDT (*). E revolugéo que se faria uma ideia bem precisa do que valem os apelos a «legalidade», ao «primado do direito», que se con- sidera esclarecida do mérito do préprio Estado-de-Direito (°). Isto nos obriga, a nés juristas, a reflectir: sobre o sentido exacto e o valor auténtico que possa ter afinal o direito nesta nossa circunstancia. E a reflectir do modo dialdgico que est& na nossa vocagio — se houver, bem sabemos, a possibilidade do encontro que supere a ruptura de monélogos paralelos. Mas cremos que existe essa possibilidade, sem negar decerto eufe- misticamente os conflitos e sem renunciar as divergéncias, por- (@) Referimo-nos & tese, jé de PROUDHON, segundo a qual «nfo houve nunca vérias revolugdes, mas hé apenas uma revolugio, tinica e perpétua», e dai a sua ideia e o proprio termo de «révolution en permanences—v. apud HANNAH ARENDT, Sobre a revolugdo (trad. port. de I. MORAIS), 49 s. ‘Tese que foi retomada bem recentemente, de outra perspectiva, P. ex. por JOSEPH COMBLIN, Théologie de la revolution, passim, que sustenta que na histéria europeia, influenciada pelo fermento do cristianismo e & sua escato- jogia, todas as revolugdes, desde a revolug&o gregoriana contra o Império até & contemporainea revolug&o socialist, passando pela revolugéo da Reforma e pela revolugéo francesa, nada mais seriam do que episddios ou modalidades diferentes de uma mesma e progressiva revolucio. (©) L’Homme révolté, ed. da col. Idées, 134. © Ob. cit., 28. (©) fr. comunicado da Célula dos Advogados da organizagiio regional de Lisboa do Partido Comunista—em réplica 0 comunicado do Conselho Geral da Ordem, cit, na nota 1—, publicado no Didrio Popular de 28 de Fevereiro de 1975; e VITAL MOREIRA, Estado-de-Direito e legalidade revolu- ciondria— A propdsito dos novos arautos do «Estado-de-Direitov, in Vértice, XXXIV, n’ 369 (Outubro de 1974), 734, ss. A REVOLUCAO E O DIREITO 3 ventura profundas, e sobretudo ao direito de tomar posigéo, que apenas se pretenderd aberta e objectivamente fundada. E que aquela primeira atitude, de invocagio do direito e da denincia da sua preterig&o, néo aceita menos do que a outra os objectivos ultimos da revolugio, no seu fim de liber- tagdo e mais justa reorganizagdo social. E esta segunda nao deixa de associar com igual forga a esses objectivos os valores da dignidade do homem e da sociedade em que ela seja rea- lizdvel, os valores da justica e da liberdade, da igualdade e da paz, aqueles mesmos valores afinal que a primeira invoca quando fala de direito e anti-direito. Alias, revolugdo é revo- lutio, em sentido literal que é astronémico, como nos recordam de novo CAMUS e ARENDT, e ainda FREUND (°), restitutio e translagao, e por isso se legitima sempre em valores jé antes assumidos e que a ordem a subverter estaria justamente a vio- lar, sem deixar ser, simultaneamente, um novo comego. Dai © poder dizer-se, sem contradigéo e antes em perfeita comple- mentaridade, de um lado, com S. TOMAS (’) que o governo tiranico n&o é justo, pelo que nao é a sua deposigao sedigéo e sim sediciosa a tirania, e, com FREUND, que «une révolution ne modifie jamais Ja nature intrinséque des valeurs, mais leur rang dans la hiérarchie et, par les répercussions qui s’ensuivent, leur poids historique & une époque déterminées ("); e, de ou- tro lado, com ARENDT (°), que a revolugdo institui «a novi- dade» na histéria, e, com CAMUS (°°), que «c’est un mouve- ment qui bouche la bouche, que passe d’une gouvernement & Vautre aprés une translation compléte», Nem se estranhe que assim seja. Pois nfo é certo que j4 em ROUSSEAU, mas so- bretudo em MARX o «retorno», a «reintegracdo», a «verdadeira ressurreicéo da natureza» no homem e entre os homens — como no-lo recorda FREUND (**) —seria o verdadeiro fim da revolu- ree C) Lessence du politique, 570, ss. ©) S. Theologice, 11+ IL, g. 42,02, ad.3. oO Ob. cit., 575, *) Ob. cit., Cap. I, 21, ss. C*) Ob. cit., 134, @) Ob. cit., 573. 6 A. CASTANHEIRA NEVES Gao, a qual, como nao deixa de ser visivel no autor de «O Ca- pital», «transpde num fim utépico uma ideia mitica sobre a origem»? Parece, assim, nfo estar excluida a possibilidade do en- contro. Mais do que isso, parece inclusivamente que um didlogo entre o direito e a revolugdo nunca poderé faltar, até pela simples circunstancia de a revolug&o visar objectivos que sempre terfio de confrontar-se com os valores de que o direito se reclama. Na ver- dade, como jé alguém (**) disse, «a revolugao nao pode constituir uma ideologia politica, i.€, nfo se pode querer a revolugdo pela revolugdo, porque ela releva do método da acgao politica e nao da sua orientagao axiolégicay. E, no dominio do axioldgico, que é decerto também o do direito, 0 dialogo, se nao pode dei- xar de ser possivel, nao € menos indispensdvel. » ho entanto, isto apenas um primeiro momento de con- sideragao, e talvez demasiado abstracto. E as dificuldades do diélogo nao deixam de surgir logo num segundo momento. J& porque se pode pensar que o direito é necessariamente in- justo (*), a propria injustiga opressivamente legitimida, e se proclamou, com andlogo fundamento, que «todo o direito é um mal» (“). Jé porque a revolugio e o direito parecem ofe- recer-se, na sua imediata objectividade, como entidades incom- pativeis, pelo menos num ponto: a estrutura, a_estabilidade € Subsisténcia de uma ordem (ou de um ordenamento), de que ireito néo poderia prescindir, opde-se Trontalmente a subver- sao da institucionalizagao historica e o dinamismo constitutive ()_ C. DESPOTOPOULOS, Introduction a U’étude de la Uberté dans le Droit, in Archives de Philosophie du Droit, XVI (Le Droit investi par la politique), 81. () "K. MARX, Critique du programme du Parti Ouvrier Allemand (Pro- gramme de Gotha), trad. franc. de M. RUBEL e L. EVRARD, Oeuvres, Eco- nomie, I, ed. pp. MAXIMILIEN RUBEL, 1419, s.— texto que escolhemos, entre varios outros que podiamos citar, como bem exemplificativo do que dizemos no texto. Ctr. infra, TIT. C9 J. R, CAPELLA, Sobre Ia extincin del derecho y la supresién de Jos juristas, 8. Péhsamento que retoma, alids, de uma perspectiva diferente, ‘uma das linhas criticas sobre o direito da tradicao cultural teoldgico-cristé — v. SERGIO COTTA, Sur la signification eschatologique du droit in Rivista internationale di filosofia del diritto, IV Série, KLVIII (1971), 209, ss. 4A REVOLUCAO E O DIREITO 21 proprios da revolugao. Simplesmente, no cremos que tanto wiia como oufra destas alegagdes nos condenem sem mais ao desespero. Quanto A primeira, teremos ocasiao de ponderar no lugar préprio que lhe atribui a economia destas reflexdes — que, alias, se podem considerar globalmente uma tentativa de resposta a esse tipo de objecgio—e ai se dird Porque nao eremos que a tenhamos de sufragar. No que a segunda se refere, € que agora mais nos importa, ela s6 nos da ocasiao de melhor compreendermos as coordenadas especificas daquele didlogo, possivel e necessério. N&o se nega que a posig&o que deste modo se enuncia —o direito é a ordem, a revolucio é a anti-ordem — esteja na légica da concepgio comum que os juristas se fazem do direito, discipulos déceis do positivismo conformista e inebriados pelo incenso da neutralidade cientista, ambos com visivel marca de origem. Nem é menos vulgar aquele entendimento de revolu- go, que lhe faz contraponto. Sé que a revolugio esta longe de ser o possivel aberto sem limites, de que se terd a ilusao no frémito que agita as bandeiras e quando se fere o céu com © grito. A_revolugo, se verdadeiramente o for —e nao apenas agitacao epiléptica, inconsequente revolta de impotentes, «histe- tia de massas» —, 6 uma ideia, um sistema que tenta encarnar — «a_insergdo da ideia na experiéncia histérica> —, € niio se dispensaré por isso, até como condigaéo de éxito da sua ten- tativa, de uma ordem e mesmo de um ordenamento pré- prios ("*), embora decerto ambos com uma particular inde- terminagao e submetidos a aceleragio que nunca deixara de Thes impér a sua dialéctica constitutiva em que antecipa um futuro. Eo direito também s6 abusivamente se poderd identifi- car, em tudo e sempre, com «a desordem que se organiza e se ordena para melhor subsistire, a ordem da adesordem esta. fe Teciday. O direito ¢ ainda —e assim sobretudo o queremos ver aqui — um sentido normativo, uma intencde axiolégica que assimila aeucles valores especificos que o justificam como ireito e The conferem uma dimensio superadora_e também ©) Vide infra, mimero 2, 3 A. CASTANHEIRA NEVES: te ("*). Nestes termos, sera téo errado confundir esse seu sentido normative com a sua categoria epistemolégica — erro bem comum aos juristas— como nao fazer a distingao entre o direito, com essa carga axioldgica e o poder-ser que vai no seu dever-se, e as suas objectivagées histéricas, antes de mais uma certa objectivagao histérica ou uma certa ordem: o erro de o néo distinguir das suas cristalizagdes ou dos seus fracassos. Numa palavra, se, de um lado, a revolugdo cumpriré sempre menos do que promete o projecto da sua origem, o direito seré sempre mais do que dele oferecem as suas preci- pitagGes institucionalizadas; e, de outro lado, se a revolugéo nao exclui em absoluto a ideia de ordem, também o direito Se recusa a esgotar as suas possibilidades e exigéncias normati- vas numa qualquer ordem. Ainda por aqui, portanto, 0 diélogo. continua a ser possivel—e revela-se-nos também, ou sobre- tudo, necessério esse didlogo, se virmos as coisas de outra perspectiva. Decerto que tinha fuhdada razio PEGUY quando procla- mava que «la révolution sera morale ou elle ne sera pas». Mas néo pode este apelo e adverténcia levar-nos a confundir o pro- jecto e a acgfio revolucionéria com um projecto e uma acgaio estritamente morais. Queremos dizer: nao se pode pretender dos imediatos objectivos e do processo revoluciondrios uma abso- luta transparéncia ética. Nao apenas porque sera sempre neces- sdrio empregar os «meios temporais», dizemo-lo com MOU- NIER, mesmo ao servigo de uma revolugio espiritual (7) e nfio podemos esquecer-nos que o politico tem também a sua consisténcia e realidade préprias perante a ética e no global contexto pratico (“). Nao apenas por isto, mas antes de mais Porque a pretensio aqui do absolute ético sé pode levar a repetir o erro de SAINT-JUST—a «virtude» sem transigén- (Vide infra, IIT. apr we MOUNIER, Réoolution personaliste et communautaire, cal. japrit., 397. ©) Neste sentido, v., por todos, J. L. L. ARANGUREN, ftica y ‘politica, pastim; e FREUND, L'essenee du politique, passim; R. POLIN, Ethique et ‘politique, passim. A REVOLUCAO E O DIREITO 29 cias no objectivo converte-se no terror sem limites na accio. E se, de outro lado, partirmos de um diferente ponto de vista, mas também extremo, e postularmos que «os valores néo con- tam sendo ligados a uma classe, a uma nagSo, a uma raga», para aceitar o coroldrio de que «a justiga nado tem outro funda- mento do que a utilidade de classe e a razio do Estado», entéo sabemos igualmente qual seré o resultado, que expressiva- mente podemos enunciar com palavras de DOMENACH (’*): «Ao condenar o recurso aos valores universais, entregava-se a nova ordem 4 discregdo de uma forca justificada de antemao. Ao admitir que essa forga levava em si o direito, quem orde- nara esse direito, quem interpretaré as vozes da colectividade proletaria promovida & direcgdo do Estado? Serd o Partido quem falaré em seu nome, e nao tardara a ser um homem a falar em nome do Partido». Concluiremos, assim, que sobre a revolugdo esta sempre suspenso o perigo de sacrificar ao apelo da absoluta virtude ou de se entregar inerme ao poder absoluto — extremos de ver- tigem que acabam por se encontrar num mesmo ponto, no terror niilista, na «luta niilista pela dominagio e o poder» (**), no uso do poder como pura e nua forca, condenado, como tal, a esmagar ou a ser esmagado. Dai, uma pergunta indispensavel: 9 que poderd impedir que a revolugao, sem deixar de o ser na sua especificidade de acgao politica, se nao oferega como simples manifestagéio vazia do poder, resultado apenas da forga que logra um éxito precario e contingente? Muitos factores, por certo, que o con- creto contexto histérico, cultural e humano, determinar4. Mas um, dentre eles, cremos licito destacar—e esse sera, sem dii- vida, o direito. E de que modo, exactamente? Retomemos 0 que nos pareceu_ possivel afirmar logo de Principio, que 0 comum do encontro entre a revolugéo e o di- teito temo-lo nos objectivos tiltimos que aquela se propde e nos (*) M. DOMENACH, El retorno de lo trdgico, trad. esp. de R. G. NO- VALES, 109. () CAMUS, ob. cit., 292, ss. 30 A. CASTANHEIRA NEVES valores que a este Ihe dao sentido. Alias, se um encontro nestes termos nao fosse possivel, o problema no seria o da relagéo entre o direito e a revolugao, e antes o da relagdo entre esta e algo que divergia, nao aceitava ou se opunha 4 sua intengéo ultima e fundamental, a relagdo afinal entre a revolugdo e a contra-revolugao. Mas porque é esta uma hipdtese que exclui- mos, o problema vem a fixar-se no ponto decisivo da relagao entre os meios e os fins. Nem nos surpreenderé que nao seja de outro modo. A in- tengdo especifica do direito refere-se imediatamente aos meios, enquanto discute da legitimidade, justificagdo ou validade dos comportamentos e modelos institucionais que, na estratégia da sociedade histérica ou no contexto global em que se inserem, sfo suscitados por interessses e fins, tanto individuais como sociais, no juridicos em si mesmos. Assim se diré em geral, e sem nos termos de vincular ao sentido originario da expressdo, que o direito é instrumento do bem comum. S6 que, enquanto projecta nos meios um sentido de valor que os haveré de justificar, esses meios no poderao ser quais- quer meios — numa relagéo apenas técnica ow de eficdcia, que aceitasse sem hesitagdes a formula «meios ilegais, i, eficazes» —, e sim apenas certos meios que tém também um sentido e um valor préprios. Pelo que, se reconhecerd que os meivs juri- dicos, sem igualmente deixarem de o ser no todo da realidade historico-cultural, com a sua dialéctica social, nao sejam menos um fim em si e possam, como tais, reivindicar & possibilidade de discuitr com os outros fins, com os préprios objectivos ime- diatos da revolugdo, nos termos de uma relagéo de validade. Dir-se-4, de outro modo, que essa sua especifica autonomia per- mite-lhes uma certa distanciagdo e justifica-lhes uma atitude critica. Apenas porque na realidade humana e na sua axiologia h& meios que valem em si como fins, independentemente de serem também meios— como o vemos, desde logo, na cultura em geral, e até no proprio «meio» do politico, a resistirem na sua autonomia significativa a todas as redugGes, seja a redugio A REVOLUCAO E O DIREITO 31 psicarialftica ou outras (") —, péde dizer MARX que «um fim que tem nece3sidade de meios injustos nao é um fim justo» (**) e se viveu nos nossos dias dramaticamente a necesidade de pro- clamar: «lentamente, ao fim dos anos, fomo-nos elevando até & compreensao da vida e de esta altura percebemos nitidamente: o resultado nao conta nada, o que conta é 0 espirito. Nao o que foi feito, mas como se o fez, nao o que foi atingido, mas o prego que nisso se pés. (...) Sem divida, é agraddvel dominar o resultado. Mas n&éo com o risco de perder todo o rosto hu- mano» (**). O direito é esse meio que conferira ou recusaré validade a dindmica social, qualquer que ela seja, é aquele justo meio que avalizara a justiga do fim, e por isso repetiremos, com RADBRUCH e contra FRANK, ministro nacional-socialista, que nao «é direito tudo o que é util ac povo» e sim que «sé 0 direito é util ao povo» (**). Pelo que o didlogo da revolugéo com o direito, é, na verdade, necessdrio — mais do que neces- sario, 6 urgente. ©) Sobre a especitica objectividade da cultura, do politico, etc. e a correlativa irredutibilidade pstcanalitica, que o préprio FREUND indirecta- mente teve de admitir ao falar das «convers6es das pulsdes», v. P. RICOEUR, De Vinterprétation — Essai sur Freud, 487, 88., e passim. Desde logo, diz RI- COEUR, «uma dindmica dos investimentos afectivos ndo pode dar-se conta da novagio, da promogo de sentido, que habita esta novagao»— a conversio ou novagio dos simbolos, dos valores, com a sua objectividade de sentido. Daf, observa ainda RICOEUR, «se se pergunta a psicandlise o que faz a espe- cificidade do vinculo politico como tal, no Ihe resta outro recurso que invocar um ‘desvio’, um ‘détournement’ de tim». Tem isto elguma analogia com a compreensdo também redutiva da cul- tura e do politico em MARX, Redugio muito diferente, se néo diametral- mente oposta, bem sabemos, mas onde ao préprio politico se nega também a sua acidente da histedria», segundo as palavras de FREUND, ob. cit., 68. Contra esta redugo, podem ver-se ainda, além de FREUND, Idid., P. RICOEUR, Le Paradoze politique, in Histoire et verité, 260, 88., e MAX MULLER, Philoso- Bhische Grundlagen der Politik, in Existenz und Ordnung (Fests. tir E. WOLF), 282, ss. () Apud CAMUS, ob. cit., 251. () A. SOLJENITSYNE, L’Archipel du Goulag, trad. franc. de GENE- VIRVE JOHANNET, J. JOHANNET e NIKITA SERUVE, ed. SEUIL, II, 455. ©) G. RADBRUCH, Fiinf Minuten Rechtsphilosophie, in apéndice a Rech- tsphilosophie, ed. pp, ERIK WOLF, 335. 2 A. CASTANHEIRA NEVES: 2. Dito isto em geral, importa, todavia, ter bem presente o esquema das ja estudadas relagées entre o direito e uma qual- quer revolugéo, para explicitarmos, através da consideragéo desse esquema os pressupostos que de modo particular hao-de concorrer no direito para a efectiva possibilidade daquele dié- logo a que nos referimos, e nos precisos termos a que ele nos referimos. a) O confronto do direito com o fenémeno revoluciondrio é um tema classico, a determinar inclusivamente um conceito € uma problematica dogmatico-juridica da revolugao. Sao trés os momentos principais desse tema. 1) A quebra do direito vigente, ou melhor, da ordem ou sistema politico-juridicamente vigente, em virtude do facto politico da revolugéo —é decerto o primeiro momento. Se a revolugdo é antijuridica do ponto de vista daquele direito, é no entanto esse direito que se vé historico-socialmente suprimido pelo facto revolucionario. Dai que se seja tentado a facil conclu- sio de que o direito nao é afinal aquele «em si», aquele posi- tivo auténomo de validade, de que falava HEGEL, perante o qual o antijuridico seria «essencialmente nulo», para se ter antes no facto a fonte originaria e o fundamento iltimo do di- reito: ex facto oritur ius. E o problema de relagio entre o direito e o facto que aqui se toca, com todas as suas conotagées, e para o qual tém res- posta pronta e «realista» todas as formas de positivismo, his- toricismo e sociologismo juridicos, Nao vamos, por certo, ocupar-nos aqui deste ponto, Apenas anotaremos o paralogismo daquela facil concluséo: HEGEL pensava em o direito, no seu sentido ou «esséncia» normativa e significado axiolégico fun- damental, e niio em um certo direito e nas vicissitudes concre- tas que este possa sofrer na efectividade histérica. De novo o erro de confundir o direito, com o sentido normativo que poten- cia, e um direito positivo que logrou estabilizar-se numa ordem que foi subvertida revolucionariamente — o direito com o statu A REVOLUCAO E O DIREITO 3 quo juridico, a sua «definig&o valorativa» (”*) com a sua defini- go descritiva ou positivo-analitica. A questio que surge é, no en- tanto, esta: sera valida esta distingdo, sera licito pensar-se o direito a transcender as suas precipitagdes positivas, serd ele mais do que dele num certo momento se tenha logrado? O di- reito € um «dever-ser que é» («seiendes Sollen») (**) —em que medida esse seu ser nao esgota o seu dever-se, de que modo esse seu dever-ser constitui o seu ser? 2) Num segundo momento, temos a instauragdo de um novo direito (de um novo certo direito), o direito da nova ordem politico-juridica instituida pela revoluc&o. Isto, desde logo, pelo consabido reconhecimento de que o direito sempre seré elemento da prépria subsisténcia da nova ordem, ou de que esta nao pode deixar de assimilar-se também em direito. Assim como a forca s6 pela legitimagao histérico-social adquire a qualidade de poder (poder politico), assim também sé pelo direito os objectivos politico-sociais a realizar podem ascender 4 validade (4 fundamentagao normativa) e sio susceptiveis de constituir uma outra e verdadeira ordem. £ agora o problema da relagao entre o direito e o politico. E também aqui nao é menor a tentagao da facilidade. O direito nao seria mais do que a expresso normativa do poder politico e existiria porque o poder o declara como tal na sua prescrita legalidade — a vontade politica elevada a lei—e enquanto lhe assegura a sua eficdcia. Reconhece-se bem o eco de todo o Positivismo juridico estatista de novecentos, e que ainda domina. Simplesmente, ficario assim sem resposta algumas perguntas. Fosse exacta aquela tese, e poderia aceitar-se a hipétese de o poder politico prescindir totalmente do direito. O mesmo é per- guntar, porque se associa sempre — salvo na situag&o imaginada pela utopia de um certo futuro—o poder ao direito e nao (*) No sentido de L. BAGOLINI, Il problema della definizione generale del diritto nella crisi del positivismo giuridico, in Il problema della giustizia —dirttto ed economia, diritto e politica, diritto e logica— Atti del V Con- gresso Nazionale di Filosofia del Diritto, I, Relazioni Generali, 1961, 3, ss. () Para uma justificagao e andlise desta formula, v. K. ENGISCH, Die rae der Konkretisierung in Recht und Rechtswissenschaft unserer Zeit, , 88. uw A. CASTANHEIRA NEVES vemos antes este substituido de todo por um qualquer outro sistema de contréle social? Nao ser4 isto porque, como disse PASCAL, néo nos sendo acessivel a justiga absoluta e nfo po- dendo também construir-se 0 mundo do homem s6 com a forga, importa ento que a forga seja justa (")? Nao é assim porque a experiéncia do drama humano, e das suas tragédias, com- Prova que «em termos duradouros o poder nfo resolve pro- blema nenhum», e nao o resolve porque «o que ha de humano do homem exige que o tumulto da oposig&o dos interesses, das opinides, concepgdes e credos se manifeste humanamente, i.é, em termos de direito» (*) ? E nao sera s6 deste modo porque ape- nas o direito nos abre 4 exigéncia do fundamento na propria pra- tica social e & susceptivel de lhe conferir validade? Se assim n&o fosse, com efeito, se nfo correspondesse ao direito uma natureza normativa e fundamentante especifica, capaz de re- vestir de mérito andlogo a acgdo social que nele se louva, nao se compreenderia — observa-o também BURDEAU(”) — «por- que hé milénios os homens se ocupam em dotar de caracter juridico a certas regras sociais e néo a outrasy. Sendo, pois, 0 direito fundamento e factor de validade, no seré pelo menos duvidoso — e tanto basta por ora — que ele possa considerar-se mera segregagao do poder politico, que justamente o invoca e dele se socorre para se conferir de uma validade e legitimagio que de outro modo nfo teria? O direito apenas o reconhecimento formalmente sistematizado do. fait accompli, o facto da ordem institucionalizada pelo poder, ou uma es| ica inteng&o nor- mativa, uma auténoma instdncia de validade, que a ordem, para ser uma ordem de direito, teri de respeitar e cumprir? Apenas a «forga normativa do facto» ou o normative que fundamenta a validade do facto? (*) Pensées, ed. La Pléiade, 1160 (frag. 285)—onde se faz, no entanto, @ uma outra reflexio mais : «ne pouvant faire qu’ sott force d'obéir & la justice, on a fait qu'il solt juste obdir & Ia force; la force...» (Ibid. 1152, frag. 238). phie, 26. No, mesmo sentido, dentre }. de JOUVENEL, Du pouvoir —— Histoire naturelle de sa croissance, 376. @) Traité de science politique, 2 ed., I, Le pouvoir politigive, 181, n. 10. Bas A REVOLUCAO E O DIREITO 6 3) E nfo se esgota nos dois momentos anteriores a te- matica das relagdes a considerar imediatamente entre o direito e a revolugio, Nao é apenas antes e depois, na antiga ordem subvertida e na nova ordem constituida, que a revolugdo se depara com o direito: o préprio processo revolucionério, a «revolugéo em acto», néo prescinde e mesmo sé pode actuar, em parte, mediante o direito. Mais exactamente: mediante um certo direito —o «direito da revolugéo», o ordenamento ou a «legislagdo revoluciondria». Direito este— para que SANTI ROMANO (°°) chamou especialmente a atengio e depois dele muitos outros — que tem a explicé-lo duas determinantes principais. Uma determinante que diremos tActica — uma revolugéo é sempre um combate — e outra que melhor sera dita estratégica. Pois nao pode re- cusar-se razao a S. COTTA (*') quando observa que seria abso- lutamente impossivel dissolver pelo uso exclusivo da forga todas as situagdes juridicas pré-revoluciondrias e a sua ordem, sendo por isso «necessdério uma norma para abolir, totalmente, ou em parte, o regime juridico existente» (°*). E mais: sera mesmo indispensdvel «fazer apelo ao direito, a fim de que ele amplie a eficdcia sempre limitada da forga pela sua capaci- dade de suscitar a ades&o, sincera ou coacta, 4 vontade revolu- ciondriay. Daf o paradoxo juridico da revolugéo: «a revolu- ¢4o procura privar o direito da sua forca, mas para atingir este fim ela prépria coroa pelo direito a forga revoluciond- tia» (*). Uso este puramente tactico e apenas instrumental do direito. Mas a revolugao encontra-se com o direito a um outro nivel mais auténtico e profundo, j4 que a revolugéo, que néo seja uma simples rebelido, propée-se substituir 0 ordenamento (*) Nos seus Frammenti di un dizionario giuridico, ensaio sob o titulo Rivoluzione e diritto, @) Ob. e loc. cits., 217, s. (*) Recorde-se, aliés, MAQUIAVEL, Le prince, trad. tranc., ed. com introdugéo e notas por RAYMOND NAVES, cap. XVIII: «Vous devez donc savoir qu'il y 8 deux maniéres de combattre, l'une avec les lois, l'autre avec la force. La premigre est propre sux hommes, l'autre nous est commune avec les bétes; mais lorsque les lois sont impuissantes, il faut bien recourir & la force; un prince doit savoir & la fois combattre en homme et en béten. ©) S, COTTA, Ibid. e A. CASTANHEIRA NEVES. politico-social até entéo vigente por um outro que é o seu pro- jecto, ou, se quisermos, visa substituir a anterir organizagao do Estado por uma nova organizagao estadual, e por isso, como acentua exactamente S. ROMANO, o momento constituendo da nova estadualidade tera de ir instituindo autoridades, poderes e fungdes «mais ou menos correspondentes ou andlogas» aos do Estado. De outro modo, o processo revoluciondério cumpre-se através de «uma organizagéo estatal em embriao, que, de grau em grau, se 0 processo for vitorioso, se desenvolve sempre mais em tal sentido». A conclusio vem a ser, assim, a de que «a revolugéo é um facto antijuridico perante 0 direito positivo do Estado contra o qual se levanta, mas isso nao impede que seja um movimento ordenado e regulado pelo seu proprio di- reito» — «a revolugdo é violéncia, mas violéncia juridicamente organizada» (**). O certo, porém, é que o direito revolucionario nao merece esta qualificagéo apenas porque é constitufdo por uma revolu- Go que também com ele se cumpre, nem tao-sé por assumir no seu contetdo intencional os objectivos revoluciondrios. Espe- cificam-no sobretudo certas caracteristicas normativas que lhe so muito proprias e pelas quais ele se manifesta nfo somente como um meio mobilizado por uma certa revolugao e proposto aos objectivos dessa revolugdo, mas com uma natureza ou indole juridica que em si mesma é revoluciondria. Nao que- remos referir-nos 4s notas, que também s&o suas, de «regimento demagégico» — «o regimento de toda a revolugao que é movi- mento do povo, e mesmo de rua, nao pode deixar de apresen- tar os caracteres dos regimentos demagégicos»—e de «ex- trema instabilidade» — «todo o movimento revolucionario, en- quanto nfo se extingue no novo regime que poderé surgir dele, n&o encontra estabilidade em nenhum dos seus estadios provi- sérios» (°°). Pensamos sim no deliberado sacrificio que nao recusa a impor a certas exigéncias que se compreendem pos- tuladas pelo sentido axiolégico-normativo do direito, enquanto (8. ROMANO, ob. loc. cits., 224. (5) Ibid., 231. A REVOLUGAO E O DIRETTO 3T direito. Nao se trata, pois, apenas da preterig&o do «legalismo» (dito sempre entao «rigido e literal legalismo») e das «formas» (sem esquecer que as estruturas do «processo» oferecem irre- nuncidveis garantias), mas do atentado inclusivamente a deter- minados valores e principios a que o direito nao poderé renunciar sem mutilagao da sua prépria ideia — queremos dizer, sem sacrificio daquele sentido e valor que o descrimina entre os sentidos e entre os valores. Voltaremos a este ponto, com exem- plos. E suficiente por agora ter presente que a acgfo revolucio- naria legitimada formalmente pela sua prépria legislagio nem sempre se inibe de ultrapassar os limites que Ihe demarcariam 0s geralmente reconhecidos «direitos do homem». E que nesse mo- mento, sobre um fundo de penumbra histérica e de figuras ainda indefinidas, avulta no primeiro plano, com a sua mascara de virtdé {nem sempre «contra furore»), a raison d’Etat — a qual, alias, nao deixa nunca de estar presente, tentando César, nas motiva- gdes da acgSo politica. Mas, sendo assim, isto nos obriga a deixar as coisas sem mascara: «A indulgéncia para as atroci- dades revolucionérias — dizemo-lo com FREUND (**) —, sob pretexto de que elas sao inevitdveis, procede da mesma fonte que a justificagéo da raison d’Etat—a nobreza do fim nao poder passar por uma excusa. Nao se pode ser responsdvel sendo pelos meios e nao do que nao existe — e o fim nobre nao existe, senfo nio seria um fim. Tera portanto de aprovar-se Heinacke quando ele declara que a raison d’Etat abriu o cami- nho ao historicismo e aos filésofos da histéria moderna, quando as suas doutrinas justificam em nome da humanidade futura, ou mesmo somente em nome de felicidade da préxima geracao, os sofrimentos e as violéncias impostas & geragio presente». E aqui, portanto, neste terceiro momento que levamos con- siderado, que a revolugéo, para além de repor sempre, na sua propria dialéctica, 0 problema das relagdes entre o direito e o facto e entre o direito e 0 politico, pée em causa o proprio di- Teito — de que, todavia e paradoxalmente, nfo pode prescindir. «Direito revoluciondrioy é sinal de contradiggo e momento de (*) Ob. cit., 564, N. 1. 38 A. CASTANHEIRA NEVES crise: o direito é ento iniludivelmente problematico no préprio processo que o mobiliza. Na verdade, no momento revolucionario € ao nivel mesmo da imediata experiéncia juridico-social que se sente o direito, e enquanto sofre ele ai toda a pressdo do facto e do politico, a ser conduzido a situago-limite de ter ou nao de aceitar que os fins prevalegam inteiramente sobre a possivel invalidade dos meios, de se ter ou nao de conformar a ser tao-s6 o homologador dos efeitos da forga eficaz, mero instrumento, sem especifica consisténcia, do imperativo politico, Numa palavra, a situagao-li- mite do seu verdadeiro sentido. Todo o melindre do didlogo (ainda possivel? ainda necessério?) entre o direito e a revolu- ao encontra-se, pois, aqui. b) © que nao invalida o fundamental interesse numa consideragéo global dos trés momentos anteriores em que sé analisa a relagao entre o direito e a revolugao, j4 que sd essa ensideragdo global nos permite enunciar os dois problemas de- cisivos que emergem daquela relagao, tal como ela, nos seus varios aspectos, se nos ofereceu. 1) £o primeiro o problema da continuidade (ou descon- tinuidade) do direito, posto directamente perante nés pela ru- ptura revoluciondria. E neste ponto ainda as imediatas aparéncias se convertem em termos demasiado rapidos em verdades categéricas. Entre uma e outra ordem juridica, a pré-revolucionaria e a post- -revolucionaria, entre-os respectivos sistemas juridicos haveria & separagdo intransponivel que vai de uma realidade com que se rompe, e a que se pés fim, a um novo comego aberto ou a uma totalmente origindria criagdo. Ou como se a tnica conti- nuidade possivel do direito fosse téo-s6 categorial e epistemo- légica: 0 direito, como categoria de conhecimento, como «essén- cia», subsumiria classificatoriamente apenas direitos ncrmativo- -materialmente diferentes e descontinuos, que se sucederiam como ménadas ou estruturas histérico-culturais entre si inco- municdveis. A conclusao seria: nao ha direito, ha s6 direitos. A REVOLUCAO E O DIREITO 9 Conclusao esta que pensamentos diversos, e opostos, estéo pron. tos a subscrever —o pensamento historicista e 0 pensamento revolucionario, 0 positivismo e o materialismo histérico. Simplesmente, ainda aqui — ou sobretudo aqui — importa distinguir as ilagdes sistemAticas de pensamentos que especulam sobre a realidade humano-cultural e histérica e nao raro a subs- tituem pelas suas interpretagées, fechadas no circulo de uma coeréncia légico-especulativa, e aprépria realidade tal como ela se oferece 4 fenomenologia da experiéncia pratica e comum — no nosso caso, da experiéncia pratica e comum do juridico. E esta mostra-nos que a tese da ruptura, ainda que haja de con- siderar-se valida em principio, sempre tera de ser aceite com algumas nuances. A ruptura nao se impée simultanea e idéntica em todos os estratos, nem se pode sem simplismo excluir a conti- nuidade normativo-juridica a certos niveis —a histéria e o pensamento juridicos afirmam-no ("’) e a histéria e o pensa- mento cultural em geral confirmam-no (**). Dir-se-4, no entanto, que esta possivel continuidade material é apenas um contetido recebido numa unidade sistematico-intencionalmente distinta. Nao seremos nés a negi-lo. Mas se descontarmos o que ha de mera construgdo conceitual na tese dessa «recepgio», fica-nos a realidade de uma pratica continuidade normativa ou a ausén- cia de uma verdadeira solugdo de continuidade na pratica juri- dica, relativamente a certos niveis dos sistemas que se sucedem revolucionariamente, Depois, ainda que esta continuidade dos proprios contet- dos juridicos se houvesse de negar, ou seja porventura de negar em alguns casos, uma outra e mais importante continuidade, a coenvolver aquela, teremos de reconhecer, ndo obstante as ten- . £°, Vide, por todos, K. ENGISCH, Die Einheit der Rechtsordnung, 18, ssi, J. RAZ, The concept of a legal system, 95, ss., 187, ss.; M. A. CATTANEO, Ji ‘concetto di revoluzione nella scienza del diritto, 86, ss; AFONSO R. QUEIRO, Revolucdo, in Verbo— Enciclopédia luso-brasileira de cultura, 513 s. (*) | Vide, por todos, F. BRAUDEL, Historia e ciéncias sociais, trad. port. ge CARLOS BRAGA e INACIO CANELAS, 7, 88; L. ALTHUSSER e E. BA. ra Para ler El capital, Trad. esp. de MARTHA HARNECKER, 130, ss., 57, §8., 197, s8., e passim; L. ALTHUSSER,Pour Marz, 206, ss. 40 A. CASTANHEIRA NEVES tativas de estruturais e radicais «redugées arqueolégicas do sabers(**: a continuidade histérica e cultural. E digamos, quanto a ela, com palavras de C. DESPOTO- POULOS (“°), que «o slogan revolucionério da ‘tabula rasa, a postular com esta expresséo imaginada — empregada ja por Platao na sua ‘Republica’ —, uma liquidagio total das insti- tuigdes do passado, néo tem senfo uma validade de simbolo. Qualquer sociedade existe e funciona gragas ag tesouro de instituigdes e bens culturais que tornam possivel a comunica- gGo e colaboragao entre os individuos, e que mesmo Thes con- ferem as qualidades humanas. Ora, a sociedade saida da revo- lugdo ¢ os préprios revoluciondrios nfo podem sequer existir e funcionar ou agir renegando inteiramente estes factores de coesiio e de humanidade, herdados do passado. E somente em parte que esta sociedade e estes homens podem chegar a su- primi-los. E isto, fazendo sempre forgosamente uso de certas instituigdes e de certos bens culturais, provindos das geragées passadas». Devera mesmo acrescentar-se que os conflitos que conduzem as revoluges sé so possiveis porque certos valores foram previamente constituidos ou assumidos — ponto alias ja aludido — num determinado e comum contacto histérico-social, embora esses mesmos valores historicamente comungados se- jam justamente objecto de consideragées diferentes por sectores distintos e conflituantes da sociedade de que se trata. E quando falamos de conflitos, referimo-nos a todos os conflitos, sem ex- cluir a luta de classes. Pois «a luta de classses — disse-o ja BERDIAEFF (**) — desenvolve-se na sociedade, a qual cons- titui ela propria uma certa unidade inicial e uma realidade que precede as classses de que é formada. E isto é assim mesmo admitindo que se possam atingir resultados positivos ¢ precio- sos da luta de classes. Com efeito, se a sociedade nao existe e sé as classes possuem uma realidade, entéo o conflito nao (*) Referimo-nos, evidentemente, ao pensamento de FOUCAULT em L'Archedlogie du savoir. (*) Ob. loc. cits., 80, s. (*) Le christianisme et la lutte de classe, trad. franc. de IP. e HM, 45, ss. A REVOLUCAO E O DIREITO a conduzirdé senfo a uma desagregacio definitiva. A dialéctica da luta de classes, que MARX retoma com tanta insisténcia, supée o triunfo do sentido e da razao para o conjunto da socie- dade, para toda a humanidade» (“*). Continuidade esta e a este nivel—ao nivel axiologica- mente intencional — que dissemos mais importante, porquanto reconhecé-la é admitir sem mais a possibilidade de uma con- tinuidade, em persisténcia e validade, de integdes axiolégicas que, para além das suas precipitagées ou violagdes passadas, contiunam a exigir, como tais, um seu cumprimento futuro. E participe o direito, por hipétese, desta fundamental continui- dade intencional, ou seja, persista o direito no seu sentido axio- légico especifico ou nas suas exigéncias normativas fundamen- tais, e entéo nao sera ele apenas a expressao positiva e @ poste- riori de uma certa realidade histérico-politico-social, mas tam- bém uma inteng&o constituinte da pratica histérico-social, uma exigéncia a cumprir por esta prdtica no préprio momento em que se constitui. O direito, sabemo-lo, manifesta-se como um «dever-ser que &: se é decerto na vigéncia historica dum certo contetido de dever-ser — ponto que ninguém podera negar (“*) —, o que falta entéo, todavia, saber 6 se aquela hipdtese enunciada se con- firma. Queremos dizer: seré o dever-ser préprio do direito, agora enquanto a sua intengdo especificamente normativa e au- ténoma, efectivamente constitutive do seu «ser»? O que nos remete ao segundo problema. 2) O problema da autonomia intencional do direito sur- ge-nos, na verdade, como o ponto problemético em que conver- gem todas as exigéncias da possibilidade do didlogo que temos estado a tentar definir e compreender. Nao se trata de inferir dessa autonomia, reconhecivel que seja ela, a legitimidade de uma sua incondicional imposic&’o, sempre e em todas as circuns- () Daf, desde logo, os problemas de que se ocupa N. POULANTZAS, Poder politico e classes sociais, trad. port. de FRANCISCO SILVA, II, 33, ss. Telativamente & «unidade do campo da luta de classes». oa io Vide, por todos, UMBERTO CERRONI, Marz e il diritio moderno, 2 A. CASTANHEIRA NEVES: tancias, a ponto de nos fazer esquecer a validade dos momentos extremos de excepgio— fiat iustitia pereat mundus. Importa sim sublinhar em toda a sua importncia o que ja ficou evi- dente. Que a possibilidade auténtica daquele diélogo, com as virtualidades de juizo que lhe vio implicadas e em ordem as quais ele verdadeiramente se solicita— o jufzo de validade sobre os meios mobilizados pelo processo revolucionario — , que essa possibilidade, diziamos, esté suspensa de ser licito afirmar no direito uma autonomia com que ele se recuse ao papel de uma mera varidvel totalmente dependente, ou fungio redutivel sem qualquer mediag&o intencionalmente especifica, e se reivindique, pelo contrario, a qualidade de sujeito que declama o seu proprio e original discurso. Sem divida que a sua condigio tera de ser a da compos- sibilidade histérica, uma vez inserido, como n&o pode deixar de estar, na coeréncia do sentido e na unidade globais do sis- tema de uma certa cultura, de uma certa época, de uma certa sociedade. Mas o que se pergunta é se, nessa irrecusdvel rela- tividade, o direito comparticipa com uma intengdo que se auto- nomiza a partir de fundamentos especificos ou se a sua reali- dade, decerto inegivel no acervo dos factores sociais, é inten- cionalmente redutivel a determinantes cujo sentido decisivo lhe & alheio e em fungdo dos quais, portanto, unicamente poderia ser compreendido. Seria ele, neste ultimo caso, a voz que ha- veria de silenciar-se, num gesto de autenticidade, para se reco- nhecer verdadeira a personagem que oculta. Pensemos na redugao econémica — o direito simplesmente © facto normativo da actividade econémica ou de um certo sistema de produgio — e na redugio politica — o direito apenas a expresso normativa do poder politico —, que uma e outra The vemos referidas com a tranquila certeza das verdades feitas. Podiam ter-se inclusive por duas modalidades de uma mesma interpretagéo supraestrutural: a primeira mais vineulada as estruturas que objectivam a realidade social, a segunda rele- vando sobretudo o voluntarismo ideolégico. Em ambas as hipé- teses, no entanto. o direito teria que aguardar, j4 que aquela

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