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EXCLUÍDAS E INVISÍVEIS

Milhões de crianças que são vítimas de exploração e discriminação graves tornaram-se


invisíveis aos olhos da comunidade internacional. Não são contadas nem tidas em conta.
«Desaparecem», quando são objecto de tráfico ou obrigadas a trabalhar como servos.
Outras, como as crianças de rua, vivem à vista de todos, mas são sujeitas a maus-tratos e
não têm acesso à escola nem a cuidados de saúde.

Bilu e João são dois irmãos que lutam juntos pela sobrevivência, recolhendo
cartão e sucata de metal nas ruas de São Paulo, no Brasil. Blanca, de 13 anos, vive
um verdadeiro pesadelo por ser portadora do vírus HIV: é discriminada na escola
que frequenta em Brooklyn, nos Estados Unidos, e nem os que lhe estão mais
próximos a poupam à angústia e ao estigma da doença. Ciro é um adolescente que
deixou para trás os pais negligentes e uma família disfuncional, e passou a
sustentar-se através do roubo nas perigosas ruas de Nápoles, em Itália. Uros, um
menino bósnio internado num degradado reformatório, não quer sair de lá, pois
pelo menos ali sente-se protegido: uma vez cá fora, o pai obriga-o de novo a
roubar.
Em algumas zonas da África, crianças-soldado de milícias famintas manipulam
metralhadoras com destreza. Na China, as diferenças sociais entre duas meninas da
mesma idade são gritantes: uma é rica e a outra mal sobrevive a vender flores nos
semáforos de uma grande metrópole. Estas poucas e breves histórias ajudam a dar
um rosto a milhões de vítimas silenciosas que, para além do mais, são as mais
desprotegidas e vulneráveis face ao álcool, drogas, abusos sexuais e físicos,
infecções, má nutrição.
As situações de maior vulnerabilidade surgem à margem dos programas de
desenvolvimento e permanecem invisíveis em muitas sociedades onde as crianças
estão ausentes dos debates, da legislação, das estatísticas e dos meios de
comunicação. A pobreza, o VIH/sida e os conflitos armados, aliados a uma má
governação e a várias formas de discriminação, excluem da escola e privam de
cuidados de saúde muitos milhões de crianças de todo o mundo, o que as torna
ainda mais vulneráveis à exploração e à exclusão.
As crianças que vivem em situações de conflito armado, por exemplo, são
frequentemente vítimas de violação e de outras formas de violência sexual. O risco
de se tornarem esquecidas é maior para as crianças que não possuem
identificação: mais de metade dos nascimentos que todos os anos ocorrem nos
países em desenvolvimento (excluindo a China) não são registados, o que rouba a
mais de 50 milhões de crianças o direito a algo tão fundamental como o estatuto de
cidadão, para além de as banirem à partida das estatísticas oficiais. Assim, não
são contadas nem tidas em conta.

Guerra e crime
Em Novembro, as Nações Unidas acusaram os militares do Sri Lanka de
recrutarem crianças para uma milícia que luta contra o grupo separatista Tigres
Tamil. O conselheiro especial da ONU, Allan Rock, representante da ONU em
questões relacionadas com Crianças e Conflitos Armados, afirma que tem provas do
envolvimento directo de soldados do país no alistamento forçado de crianças para a
milícia dissidente dos Tigres Tamil, a Facção Karuna. «Encontrámos provas directas
e indirectas de cumplicidade e participação», assegura Allan Rock, comentando o
facto de crianças de 13 e 4 anos terem sido raptadas de pequenas povoações sem
que tivessem sido realizadas investigações ou prisões por parte das forças de
segurança.
No Sudão, durante os longos anos da guerra, «a Igreja Católica foi a única
fonte de esperança para milhares de crianças», diz o cardeal Gabriel Wako,
arcebispo de Cartum e presidente da Conferência Episcopal. «Uma das maiores
preocupações da Igreja sudanesa são as crianças órfãs. Infelizmente, a guerra
deixou um grande número de órfãos de pai e muitos perderam ambos os pais. Por
não terem uma família que se ocupe delas, a situação destas crianças é muito difícil
e precária. Até aqueles que vivem apenas com a mãe se encontram em
dificuldades, porque, infelizmente, as mulheres são uma das categorias mais
desfavorecidas da sociedade sudanesa.»
Nesse sentido, a Igreja está a apostar em programas de ajuda à infância,
«sobretudo no campo sanitário e do ensino», assegura o cardeal. Um pouco por
todo o mundo, ela é uma das instituições que mais contribuem para fazer face às
necessidades das crianças excluídas. Apenas um exemplo: é graças à generosidade
das próprias crianças dos 110 países onde se encontra presente a Obra da Santa
Infância que estão a ser financiados mais de três mil projectos de assistência aos
menores mais carentes.
Embora os governos e a sociedade civil também se encontrem envolvidos em
inúmeros programas de apoio, muitas permanecem desprotegidas. Só na fronteira
entre a Argentina, Brasil e Paraguai, milhares de crianças e adolescentes vivem em
condições de pobreza extrema, em “casas” sem saneamento ou água potável. Para
além do mais, o crime organizado que grassa na região representa uma grave
ameaça, de que as crianças são vítimas preferenciais. Entre os seus “negócios”
contam-se a exploração sexual, o tráfico de drogas e de seres humanos.

Violência e discriminação
Muitos actos de violência perpetrados contra as crianças permanecem na
sombra e têm muitas vezes a aprovação da sociedade. A violência contra as
crianças inclui violência física, psicológica, discriminação, negligência e maus-tratos
e acontece em qualquer lugar, em todos os países e sociedades e em todos os
grupos sociais. Utilizando diversos estudos e dados sobre a população, a
Organização Mundial de Saúde estima que, no mundo actual, as relações sexuais
forçadas que envolvem menores de 18 anos afectam 73 milhões.
Segundo a Organização Internacional do Trabalho, dos 218 milhões de
crianças trabalhadoras, 126 milhões estão envolvidas em trabalhos perigosos e
prejudiciais, 5,7 milhões realizam trabalhos forçados em regime de servidão, 1,8
milhões estão envolvidas na prostituição e 1,2 milhões já foram vítimas de tráfico.
Desprovidos de cuidados dos pais, milhões de órfãos, crianças de rua e de jovens
detidos crescem sem o afecto e protecção familiar. Estima-se que 143 milhões de
crianças de países em desenvolvimento – 1 em cada 13 – perderam pelo menos um
dos pais.
Muitos dos Estados frágeis, países que não têm meios ou vontade para
proporcionar serviços básicos aos seus cidadãos, discriminam os menores com base
no sexo, etnia ou deficiência. Estes factores de exclusão impedem a entrada de
milhões de menores na escola e bloqueiam a prestação de serviços essenciais.
Calcula-se que haverá no mundo cerca de 150 milhões de crianças portadoras de
deficiência, muitas delas sem possibilidade de acesso à educação, cuidados de
saúde ou apoio afectivo em consequência de uma discriminação sistemática. Um
número seco e assustador: anualmente, cerca de 53 mil menores são vítimas de
homicídio.
A violência tem «consequências duradoiras, não apenas para as crianças e
seus familiares mas também para as comunidades e países», alerta Ann Veneman,
directora executiva da Unicef. Para Paulo Pinheiro, perito independente nomeado
pelo secretário-geral das Nações Unidas para liderar o estudo «Violência contra as
Crianças», «a melhor forma de tratar do problema é impedir que aconteça. Todas
as pessoas têm um papel a desempenhar, mas cabe aos Estados assumir a
principal responsabilidade.

Desemprego e pobreza
Em todo o mundo, o desemprego é outro dos grandes problemas que os
jovens enfrentam. E que faz que um em cada quatro – cerca de 300 milhões de
pessoas – viva abaixo do limiar da pobreza. Segundo a Organização Internacional
de Trabalho (OIT), o número de jovens entre os 15 e 24 anos que estão
desempregados aumentou de 71 milhões, em 1995, para 85 milhões, no ano
passado. A população juvenil cresceu 13 por cento entre 1995 e 2005, enquanto a
disponibilidade de empregos para este segmento da população só registou um
crescimento de quatro por cento. Como consequência, os jovens desempregados
representam 44 por cento do total de desempregados a nível mundial. Estima-se
que sejam necessários 400 milhões de empregos produtivos, ou mais e melhor
emprego, para aproveitar o potencial da juventude actual.
«A incapacidade das economias para criar empregos produtivos está a atingir
os jovens em todo o mundo», afirma o director-geral da OIT. Segundo Juan
Somavia, além de gerar um défice de oportunidades de trabalho e altos níveis de
incerteza económica, esta preocupante tendência ameaça desperdiçar um dos
principais recursos de qualquer sociedade – a juventude. «Neste momento,
estamos a desperdiçar o potencial económico de uma grande parte da população,
em especial nos países em desenvolvimento, que são os que menos se podem
permitir esse desperdício. Por isso, os países devem concentrar-se nos jovens»,
preconiza.
As regiões do Médio Oriente e do Norte de África registam a taxa mais elevada
de desemprego juvenil (26 por cento), quase o dobro da que se verifica na União
Europeia: 13 por cento. Mesmo nos casos em que existe emprego, isso não quer
dizer que assegure o sustento dos jovens. Ainda de acordo com a OIT, a pobreza
afecta cerca de 56 por cento dos jovens trabalhadores, que se confrontam também
com a possibilidade de ter largas jornadas de trabalho, contratos a termo certo,
salários baixos, protecção social reduzida ou inexistente.
Regista-se também um preocupante aumento do número de jovens que não
trabalha nem estuda. Na verdade, o acesso à educação continua a ser um problema
para muitos e o analfabetismo ainda é um desafio importante em muitos países em
desenvolvimento. Os desafios são maiores para as jovens, já que em algumas
regiões, devido à tradição cultural, não se lhes concede a oportunidade de conciliar
o trabalho doméstico com um emprego.
Mas, apesar de um cenário tantas vezes tão negro, os jovens dispõem de um
capital único: não perdem a capacidade de sonhar.

Carlos Reis
Além-Mar, Dezembro de 2006

O cartão…

Este desenho feito em 1947 por uma criança de sete anos, Jitka Samkova –
habitante de uma aldeia da Checoslováquia que, após a Segunda Guerra Mundial,
recebeu ajuda de emergência, alimentação e medicamentos – tornou-se o primeiro
dos «Cartões Unicef» de Natal. O desenho de Jitka, um raio de sol iluminando um
grupo de crianças numa dança de roda, feito na escola como forma de
agradecimento pela acção da agência das Nações Unidas, foi impresso sob a forma
de cartão de boas-festas. A receita dos cerca de 450 cartões vendidos em 1949,
distribuídos entre o pessoal da ONU, cobriu os custos de produção.
A popularidade imediata destes cartões levou a que, no ano seguinte, se
produzisse a primeira edição para venda, e a Unicef conseguiu assim obter as suas
primeiras receitas líquidas: 4200 dólares, resultantes da venda de 131 mil cartões.
Neste momento, são vendidos anualmente mais de 120 milhões de cartões em todo
o mundo, o que faz com que a venda de cartões e produtos continue a ser uma das
principais acções de recolha de fundos, fundos esses que permitem dar
continuidade aos programas levados a cabo no terreno pela agência da ONU que
coordena as ajudas às crianças mais desfavorecidas.

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