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Recentemente, nos EUA, ex- tia ojeriza ao agradavel substituto da carne com oro "Thate”, e foi olhada com muita estranheza nvivas, que comegaram a se perguntar sobre pobre berinjela poderia ter feito & minha filha. ora do apartamento vizinho murmurava estar com o crescimento de sua samambaia de metro. tem satisfita, mas radiealmenteeuférica.. jalmente como “mudanga de estru- imo acelerado”, a revolucdo foi virando qual- ‘Aqui no Brasil, com nossa proverbial falta lia, ivemos muitas, culminando por chamar 0 nio ou golpe de 1964 de revolugao (e, 8s vezes, H maitiscula!). Saias dez centimetros acima dos {ornaram-se revoluedo nos costumes; a volta dos disfargados de laterais era uma revoluedo no fu- {elevisiio na escola tentou ser revolugdo na edu- ‘© assim por diante, A banalizagao atinge até palavras novas, como genocfdio, criada ap6s a Segunda Guerra Mundial para designar o assassinato premeditado, organizado e siste~ mitico de quase metade dos judeus existentes no riiun- do, a destruigao da cultura judaica na Europa (que era anterior a qualquer cultura nacional americana ¢ tinha criado duas linguas, 0 ladino e o ifdiche) ¢ o fim de vilas e cidades em que Sholem Aleichem, Bashevis Singer ¢ Mare Chagal foram buscar sua inspiragio. Se ha razées para os alemaes se envergonharem do genocidio, no ha nenhuma para os judeus se orgulharem dele. O que no se pode, porém, é confundi-lo com massacres e per- seguigGes de dimensdes diversas, como os perpetrados por americanos no Vietnd, por russos no Afeganistio, por ingleses na Irlanda, e assim por diante. Genocidio, é evidente, foi o que nds, brancos, fizemos com as nagdes indfgenas em toda a América ou o que 0s turcos fizeram, com os arménios no comego do século. Pode-se, por outro lado, esvaziar um conceito por Ihe restringir, excessivamente, o significado, nao Ihe dando a dimensdo e a amplitude que tem. E, sem diivi- da, o caso de cidadania, Tenho a impressiio de que cida- dania, para alguns, tem a ver apenas com colocar a mio direita sobre 0 lado esquerdo do peito enquanto nosso Hino Nacional é executado ou com torcer inutilmente para que algum piloto brasileiro repita os feitos de Ayrton Senna, Ora, cidadania enfaixa uma série de direitos, deve- ese atitudes relativos ao cidado, aquele individuo que estabeleceu um contrato com seus iguais para a utiliza- go de servigos em troca de pagamento (taxas e impos- tos) e de sua participacao, ativa ou passiva, na adminis- tragdo comum, Por essa definigdo (mesmo apressada e meramente funcional), se vé que cidadania pressupde, sim, 0 pagamento de impostos, mas também a fiscaliza- gio de sua aplicagao; 0 direito a condigdes basicas de 18 existéncia (comida, roupa, moradia, educagdo e atendi- mento de saiide) acompanhado da obrigagdo de zelar pelo bem comum. Operacionalmente, cidadania pode ser qualquer ati- tude cotidiana que implique a manifestacdo de uma cons- ciéncia de pertinéncia e de responsabilidade coletiva, Nesse sentido, exercer a cidadania tanto € votar como no emporcalhar a cidade, respeitar o pedestre nas fai- xas de trénsito (haverd algum cidadiio motorista?) ¢ controlar a emissao de rufdos. Diante de infracdes que prejudicam 0 conjunto da Sociedade, temos uma atitude diibia: reclamamos em, altos brados quando somos diretamente atingidos (ve- jam-se as brigas e os xingamentos no transito), mas nos ‘omitimos quando o assunto nao tem relagdo directa conosco (um edificio em construgao est ocupando metade da calgada ja estreita e um vizinho, meu amigo, garante que sequer notou). Encanta-me o ntimero de motoristas que escrevem a este jornal reclamando con- trauma suposta indistria de multas, mas me choca cons- latar as infragdes constantes no transito, talvez. pelos proprios reclamantes, que acham normal estacionar indevidamente impedindo o fluxo de toda uma avenida, aguardar a abertura de seméforos parados sobre a faixa, de pedestres, avancar o sinal vermelho ete., etc. Exigir direitos € parte da cidadania, mas respei tar os contratos sociais é sua contrapartida. Talvez. por nilo fazermos a nossa parte ou no termos a con: ciéncia de pertencer a um coletivo € que somos tio condescendentes com irregularidades que acabam pre~ judicando todos. E 0 fato de mantermos a maioria da popullacZo sem os direitos basicos de cidadania nos impe- de de construir a Nagdo-cidada que arrotamos desejar. 19 Allei é igual para todos? Morreu um brasileiro. Seu nome: Galdino Jesus dos Santos, Sua origem: tribo dos Pataxés, na Bahia. Morreu queimado porque cinco garotos de Brasilia se viram no direito de se divertirem com a sua vida. Vendo-o deitado, acharam que “era um mendigo” (men- digo pode?), foram até um posto de gasolina, onde com- praram dois litros de Alcool, alguns espalharam o liqui- do em seu corpo, os outros acenderam e atiraram 0 f6s- foro, e fugiram todos juntos quando a tocha humana comegou a se agitar desesperadamente. Um dos garotos, menor de idade, ficard por até trés anos internado, Os quatro maiores, filhos de familias de classe média, estio detidos no Presidio da Papuda, aguardando decisao judicial. A primeira ja saiu: a juiza Sandra de Santis de Mello, “avaliando os autos e sua cons- ciéncia”, decidiu nao aceitar o pedido da promotora Ma- ria José Miranda para que os suspeitos fossem levados a jiiri popular como responsaveis por assassinato intencio- nal (com pena de até 30 anos de reclusdio), mas apenas por assassinato ndo-intencional (com pena maxima de 12 anos, mas com possibilidade de ser reduzida a alguns meses). A promotora decidiu recorrer. Acha que os st peitos tinham condigGes de discemnir que embeber uma pessoa em lcool e incendid-la pode levar a vitima i mor- te, Nao 6a mesma coisa que um atropelamento, exemplo clissico de morte nao-intencional. De resto, afirma, hit trés agravantes: 0 crime foi premeditado (os rapazes sai 20 ram de carro para comprar 4lcool num posto, apés terem encontrado sua vitima), houve divisao de tarefas objetivan- do maior eficécia e a vitima nfo foi socorrida. Teria sido muito rigida a promotora ou muito con- descendente a juiza? A imprensa escreveu laudas sobre oassunto, grupos de defesa dos indios se manifestaram, brilhantes advogados deram seu parecer. Curiosamen- te, dez entre cada dez defensores da posiedo da juiza eram advogados criminais, acostumados, por dever de oficio, a procurar fatores atenuantes para os crimes em julgamento, e, ndo menos curiosamente, se no me fa tha a meméria, nenhum promotor foi ouvido. Mas nem Cesta a questio. Talvez a questio seja discutir a nossa justica de clas- se, Sim, pois se a sociedade nao acha justo o fato de os crimes de policiais militares serem juigados pelos pr6- prios policiais militares, sera justo os crimes da classe inédia serem julgados pela prépria classe média? Possi- velmente os crimes dentro do proprio grupo sejam mai bem compreendidos e, portanto, julgados com maior condescendéncia. Fico curioso em imaginar o parecer sobre 0 julgamento dos garotos por um juiz pataxé. Ou Se, em vez de um patax6, fosse a vitima um juiz. e os, cusados, alguns garotos da periferia. Por outro lado, julgar a partir de uma perspectiva de classe nao é, necessariamente, um mal. Em tltima instdncia, significa compreender melhor as motivacdes as acdes do criminoso, avalid-lo como individuo den- {ro de um grupo e nao como um ser isolado, e somente {\ partir daf julgé-lo. O problema, insisto, é julgar os nossos iguais de uma forma e os demais de outra, uns com condescendéncia maxima e outros com rigidez su- prema. Tenho a desagradével impressao de que uma mportante corrente de apoio A decisio da juiza Sandra, de Mello partiu de pessoas preocupadas em compreen- der a “travessura” dos rapazes. 2 O que se discute, portanto, nao é uma manifesta- Go isolada de uma juiza, mas de uma mentalidade que presenta como normais, ou ao menos tolerdveis, as ati- tudes de nossos iguais e como intolerdveis ¢ inadmisst- veis as de nossos diferentes. Lembro-me do sorriso de compreenso que um importante advogado de Sao Paulo abriu quando seu filho irrompeu em casa, na nossa pre- senga, com algumas placas de transito (PARE) que ele, com alguns amigos, haviam arrancado de esquinas do bairro para ver “se rolava alguma trombada”. O triste € que o tema da reuniao era encontrar providéncias ade- quadas contra “hunos da periferia” que destrufam os, orelhdes... Que erudito parecer esse ilustre advogado daria para uns e outros se fosse juiz e tivesse de julgar os “hunos” dos orelhées e os “brincalhées” das placas? s juristas gostam de dizer que 0 Direito é uma ciéncia social, o que me parece muito sibio. Hamurabi tinha leis diferentes para sumérios e estrangeiros, assim como os hebreus. Em Atenas, leis diferentes atendiam cidadaos, estrangeiros e escravos. Durante o perfodo colonial discriminavamos a populacao de forma quase estamental, colocando leis especificas para os escravos. Ainda hé pouco, durante a ditadura, criou-se informal- mente a pena de morte para os suspeitos de subversio,, pena que continua em vigor para muitos, principalmen- te se forem negros e pobres. Mas agora, em plena vi géncia da democracia, nao tera chegado 0 momento de estabelecer critérios claros e universais para o julgamento de determinados crimes, qualquer que seja a origem so- cial ou racial do criminoso? Mesmo que a vitima seja um mendigo ou um fndio patax6? 22 O autoritarismo cordial O automével sobe a rua Pio Xle, para aproveitar a mudanga de sinal, acelera para entrar na Cerro Cord, uase atropelando a mie com umacrianga. Ao perceber um esbogo de reclamagao das quase vitimas, 0 motoris- ta segue berrando palavrdes contra os pedestres que ousavam atravessar a rua, espago sagrado de gente motorizada. O fato de haver uma faixa de pedestres imelevante para 0 motorista. Também é irrelevante a existéncia de um restaurante chinés com estacionamen- {0 (!) na calgada, obrigando pedestres a transitar pelo leito carrogavel (Quem manda ser pobre e andar a pé?), Espremido entre 0 carro que exige, aos roncos ¢ buzinadas, o seu espago e os proprietérios dos negécios que privatizam o espaco piblico caminha o pedestre. Aqui um restaurante chinés, ali os manobristas de um. bar da moda, acolé uma padaria que estendeu seus limi tes em direcdo & rua. Fiscalizagi0? A cordialidade dos fiscais (s6 cordialidade?) garante ao direito de posse os mesmos privilégios de um titulo de propriedade. Como me dizia uma autoridade municipal, “as coisas so as- sim mesmo”. Traduzindo, o poder emana do dinheiro e ‘em seu nome seré exercido. De fato, cultivamos, ao longo de nossa Histéria, uma concepgao muito prépria de poder que eu batizaria, de autoritarismo cordial. Por ser autoritirio, niio é de- mocritico; concebe-se ilimitado e atemporal; mesmo quando fruto do voto popular, adquire como que uma 23 aura transcendental que transforma o dirigente numa espécie de dignatario abencoado pelos deuses e orixés. O chamado ritual do cargo obriga nossos dirigentes a ter enorme comitiva de acélitos basbaques, vacas de presépio cuja fung”o € apenas concordar, entusias- ticamente, com a pretensa genialidade oracular dos che- fes. Quase nao ha governantes que consigam manter a simplicidade. O alcaide de qualquer “Xiririca da Serra” s6 viaja em carros luxuosos acompanhado de motoris- ta, seguranga, lideres de partido, presidentes de clubes de servigo e outros membros daquilo que (creio que iro- nicamente) a imprensa se acostumou a chamar “comiti- va”. Chefes sindicais, reitores, diretores de federaces € confederages, secretirios de Estado e municfpios con- sideram as ceriménias de beija-mio fundamentais a0 pleno desempenho de suas érduas tarefas. Raramente Ihes ocorre que detém apenas um mandato concedido por seus iguais (concidadaos, colegas, companheiros etc.) e, por sua origem e destino, sdo de fato apenas iguais. Agem autoritariamente, e nao com autoridade, porque nio conseguem ou no querem pereeber com nitidez. que o exercicio do poder é, antes de tudo, uma oportunidade de representar ideais, e no de impor idéias. Por outro lado, nossos dirigentes insistem na cor- dialidade. Autoritarismo, sim, mas cordial. E como se houvesse uma fronteira, perceptivel apenas a iniciados, que separa 0 autoritério cordial do simples autoritério (gue, evidentemente, execramos). Gostamos mesmo 6 dos presidentes que beijam criancinhas, dos prefeitos, que acenam para os amigos, dos deputados que fingem nos reconhecer nos sagudes dos aeroportos, dos reito- res que cooptam e neutralizam a oposigdo acenando com pequenas vantagens funcionais. A estes perdoamos tudo € ao segundo aceno nos dispomos a engrossar o ja volu- moso cordao dos puxa-sacos. Uma vez. cooptados, pas- 24 samos a perceber que as falhas (poucas) de carter de hossos lideres no passam de “escorregdes compre- ensiveis". Seus arroubos sio “demonstragao de firme- 20”. Suas traigdes so prova de “capacidade de mano- bra”. Suas omissdes derivam do necessério “contato com ‘as bases”, e por af afora. Nao temos, é claro, a mesma flexibilidade diante de nossos inferiores hierdrquicos, cuja indoléncia é evidenciada & primeira falta e cuja honest dade € posta em diivida mesmo quando somos nés que nijonos lembramos onde guardamos aquele maravilho- 80 par de abotoaduras de ouro. Por af navegamos: tolerantes com os de cima, in- flexiveis com os de baixo. Bajular nossos superiores & considerado atitude pragmatica, destinada a nos colo- ar numa posi¢ao que nos permita usufruir uma fatia, minima que seja, do poder. Nao desenvolvemos uma cultura democrética que permita uma critica construti- va, B comum chamarmos os poucos espfritos criticos de espirito de porco. Livres de boas cabecas que s40, capazes de divergir, os Iideres de plantio ficam 4 vonta- de para exercitar 0 seu poder da maneira de sempre. Nao hé democracia séria que resista a0 cinismo his- rico de nossas priticas politicas e sociais. Qualquer mudanga profunda passa por uma revisio de nossos habitos hist6ricos construidos a partir de desigualdades insuportaveis. Ou, entao, proibamos de vez. 0 acesso de pedestres a nossas ruas e calgadas. Ou tem carro, ou fica em casa... Convivéncia ou morte O que ha em comum entre 0 julgamento de O. J. Simpson, nos Estados Unidos, e a guerra na ex-Tugos- livia? Ou entre manifestantes fundamentalistas, mugul- manos e judeus, no Oriente Médio e guerras tribais na Africa? Ou ainda entre 0 preconceito contra estrangei- 05 no Japdo ou contra indios em quase todo o Brasil? A. concepeao da impossibilidade de convivéncia entre dife- rentes. A idéia de que apenas iguais se podem entender. Na verdade, o mundo vive um louco paradoxo: por um lado, ele fica menor gragas ao desenvolvimento dos meios de transporte ¢ de comunicagao (Falamos da po- pularizago do avido e do turismo internacional, da te- lefonia celular e por satélite, do fax, do modem, da Internet), da cultura de massa pasteurizada.e globalizada (refiro-me, aqui, ao globo terrestre, e ndo a rede de te- levisdo), da homogeneizagao de padrdes alimentares (McDonald’s e Coca-Cola valem mais que muitas legides romanas), do fendmeno da urbanizacio acelerada (que assemelha Sao Paulo a Nova York e 0 Cairo 4 Cidade do México). A nagao, como elemento basico de identificagao, se dilui. Em tese, 0 cidadio médio de uma cidade como, por exemplo, Porto Alegre, pelos seus valores ¢ com- portamento, por sua prética cotidiana e seu universo cul- tural, por sua relagiio concreta com o mundo e as for- mas de percepgdo da realidade que cerca, tem mais que ver com, por exemplo, um cidadio de Roma ou 26 Boston do que com um vaqueiro do interior do Piaui, Entretanto, hd um elemento que povoa o imagindrio das pessoas, e que chamamos de identidade nacional, que provoca uma insuspeitada aproximagao (insuspeitada para um observador neutro e distante) entre os dois que se colocam sob uma bandeira tinica, pelo menos em momentos de crise e risco para a nacionalidade, como Copas mundiais de futebol, corridas de Férmula-I e des- echos de novelas. A idéia de nagao é para nés, brasileiros, aparente- mente facil de absorver, 4 que possuimos um espaco lerritorial que constitui um Estado nacional, que, por sua vez, é habitado por pessoas que se identificam como brasileiros. 14 nos Estados Unidos a questao é formula- da de maneira bem distinta. Ao lado dos brancos, apre- Nenta-se uma minoria que se define afro-americana e ‘gomo tal é vista pelos brancos. Além disso, ainda exis {em 0s latinos, curiosa sub-raga inventada para definir oriundos dos paises latino-americanos (inclusive brasi- Ieiros, mesmo os turistas que gastam milhdes em com- ppras em Miami e Nova York). Em nome de um profur do respeito ao direito das minorias, a sociedade ameri una etemiza e ressalta as diferengas entre pessoas € frupos, dificultando ¢ até impedindo, na prtica, a nlegragdo por casamentos mistos, bairros e equipamen- {os sociais comuns. Levando ao extremo suas identida- dos especificas, as minorias nacionais oferecem espeti- euilos contradit6rios, como o dos porto-riquenhos que, ‘40 mesmo tempo em que votam para permanecer como, ‘yerdadeira coldnia americana, juram profunda lealdade ‘\ nagio em ruidosas manifestagdes de rua por ocasiao do suias festas cfvicas. Mesmo assim, permanece a con- ‘gop@iio de que todas as minorias nacionais devem leal- dade ao Estado nacional que as al Na ex-lugoslavia, a situagio é mais diffcil ainda: Aé poucos anos atrés conviviam, debaixo de um tinico is Estado, diversas nacionalidades que depois optaram por seguir caminhos diferentes, separando-se. Em alguns ca- sos, porém, a tinica diferenga entre as pessoas era sua renga religiosa, j& que provinham da mesma mistura ét- nica, falavam a mesma lingua e viviam nas mesmas cida- des. Essas pessoas hoje se odeiam e se matam numa luta fratricida que separou vizinhos, colocou irmios em trin- cheiras opostas e assustou 0 mundo, Mundo que, como vimos, esté menor, mais igual do que nunca ete., etc. ‘Como solueionar ou a0 menos equacionar esta cha- rada tétriea? Separando os diferentes, ou os que assim se dizem? Jé pensaram que coisa maluca seria confinar, por exemplo, todos os nordestinos de Sao Paulo numa regitio especifica da cidade? Depois teriamos de separar 08 baianos dos demais, pois sua identidade deveria ser preservada. Em seguida, em nome dessa mesma identi dade, os interioranos seriam separados dos oriundos do recOncavo (ha muitas teses defendendo sua especificida- de), os da zona cacaueira separados dos demais € assim por diante. Haveria também que separar os predomi- nantemente negros dos brancos, as mulheres dos ho- mens, nio esquecendo os gays e as lésbicas. Seria con- veniente separar 05 cat6licos dos evangélicos ¢ 0s es} ritas dos ligados ao candomblé, Se houvesse mais de um em cada grupo apés toda essa divisto, poder-se-ia pensar em preservar a identidade dos torcedores do Vi t6ria e do Bahia, dos braquicéfalos e dolicocéfalos, dos, altos e dos baixos, dos magros e dos gordos, e assim até ofim. A ONU clama por tolerancia, 0 que jé € alguma coisa, mas que contém em si a idéia de que podemos apenas suportar, agitentar com dificuldade os diferen- tes. Ora, diferentes nao sdo para ser tolerados, podem também ser apreciados. Nao ¢ tdo dificil assim olhar pela janela e aprender com pessoas de habitos e Iinguas dife- rentes; gente que usa formas diferentes de conversar com 28 ‘© mesmo deus, ow outros deuses, ou de no falar com deus algum. A diversidade cultural € tio mais fascinante quanto mais dedicamos nossos sentidos a percebé-la. Nada mais aborrecido do que um mundo de iguais, de gente totalmente previsivel, 6bvia. Temos como supe- rar 0 medo do desconhecido, que “o outro” nos provo- ca, enfrentar a aventura que a vida nos promete: basta, pensar que diferenca nao implica superioridade e que a verdade nao é monopélio de ninguém. A alternativa a essa atitude é assustadora. 29 Brasileiro é 0 maior Quando um colega meu solicitou trés meses de Ii- cenga para uma “viagem de pesquisa’ a Franga todos os professores do departamento morreram de rir, Sabi mos que a mulher do colega ganhara uma bolsa para aquele perfodo e que ele, simplesmente, preferia viajar com ela Paris, gastando o salario que religiosamente continuaria sendo depositado na sua conta, a perman cer trabalhando naquela faculdade do interior de Sdo Paulo. Apés a sessdo de risos, o decano do departamen- to me chamou de lado e avisou que a licenga “sem pr juizo do salério e das demais vantagens”, seria concedi da, ¢ isso era bom. Espantado (eu me espantava ainda), ouvi que aquilo s6 nos favoreceria, uma vez que o de~ partamento nao teria como negar aos demais (inclusive amime aele) o que jéconcedera aum. Busou a palavra magica: precedente. Dentro de uma visdo distorcida das relagdes que devem reger uma sociedade, confundimos precedente ‘com isonomia, Esta se refere a direitos iguais para to- dos pela aplicagao de regras preestabelecidas, enquanto a busca do precedente é apenas o aproveitamento das brechas abertas por aqueles que buscam beneficios pes- soais em detrimento do coletivo. Por tras de nossa autopropalada flexibilidade, para além de nossa genero- sacondescendéncia, estamos sempre buscando 0 prece- dente. Ah, o vizinho engoliu 20 cm da caicada com seu muro? O melhor é nao se queixar e, na primeira oportu- 30 nidade, fazer 0 mesmo. O diretor de nossa unidade usa dinheito da instituic%o para jantares nos restaurantes mais, ‘earos da cidade? Nao importa, desde que eu seja convi- dado vez por outra para bicar as quireras do banquete. Além do mais, quem sabe, um dia poderei ser nomeado diretor... Denire as caracterfsticas que ndo nos deixam mui- to orgulhosos de nossa identidade esta a leviandade Somos, sim. Ou ndo é leviano convidar pessoas para “aparecer I em casa” e ficar horrorizado se 0 novo co- nhecido de fato aparecer? Ou marcar o jantar de segun- da-feira para as “oito, oito e meia”,¢ servi-lo s6 depois, da meia-noite, quando os convidados j4 estiverem entu- eos de amendoim e canapés de aparéncia duvidosa? i simplesmente ndo comparecer ao encontro marca- do, no dar satisfagdes e achar que a gente nio precisa- ‘ya ser tao inflexivel — se ligamos uma semana depois ficamos sabendo que “pintou” outro programa de ilti- ima hora para o nosso amigo, “sabe como é”? Minha vida de editor esta cheia de exemplos de au- {ores (?) que levam dois anos para escrever sua parte uma coletdnea, ndo mais de 30 ou 40 laudas prometi- dis de pés juntos para janeiro de 1995 e que afinal sto entregues — “apesar de a secretéria ter amolado tanto que quase que eu no mando meu trabalho”. E tudo isso lapos muitas declaragdes sobre a responsabilidade social que nos cabe como elite intelectual etc. A leviandade é parente préxima da hipocrisia. Aq iinguém se despede ao telefone com um prosaico até Jogo, tchau ou equivalente. Envia-se um abrago, um grande abrago, um abracdo, um beijinho, uma beijoca, im beijo, um beijdo, aquele beijo, enfim, uma variacZo infinddvel de dsculos. Esvaziado de seu contetido, 0 @xtravasamento vocabular me lembra aqueles beijos de jperuas em que os labios distantes da face beijam o ar, 0 Hada, o vazio. O importante € nao revelar 0 que se pen- 31 sa do outro, no antagonizar. Se 0 outro quiser, ele que assuma o enfrentamento de forma clara pague 0 prego de sua nao-cordialidade, de sua atitude “pouco brasilei- ra”, Neste capitulo entra 0 nosso comportamento preconceituoso ndo-explicito, disfargado, escorregadio. ‘Ao niio nos revelarmos preconceituosos para os pobres, por exemplo, colocamos em suas maos o onus da explicitagdo e do enfrentamento e ficamos nos pergun- tando, por trés das grades de nossa casa, 0 que querem, esses individuos a quem damos de tudo, inclusive em- prego, escola piiblica e atendimento médico de Primei- to Mundo. Como reza alei de Abraho, exagerado é 0 que vai além e devagar, 0 que vai aquém de nés. Além disso, toda percepgio da sociedade ¢ hist6rica, no sentido de que nao é uma ciéncia exata. Mas olhar-se no espelho, embora provoque uma inversao de imagem, permite uma auto-andlise, dolorosa talvez, mas necesséria se se quer, crescer. 32 Onde foi que nés erramos? “Onde foi que nés erramos?” é a famosa pergunta ta pelos pais quando o fitho se desvia do que eles jderam “o bom caminho”. Da mesma forma, “os splicadores do Brasil” vém tentando, sem muito su- 80, encontrar as razSes que impedem nosso pais de jlanchar ¢ 0 mantém pobre e desigual, distante do que para ele tragamos, como se ele fosse apenas promessa permanente, um etemo devir. Niio que nao haja explicagGes. Blas existem e as mncas. Mas, como dizia minha sabia tia Ana, “muita licagao, nenhuma razo”. E ficamos sem entender 10 € que um povo que enxergamos to esperto e ndial, vivendo numa terra que achamos to generosa icamente imune aos desastres naturais, néio che- u ainda ao tao ansiado Primeiro Mundo.. Sentimo-nos, é claro, com vislumbres de Primeiro lo quando viajamos para Miami e adjacéncias, ou NOS passear em nossos shoppings, ou assistimos ‘cabo (mesmo sem compreender palavra do que & ilo). Afinal, ver os enlatados americanos é mais chi- do que assistir 8s novelas brasileiras; olhar idiotas ‘matando de capacete por causa de uma bola que nem, onda é dé mais status que seguir o Campeonato Bra- iro de Futebol; e acompanhar o debate entre Clinton ‘Dole é bem mais elegante do que ver Pitta discutindo Brundina, 33 O importante é mostrarmos que estamos descola- dos do Brasil terceiro mundista, que optamos pelo pro- gresso e pela globalizagiio, que nada temos a ver com Faquela gente” (néio é assim que se fala?) que pede moe- das nos fardis e tem como sonho dourado morar num Cingapura. ‘Assim, por meio de uma gindstica mental bastante engenhosa, situamo-nos no Primeiro Mundo como pes soa fisica, embora a entidade nacional e 0 solo em que pisamos ainda estejam patinando no Terceiro. Por mais que isso fira a Igica, fazemos parte de uma nagdo sem a ela pertencer, nao assumimos 6nus € responsabilidades da cidadania sob 0 pretexto de nao termos sido consultados pela naga que escolheu “esse povinho” que esté af. Isso nos cxime da responsabilida- de sobre o desmando dos governantes, a inoperdncia do Legislativo, a lentidao do Judiciario, os métodos da po- licia, os sistemas previdencidrios (temos previdéncia privada), de satide (temos planos privados) e de educa- Gao (freqlientamos escolas privadas), 0 transporte cole- tivo (temos carro, o prefeito esta construindo tineis) ¢ sobre tudo que é publico ou coletivo. Reclamamos das ruas inundadas, mas cimentamos todo 0 nosso terreno e construimos o dobro da planta aprovada na prefeitura. Declaramo-nos chocados com a violéneia no transito, mas transformamos as ruas (in- clusive as faixas de pedestres) em espago de competi- gio, onde nos sentimos como El Cid derrotando os mouros. Somos esquizofrénicos sociais, divididos entre nos- sa auto-imagem generosa e primeiro-mundista e nossa pratica egoista ¢ autoritéria, Enquanto nosso espelho nos mostra bons e cordiais, nosso comportamento nos revela preconceituosos € agressivos. ‘Como estudantes preguigosos, no assumimos a res- ponsabilidade de nossas agdes e atribuimos aos outros @ 34 ~ ouilpa pelo nosso fracasso. Se os holandeses nao tivessem sido expulsos de Pemambuco em 1654, Recife seria Nova York! Se no tivesse havido o saque colonial, nfo preci- sariamos de empréstimos estrangeiros e serfamos ricos de morrer! Se nao tivéssemos tido a monocultura do aca- tear e do café... Se 0 clima fosse mais frio, nossas avos fariam conservas e agora estarfamos exportando compo- {us de goiaba e de graviola... Se, se, se. O fato € que nao somos mais uma sociedade patriar- ‘eal, mas ainda nao assumimos as responsabilidades ine- fentes a quem pertence a uma sociedade complexa, ba- eada cm contratos sociais, que s6 funcionam se forem umpridos por todos. O fato de o Estado ter precedido a nagao no Brasil lulvez seja 0 motivo principal de haver 0 divércio to profundo entre govemno e sociedade, mas 0 reconheci- ‘mento desse “pecado original” nao nos exime de uma Pisitica social adequada aos objetivos que alegamos de- ojar ao nosso pais. Isso significa responsabilidade cole- tivae individual. Noutras palavras, a prética dacidadania, 35 Intermediar é preciso Nada de errado com os intermediérios, muito pelo contrério. Ao longo da Hist6ria ja sofreram demais, para que se continue cometendo injusticas contra eles. Theodore Zeldin, na sua interessante Uma Histdria In- tima da Humanidade, lembra que intermeditios abra~ aram muitas vezes essa vocagdo porque perseguig6es ow exclusdes os impediram de seguir outras carreiras. Foi 0 caso de mercadores libaneses e arménios, de ar- madores gregos ¢ comerciantes judeus. Intermediar, afi- nal, € promover o intercdmbio de mercadoriae cultura, ambas necessariamente caminhando juntas. Tntermediar, por outro lado, implica correr certos riscos. Arbitros tém sido nocauteados em jogos de fute- bol, juizes tém apanhado em lutas de boxe, “marronzi- hos" desacatados e até assassinados por multar moto- ristas irresponsaveis, professores desrespeitados por malfeitores em escolas distantes ou por filhinhos-de- papai em escolas de luxo (E, antes que se pergunte por que colocar 0 professor nesta listagem, esclarego que sua fungdo é a de intermediar duas culturas: de um lado, © patriménio cultural da humanidade; de outro, a cultu- ra do educando). : 7 Intermediar pode ser algo mais democritico do que chefiar ou falar de pilpito. Essas atitudes pressupdem a existéncia de uma divisio radical entre, de um lado, os que detém 0 monopélio da verdade e, do outro, os que no passam de receptaculos vazios, ignorantes. Os pri- 36 ros com a certeza de que Ihes cabe ditar regras de ecco € de priticas sociais; os segundos satis- tos em obedecer. Bons professores e étimas empre- Ans j4 descobriram as vantagens do didlogo ha muito Iempo, HA mais de vinte séoulos Séerates, com a sua Inni@utica, jd extrafa a verdade que havia em cada um de ous disefpulos, como um escultor que sabe ver uma ‘linda forma escondida dentro do bloco de pedra bruta. ‘Um diretor executivo de uma grande empresa me dizia ‘ie chefiava uma equipe composta por profissionais mais, \(uulificados do que ele e que sua fungaio era apenas ade ‘estimularas pessoas, fazé-las pensar ¢ agir criativamen- ‘1p, enfim, fazer 0 “meio de campo” entre os funciondrios ‘0$ objetivos da empresa. Noutras palavras, o lider falas- te infalivel, dono da verdade e das consciéncias, tende er uma figura jurdssica nas empresas, nas escolas ¢ ‘governos eficientes. ~_Ap6s a primazia das sociedades agririas e industri- centramos na era dos servigos; jé sabemos como pro- ‘uzir, estamos aprendendo a intermediar. Temos condi- lio de alimentar, vestir © educar toda a populagao do ‘Planeta e até de alguns satélites que se habilitarem: se ‘Ilo o fazemos é porque nao encontramos ainda a ma- itt certa de intermediar as relagGes entre as pessoas. ailizar a economia, privatizar o sistema produtivo, jaro Estado de algumas atividades que talvez nao Ihe respeito nao significa entregar os cidaddos a0 dard, muito ao contrério. Mais que nunca é neces- i0 0 Estado mediar a relagao entre desiguais, porque iguais, eles que se entendam. No Brasil estamos muito longe de chegar a algo se possa denominar pratica de cidadania, Em exce- ie trabalho produzido no Ipea, Rosane Mendonga e ieardo Paes de Barros provam que a desigualdade so- ji! no Brasil continua das piores do mundo. Enquanto paises, como Holanda e Japio, os 40% mais pobres 37 tém uma renda total idéntica aos 10% mais ricos (ou seja, esses ricos tém, em média, renda quatro vezes su- perior a desses pobres), no Brasil, os 10% mais ricos ganham 7,2 vezes mais que os 40% mais pobres (ou Seja, esses ricos tém, em média, renda quase srinta ve~ ‘zes maior do que a dos nossos pobres). Para os pesqui- sadores citados, talvez nossa distribuigao de renda seja a pior do mundo, 0 que, convenhamos, nfo acena com. uma melhora de relagdo entre brasileiros de diferentes estratos sociais, sem uma intermediagdo enérgica do Estado. ‘Num mundo de servigos, intermediar significa tam- bém defender o consumidor. Querem alguns exemplos banais? Nao tem cabimento as feiras livres ndo terem algumas balancas oficiais para que 0 “fregués” nao seja Iesado. Nao tem cabimento também os peixes ficarem expostos, sem gelo, durante seis ou sete horas. Néo faz sentido muitos feirantes, especialmente os vendedores de frango, nao exporem os pregos. Dizem — mas eu nao ;posso acreditar~ que os fiscais trocam suas implicdncias por uma boa colheita de final de feira. Nao tem cabi- mento os postos de gasolina nao exibirem seus pregos de maneira padronizada, clara ¢ no disfarcada. Seré ue tem gente enchendo os tanques de graga para nao enxergar? Nao tem cabimento os planos de satide pa trocinarem times esportivos & custa de mensalidades sempre crescentes e de médicos sujeitos 2 pagamentos ridiculos. Tem gente confundindo liberalismo com “li- berou geral”. Intermediar € preciso. 38 Para quem séio nossas cidades? Brasil sofreu um processo acelerado de urbaniza- do. Em algumas décadas a populagio das cidades su- plantou, em muito, a do campo. Cidades novas apare- Ceram, muitas incharam e sofreram transformagées pro- fundas. Atividades antes comuns, como passear a pé _ pelas ruas, paquerar nas pragas ou mesmo ir ao cinema, deixaram de existir em muitas localidades. Mesmo nas _grandes metrpoles, varios cinemas foram ocupados por Supermercados ou templos evangélicos e ver filmes pas- " sou a ser, com freqiiéncia, uma atividade doméstica, que depende da televisdo, dos videoclubes e, mais recente- mente, das TVs por assinatura. Longas conversas tele- fonicas substitufram a visita aos amigos, a comida jé pode _ ser entregue em casa (além das eternas pizzas, comida cchinesa, japonesa, massas, congelados e o que mais se possa imaginar), as pessoas ndo ultrapassam o muro ou fas grades de sua casa nem para se despedir daquele pa- “rente do interior que ainda pratica 0 “antiquado” habito da visita. O fato é que ficamos muito mais em casa, seja por medo da violencia, do trinsito ou até dos pregos cobrados pela rede mais careira de restaurantes do pla- neta, a de Sao Paulo. O que deveriam fazer nossas, assim chamadas, au- toridades constituidas ao se darem conta de que a maior parte da populagao fica em casa a noite, vendo TV, na- morando, ouvindo misica, lendo (oxala!), descansando u todas as alternativas anteriores? Uma boa resposta 61 seria: “As autoridades, preocupadas com 0 bem-estar dos cidadiios, zelam pelo siléncio notumo, atendem ime~ diatamente aos chamados dos que se sentem agredidos pela zoeira e cuidam para que os fiscais se mantenham Incorruptiveis, pautando suas agdes por prinefpios e ndio por interesses circunstanciais". Quem jé teve a desagra- Havel oportunidade de reclamar, nas regionais, de bares ‘bertos sem alvaté e situados em zoneamento proibido, {quem mora em ruas onde filhinhos-de-papai passeiam dom seus carros € motos com escapamentos abertos pediu auxilio as “autoridades” duvida da preocupagtio Saqueles que deveriam zelar pela cidade. Colocado di- ‘ante da burocracia, forgado a ligar para telefones per- manentemente ocupados para tentar falar com funcio- narios quase sempre ausentes (se 0s funcionérios nunca esto Id, como € que 0s telefones esto sempre ocupa~ dos?), o cidadao sente, na prépria came, o peso de uma historia de quase 500 anos de desrespeito e truculéncia. ‘Democrata radical, ainda acho que as pessoas séo eleitas ou nomeadas também para servir a populagdo, io apenas (v4 Ié) para gozar dos prazeres do poder, ‘como confessou um prefeito do interior paulista, ao re~ Conhecer seu embevecimento ao passear no Tempra de sua prefeitura, “dotado de vidros elétricos”, °A autoridade existe, entre outras coisas, para me~ diara relagao entre desiguais. A faixa de seguranca, por exemplo, € uma interferéncia governamental na relagdo fentre motoristas e pedestres, a partir da suposigdo (v4- ida em quase todo 0 mundo, nao tanto no Brasil) de que um automével ou um dnibus devem respeitar o fré- fil ser humano que ousa cometer a heresia de atravessar 2 rua, Pude constatar, alguns dias atrés, ao trafegar por dima avenida paulista dotada de poucos seméforos, mas ‘com varias faixas de seguranga que, com uma tinica ex- ego, nenhum pedestre esperava para atravessar na fai- sa. Aliés, a0 parar junto a essa faixa para que o herdi 62 Iolado (erauma herons, or sna) pads atravessar um anco me ultrapa: i- See pis6dio é muito mais sério do que : no limi ) is parece: no ii Npebatico mesa és pont tego desconfian. ovo com relago as mediagdes Unsnio respeitam, Outros nao confi Ivez por isso mesmo, em cidades como Sao . Pau To, faz quem pode (ou quem pasa, como pretende fa Amigo meu descend honesidade das pessoas) ea Bi scr coneyn cone sins Secon et , como ainda diria o mesmo amigo cé- io). Ha uma cena comum, ecpetida em todos 0 bat ms que € bem oreflexo do destespeito aos cdadios. A strugo de um novo edifcio invade totalmente acal- a, para marcr bem a pose, passa um fita prof do a passagem de pedesies pol local. Expulso da 0 pedesire eta caminhar pela rus, onde éamea- pelos motoristas, cOnscios de seu direito de ocu- © asfalto. O cidadio, educadamente, procura o en- iro da obra e sugere a construgdo de uma passa- mn proviséria para que o pedestre tenha por one ca- hae O engenheiro, ruculento, responde que o cia deveria encontrar o qu fazerem vez de fca nco- xando quem tabalha ,debochado,sugere que ele Jamagao a administragao “Nao vai ar nada”, conclui, seguro. Storegional "Nova Seria muito pedir uma cidade para todos os cidadaos? 63 Uma cidade sem sossego ‘A inseguranga endémica que afeta os habitantes das grandes metrépoles em todo o planeta nai € a tnica vio~ éncia com que se defronta 0 cidadao de uma cidade como ‘Sio Paulo, ‘Também a auséncia de um transporte coletivo digno, 0 desrespeito aos direitos do cidado e o ruido in- fernal vindo de todos os lados contribuem para dificultar jossa existéncia. nose este particular vivemos no pior dos mundos. Inter- pretando a vit6ria (ao menos neste round) do liberalismo ‘no mundo como o primado do individuo sobre 0 grupo, cada um de nés concluiu que podia tudo, ¢ 0 proximo que Tutasse para se salvar. Com a mesma grosseira simplifica- gio dos que enxergavam em Stalin, 0 georgiano sangren- to, um paladino da igualdade social, os corifeus da socie~ dade de mercado tém plena convicgao de que pisar na ca bega do mais fraco é uma aco concreta a favor da livre competicao e da globalizagio dos mercados. “Tenho attriste suspeita de que, damesma formacomo passamos da cultura da oralidade diretamente para a da imagem virtual sem nos determos no cultivo da escrita, demos um salto do pré-capitalismo para a exacerbagao da competitividade sem assimilar alguns valores basicos da ‘Gemocracia e dos direitos humanos. E isso pode ser perce- bido, de forma ruidosa, em nossa vida cotidiana. ‘Um exemplo so os famosos carros que vendem a “pamonha de Piracicaba”. Conversei com 0 motorista-ven- dedor de um desses veiculos Ihe perguntei se nfo se sen- 4 ‘tia constrangido em arremessar, agressivamente, todos faqueles decibéis na cabega de pessoas para atingir alguns poucos compradores potenciais. Ele me responideu que @stava no seu direito, pois ndo estava furtando, como se 1oubos fossem apenas de bens materiais, e nao de pacién- la, trangililidade, direito ao repouso e tudo 0 mais. Da mesma forma devem pensar vendedores de morangos, de lindida, de candidatos a vereador e do mais, que se preo- ‘cuipam apenas em resolver o préprio problema. O dos ou- {nos no Ihes diz respeito, Asconstrugdes merecem um capitulo’ parte, Mistura- lores de concreto, caminhes manobrando, serras elétricas esmeris de todo o tipo se misturam a gritos e urros dos ‘pees da obra (por sinal, submetidos a condigSes subumanas de alojamento) para infemizar a vida dos moradores préxi- mos dedificagio. Faz banulho quem pode, cala-se quem nao ‘Gamigo do prefeito, Reclamagses &s regionais sio solene- Mente ignoradas ou apenas utilizadas, segundo voz.commen- ‘1p, para engordar a caixinha de alguns fiscais, E que tal falar dos “barzinhos” instalados em regides Aesidenciais coma suspeita complacéncia das chamadas au- ‘oridades? Este jomal contou recentemente a desventura de Vera Fisher, em Nova York, querendo jantar no Soho de- pois da meia-noite e nido sendo atendida por causa do hord- tio... Ora, Vera, venha a So Paulo comer e beber a qual- ‘quer hora da madrugada! E pode gritar 4 vontade, sair ‘¢mbriagada do bar, buzinar, cantar pneus e arrancar 0 cano tle escapamento do automével para conseguir mais efeito. ‘Him nossa cidade basta registrar o bar ou restaurante como mete: com isso se consegue autorizacao da prefeitura ‘Pra se estabelecer em zona de comércio limitado ao atendi- Mento dos moradores da rua. E macete que todos conhe- ‘Gem e praticam com a jé conhecida complacéncia etc, etc. Ha ainda o inacreditavel rufdo do nosso trinsito, que ‘ilo pode ser explicado apenas pelo seu volume: muilas Gidades importantes do mundo tém movimento seme- 65 Thante nas ruas com niveis de rufdo muito inferiores. Em compensagio, nfo tém carros velhos, caminhoes imensos e Gnibus de concepgao pré-hist6rica trafegan- do, Nossos 6nibus urbanos so montados em chassis de caminhdo, tém cambio de caminho e conforto de cami- ho, Os donos das transportadoras néo se preocupam em dotar 0s énibus de equipamentos bisicos, como de~ graus escamotedveis, suspensio agradavel e cambio automético, por exemplo. Caminhées imensos, com motores a diesel totalmente desregulados, adentram nossa cidade para entregar uma tiniea caixa de cerveja ou refrigerante na padaria da esquina: dificil entender por que vefculos muito menores nao sao utilizados para tal fim, como em todo o mundo (nosso rodizio proibiu a circulagio de furg6es e peruas e liberou os caminhdes). E, finalmente, 0s carros velhos. Essa é uma érea delicada, pois ha um habito cultural em nosso pais que consiste em retirar 0 essencial da populagio e Ihe dar uns trocados acompanhados de um tapinha nas costas ‘como compensagio, Sé essa atitude pode explicar por que numa sociedade to excludente como a nossa se tolera a circulagio de veiculos obsoletos, em péssimo estado de conservagiio, sem nada parecido com catalisa- dor ou mesmo escapamento, com freios em situagao deploravel, e por af afora. Precisamos ter a coragem de do permitir a circulaco de vefculos sem condi¢gdes € dotar a cidade de um sistema de transporte coletivo digno. E possfvel, contudo, que o pior de todos os ruidos urbanos néo seja nenhum dos jé apontados ~ que pode~ riam ser significativamente reduzidos com atitudes ime- diatas e vidveis pelas autoridades. O inferno cotidiano fica mesmo ao nosso lado, é o nosso vizinho. ‘Um cardiologista amigo mora num bairro trangjti- lo, nao fosse 0 imenso cdo carente que passa boa parte do dia lamentando sua condigao com uivos lancinantes, ganidos tristes e latidos desesperados. 66 Outro conhecido construiu uma li 2 de uma familia de misicos mae, conosco con ae caminhdes de gés, perpetra diatiamente o Pour Elise, de Beethoven, om mais vontade do qu talento, es fils, migos, se ret la 7 oo gos rele nos fis de semana para en © que dizer do vizinho de prédio, princi de cima? Generoso, nosso vizitho de arma ques vie conosco seu cotidiano e suas emogdes. Quando chega em casa se anuncia batendo as portas e evita tirar suas botas de vaqueiro ou seus saltos altos, de modo a ouvir. mos seu tropel através da fina casca de concreto e do ‘malfadado “carpete” de madeira, Para que possamos com. Partilhar suas andangas pela sala e a corrida do seu pim- polho atrés da bola, evita a forrago com carpete ou a colocaczo de um tapete que poderia abafar um pouco 6 Som. Os armaios, dotados de dobradigas de pressfo, sao Soltos deliberadamente para nos avisar que ele est pe- gando uma lata de ervilha na cozinha, uma cueca limpa No quarto ou aescova de dentes no banheiro. Andar des- ealgo ou com chinelos, nem pensar. Ele gosta mesmo é de uns tamancos ortopédicos que nos comunicam o mo- ees exato em que vai esvaziar a bexiga ou atacar a geladeira em plena madrugada. Ao pedirmos, humilde- Mente, um pouco de siléncio, uma vez que costumamos escrever em casa, ele nos comunica que nossos aparta- ents so residenciais ¢ nao de escritério, embora, @ ‘eu juizo, possam desempenhar as funges de playground, eampo de futebol ou estrebaria. Orguihoso por sua faga- nha de comprar um apartamento num. bom ediffcio de lasse média, 0 “vizinho” (0 0 meu, & claro) é a perso- Nificago do neoliberal feliz consigo mesmo e seguro de Ae considera pelo proximo éoisa de aco io estas as i que? ess bes dt comunidad solidiria que or Ser pedestre em Sito Paulo Saio do Bradesco da Cerro Cord, no Alto da Lapa, ¢ ‘me preparo para atravessar a rua, Pedestre acidental (meu carro esté estacionadono outro lado), felicito-me por exi tir faixa de pedestres bem em frente ao banco. Olho para a esquerda, depois para a direita (como minha mie me ensinou), arrisco um passo, na expectativa de que os ve~ culos me deixem percorrer aqueles metros dentro da fai- xa internacionalmente consagrada como sendo dos hu- ‘manos e nao das méquinas mortfferas. A senhora do Gol branco, criangas no banco de tras, mostra logo que minha tarefa nfio seria fécil. Vai em cima de mim, buzina forte visa que sou um “babaca”. Babaca ou nao, preciso atra- vessar a rua, Passam carros velhos e novos, “bicheiras” € carros de luxo, dnibus regulares e clandestinos, peruas, caminhdes “bestas” de toda a espécie. Ninguém me concede a passagem, digo mais, ninguém nos concede, pois aquela altura éramos ja seis ou sete, inclusive uma crianga de colo. © local é complicado mesmo, pois para segurar os veiculos s6 ha, & esquerda, 0 farol com o cruzamento da avenida Sao Gualter, a mais de cem metros, e do lado direito, a uns trezentos. O fluxo é quase incessante ¢ 0 pedestre ndo tem vez, porque faixa de pedestres no Bra- sil € enfeite no chao, nao sinal convencional de preferén- cia, E, sejamos justos, ninguém respeita: jovense velhos, homens ¢ mulheres, gente de temo e de roupa descorada, brancos, negros, amarelos, azuis, todos se transformam 68 ante. O final da novela foi o de sempre: uma corri- Assustada e as habituais ofensas dos motoristas pela i pretensio de ocupar o sacrossanto espaco dos Pergunta: em vez.de tentar flagrar e multar, por meio miquinas sofisticadissimas, o motorista que passa pelo itl vermelho na avenida Sumaré deserta, em plena ma- jgada, nao seria mais adequado, como se faz em Chi- ‘ou Tel Aviv, multar impiedosamente aquele que no peita a preferéncia dos pedestres que tentam atraves- ‘as ruas pelas faixas? Ou sera que esperamos, via gera- espontinea, que os motoristas se enquadrem? ‘Na yerdade, pode-se qualificar nossos motoristas de ¢ntes maneiras, mas sua atitude egoista estard sem- presente. Temos, por exemplo: * Ocgoista preguigoso— E aquele que nao dé asseta. para aesquerda, quando esta na direita; para a direi- vindo da esquerda, estaciona’ou entra bruscamente alguma garagem, mas nao dé a seta. Essa patologia, segundo observacées empfricas que fiz no trajeto que ro habitualmente, afeta entre 80% e 85% dos mo- istas. + Oegoista folgado —E 0 que se sente no direito de ‘0cupar um pedago de cada pista, impedindo a ultrapassa- gem, seja pela esquerda, seja pela direita, Costuma ficar ‘ervoso se forgado a se definir. Imagina-se que, em casa, ‘ocupe sozinho o sofa diante da televisio, obtigando a familia a ver novela sentada no chao. + Ocgoista porco — F o que atira coisas pela janela do carro. Na minha jé supracitada e profundamente cien- {ifica observacao empirica, anotei os seguintes objetos Sendo jogados, largacos ou olimpicamente arremessados de veiculos: papel de bala amassado, casquinha semi- ‘mofda de sorvete, embrulho de presente, lata de refrige- ‘ante, lata de cerveja, recibo de pedagio, meia laranja (de- via estar azeda), casca de melancia, casca de amendoim, 6 papel higignico (ou lengo de papel, nao tenho certeza), cinza de cigarro e toco de cigarro. Fumantes, por sinal, merecem especial distingiio nesta categoria, uma vez. que nos iltimos anos nZo foi constatado um tinico caso de fumante que tenha depositado as cinzas de seu cigarro ‘num objeto de decoragao muito comum nos automéveis chamado cinzeiro. * O egoista fominha — Este também poderia ser cha- mado de egofsta egoista ou egofsta a0 quadrado. Ele aplica a “lei de Gérson” ao pé da letra. No estacionamento do supermercado, ocupa a vaga pacientemente aguardada pelo cidadao mais educado, chegando a forgar um con- fronto. Mesmo que tenha de virar 3 esquerda, fica na fila da direita, se esta estiver menor, no se incomodando com ‘os de trés, Em vez de esperar que o sinal vermelho se transforme em verde, “ganha” alguns segundos e um tor- cicolo fiscalizando o apagar do verde no cruzamento. Como nao pode perder tempo, dirige com uma mio s6, J que esta sempre falando no celular, gravando mensa- gens para a secretaria e costurando agressivamente. * Oegoista justiceiro —E aquele que define a veloci- dade adequada de seu automével e de todos os demais da mua ou da estrada. Tem plena convicgao de que andar mais lentamente seria coisa de molengas, e, mais rapida- mente, de malucos. Estes verdadeiros fundamentalistas do trnsito (pois detém a Verdade Revelada e se sentem no dever de impd-laa todos os demais) andam na Anhan- sgiiera pela pista da esquerda a 80 quil6metros por hora e na Bandeirantes trafegam pela pista do meio, mesmo que no haja ninguém na pista da direita. A esposa ideal do justiceiro € a surda, pois além de fazer justica, ele vai ‘desenvolvendo suas teorias e criando jurisprudéncia 20 longo da viagem. Hajal Com tantos egos inflados pelo cheiro da gasolina, s6 ‘mesmo um pouco de repressao para dar vez ao pedestre.. 70 O caos urbano Andar pela cidade de Sao Paulo nos reforga a con- viegiio de que os legisladores fingem que legislam, 0 Executivo finge que executa, mas 0 que conta mesmo é 4 forca, a esperteza e o poder econdmico, Exemplos ‘io faltam: qualquer prédio em construgio é um atenta- do.Acidadania. Logo apés a euforia dos estandes enfei- tados de bandeirolas, se inicia longa fase de tormento 40s que vivem ou passam num raio de pelo menos 500 metros da construgao. Caminhdes com motores desregulados, méquinas de terraplanagem, liquidifica- ores de conereto que nao deixam ninguém dormir sos- segado. Trabalhar em casa, nem pensar: machista irre- mediavel e desconhecedor do conceito de escrit6rio vir- tual, o mestre-de-obras de um edificio vizinho em cons- truco explicava-me que o barulho que ele ajudava a Droduzir nfo atrapalhavaninguém, “ano ser mulheres socupadas porque agora & hora de expediente ¢ os homens estio trabalhando”. Tenho a mais absoluta cer- teza de que nao pode ser considerado razoavel um nivel de ruido que impede as pessoas de conversat, em tom normal, no 10® andar de um edificio situado a mais de 100 metros da construgdo. Tenho também uma certa convicgio de que o tremor de terra sentido em toda a vizinhanea a cada avango das fundagdes nao deve ser aceitével numa cidade que faz cumprir suas leis. E olha que o prédio do barutho fica numa rua que se chama Harmonia... 1 Muito perto dali abriu-se um “café” (nome estra- rnho para um boteco metido a besta) que ndo tem hora para fechar e oferece as habituais eenas de aleostatras procurando seus carros aos berros em plena madruga- Ea, Em nome do lucro do dono do “café” ¢ da diversio de meia diizia de boémios, centenas de vizinhos tém seu sono prejudicado. Se nao adianta conversa com pro- prictarios e freqiientadores (a quem moradores, de pija- tna, é apelaram inutilmente), nao seria razodvel esperar que “psius” ¢ a administragao regional dessem alguma atengao avs interesses dos moradores da regio? Por falar em moradores, nao posso deixar de regis- trar como historiador certos comportamentos de nossa populagio, © maximo de cinismo ocorre quando um a ratorista multado por estacionar em lugar proibido ini Gia um longo discurso contra a “inddstria de multas” que estaria sendo executada pela prefeitura de Sao Pau- 1b: O fato de seu carro, afuunilando a corrente de tréfe- 0, ter prejudicado todo 0 fluxo de centenas ou milha- ae de automéveis The € indiferente, o fato de isto ter ‘dcorrido muitas vezes sem a merecida punigio (se fosse possivel puni-lo sempre, ainfragdo nao mais ocorreria), pembém nao lhe interessa. Sua cfnica “dentincia” sem- pre tem por tris a justificativa (sic) de ter dado uma paradinta por umn minuto para que a sogra, obesa c com Ssteoporose, pudesse descer em segurancai ou algo do tipo, Multado, nosso cidadio nao se sente infrator, mas injustigado. Se tiver ouvintes e verniz.de formagao te6- rica, logo iniciard uma ladainha sobre a necessidade de Fesisténeia civil s imposigdes do governo, sobre a ma ttilizagdo das verbas piblicas e assim por diante numa arenga em que coloca no mesmo saco Gandhi ¢ John Lennon, Marx e Delfim Neto. ‘Numa subversio de valores, direito de cidadao €, para muitos, seu direito particular, 0 direito de estacio- Mar onde quiser, de gritar nos botecos até de madruga- RD da, de conversar em voz alta no cinema (¢ até em con- certos), de fumar na cara do vizinho no restaurante. ___ Praticas sociais devem ser ensinadas, mas no nos iludamos: acoergao também € nevessétia. Impressiona- docom o trfinsito civilizado de cidades tao diversas como Chicago e Tel Aviv (16.0 pedestre & de fato privilegia- do), perguntei qual o segredo. A resposta foi idéntica nos dois lugares: campanhas educativas, fiscalizagZo e ultas pesadissimas. Nao foi assim, aqui mesmo, com 0 cinto de seguranga? Por que, entdo, aceitar imposigdes, ditadas por espertos, poderosos ou ricos & maioria da populago com a colaboragao, segundo se afirma, de Mia dizi de funcionio venais? ‘ ver em comunidade pressupGe certas regras abe 1 sociedade defint, 20s legisladores formalizar © ‘ao Executivo fazer cumprir. B A cidade esquecida Alguns dizem que Jeric6 foi a mais antiga, mas a maioria acredita que as primeiras cidades foram constru- das na Mesopotamia; eram povoados discretos, humildes, ‘mesmo que comparados com pequenas cidades brasilei- ras de hoje, mas j4 indicavam a tendéncia gregaria dos humanos. Mais que isso — porque gregédrios eram tam- bém os cagadores ¢ 0s agricultores — as primeiras cidades apontavam para uma divisdo de trabalho, uma especiali- zaciio, que seria a principal marca dos agrupamentos mo- eros. Afinal, hoje, muitos dends comemos,nos vestimos ¢ habitamos sem nos preocupar em plantar, fabricar vestimentas com a pele de um animal ou construir a pr6- pria casa. Temos nossa atividade e, se a fazemos bem, ‘estamos contribuindo para 0 coletivo com os produtos ou os servigos que oferecemos, na expectativa de que ‘outros o fagam da mesma forma e com a mesma eficién- cia, Uma espécie de objetivo humano é chegar a uma so- ciedade em que cada um dé 0 méximo de si e receba 0 ‘maximo de seus concidados. Autoritarismo, apropria- Bese desvios deste objetivo seriam apenas a roe 10. O pressuposto era que aos “espertinhos”, aque- Fes.que procuravam se apropiar dos produtos ou servi ‘cos alhieios sem oferecer nada.em troca, coubessem puni- ‘G6es, que buscavam deter a burla ao pacto social do qual cada cidadio era signatiio. | Isso, pelo menos até Cabral descobrir o Brasil e as administragdes regionais serem rifadas. Nossas prefei- 74 ras, em vez de estimular a prética cidadi, criam uma rdadeira barreira de indiferenga, mé-fé ou corrupgio diante dos pequenos e dos grandes problemas do muni- ‘fpio. E nés nao entendemos ainda que antes de sermos. idadios de uma nagao, ou do mundo, o somos de uma cidade. Vejamos algumas cenas do cotidiano. __O fregués chega até a banca de frutas numa feira ‘qualquer e pergunta se a ameixa esta doce. O feirante responde diretamente: empunha uma faca, limpa sua ina no papel, corta uma generosa fatia da frutae ofe- a0 comprador potencial. Este se maravilha diante dogura da ameixa (ou da nectarina, ou do abacaxi) ¢ ipleta sua compra. Horas depois estaré comentando Seu azar, j4 que exatamente as frutas que comprou tavam azedas enquanto a que experimentara na feira ava tio doce que até agora Ihe adogava os labios. O jue do feirante? Colocar adogante exatamente no em que “limpa” a faca paras trouxas, Hé ainda o blema do peso. A existéncia de pelo menos uma ba- a oficial em cada extremo da feira permitiria a aferi- das compras feitas por peso, induzindo os comerci- les a um quilo mais proximo de mil gramas. Confes- me candidamente um vendedor de tomate que seu lo deflacionado era necessario para nao vender mais do que a concorréncia... Disse-me ainda que fiscal feira “36 depois do meio-dia para encher carrinho graga”. Oleitor ndo vai a feira? Quem sabe caminha pelas las da cidade? Calgadas esburacadas e irregulares, la de degraus ocupadas por guaritas, bancas de iis, automoveis e outros bichos. Caleadas que no jtem a passagem de cadeiras de deficientes, de car- de bebé. Calgadas que querem expulsar o passante ‘0 meio da rua onde ele seré presa facil dos neuréti. do volante em que todos nos convertemos. Nao ha ia sem calgadas decentes. 15 O leitor estaré seguramente revoltado com rodi- zios, rodizios de rodizios e assim por diante. Estard se ‘perguntando, do alto do seu fervor cfvico manifestado em reter o set (ou um dos seus) carro na garagem, qual 6 sentido de impedir que 20% da frota urbana circule, se as fabricas de automéveis batem recordes sobre te~ cordes de produgdo, vomitando sobre as ruas da cidade milhares de vefculos novos acada semana’? O meu pre~ zado leitor, que anda de metr6 em Paris ¢ de Gnibus em Roma, dard a vida para nfo entrar nas verdadeiras car- rocas (estas sim) que S40 nossos énibus urbanos, itre~ gularmente montados sobre chassis de caminhao, com degraus muito mais altos que os 25 em de lei, absurda~ mente caros e, neste final de século, ainda dotados de cambio manual, que estressa 0 motorista € sujeita os passageiros a solavancos desnecessarios. Quando é que daclasse média vai desistir do sonho cada vez mais inttil do seu mil cilindradas ¢ comecar a lutar com seriedade por um transporte coletivo digno? E quando é que o poder piblico vai parar de jogar para a platéia (que, parece, adora ser enganada), apenas transferindo 0 con- gestionamento por mais cem ou 200 metros de tineis ¢ Viadutos vistosos ¢ imiteis? ‘Apés 0 dia de trabalho o leitor quer descansar. A tarde, mesmo aos sdbados, no consegue porque auto- ‘méveis e camionetes continuam anunciando suas pamo- has, suas cdndidas, morangos, gas ¢ outros bichos. A noite, nosso pobre leitor rola na cama diante do som daquele barzinho que, autorizado a funcionar apenas ‘como Ianchonete e sob 0 acobertamento cinico das au- toridades ptblicas (autoridades? piblicas?), promove “blues e jazz” as tercas, MPB as quintas e “dance music” aos sabados, sempre sem horério para terminar. ‘Somando-se a isso tudo, a poluicao visual, 0 tréfico de caminhGes (ainda nfo entendi por que um monstrengo de dez.toneladas € autorizado a entrar em ruelas € esta 16 cionar sempre no meio da rua para descarregar duas ou trés caixas de refrigerante ou cerveja) e outras coisinhas do género, percebe-se que o descaso em relagdo as nos- sas grandes cidades, e Sio Paulo de forma particular, chegou a um ponto préximo do limite, i" (Os mesopotimicos devem estar rolando em seus ttimulos, arrependidos por terem criado acidade. Como na ficgdo, a criatura esté prestes a devorar o criador. 1 Sto Paulo, meu amor ‘Sao Paulo tem sorte por fazer aniversario em ja- neiro, Neste més as ruas ficam mais vazias, os cinemas se tornam vidveis até em finais de semana, o humor das pessoas melhora, Livre das madames que passam Jongas temporadas nas areias polufdas do Guarujé, dos boyzinhos que vio surfar em Maresias, dos novos-ri- cos que vao procurar alguma nevasca no Hemisfério Norte, o transito da cidade se torna quase suportvel; e as pessoas, acostumadas a considerar 0 tempo do congestionamento no célculo de seus trajetos, acabam chegando adiantadas aos compromissos. Com o hu- mor de janeiro, tanto os que ficam na cidade por op- gio quanto aqueles que nfo tiveram alternativa aca- bam descobrindo nela virtudes que nao percebem nos outros meses do ano. fato é que Sio Paulo nos surpreende. Nesta épo- ca do ano, ela ostenta um verde agressivo, brilhante, fruto da unio de calore chuva. As velhas tipuanas, imen- sas e cheias de parasitas, chegam a impedir a passagem do sol, ao juntarem suas copas as de suas irmas do ou- tro lado da rua, Sibipirunas e paus-ferro acolhem ban- dos de periquitos gritdes, bem-te-vis indiscretos e tico- ticos madrugadores. Quaresmeiras apressadas revelam seus primeitos botes. Quem caminha atento pelas ruas arborizadas da cidade descobre um inesperado ¢ imen- so pau-brasil no Alto de Pinheiros, cafeeiros em varios, bairros e uma incrivel variedade tonal entre os sabidis B (talvez um especialista consiga até identificar a regitio de origem dos sabids pelo canto). Constata também que amoreiras, mangueiras, jabuticabeiras ¢ outras drvores frutiferas, plantadas em ruas e quintais, atraem cada vez. mais passaros, tornando a nossa cidade mais agradével. Hé que ter paciéncia também, porque caminhar por nos- sas calgadas € se arriscar a tropecar nos seus buracos mil, € estar sujeito a trombar com um automével, placi- damente estacionado na calgada, é enfrentar guaritas e ‘cercas Vivas agressivas, é ser expulso para oleito carrogé- ‘vel daruac enfrentar os automoveis, ainda (até quando?) fos reis da rua? Assim € Sao Paulo, hospitaleira ¢ hostil, até numa simples caminhada, ___ As vezes pergunto por que tanta gente mora aqui. ‘Afinal, esta é uma cidade violenta e perigosa, em que a ‘parcela dos que tém se esconde atras das grades das ‘casas ¢ dos prédios, das trancas e dos vigias, dos vidros, fechados dos carros ¢ das guaritas instaladas nas ruas, hias casas e nos coragdes. Esta € uma cidade apressada, fem que as pessoas demoram horas para chegar de um Jado a outro e, por falta de tempo ou medo, se trancam la vez mais dentro de sua solitéria auto-suficiéncia, is habitantes do planeta (resultado cruel da globali- ) 4 comegou, e, em vez de amigo e concidadio, 0 yximo é visto como adversério, inimigo mesmo, com- dor que ou se mata ou nos mata. Esta é uma cidade que poucos utilizam o equipamento cultural que a ia de todas as demais cidades brasileiras ea iguala ‘poucas do mundo inteiro. Afinal, por que tanta gente aqui? Se a resposta for emprego, até esse, pelo ito, também esté acabando, como confessa um dos res da Fiesp em artigo publicado recentemente no itadao. Entio por qué? 19 Porque esta é uma cidade que tem uma forga in- comparivel. Porque esta é uma cidade que olha para trés, no por nostalgia, mas para encontrar sustentagao para novas agées. Porque esta é uma cidade pulsante, aberta para novas experiéncias, embora reticente a mo- dismos tao a gosto de cidades menos sérias. De resto, Sao Paulo é séria, sim, mas nao é sisuda. Quem a acusa de inflexivel niio percebe que ela apenas se recusa a ser leviana Cidade de rosto definido, mesmo sem ter marcos ‘ou simbolos evidentes, ela é a soma de muitas caras. Qual muther recatada, niio exibe logo os seus eneantos, que revela apenas Aqueles com quem tem mais intimida- de. Deglute migrantes, incorpora imigrantes, seduz todos por ndio ser natureza enfeitada, mas espago construido pelas mios de cada um de nés. So Paulo merece ser bem tratada. 80

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