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O processo histérico de profissionalizagaio do professorado segunda metade do século XVIII € um perfodo-chave na historia da educagao e da Am docente. Por toda a Europa procura-se esbogar o perfil do professor ideal: Deve ser leigo ou religioso? Deve integrar-se num corpo docente ou agit a titulo individual? De que modo deve ser escolhido e nomeado? Quem deve pagar 0 seu trabalho? Qual a autoridade de que deve depender? (Julia, 1981). Este conjunto de interrogagées inscreve-se num movimento de secularizagdo e de esta- tizagio do ensino. Os novos Estados docentes instituem um controlo mais rigoroso dos processos educativos, isto é, dos processos de reprodugao (e de produgio) da maneira como os homens concebem 0 mundo, A estratégia adoptada prolongou as formas € os modelos escolares elaborados sob a tutela da Igreja, dinamizados agora por um corpo de professores recrutados pelas autoridades estatais, O processo de estatizacao do ensino consiste, sobretudo, na substituigéo de um corpo de professores religiosos (ou sob 0 controlo da Igreja) por um corpo de professores laicos (ou sob 0 controlo do Estado), sem que, no entanto, tenha havido mudangas significativas nas motivacdes, nas normas € nos valores originais da profissAo docente: 0 modelo do professor continua muito préximo do modelo do padre (Julia, 198la). Inicialmente, a fungao docente desenvolveu-se de forma subsididria e nao especiali- zada, constituindo uma ocupagao secundaria de religiosos ou leigos das mais diversas ori- gens. A génese da profissao de professor tem lugar no seio de algumas congregagdes teli- giosas, que se transformaram em verdadeiras congregagées docentes. Ao longo dos sécu- los XVIL e XVIII, os jesuitas e os oratorianos, por exemplo, foram progressivamente con- 15 figurando um corpo de saberes e de técnicas ¢ um conjunto de normas e de valores espa. cificos da profissao docente: ~ A elaboragio de um corpo de saberes ¢ de técnicas & a consequéncia Igica do int. resse renovado que a Era Moderna consagra ao porvir da infancia e a intencional}._ dade educativa. Trata-se mais de um saber técnico do que de um conhecimento fun. damental, na medida em que se organiza preferencialmente em torno dos principig, das estratépias de ensino. A pedagogia introdu. uma relagio ambigua entre os pra. fessores € o saber, 0 qual atravessa toda a sua historia profissional: assinale-se, titulo de exemplo, que a hierarquia intema a profisso docente tem como critério yyy saber geral, ¢ no um saber espectfico, isto 6, um saber pedagégico (Chapoutig 1974), Por outro lado, é importante sublinhar que este corpo de saberes e de técnicr. foi quase sempre produzido no exterior do “mundo dos professores”, por tedricos especialistas vérios. A natureza do saber pedagégico e a relagio dos professores a saber constituem um capitulo central da histéria da profissiio docente. ° — A elaboragio de um conjunto de normas e de valores é largamente influenciada pey crengas e atitudes morais e religiosas. A principio, os professores aderem a um, _,ética ¢ a um sistema normativo essencialmente religiosos; mas, mesmo quando 0° isso de educar 6 substtuida pela prtica de um ofcio ea vocagio cede 0 lugar ‘ \\__ ‘profissdo, as motivacées originais nao desaparecem. Os professores nunca proved. a 3 ram A codificagiio formal das regras deontoldgicas, 0 que se explica pelo facto de Y 5 Ihes terem sido impostas do exterior, primeiro pela Igreja e depois pelo Estado, a tituigbes mediadoras das relagdes internas ¢ extemas da profissio docente. B, ng entanto, é incontestdvel que os professores integraram este discurso, transfor mando-o num objecto préprio: nas décadas de viragem do século XIX para o sécul 5 XX, a época gloriosa dos Congressos de Professores que constitufram verdadeiro, “faboratérios de valores comuns”, sente-se a perpetuagiio de um idedrio coleetive onde continuam presentes as origens religiosas da profissio docente. " Simultaneamente com este duplo trabalho de produgio de um corpo de saberes e a um sistema normativo, os professores tém uma presenga cada vez mais activa (e intent no terreno educacional: 0 aperfeigoamento dos instrumentos e das técnicas pedagégicas, 4 introdugao de novos métodos de ensino ¢ 0 alargamento dos curriculos escolares difcul. tam o exercicio do ensino como actividade secundaria ou acess6ria. O trabalho docana diferencia-se como “conjunto de praticas”, tornando-se assunto de especialistas, que sfig chamados a consagrar-lhe mais tempo ¢ energia. Apesar de se terem desencadeado no seio das congregacdes docentes, estas transfor- macoes. extravasam 0 campo religioso, abrangendo 0 conjunto dos individuos que se dedi- cam ao ensino. Durante longos anos imputou-se a génese da profissio docente a acgao dos sistemas estatais de ensino; hoje em dia, sabemos que no inicio do século XVIII havia jf uma diversidade de grupos que encaravam 0 ensino como ocupacdo principal. 16 exercendo-a por vezes a tempo inteiro. A intervencao do Estado vai provocar uma homo- geneizacio, bem como uma unificagdo e uma hierarquizagao a escala nacional, de todos estes grupos: é 0 enquadramento estatal que institui os professores como corpo profissio- nal, e nado uma concepgiio corporativa do oficio. Uma das primeiras preocupagées dos reformadores do século XVIII consiste na definigéo de regras uniformes de selecgdo ¢ de nomeagao dos professores. A diversi- dade de situagdes educativas do Antigo Regime nio serve os novos designios sociais € politicos: € necessdrio retirar os professores da alcada das comunidades locais, organi- zando-os como um corpo do Estado. Neste sentido, a estratégia de recrutamento néo privilegiaré os candidatos que tencionam fixar-se nas suas terras de origem, visando, pelo contrario, a constituigio de um corpo de profissionais isolados, submetidos a disci- plina do Estado. Os professores aderem a este projecto, que lhes assegura um estatuto de autonomia e de independéncia em relagio aos parocos, aos notiveis locais ¢ as populagées: a funciona- rizagdo deve ser encarada como uma vontade partilhada do Estado e do corpo docente. E, no entanto, 0 modelo ideal dos professores situa-se a meio caminho entre 0 funcionalismo e a profissdo liberal: ao longo da sua hist6ria sempre procuraram conjugar os privilégios de ambos os estatutos. A partir do final do século XVIII nao é permitido ensinar sem uma licenga ou autori- zagio do Estado, a qual é concedida na sequéncia de um exame que pode ser requerido pelos individuos que preencham um certo mimero de condigées (habilitagées, idade, com- portamento moral, etc.). Este documento constitui um verdadeiro suporte legal ao exerct- cio da actividade docente, na medida em que contribui para a delimitagio do campo pro- fissional do ensino e para a atribui¢do ao professorado do direito exclusivo de intervengao nesta area. A criagio desta licenga (ou autorizagao) é um momento decisivo do processo de pro- fissionalizag&o da actividade docente, uma vez que facilita a definigdo de um perfil de competéncias técnicas, que servird de base ao recrutamento dos professores ¢ ao delinear de uma carreira docente. Este documento funciona, também, como uma espécie de “aval” do Estado aos grupos docentes, que adquirem por esta via uma legitimagio oficial da sua actividade. As dindmicas de afirmagao profissional ¢ de reconhecimento social dos pro- fessores apoiam-se fortemente na consisténcia deste t/tulo, que ilustra 0 apoio do Estado ao desenvolvimento da profissdio docente (e vice-versa). Os professores so funciondrios, mas de um tipo particular, pois a sua acco esté impregnada de uma forte intencionalidade politica, devido aos projectos ¢ as finalidades sociais de que so portadores. No momento em que a escola se impde como instrumento privilegiado da estratificag&io social, os professores passam a ocupar um lugar-charneira nos percursos de ascensao social, personificando as esperancas de mobilidade de diversas camadas da populagio: agentes culturais, os professores sao também, inevitavelmente, agentes politicos. pea 7 Os professores sao os protagonistas no terreno da grande operagao histrica da esegja. rizagao, assumindo a tarefa de promover o valor educagdo: ao fazé-lo, criam as Condigges para a valorizacao das suas fungdes e, portanto, para a melhoria do seu estatuto Sociopyo~ fissional. No século XIX, a expansio escolar acentua-se sob a pressfio de uma procyra, social cada vez mais forte: “a instrugao foi encarada como sindnimo de superioriqade. social, mas era apenas o seu corolério” (Furet e Ozouf, 1977, p. 176). Os professores utilizam sistematicamente dois argumentos em defesa das suas reiyin dicagdes socioprofissionais: 0 cardcter especializado da sua acgao educativa e a Tealizacio de um trabalho da mais alta relevancia social. O desenvolvimento das técnicas e dos ins~ trumentos pedagégicos, bem como a necessidade de assegurar a reprodugéo das normas & dos valores préprios da profissao docente, estéo na origem da institucionalizagao de yma formacao especifica especializada ¢ longa. : Esta etapa decisiva do processo de profissionalizagao permite, por um lado, a consoji~ dagao do estatuto e da imagem dos professores €, por outro, a organizacao de um controlo estatal mais estrito. A criacdo de instituigdes de formagao é um projecto antigo, mas que rem pleno século XIX, gracas & conjugagao de interesses varios, nomeada~ mente do Estado e dos professores. As escolas normais representam uma conquista importante do professorado, que ngo ais deixard de se bater pela dignificacdo e prestigio destes estabelecimentos: maiores exi- géncias de entrada, prolongamento do curriculo e melhoria do nivel académico sao algu- mas das reivindig6es inscritas nas lutas associativas dos séculos XIX e XX. As escolas nor- mais estiio na origem de uma verdadeira mutagdo sociolégica do corpo docente: 0 “velho” mestre-escola é definitivamente substituido pelo “novo” professor de instrugao priméria, As instituigdes de formagio ocupam um lugar central na produgio e reprodugao do corpo de saberes ¢ do sistema de normas da profissio docente, desempenhando um papel crucial na elaboracdo dos conhecimentos pedagégicos e de uma ideologia comum. Mais do que formar professores (a titulo individual), as escolas normais produzem a profissao docente (a nivel colectivo), contribuindo para a socializagao dos seus membros e para a génese de uma cultura profissional. A segunda metade do século XIX é um momento importante para compreender a ambiguidade do estatuto dos professores. Fixa-se neste periodo uma imagem intermédia dos professores, que so vistos como individuos entre varias situagdes: nao sao burgueses, mas também nao sio povo; nao devem ser intelectuais, mas tém de possuir um bom acervo de conhecimentos; nfo so notaveis locais, mas tm uma influéncia importante nas comunidades; devem manter relagdes com todos os grupos sociais, mas sem privilegiar nenhum deles; nao podem ter uma vida miserdvel, mas devem evitar toda a ostentagao; néo exercem o seu trabalho com independéncia, mas é Util que usufruam de alguma auto- nomia; etc. Estas perplexidades acentuam-se com a feminizacdo do professorado, fend- meno que se torna bem visivel na viragem do século e que introduz um novo dilema entre as imagens masculinas e femininas da profissao. 18 A “indefinigéo” do estatuto e 0 relativo “isolamento social” dos professores provocam um reforgo da solidariedade interna ao corpo docente e, num certo sentido, a emergéncia de uma identidade profissional. E um trabalho largamente realizado no seio das escolas normais, mas que nao pode ser compreendido em toda a sua complexidade sem olhar para a acco das associagées de professores. De facto, coincidindo com os esforgos de implantagio do ensino normal, assiste-se em meados do século XIX ao aparecimento de um “novo” movimento associativo docente, que corresponde a uma tomada de consciéncia dos seus interesses como grupo profissional. Trata-se de um momento importante do processo de profissionali- zaciio, na medida em que estas associagdes pressupdem a existéncia de um trabalho prévio de constituigdo dos professores em corpo solidario ¢ de elaboragao de uma mentalidade comum: nao espanta, por isso, que as associagées tenham sua frente professores © antigos alunos normalistas, portadores de um projecto renovado da pro- fissio docente. A escolha do modelo associativo mais adequado aos professores foi objecto de lon- gas controvérsias, bem como as suas filiagdes politicas ¢ ideolégicas. Mas as praticas associativas pautaram-se quase sempre por trés eixos reivindicativos: melhoria do esta- tuto, controlo da profissao e definigdo de uma carreira. O prestigio dos professores no inicio do século XX é indissocidvel da acco levada a cabo pelas suas associagdes, que acrescentam & unidade extrinseca do corpo docente, imposta pelo Estado, uma unidade intrinseca, construida com base em interesses comuns e na consolidagio de um espirito de corpo. A profissio docente exerce-se a partir da adesdo colectiva (implicita ou explicita) a um conjunto de normas e de valores. No principio do século XX, este “fundo comum” é alimentado pela crenga generalizada nas potencialidades da escola e na sua expansio ao conjunto da sociedade. Os protagonistas deste designio sio os professores, que vao ser investidos de um importante poder simbdlico. A escola e a instrugio incarnam 0 pro- gresso: os professores sio os seus agentes. A época de gloria do modelo escolar é também 0 periodo de ouro da profissiio docente. Durante os anos vinte, o Movimento da Educagio Nova ilustra, em todos os sentidos (alguns contraditérios), a conjugagao de projectos culturais, cientfficos e profissionais. Nesta perspectiva, ele é a consequéncia de uma lenta evolucio cultural que impés socialmente a ideia de escola e o produto da afirmagao das “novas” ciéncias sociais ¢ humanas (nomeadamente das ciéncias da educagio), mas representa também um forte contributo para a configurago do modelo do professor profissional. Nao espanta por isso que a definigao sincrdnica do professor ideal recorte com bastante rigor a andlise diacrénica do percurso da profiss4o docente, como se demonstra pelo comentario da figura seguinte. 19 PROCESSO DE PROFISSIONALIZACAO DO PROFESSORADO. (Modelo de analise) CONJUNTO DE NORMAS E DE VALORES é a a = & \ EXERCICIO A TEMPO INTEIRO (OU COMO OCU- . PACAO PRINCIPAL) DA ACTIVIDADE DOCENTE. Dd etupa \ €, \ ESTABELECIMENTO DE UM SUPORTE LEGAL fda 3 PARA O EXERCICIO DA ACTIVIDADE DOCENTE 3 z es é a 6 1 etapa CRIAGAO DE INSTITUICOES ESPECIFICAS PARA A FORMAGAO DE PROFESSORES CONSTITUICAO DE ASSOCIAGOES PROFISSIONAIS DE PROFESSORES CORPO DE CONHE-' CIMENTOS E DE TECNICAS Esta figura sistematiza um modelo de andlise do processo hist6rico de profissionaliza- gio do professorado em torno de quatro etapas (que nao devem ser lidas numa perspec tiva sequencial rigida), de duas dimensdes ¢ de um eixo estruturante. Mas, olhando pata esta figura, também € possivel delinear os contornos dos professores profissionais dog anos vinte; trata-se de individuos que: * Quatro etapas 1, Exercem a actividade docente a tempo inteiro (ou, pelo menos, como ocupagio principal), nao a encarando como uma actividade passageira, mas sim como um trabalho ao qual consagram uma parte importante da sua vida profissional. 2, Sao detentores de uma licenga oficial, que confirma a sua condigao de “profissionais do ensino” € que funciona como instrumento de controlo e de defesa do corpo docente, 3. Seguiram uma formagao profissional, especializada e relativamente longa, no seio de instituigées expressamente destinadas a este fim. 4. Participam em associagdes profissionais, que desempenham um papel fulcral no desenvok vimento de um espirito de corpo e na defesa do estatuto socioprofissional dos professores. + Duas dimensoes 1, Possuem um conjunto de conhecimentos e de técnicas necessdrios ao exercicio qualificado da actividade docente; os seus saberes nao sio meramente instramen- tais, devendo integrar perspectivas tedricas e tender para um contacto cada vez mais estreito com as disciplinas cientificas. 2. Aderem a valores éticos e a normas deontolégicas, que regem nao apenas 0 quoti- diano educativo, mas também as relagdes no interior e no exterior do corpo docente; a identidade profissional nao pode ser dissociada da adesio dos professo- Tes ao projecto hist6rico da escolarizagdo, o que funda uma profisséo que nao se define nos limites internos da sua actividade. 20 + Um eixo estruturante Gozam de grande prestigio social e usufruem de uma situagio econémica digna, con- digdes que sio consideradas essenciais para o cumprimento da importante missio que esté confiada aos professores. Apesar de manterem uma dinamica reivindicativa forte, é possivel verificar que, nos anos vinte, os professores se sentem pela primeira vez confortaveis no seu estatuto socioeconémico. * * Apesar das precaugdes tedricas ¢ metodolégicas, a andlise do processo de profissiona- lizagdo sugere sempre uma evolucdo linear e inexordvel. Nada de mais errado. A afirma- cao profissional dos professores € um percurso repleto de lutas ¢ de conflitos, de hesita- ges e de recuos. O campo educativo est4 ocupado por intimeros actores (Estado, Igreja, familias, etc.) que sentem a consolidagiio do corpo docente como uma ameaga aos seus interesses € projectos. Por outro lado, 0 movimento associativo docente tem uma historia de poucos consensos e de muitas divisées (Norte/Sul, progressistas/conservadores, nacio- nalistas/internacionalistas, cat6licos/laicos, etc.). A compreensio do processo de protis- sionalizacao exige, portanto, um olhar atento as tenses que o atravessam. Por um momento, parémos a nossa narrativa nos anos vinte, perfodo em que se fixa um retrato do professor profissional. Mas a hist6ria da profisstio docente continua, desen- volvendo-se quantas vezes segundo processos contraditérios. Partindo de diferentes pers- pectivas, varios autores assinalaram a. desprofissionalizagao (ou proletarizagdo) a que os professores tém estado sujeitos nas tiltimas décadas, Reportando-nos ao caso portugués, é possivel identificar tendéncias de desprofissiona- izagdo em momentos muito distintos: durante o Estado Novo, por via de uma politica de desvalorizagao do professorado, mas também no pés-25 de Abril, onde as dimensdes ideo- Iégicas prevaleceram sobre os critérios profissionais, e no émbito da Reforma de 1986 com um acentuar do fosso que separa os actores ¢ os decisores. Por outro lado, é evidente que a expansao escolar e o aumento do pessoal docente, bem como uma relativa incerteza face as finalidades e 4s missGes da escola e ao seu papel na reprodugio cultural e na formagdo das elites, também contribufram para movimentos de desprofissionalizagao do professo- rado. Refiram-se, por tiltimo, certas correntes pedagégicas (como, por exemplo, as teses da desescolarizagio e da educagao permanente) e a consolidagio de um grupo cada vez mais numeroso de especialistas pedagégicos, como factores que tendem a ocupar margens de competéncia dos professores. Estas tendéncias necessitam de ser confrontadas com os processos de“afirmagio auté- noma e cientifica da profissio docente, que ganharam um novo impeto nos anos oitenta. A compreensio contempordnea dos professores implica uma visio multifacetada que revele toda a complexidade do problema. As questées sociais nunca sio simples. Muito menos as que que dizem respeito a educagao e ao ensino. Na parte seguinte deste texto procuraremos demonstrar de que forma o modelo de andlise atrés apresentado pode cons- tituir uma grelha pertinente para 0 estudo actual da profissdo de professor. 21 Esboco de um modelo de andlise da profissao docente crise da profissao docente arrasta-se hé longos anos e nao se vislumbram perspecti- vas de superagao a curto prazo. As consequéncias da situagao de mal-estar que atinge 0 professorado esto a vista de todos: desmotivagio pessoal e elevados indi- ces de absentismo e de abandono, insatisfagao profissional traduzida numa atitude de desinvestimento e de indisposigao constante (face ao Ministério, aos colegas, aos alunos, etc.), recurso sistematico a discursos-alibi de desculpabilizacdo e auséncia de uma refle- xd critica sobre a acgdo profissional, etc. Esta espécie de autodepreciacéio € acompa- nhada por um sentimento generalizado de desconfianga em relagdo &s competéncias ¢ a qualidade do trabalho dos professores, alimentado por circulos intelectuais e politicos que dispdem de um importante poder simbolico nas actuais culturas de informagao. Mas 6 preciso contar também o outro lado da histéria, verificando com alguma sur- presa que, apesar de tudo, o prestigio da profissdo docente permanece intacto. A confir- magio deste facto € dada por sondagens publicadas com alguma frequéncia na imprensa e por relat6rios diversos sobre a situagdo dos professores: nuns € noutros casos a imagem da profissdo docente € bastante positiva, nomeadamente no confronto com outras activi- dades profissionais. Por outro lado, € inegdvel que as sociedades contempordneas jacom- preenderam que o desenvolvimento sustentével exige a realizacao de importantes investi- mentos na educagio. Este paradoxo explica-se pela existéncia de uma brecha entre a visio idealizada e a realidade concreta do ensino. E nesta falha que se situa o epicentro da crise da profissio 22 docente, que pode ser util se a soubermos apreender na sua acepcio original (krisis = decisio), assumindo-a como um espago para tomar decisdes sobre os percursos de futuro dos professores. Apesar de ter estado submetido a grandes pressdes demogrificas e sociais desde mea- dos do século XX, 0 ensino no sofreu transformagées estruturais tao significativas como as de outras profissées. Atente-se, por exemplo, no caso dos médicos que, independente- mente de manterem uma actividade liberal (aliés, em larga medida “convencionada”), sio praticamente obrigados a um trabalho no seio das organizag6es da satide, 0 que tem vindo a modificar progressivamente o seu estatuto profissional. Idéntica evolugao tém sofrido as profissdes juridicas, nas quais a percentagem de assalariados com a tendéncia para 0 exer- cicio liberal ser realizado como “segunda actividade” ou através de contratos com firmas ou associagées diversas, A evolugdo nos campos da Medicina e do Direito nao é apenas metodolégica ou tecnolégica, ¢ toca no cerne dos modelos organizativos & identitarios destas profissdes. preciso compreender este processo a luz de novas realidades sociais, nomeadamente do direito dos cidadios a uma presenga com capacidade de decisdo (e nao meramente consultiva) nos territérios da satide e da justiga, tradicionalmente monopoliza- dos por profissionais especializados. Esta decisdo exprime-se, por exemplo, na responsa- bilizagdo das pessoas pela sua propria satide ¢ na importincia de uma participagao activa na promogiio de comportamentos (individuais ¢ colectivos) saudaveis. Exprime-se tam- bém em novas praticas na area do Direito, recuperando nalguns casos tradigGes antigas, as quais concedem as comunidades um papel crucial na realizacaio da justiga. E curioso observar que esta mudanga de perspectiva tem sido mais lenta ao nivel do ensino, uma vez que a reivindicagdo de um poder profissional continua a fazer-se (muitas vezes) con- tra as familias e as comunidades: se certas modalidades de avaliagaio dos alunos, nomea- damente no final de um ciclo de escolaridade, constituem um julgamento, porque no comparar os professores a “juizes” e “advogados”, que instruem 0 processo e 0 encami- nham do ponto de vista técnico, aceitando que o veredicto compete a um jiri indepen- dente? E preciso romper com a I6gica estatal da educagao ¢ com a imagem profissionalizada das escolas: 0 papel do Estado na area do ensino encontra-se esgotado, a varios titulos, sendo urgente legitimar novas instancias ¢ grupos de referéncia no dominio educativo; simultaneamente, impde-se questionar 0 papel exclusivo dos professores na organizagao & direcgao do trabalho escolar, a sua subordinagao as autoridades estatais. Apés a fase de hegemonia da Igreja (séculos XVI-XVIID), € provavel que estejamos agora a assistir a0 fim do perfodo de monopélio do Estado sobre a educacio (séculos XVIII-XX): os homens da “desescolarizagao” jé tinham anunciado este desfecho, ainda que, contrariamente as suas previsdes, ndo estejamos a encaminhar-nos para uma “sociedade sem escolas”, mas antes para a definigdo de novos poderes regulagdes no seio das instituigdes escolares. A criagao de um Ministério da Instrugao Publica constituiu uma das principais reinvin- dicagdes dos educadores do século XIX. O que se compreende facilmente. Agora talvez 23 tenha chegado a altura de formular como proposta a extingao do Ministério da Educagag: as diversas forcas sociais e profissionais teriam entio oportunidade de assumir as stag responsabilidades, erigindo novas modalidades de funcionamento e de accao escolar. 4 sugestéo é imprudente, mas nao é totalmente irreflectida... Tendo como pano de fundo estas preocupagées, procurarei evocar, de seguida, alguns dos dilemas e problemas actuais dos professores. F4-lo-ei adoptando como matriz 9 modelo de andlise do processo hist6rico de profissionalizacao, de forma a mostrar a acta. lidade radical das opges com que os professores se confrontam, as quais nao se compa. decem com um olhar nostélgico sobre o passado, antes exigem uma ruptura decidida com os proprios alicerces fundacionais da profissao docente. EXERCICIO A TEMPO INTEIRO (OU COMO ACTIVIDADE PRINCIPAL) DA PROFISSAO DOCENTE Continuam pr6ximos os tempos em que o primeiro-ministro Joao Franco aconselhava os professores das cidades a completarem os seus salérios com outras actividades e og do campo a cultivarem umas batatas, bem como o periodo do Estado Novo durante o qual o salério dos professores chegou a ser considerado uma espécie de “gratificagao”, admitindg assim, tacitamente, a “dupla actividade”. A questio ainda est na ordem do dia, na medida em que os professores. buscam no exterior os estimulos (econémicos, culturais, intelec~ tuais, profissionais, etc.) que muitas vezes néo conseguem encontrar no interior do ensino. O problema tem contornos que abrangem aspectos varios do trabalho docente, desde a questio dos hordrios até as distintas formas de mobilidade (destacamentos, mudanga de escolas, etc.), passando pela estabilizagao profissional e pela organizacio interna das escolas. Os estabelecimentos de ensino continuam a ser vistos, essencialmente, como um “agrupamento de salas de aula”; descura-se toda a vida escolar para além dos “50 minutos lectivos”, bem como uma afectagdo de espagos nos quais os professores possam trabalhar individualmente ou em grupo (Smyth, 1991). E preciso incentivar uma maior identifica~ gio pessoal dos professores com o local de trabalho ¢ aumentar © seu tempo de presenga nas escolas (Noffke, 1992), Adaptando um trabalho de Mintzberg, Walo Hutmacher (1992) verifica que, contraria~ mente a outras organizagGes, as escolas dedicam muito pouca atengao ao trabalho de pen- sar o trabalho, isto 6, ds tarefas de concepgao, andlise, inovagdio, control e adaptacio, A explicagao deste facto reside em primeira linha na Idgica burocritica do sistema de ensino, mas tem como consequéncia uma organizacao individual do trabalho docente uma redugio do potencial dos professores e das escolas. Por outro lado, é itil questionar as regras de acesso as escolas de formagao de profes~ sores e de recrutamento dos docentes, que so duplamente inadequadas: favorecem a entrada de individuos que jamais pensaram ser professores e que nio se realizam nesta profissio (Esteve, 1991) e excluem as organizagdes escolares e os corpos docentes deste processo, dificultando um trabalho colectivo e participado. 24 E preciso contrariar a ldgica de uma “passagem pelo ensino”, a espera de encontrar uma coisa melhor: “Se ha falta deles; se até se ganha uns trocos (oh tempo! oh chess) enquanto nao se arranja outra coisa mais... enfim...; se até 0 desemprego dimim (Costa, 1989). Até porque esta espera eterniz muitas vezes, mantendo no ensino pro- fessores a contragosto, que buscam uma identidade (pessoal e social) noutras actividades. A este propésito, é necessirio criar os dispositivos que permitam que situacdes fundamen- tais para o aprofundamento da carreira docente — por exemplo, a possibilidade de traba- Ihar durante um perfodo de tempo fora da escola ou de frequentar formagées longas — niio sejam investidas numa perspectiva de “fuga ao ensino”. ESTABELECIMENTO DE UM SUPORTE LEGAL PARA O EXERCICIO DA ACTIVIDADE DOCENTE O princfpio de um profissionalismo docente licenciado pelo Estado, que constituiu uma das mais importantes conquistas hist6ricas do professorado, é uma ideia a rever. A subordinagao exclusiva as autoridades estatais, sem regulagdes intermédias de poder (ao nivel local, organi nal e profissional), é um factor de estrangulamento do professo- rado e do seu desenvolvimento profissional (Lawn, 1988). Para além da tradicional autonomia na sala de aula, os professores tém de adquirir margens mais alargadas de autonomia na gestio da sua prépria profissio e uma ligagdo mais forte aos actores educativos lo ‘autarquias, comunidades, etc.). Neste sentido, ha que imaginar formas contratuais, nomeadamente em modalidades de partenariado, que déem corpo a um novo enquadramento dos professores ¢ que estipulem normas de res- ponsabilidade profissional (Grace, 1991). Segundo John Elliott, as novas imagens profissionais tém as seguintes caracterfsti- cas comuns: * — Colaboragio com os clientes (individuais, grupos, comunidades) na identificagio, clarificagiio e resolugo dos seus problemas; — A importiincia da comunicagio e da empatia com os clientes como um meio de perceber as situagdes a partir de um outro ponto de vista; — Uma nova énfase numa compreensio holistica das situagdes como base da pratica profissional, em vez de uma compreensio exclusiva em termos de um conjunto de categorias especializadas; — Auto-reflexiio como um meio de superar as respostas e os julgamentos. estereotipados” (1991, p. 311). Esta perspectiva implica 0 corte com uma visio funcionarizada do professorado e a assun- io dos riscos e responsabilidades inerentes a um estatuto profissional auténomo. A presenga estatal no dmbito do ensino é importante, nomeadamente para assegurar uma equidade social ¢ servigos de qualidade, mas o seu papel de supervisio deve exercer-se numa légica de acompa- nhamento e de avaliagdo reguladora, endo numa Idgica prescritiva e de burocracia regulamen- tadora. Esta mudanca de atitude coloca a profissio docente perante desafios inadidveis, aos quais os professores e as suas organizagGes nao tém sabido responder com criatividade. 25 CRIACAO DE INSTITUIGOES ESPECIFICAS PARA A FORMAGAO DE PROFESSORES A formacio de professores é, provavelmente, a drea mais sensivel das mudangas eg curso no sector educativo: aqui nao se formam apenas profissionais; aqui produz-se Ung profi Ao longo da sua historia, a formagiio de professores tem oscilado entre modefos académicos, centrados nas instituigdes e em conhecimentos “fundamentais”, e modefos praticos, centrados nas escolas e em métodos “aplicados”. E preciso ultrapassar esta digg. tomia, que nao tem hoje qualquer pertinéncia, adoptando modelos profissionais, baseagos _ em solugées de partenariado entre as instituigdes de ensino superior e as escolas, com ym reforgo dos espagos de tutoria e de alternancia. Esta op¢io obriga a instauragao de novos mecanismos de regulagao e de tutela da for. magi de professores, 0 que passa pela autonomia das Universidades ' e das escolas € Pela celebragao de acordos que traduzam a diversidade de interesses e de realidades institucig. _ nais: “Eu quero professores que nao se limitem a imitar outros professores, mas que se comprometam (e reflictam) na educagio das criangas numa nova sociedade; professores que fazem parte de um sistema que os valoriza e Ihes fornece os recursos e 0s apoigs necessérios & sua formagdo e desenvolvimento; professores que nao s&o apenas técnicos, mas também criadores” (Lawn, 1991, p. 39). Por outro lado, a formagao de professores precisa de ser repensada e reestruturada como um todo, abrangendo as dimensdes da formacio inicial, da indugao e da formacaig continua (Hargreaves, 1991). Os modelos profissionais de formacao de professores deve integrar conceptualizagdes aos seguintes niveis: “(1) contexto ocupacional; (2) natureza do papel profissional; (3) competéncia profissional; (4) saber profissional; (5) natureza da aprendizagem profissional; (6) curriculo e pedagogia” (Elliott, 1991, p. 310). Parece evi- dente que, tanto as Universidades como as escolas, so incapazes isoladamente de respon- der a estas necessidades, A montagem de dispositivos organizacionais de articulagao entre as Universidades ¢. as escolas passa pela definigdio de novas figuras profissionais e pela valorizagio dos espa- ¢os da pratica e da reflexdo sobre a pratica (Zeichner, 1992). Os estudos dos anos 80, que apontam para uma concepgao reflexiva da profissdo docente, inserem-se nesta ten- déncia de “terceira via”, que define a praxis como o lugar de producao da consciéncia ert tica e da acgfio qualificada (Adler, 1991; Rudduck, 1991). As evolugdes recentes da investigagzio em ciéncias da educagao e, sobretudo, as coren- tes que procuram estimular uma atitude investigativa no seio dos professores tém vindo a consolidar as bases tedricas ¢ conceptuais do movimento acima descrito (Elliott, 1990; Per- renoud, 1992). Assim sendo, é natural que os esforgos inovadores na area da formagao de professores contemplem praticas de formacdo-accdo e de formagao-investigagao. tencional a referéncia exclusiva a Universidades, porque considero que a existéncia de uma “eameira a dignificagio da profissdio docente exigem que a formagio de todos os professores tenha um estar docente tii tuto universitirio. 26 CONSTITUICAO DE ASSOCIACOES PROFISSIONAIS DE PROFESSORES O movimento associativo desempenhou um papel primordial na constru¢do da profis- so docente. Apés longos debates, o modelo sindical tornou-se hegeménico, 0 que se situa num plano de coeréncia com a consolidagio do estatuto de funciondrios concedido aos pro- fessores: “Na medida em que os professores sao assalariados como os outros, os seus sindi- catos sfio sindicatos como os outros: associagdes classicas de defesa dos profissionais face aos empregadores e aos utilizadores e instrumentos de negociagdo das condigées de traba- Iho, dos saldrios, das qualificagdes, do emprego, das férias, do estatuto, da carreira, da for- magao continua, da reforma, da assisténcia social, etc.” (Perrenoud, 1991, p. 31). E verdade que o sindicalismo docente tem contornos préprios, em sintonia com a pré- pria especificidade do estatuto dos professores; mas parece inevitavel que a queda de uma visio funcionarizada da profissio acarrete 0 seu declinio. A diversificagao das dinamicas ivas a que se tem assistido ultimamente em Portugal é um sintoma da incapacidade do modelo sindical para responder as novas necessidades organizativas dos professores. As formas associativas emergentes exprimem-se através: = da identificagao a um saber disciplinar (associagdes de professores de histéria, de matemitica, etc.), 0 que tem grandes potencialidades, mas encerra o risco de uma menor pertenga ao “grupo docente” no seu conjunto; —da manifestacio de rendéncias pedagégicas, bem patentes nas novas modalidades de “ensino em equipa” e no reforgo dos espagos de cooperagao entre os professores (Little, 1990); —da vontade de exercer um novo poder profissional, no quadro da afirmagao de uma colegialidade docente, que procura reagir contra 0 maior controlo estatal a que os professores foram submetidos na década de 80 (Smyth, 1991). Esta tiltima forma € particularmente importante, uma vez que se articula com os pro- jectos de autonomia e de reorganizacio das instituigdes escolares e com 0 fortalecimento das redes de partilha e de cooperagao no seio do corpo docente. Num interessante trabalho sobre a cultura dos professores e a estrutura das escolas, sugere-se a interdependéncia de trés elementos: a capacidade de empreendimento educativo, 0 autogoverno das escolas € a colegialidade docente (Wehlage et al., 1989). A reconfiguragiio da profisso docente © 0 desenvolvimento de comunidades escolares auténomas constituem condigées necessarias ao aparecimento de um novo associativismo docente, agente colectivo de um poder pro- fissional cuja legitimidade nao reside apenas numa delegagao de competéncias do Estado. CONSTRUCAO DE UM CORPO DE CONHECIMENTOS E DE TECNICAS A relacio dos professores ao saber constitui um dos capitulos principais da historia da profissio docente: Os professores so portadores (e produtores) de um saber préprio ou silo apenas transmissores (e reprodutores) de um saber alheio? O saber de referéncia dos professores é, fundamentalmente, cientifico ou técnico? Na resposta a estas e a muitas ay outras questées encontram-se visdes distintas da profissao docente e, portanto, projeey contradit6rios de desenvolvimento profissional. Pelo meio estdo os intermindveis de sobre a pedagogia ¢ as ciéncias da educago (no plural ou no singular). A anilise da evolugao dos curriculos da formagao de professores revela-nos uma: lacao entre trés pélos: metodolégico, com uma atengao privilegiada as técnicas e aos trumentos da acgio; disciplinar, centrado no conhecimento de uma dada drea do Sape cientifico, tendo como referéncia as ciéncias da educagio, numa perspectiva auténo enquadradas por outras ciéncias sociais e humanas (especialmente a psicologia). pélos tendem a reproduzir dicotomias varias, nas quais, alids, a epistemologia das ci da educagao tem estado encerrada: conhecimento fundamental/conhecimento aj ciéncia/técnica, saberes/métodos, etc. Num texto muito polémico, Mark Holmes argumenta que ha duas tendéncias co’ poréineas que tém vindo a invadir as escolas, uma tecnocrdtica e a outra terapéutica, resultados nefastos: “ambas as vias de mudanga educacional conduzem a subver educagao” (1991, p. 65). O esforgo para escapar a um vaivém redutor tem sido I cabo de forma sistemdtica desde meados dos anos 80, comegando a adivinhar-se 08 ¢o tornos de um novo tipo de saber identitério da profissio docente. Por via de uma refl sobre o trabalho escolar, André Giordan avanga propostas interessantes: “A escola deve promover o saber como instrumento: por um lado, cen- trando-se numa dezena de conceitos de base, interdisciplinares, que constituem outros tantos dingulos de abordagem da realidade dos dias de hoje; por outro lado, aprendendo a organizar a massa de conhecimentos, actuais” (1991, p. 10). Neste dominio, o pensamento mais estimulante tem procurado delimitar os 3 profissionais a partir de um olhar sobre a especificidade da acgfo concreta dos profe res. De entre a abundante literatura produzida recentemente sobre esta questao, pena assinalar, a titulo de exemplo, trés abordagens convergentes: de Shirley (1989) quando refere um investimento te6rico da praxis ¢ a importancia dos julgam praticos (phronesis) na acciio docente; de Max Van Manen (1991) que se reporta a teorizagao do tacto pedagdgico “que permite uma resposta imediata, da globalidz pessoa, face a situagdes inesperadas ¢ imprevisiveis” (1991, p. 519); de Daniel (no texto seguinte deste livro) ao trabalhar 0 conceito de acgdo sensata, most importancia que ele adquire no trabalho docente. ELABORACAO DE UM CONJUNTO DE NORMAS E DE VALORES Os valores que sustentaram a produgdo contemporinea da profissao docente cair em desuso, fruto da evolugio social e da transformagio dos sistemas educativos; os des ideais da era escolar necessitam de ser reexaminados, pois j4 nao servem de norte accao pedagégica e a profissdo docente. Por outro lado, 0 enquadramento normativo necido pelo Estado foi-se esvaziando progressivamente e, hoje em dia, s6 restam te vas caricaturais de regressar a um tempo passado. 28 Os professores tém de reencontrar novos valores, que nfo reneguem as reminiscéncias mais positivas (e ut6picas) do idealismo escolar, mas que permitam atribuir um sentido a accdio presente. Por outro lado, precisam de edificar normas de funcionamento ¢ regula- Ges profissionais que substituam os enquadramentos administrativos do Estado. A produgdo de uma cultura profissional dos professores é um trabalho longo, realizado no interior e no exterior da profissio, que obriga a intensas interacg6es e partilhas. O novo profissionalismo docente tem de basear-se em regras éticas, nomeadamente no que diz respeito relagiio com os restantes actores educativos, e na prestagéo de servigos de quali- dade. A deontologia docente tem mesmo de integrar uma componente pedagdgica, na medida em que nao é eticamente aceitével a adopgiio de estratégias de discriminagao ou de teorias de consagragiio das desigualdades sociais. E fundamental que a nova cultura profissional se paute por critérios de grande exigén- cia em relagio 2 carreira docente (condigdes de acesso, progressdo, avaliacao, etc.). Se os proprios professores nao se investirem neste projecto € evidente que outras instancias (Estado, Universidades, etc.) ocupario 0 territério deixado livre, reivindicando uma qual- quer legitimidade de pilotagem da profissio docente. Os professores encontram-se numa encruzilhada: os tempos séo para refazer identida- des, A adeso a novos valores pode facilitar a reducdo das margens de ambiguidade que afectam hoje a profissio docente. E contribuir para que os professores voltem a sentir-se bem na sua pele... ESTATUTO SOCIAL E ECONOMICO DOS PROFESSORES O estatuto social e econémico é a chave para 0 estudo dos professores e da sua profis- Zio. Num olhar rapido temos a impressao que a imagem social ¢ a condigao econémica dos professores se encontram num estado de grande degradagio, sentimento que é confir- mado por certos discursos das organizagées sindicais e mesmo das autoridades estatais. Mas cada vez que a andlise € mais fina os resultados sao menos concludentes e a profissao docente continua a revelar facetas atractivas Em Portugal, 0 Relatério Braga da Cruz nao deixa de conter alguns resultados sur- preendentes, como, por exemplo, a opiniao do ptiblico sobre o estatuto socioprot ional dos professores. E num estudo recente sobre a imagem profissional dos professores na imprensa inglesa entre 1950 e 1990, Peter Cunningham concluiu que, “apesar dos ata- ques da direita politica ¢ do seu eco na imprensa, parecia existir em 1990 uma tendéncia ascendente no que diz respeito ao apoio piiblico aos professores e a uma apreciagio favorével do seu papel” (1992, p. 55). E evidente que ha uma perda de prestigio, associada a alteragio do papel tradicional dos professores no meio local: os professores do ensino primatio j4 nao sao, ao lado dos parocos, os tinicos agentes culturais nas aldeias e vilas da provincia; os professores do ensino secundario ja nao pertencem a elite social das cidades, cujo recrutamento nao passa apenas por critérios escolares. E é verdade que os professores nfo souberam substi- tuir estas imagens-forga por novas representag6es profissionais. 29 Os professores constituem um dos mais numerosos grupos profissionais das des contemporineas, © que, por vezes, dificulta a melhoria do seu estatuto soci mico, Toda a gente conhece um ou outro professor que néo se investe na sua p que ndo possui as competéncias minimas, que procura fazer 0 menos possivel. O sorado no seu conjunto é penalizado pela existéncia destes “casos”, que a propria sio nao tem maneira de resolver: os colegas esto amarrados por uma “solida muitas vezes deslocada; os directores das escolas recusam-se a intervengGes s de serem consideradas autoritarias; os sindicatos siio supostos defenderem os interes todos os seus membros; etc. Neste sentido, parece fundamental dotar a profissio. dos mecanismos de seleccdo e de diferenciagdo, que permitam basear a carreira no mérito e na qualidade. No fundo, 0 que esté em causa € a possibilidade de um desenvolvimento pro (individual colectivo), que crie as condig6es para que cada um defina os ritmos e os cursos da sua carreira e para que 0 conjunto dos professores projecte o futuro desta so, que parece reconquistar, neste final de século, novas energias fontes de pr * Num texto intitulado A escola deve seguir ou antecipar as mudancas de socie Philippe Perrenoud (1991a) interroga-se sobre os actores e as insténcias que pe futuro, as mudangas de sociedade e as suas implicagées para a educagio. Os p seguintes sio uma tradugdo livre das suas reflexdes que, alids, nao so parti animadoras. sistema educativo é uma componente da administragao, cuja missdo é execut € promover politicas, Formalmente, a responsabilidade de pensar o futuro pert parlamento ¢ ao governo, que devem apresentar projectos, leis e decisées a apli escolas. Na realidade, o aparelho de Estado est4 muito ocupado, entre duas e gerir as diversas crises nacionais e internacionais. Os politicos visionarios vez mais raros € a maior parte limita-se a gerir 0 curto prazo. Os partidos politicos deixaram de ser lugares de doutrina ¢ transformara “méquinas eleitorais”, orientadas para a participagdo no poder e nas institu mesmo 0s partidos de esquerda, tradicionalmente portadores do sonho de uma dade nova, desinteressam-se consideravelmente pela educagao e cultura. % Em termos gerais, os sindicatos deixaram de ser forgas utépicas, dinamizada ideia de um futuro diferente; as incertezas ¢ as crises econémicas mobilizam aparelhos do que os projectos de sociedade. Os meios de comunicagéo social desempenharam, durante muito tempo, um impo papel doutrinal, sobretudo a imprensa escrita. Hoje, a I6gica dominante é a pelo mercado publicitdrio e a imprensa nfo pode assumir 0 risco de pensar 0 forma continua, coerente ¢ séria, comprometendo-se num projecto de sociedade. 30 Os intelectuais também se deixaram apanhar pela “sociedade do espectaculo”, que estimula as ideias na moda, em vez de um pensamento rigoroso sobre as evolugdes possiveis no decurso das préximas décadas; 0 seu trabalho é vendido no mercado mediatico e € avaliado pelo sucesso facil. Os investigadores sio cada vez mais numerosos, mas rareiam os verdadeiros sdbios, munidos de uma cultura filos6fica e conhecedores de varias disciplinas. O trabalho cientffico esta fragmentado e altamente especializado, mesmo nas ciéncias sociais € humanas, e nao exige muitas ideias gerais. E enorme a falta de sébios capazes de pro- duzirem sinteses do conhecimento que ajudem as sociedades a pensar e pensar-se. Algumas fundagées e organizagées internacionais tém realizado uma importante acco prospectiva, apelando a uma certa continuidade de reflexdo. Mas, pela sua pr6- pria natureza, estas organizagdes estiio dependentes de equilibrios politicos frageis ou de patrocinios comprometidos nos mercados mundiais, que neutralizam os aspectos criticos e inovadores dos relatérios. Nas multinacionais ¢ nas grandes empresas encontram-se forgas coerentes de previstio do futuro em certos dominios (energia, informatica, etc.) ¢ existe uma definigéio clara das suas necessidades em matéria de educagio; mas estas organizagdes nao sao instan- cias democraticas e podemos recear um mundo no qual as forgas visiondrias estariam téo dependentes de estratégias de lucro, de crescimento ¢ de conquista de mercados. O inventario poderia continuar, encaminhando-nos pouco a pouco para a constatagao de que a escola &, talvez, 0 lugar onde se concentra hoje em dia 0 maior ntimero de pes- soas altamente qualificadas, que se encontram relativamente protegidas dos confrontos politicos, das competigdes comerciais e das tentagdes gestionérias. Seré que pertence & escola um papel primordial na tarefa de pensar o futuro? Provavelmente, sim. Para os professores 0 desafio é enorme. Eles constituem nao s6 um dos mais numero- Sos grupos profissionais, mas também um dos mais qualificados do ponto de vista acadé- mico. Grande parte do potencial cultural (e mesmo técnico e cientifico) das sociedades contempordneas est4 concentrado nas escolas. Nao podemos continuar a despreza-lo e a menorizar as capacidades de desenvolvimento dos professores. O projecto de uma autono- mia profissional, exigente e responsdvel, pode recriar a profissdo professor e preparar um novo ciclo na histéria das escolas e dos seus actores. 31 I 0 PASSADO E 0 PRESENTE DOS PROFESSORES Antonio Novoa

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