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imeiramente, preciso dizer que estou redesco- P brindo a genialidade de Carl Rogers, Figura do século 20 (1900-1987) que precisa ser resgatada. Ele realmente trouxe algo novo € revolucionirio para a pritica do into psicoldgico, que consiste, basicamente, em cura de confianga irestrita no potencial de cada tam, .ncontrar os melhores caminhos de superagio de staas \dades. Um mergulho nessa fonte inesgotivel que & 9 mano. A contribuigio bisica do psicSlogo, como de yer pessoa disposta a ajudar alguém intrigado com sbes pessoais ¢ recursos subjetivos, ¢ oferecer uma caixca dle ressoniincia na qual a propria pessoa possa se ouvir ¢, enxergar um caminho, Nenhuma das formas mente vigentes de atendimento levou isso tao a como Rogers. © pressuposto dessas outras formas era Ale que 0 Psicélogo fosse detentor de um saber capaz de 1-4 soluso que, supostamente, a pessoa nao conseguia ver; ou, 80 menos, que o psicdlogo fosse capaz de penetrar crioso mundo das causas escondidas do comportamento e de Id trazer a luz para a pessoa em yofrimento. Uma espécie de vidente cientificamente Mlustrado. O pressuposto de Rogers foi totalmente ROGERS: et hime Patong Lf diferente, Sem negar o valor dos saberes psicolégicos, ele deu um outro sentido a relagio de ajuda. O que ele fazia, na pritica, era facilitar a0 outro o recurso As suas préprias fontes interiores. Estava convencido de que apenas isso era suficiente para desencadear profundas transformagoes. No inicio, pensava em transformagdes pessoais, mas logo percebeu que isso nao ficava no ambito individual: adotoua ‘mesma postura com grupos ¢ com comunidades e, assim, inaugurou um novo modo de ser social e cultural. Ele foi radical nessa postura, a ponto de gerar afirmacées logo de nada serve; + 0 psicodiagnéstico é uma forma de dominagio acaba sendo contraproducente na ajuda ao cres~ cimento, + na relagdo de ajuda, devemos abandonar todas as técnicas e procedimentos padronizados, todas as cestratégias pré-fabricadas; + quem sabe o momentode cnccrraro atendimento é © préprio cliente; * existe uma sabedoria que emerge quando as pessoas se encontram na comunicagio aberta e plena ete. O auditério deu gargalhadas quando ele disse que nao pretendia ser um revolucionério (Rogers, 1978). Fstava sendo. E 0 reconheceu depois. Apenas acrescentou que se tratava de uma revolugio silenciosa. E poderiamos comentar: sem estardalhagos, sem armas, porém cfotivamente transformadora. Acredito que isso continnia sendo de uma atualidade de vida ou morte. Rogers acreditou que uv que ele tinka « fuer era ‘ecer is pessoas uma relagio acolhedora, compreensivac iesta. Ele praticou isso com uma coeréncia radical ¢ nudow a vida de muitas pessoas. Envolveu-se, com esse mesmo modo de ser, em trabalhos de grupo, até mesmo lo partidatios opostos em conflitos intemnacionais e, assim, aproximou pessoas hostis ou mesmo inimigas. Minha pratica de psicdlogo, de professor, de supervisor, de assessor de grupos, tem confirmado essas perspectivas. O que Rogers trouxe no foi uma nova técnica para a mesma finalidade. Ele trouxe outra finalidade, ¢ atitudes consequentes com essa outra finalidade, Ele no descobriu procedimento mais eficaz para solucionar os problemas las pessoas: ele mudouo modo de se conceber os problemas carelagio deajuda, Nesse sentido, sua contribuigio nio foi tecnolégica, mas ética: ele no trouxe meios novos esim fins os. Mudanga de paradigma, Essas propostas, ficeis de entender em suas formulagdes, ndo so ficeis de praticar consistentemente. arram corn habitos muito arraigados na manciradesere de pensar, decorrentes da formacio recebida e da mancira como fomos construindo nossa visio de mundo. Mencio- no dois desses habitos que me tocam mais de perto. Quando estamos diante de um problema, nossa tendéncia “espon- tinea” (mas, na verdade, construida), é analisarmos a situagdo objetivamente, esperando dessa anilise uma o, Fxercemas um modelo empirico-analitico de pensamento, deixando de lado outras fontes mais Incegradoras da ago (que nay excluem © pensamento analitico, mas o situam em outro contexto). Rogers entendeu isso quando disse, por exemplo, que a ciéncia s6 existe em pessoas ¢, poderfamos acrescentar, na subjetivi- dade de pessoas concretas. Emboraa ciéncia tenha suas leis formais (que garantem a corregio dos ra existe no contexto conereto de pessoas que enfrentam desafios em suas vidas; ¢ € desse esforgo de enfrentamento que stem as energias capazes de mobilizar e orientar as pesquisas. Enquanto essa conexio com a vida nfo for feitae levada a sério, o saber cientifico se tornari cada vez mais abstrato e irrelevante. E, ‘ao cabo enganador’, como diria Paulo Freire. Um outro habito, € 0 de nos sentirmos sempre portadores de uma missio salvadora como se nao fossemos parte do problema. Entio, somos impelidos a formar ‘rapidamente uma ideia completa sobre a situagio ¢ sa solusio, e desejamos agir com base nessa ideia. Isso, na verdade, éuma heranga do século XIX, quando o espititodo tempo era racionalista: a solugao para os grandes problemas sociais era construida de antemio em um raciocinio abstrato (¢ solitirio), ea partir dai montava-se uma estraté~ gia de imposigio da solugio salvadora. Esse padrio de ctiatividade racionalista abstrata, por nfo ser acessivel a todos, deixava a grande maioria na posigio de seguidora de lideres portadores das solugdes. A esses seguidores cabia, cntio, a iniciativa Gncentivada) de sefliarem a partidos politicos também previamente penssdos pelos mesmos leres. Rogers sponta cm outra diregin Um sinal dieeo: ele le se fazer umassociasio rogeriana internacional que vigiasce pela ortodaxiide ideias priticas transformadoras, Ele poder ter faz.0 caminho’. O que temos na cabesanio so detalhes do que iremos encontrar, mas uma diresi, um instinto, uma certeza na qual podemos confiar. Nostiltimos anos de Rogers, contatengio voltadaa jaminhando que se pessoas em situagZo extrema e is expesincias com grandes grupos de aprendizagem comunitiri, a confianca nos recursos internos do ser humano most, para cle, ser um aspecto de uma confianga mais amplams processos davvida, tais como eles existem até mesmo par além da espécie ana (Rogers, 1980). De minha parte, a0 reconbeet a reviravolta de perspectivas proposta por ele, sou tanbim levado a acertar contas com velhos habitos meus emaneiras de pensar. Pergunto-me seguidamente se sou meno capaz de confiar ‘em mim como uum todo organico (patt de outros conjun- jores) € no apenas como fode de pensamentos 0s (e impessoais). Sou ciprz de confiar no mento interno de grupos no interior dos quais, cipando ativamente, também metefino? Sou capaz de confiar irrestritamente no movimentointerno das pessoas atendemos profissionalmente ousom quem convivo cm relagio construtiva? Sou capaz deconfiar naquela forga ROGERS: én bumanistaepsicoterpia 15 atravessa 0 ser humano, mas 0 cextrapol? Junto com esses questionamentos pessoais, é possivel ser sensivel também a perguntas mais tedricas. A proposta ria a um espontaneismo sem critica ©, portanto, no suficientemente aparethado diante dos complexos problemas que temos em nosso mundo atual? Nio conduziria sua abordagem a um sentimentalismo romantico ¢ ingénuo? Entretanto, acredita-se que esse jiuizo, que muitas vezes somos levados a fazer sobre sua proposta, decorre de nio termos efetuado a mudanga de ponto de vista que ele propse. E, entio, usamos velhos paradigmas para farzermos a avaliagio. E preciso experi- ‘mentar uma outra maneiradeser para depois avaliarmos seu valor. Qualquer avaliagio a priori sera baseada em velhas maneiras. O que seri dito aqui pretende orquestrar essa intuigio de varios pontos de vista ¢, a0 mesmo tempo, convidar o leitor a participar dessa construso, ao menos verificando em sua experiéncia se isso pode fazer sentido. oe A luz dos pensamentos e da pritica de Rogers, 0 pr6prio humanismo torna-se mais claro, Podemos equa rossapostodeteminsta | Diagnsico > estatégia > intrvengo > mudanga esperada 1 8 name cont & visto | Alta = consecagedos cbjoos (¢ decid plo rapt) foo resutado a een Pesquises: buscam es psiodbgeas, frequlndas de coorénis, cous antrnes | infomegbesexpeticas Pressuposo da aitonomia | Tendéacia 30 crescevio > along aos sgiicados presenies | cle rao compreensivavalorizadera honest atonamia crescents humano (sobre esses dois pressupostos, ver, por exemplo, Amatuzzi, 2008; Frankl, 1989). Dentro do pressuposto determi niveis de intervengio: terapia suportiva (ou de apoio, Aa atte emia do cess (seca en cnt) taro fe ov casa Ge visando 0 alivio); de esclarecimento (ou orientagao) © de bins tes reestruturagio (psicoterapia propriamente dita, ou anzlise) definidos pela propria relagio. O terapeuta segue aintengio da pessoa que busca ajuda. Dentro de uma abordagem humanista, 0 clima de diflogo fecundo, a atmosfera psicolégica do encontro & provida por uma disposig2o, ao mesmo tempo, aceitadora, dso, potees omais bee © pee mento Ze Ruiz de la Pena, expresso no verbete “alma” do compreensiva e auténtica. Aceitadora: desejo de valorizar o ROGERS: dc hmanisn picoerpin 19 20 Diciontrio do Pensamento Gontemporinco (Ruiz. de la Petia, 2000). © que € a percepgio do valor tinico da pessoa? Podemos ver isso de modo bem simples. E a percepgio segundo a qual nfo posso fazer qualquer coisa com um ser humano. Com a consciéncia ecolégica, sabemos que nio podemos fazer qualquer tipo de coisa contra um ser da natureza, Poder fazer, podemos (e, de fato, a humanidade tem feito), mas néo devemos, nao é licito, nao ¢ bom. Esti presente uma questio ética, que supde uma referencia de valor. Nao se trata apenas de evitar a “vinganga” da natureza. Existe um respeito que é devido a natureza, ¢ nto apenas um medo das consequéncias. Mas, além desse sespeito geral, existem formas especificas, isto é, valores do agir que decorrem do objeto diante do qual estou na minha ago. Por exemplo, nao se pode tratar um animal como se fosse um pedago de tibua ou uma almofada; ele tem um valor proprio de animal, diferente do valor de uma almofada. Nao se pode maltratar um animal, mesmo quando for preciso maté-lo. O respeito devido a uma planta niio € idéntico ao respeito devido ao animal (embora os dois scjam merecedores do respeito geral devido a natureza). Pode-se tirar um galho de drvore para fazer um ornamento nna sala, mas no arranear um pedago de um animal, Pode-se, mas niio se deve: algo se fere em nés eno mundose fizermos. Assim, no topo dessa graduacio de valores esta 6 ser humano. Nao se pode tratar o ser humano como se poderia tratar algumas outras coisas da natureza. Essa percepsio € ética, ¢ ela equivale a afirmar o valor tinico da ssoa. Trata-se de olhar o ser humano (pessoa, imunidade, humanidade) com um senso de respeito que re da natureza propria ¢ original desse objeto. E olhar ele nao como algo stil, mas como ser portador de um ptéprio ¢ inalienavel, como ser que me interpée algo luto. E respeita-lo naquilo que ele é. Desse olhar decorrem consequéncias priticas 's para as relagdes interpessoais, para 0 convivio até mesmo para a politica. Explicitar essas éncias é construir uma ética das relagdes interpes ima ética social e uma ética politica. A abordagem nna pessoa € muito mais uma ética do que uma mH Antes de todos os discursos sobre a pritica, existe 0 ‘wir sobre o qual versam aqueles discursos. E nesse agir s considerar 9 nivel dos comportamentos, @ que vente fazemos, ¢ as disposigdes que levamos para a tudes, os valores. As disposigdes sio anteriores mentos ¢, de certa forma, os determinam. Por sumaatitude, um valor é que nosinelinamos ida direcio. Rogers considerou que as 's (atitudes) sto mais decisivas do que os ramentos na caracterizag2o da abordagem centrada 1 Paga cle 0 que importa é que os comportamentos las atitudes, e podemos entender isso assim: 0 que importa € que o agir decorra daquilo que a pessox como valor. Valor operativo, é claro, ¢ nao simplesmente valor declarado, Uma atitude nao determina sempre 0 mesmo formato de comportamento. A mesma atitude ou 0 mesmo valor pode levar a comportamentos diferentes: isso vai depender da situacio, das pessoas envolvidas, dos. estilos, do momento no proceso da relasao, De qualquer modo, Rogers considerava que definir a abordagem centrada na pessoa em termos de atitudes (predisposigdes, ‘ou valores) era mais certo d defini-la em termos de comportamento especifico. Porque esses comportamentos. podem variar muito, Por tris das variagses de comporta~ mento existe a consisténcia de atitudes e valores. Lembro-me de uma palestra de Alberto Segrera, quando passou por Séo Paulo em 2007. Ele esbogot possivel formulacao das classicas trés atitudes, em termosde valores subjacentes. Recorro 4 minha meméria. Nao é possivel termos uma genutna aceifasao incondi 1ndo estiver apoiada no valor do amor. Aceito porque amo; sinto-me um s6 com o outro. E o valor da comunhio. A compreensio empdtica tem suas raizes na sabedoria como valor diferente da ciéncia. Enquanto pela ciéncia penetramos nos mecanismos fenomenicos, pela sabedoria compreendemiés os significados dos fenémenos num contexto mais abrangente. A aufenticidade radica-se no valor da harmonia das partes no todo pessoal. Se tenho a harmonia como valor, tendo a me mostrar de modo mais genuino, mais inteiro. A Abordagem Centrada na Pessoa (ACP) encontrn-se ades € valores subjacentes ao agir. Ela pode levar stentemente a formas de agir diferentes conforme as es, as pessoas, os momentos, A consisténcia ultima da sti no nivel de sua utilidade ou mesmo de sua cia, mas no nivel do seu valor. Se nfo tenho sensibilidade lores, jamais entenderei a abordagem centrada na stincia, ela nao se justifica como uma técnica e sim, ma ética: uma ética das relagées humanas (interpes- sociais, politicas). Justificar a ACP € wre fundamentar, no plano tedrico, os valores que ela a Surge entioa pergunta: quais sio os valores humanos finem a estrutura consistente dessa abordagem? 1$ que se generalizssemos a partir da situacio da da relagdo de ajuda, poderiamos falar de amor, © harmonia. Afastando-nos um pouco desse olhando essa abordagem na convivencia social, 1s descrever esses valores da seguinte forma: 1) Que as pessoas se respeitem como possuidoras de luto, que ndo se imponham umas as outras, ¢ que, solidariamente, chegario a0 melhor tudo. Certa vez, alguém me disse: “na sociedade, ou pagcima ou esti por baixo”. com vontade uuntar:“E por que nao podemos estar ao lado, no ROGERS: tic humanists cpicoterpia 23 24 mesmo nivel?”. Isso tem a ver com a valorizacao da pessoa, com orespeitoouaestima.cladevidos, com aconsideragio positiva que funda social saudivel € fecundo, com confianga. 2) Que as pessoas procurem se compreender gralidade de cada uma, isto 6, com todos 0s seus sentimentos ¢ com os significados que se m a eles, mesmo com os que nfo conseguem expressar clara e totalmente. I quando as pessoas se ouven plenamente (até para além das palavras) que se de! rrumo positivo, Isso esti relacionado com a en comunhao de sentimentos. 3) Que cada um seja verdadeiro no que diz.respeito & situagio que esti sendo vivida em conjunto, sem sonegar nenhuma informagao a ela relevante, Isso tem a ver com a honestidade na diferenca, ou seja, com a autenticidade. Vejo entio trés valores basicos e interligados como definidores da ACP: o valor da pessoa, 0 da comunhio inter-humana eo da honestidade em relagio as diferengas. © termo honestidade nao é usado aqui no sentido moral, mas no sentido de uma relago aberta, no camuflada, que rio omite o que precisa ficar claro para quea propria relagio evolua construtivamente, E também nao estou propondo que esses valores devam existir de forma acabada nas pessoas, individualmente, mas que eles sejam, para todos os envolvidos no convivio social, um objetivo a ser alcangado alética processual do conviver. E claro que esse peesso comega nas pessoas que se propdem a fecundar 0 cultural, Elas Grazent essas disposigoes jo, tendo-as experimentado na vida ¢ tado nelas (valores operatives). Mas esses valores m a definir a propria qualidade do convivio social \do em termos de humanizagio ou de desenvolvimento ural, No plano das diresdes gerais de valor no campo do Wvio humano fecundo, esses trés valores so suficientes. m os entendermos, eles bastam. rm De onde surgiu tudo isso? Convido entdo o leitor a histérico, A Abordagem Centrada na Pessoa ‘iurgiu nos Estados Unidos, como reagio a uma tendéncia e veio a se chamar, tempos depois, de anti-humanismo. mpreendermos isso, precisamos de um recuo maior wa (para referencias iniciais, ver Dicionirio de Pensamenta Contemporinea, 2000; Diciandrio. dos ', 2001). ‘A antiguidade classica era cosmocéntrica, Tudo era ywado com base na natureza, até mesmo ohomem e deus uses). Os primeirosfildsofos, nos séculos 6",5° 4” Cristo se perguntavam: por que o mundo é assim? © que the dé consisténcia? Qual sua l6gica? E faziam essas orguntas em termos de natureza. Perguntar por que 0 sim e perguntar qual a natureza do mundo era sa. Mesmo quando Séecrates (sé. 5 a.C.) Mauro Marins AMATUZZI 25 o mundo fico), eleestava trabalhando a natureza: qual seria a natureza humana. Mas coma vinda da fé crista, que acabou se impondo no império romano (que sucedeu a cultura grega), uma ‘outra mentalidade se impés: a da idade teocéntrica, Tudo passou a ser visto com base em Deus criador, inclusive 0 homem ¢ a natureza. Com a modernidade, uma outra reviravolta: comera a tendéncia antropocéntrica. Tudo passa a ser pensado a partir do homem, inclusive a natureza e Deus. Para Descartes (séc. 17), a primeira certeza no era 0 mundo nem mesmo Deus. Era o pensamento vivid na subjetividade, Ele vai reconstruir tudo com base no pensamento. © ser humano é concebido como individuo € sua especificidade est na consciéncia, Ele édotado de raza para pensar e porque pensa, nio fica vinculado aos determinismos materiais, mas domina sobre eles: é livre. Para Kant (séc. 18), toda filosofia se reduz a uma antcopologia, jé que visa responder a pergunta “o que € homem?”, Nasce assim um projeto de emancipagio humana: a conquista da plena autonomia para o homem como individuo. Eo desabrochar do humanismo. E esse individuo passa a ser visto como independente da natureza (cledominaa natureza) ¢ até mesmo independente de Deus (ele deve resolver consigo mesmo seus problemas). O principio fundamental da modernidade, para Hegel (sé. 18/19), é a subjetividade. Na modemidade, a razio humana se desenvolveu na 10 das cigneias fisico-mateméticas (Galileu, séc. sso quer dizer que 0 conhecimento visava ir as coisas, medi-las e im decifrar sua lei Deixou de considerar esséncias ¢ valores. Com 0 alismo (que teve seu apogeu no iluminismo, séc. wesaram as ambiguidades. A razio humana capta is necessarias € determinantes dos fenémenos. Mas 0 mano também é um fendmeno. Entao, como explicar berdade humana? Seria a razdo livre a capacidade de se as determinagdes do mundo? Essa capacidade entio, ser ilusdria. O ser humano constituido de ¢ liberdade ¢, portanto, centrado na sua comega a se descentrar. Esse descentramento ma ser descrito em varios niveis, No plano logico, cle é representado pela revalugdo copernicana: mais o centro do universo como se pensava—e no cosmos, € 0 simbolo do ser humano no mundo, biolégico, pela teoria da evolusao: 0 homem & resultado de um processo evolutivo, ele nfo € muito te do macaco, No plano psicolégico, a alma é vida a um epifendmeno (reverberagio secundiria de enos fisicos). No plano sociolégico, surge a ‘iéncia de que somos produto de leis sociais e histéricas wente estudaveis; e 0 golpe final que veio do ralismo (no plano filoséfico): © que existe sao eitruturas impessoais a8 q as%hao tém nenhum centro autonomo). Acabou-se estamos sujeitos (e essas ROGERS: ica amanistae pricotrpia 27 28 aliberdade, acabou-se 0 serhumano centrado em sini Somos apenas peas de uma complexa miquina, mas funcionamento é, em principio, previsivel desk encontremos os instrumentos adequados de pesquisa. < © modelo de pensamento que manifesta bem essa mentalidade € 0 positivismo de Comte (séc. 19):a ciéncia éum, entendimento dos fatos objetivos. © conflito maximo se expressa por Nietzsche (66e. 19): oposicao ao homem, pequeno, mesquinho (Reich: “Escuta Zé Ninguém’), pelo super-homem que, no entant indo passa de um sonho. Para Ortega y Gasset (sé. 20), 0 postivismo € uma operagio intelectual que consiste em esvaziar o sentido do mundo deixi-lo reduzido a um amontoado de fatos. Wittgenstein (éc.20) afirma que, para o olhar da ciéncia no mundo, tudo é como é ¢ nele nfo ha lugar para valor algum. Lévi-Strauss (éc. 20) diz em O pensamento Seloagem, que © fim primordial das ciéncias humanas nao é constituir © homem e sim dissolvé-lo... reintegrar a cukura na naturesa e finalmente a vida no Conjunto das condigoes fisico-quimicas. Depois da morte de Deus (Nietzsche), vem a morte do homem (Foucault, séc. 20 - estruturalismo). ‘A modemidade comegou com manismo © terminou com o anti-humanismo. A saida para o homem seria 0 ceticismo (niio podemos saber nada que ultrapasse a mera descrigio de fatos empiricos, nada que se refira valores ou sentido de realidade), e, para a vida pritica, 0 emocionalismo (gozar a vida © maximo possivel). Mas ée. 20) procurava o verdadeiro. rum contemporineos de Levinas, 18 ¢ Maslow (humanistas do séc. 20). O me se formou, em torno de Hlusserl (no comeso do sée. 20), wimento filos6fico (com expansdes para fora da foi que essas pessoas (dentre elas, Edith Stein) fenomenologia uma possibilidade de se chegar a verdade. Nem tudo € relativo (ou: até o rel: 14 uma esperanga para a hi A modernidade acreditou, com fé inabalavel, no lade, No entanto, os tempos finem desse progresso: n grande niimero s6 comem as migalhas desse Os racionalistas acreditaram na educagio do que eles participassem do progresso). Mas esse ‘ado nas duas maiores guerras que a jd fex (consequéncias de jogos de interesse creditaram que a luta de classes am que nem todo. reconciliagio, mas 0 que vimos foram os ismos ditatoriais, Os capitalistas acreditaram na técnico-industrial, mas, em meio & opuléncia 8 dessa revolusio, a ela, Vejamos algumas, Mavro Martins AMATUZZI. 29 Nio ha mais a Je narrativa; apenas a pequena hu {a niio tem sentido). , com o senso dos valores, é substituida pela a beleza, 10 que seja trigica (porque do bo hemos o que 6, se é que existe) de lugar nenhum e Se nio lugar alg jiresao é melhor qu A ideia de verdade & abandonada ¢ lade 0 sentim sfrute nidade, porém, mento complexo (Edgar da vida); convite a uma humildade do ser pelo pritico ¢ ut ys Estados Unidos é William James, sé praticada como uma técnica (e nao também se desenv pensamento) te uma outra técnica be men a engenharia de comy snsar 0 ser humano como feitos com isso. Algo ‘homem re mos ser capazes de o homem desaflado, capaz de iniciar ages novas Ww propoe 1s € comunidades isso para os gry ). Ele se propds a estudar pessoas sadias ¢ nao doent ticas, Rogers escreveu sobre a vida namento pleno, t le pod final de uma terapia. Allport escrevera s widade intrinsecs, como algo bem diferente da religiosidade extrinseca. A psicandlise ¢o behaviorismo nao, traziam essas respostas. Dois livros se tornaram clisstcos pgia Existencial Humanista, de Greening (1975), © Pricologia do Ser, de Abraham Maslow (s/d.), em pleno século 20. Maslow congrega um movimento que ele chama de Psicologia Huma Eram tempos de guerra no Vietnd. Psicdlogos, atras eassistentes sociais, que trabalhavam no modelo médico (diagnéstico € intervengio manipuladora das causa), eram eficazes no tratamento dos traumatizados ¢ rmutilados que vinham da guerra. Mas esse j nfo era 0 maior problema dos americanos. Eles queriam saber 0 porqué da guerra; que sentido tinha.a presenga dos Estados Unidos na Asia; por que seus filhos tinham que morrer precocemente em um embate sem légica. E, para isso, os ‘métodos tradicionais nao traziam respostas, nfo abriam as portas de uma aslo efetiva. Seria preciso olhar para aquilo que o ser humano poderia ser. Qu poderia fazer. Nao apenas olhar para o que j tina feito, Nao foi Rogers quem inventou os grupos de encontro, mas quando ele se pos a promover isso, ele faclitava 0 desenvolvimento autdnomo, do grupo e das pessoas, estando focado nos significados que cram expressos pelas pessoas, ajudando-as a se aproxima~ rem de sua experiéncia e aprofundar seus sentidos. Maslow, Rogers, Greening, Erich Fromm ¢ outros, apesar de trabalharem de formas diferentes, resgataram para aquele momento a velha tradigao humanista. Fromm (1974) nos fala que essa tradiga0 tem suas raizes na Grécia © (1980) chama de humanista toda psicologia que recedeu o laboratério de Wunds, inclusive a rica psicologia ie 1c esquecida atualmente). O movimento \umanista de Maslow, no século 20 americano, trowxe de para.a psicologia os velhos temas que haviam ficado de pelas abordagens convencionais. Quais temas? A saiide a capacidade de escolha, a criatividade, a io, 0 compromisso. comunititio, 0 envolvi- ico, aabertura espiritual, enfim, tudo aquilo que O prdprio Rogers sugere colocar 0 comego de sua ugem pessoal no dia em que, conversando com uma a respeito de seu filho problemitico, ocorreu uma toviravolta (Rogers, 1977, p. 23). Ele havia tentado passar jira a mie sua interpretago da situag3o problemética, no aceitara. Todas as suas tentativas foram em vio: «a nao levara a nada, entdo, deu por encerrada a sta. De pé, na porta do consult6rio,amiese voltou ryguntou a Rogers se Ié eles faziam aconselhamento de Ele respondeu que sim ¢ ela voltow a sentar-se. Ali ‘ytava Rogers, sem nenhum esquema que o pudesse guiar hhessa nova conversa que se iniciava. Esse foi um dos s importantes do nascimento da abordagem nio a que depois veio a se alargar em abordagem centrada ‘4 pessoa, O que ele vivenciou aqui? Basicamente, uma nncia de parimetros ¢ uma enorme disposigio de Mauro Marins AMATUZZI. 33 mld. AACP nasceu dda pratica de um americano que, de repente, perdeu todos compreendere ajudara pessoa qu os seus manuais de inscrusto. Essa auséncia de parimetros, no enti grande como se costuma pensar. Eles estavam em um, cor ‘em um clube, ou nos corredores de uma uma reunido de drogaditos em recuperagio, sala de conversas de uma p: sabiam que aquilo era uma conversa de aju ido para si que era uma situaggo de atendimento ico. Nesse sentido, era uma situagao ja previamente ico daquela pessoa que estava ali (e ra), Essa pessoa ida psicologica e, into, assumia o papel de cliente entregando-se nas mos do profissi profissionalmente essa ajuda e, portanto, também assumisse seu papel. Ambos se confirmavam mutuamente nessa atribuigio de papéis sociais distintos ¢ complementares. © que acontecew ali foi um novo modo de caminhar, sem divida, porém numa situagio ja previamente definida, com objetivos gerais definidos, em uma relagio cuja natureza também ja estava previamente la, 20 menos, no seu sentido amplo. Nada disso fece em outras situagdes em que o psicdlogo se vé nossos tempos, frequentemente, ndo hi nenhuma situagdo previamente envolvido, ou se envolve, atualmente. E definida no que diz respeito ao que se vai fazer ou ao que se |e nem tampouco uma definigio de papéis conhecida ida por todos os envolvidos. Muitas vezes, niio ha mesmo um cliente expecifieado. O psicdlogo, por Vai para um bairro sem ser convidado ¢ levando somente uma vontade grande de ajudar na o¢io humana, nada mais. Ele vai aonde esto as em vez de recebé-las em seu espaco profissional. 1s vezes, no ha um contrato de trabalho entre uma io (cliente) ¢ ele (profissional). Outras vezes, 1m contrato, sim, mas entre o profissional e a ra local ou alguma universidade ou agéncia iadora de pesquisa. Todo o resto esta para ser . © psicélogo nio é procurado, mas é ele quem ira. Ele sai de seu consultdrio e de sua instituigao. vex, escrevi um texto que foi traduzido para 0 hol com um titulo sugestivo: Safir del consultério para 10s de tt: la construccién participativa de uma psicologia (ver Amatuzzi, 2008, p, 115-122). Nao era bem (O que estou querendo dizer com isso? Rogers estava cde uma situago que era seu desafio concreto naquele to. Para fazer frente a cla, ele mobilizou em si um do de ser, niio uma técnica, que, quando aplicado aquela wwaem algumas atitudes bem definidas e que 1 efetivamente formuladas posteriormente como as cas atitudes terapéuticas (aceitagio incondicional ou imento, compreensdo empatica ou comunhio de dos, ¢ autenticidade ou ser 0 que se é, respeitando ferencas). Algum tempo dep mais claro que ROGERS: ic humanist epicoerspin 35 1n Wood coloca essa qu ‘A Abordagem Centrada na Pessoa no é uma uma tradigao. "a, como, por exemplo, 12. Embora muitos tenham notado um. teoria, uma teropia, uma psicologi No é uma Bevo posiconamento exitencol em suas atnudes, ¢ 0s tenhiam se referide a uma perspectiva enoliica em suas IntengSes, nfo 6 uma losofe. Acima de tudo no & um movimento, como por exemplo, o movimento tcbahsta, € eramente uma abordagem; nada mais, nada icdo terapéutica pessoal (p. II juais essa mesma abordagem se ‘grupos de encontro, aprendizado em sala de aula, terapias de pequenos grupos ou workshops de ides grupos para aprendizagem sobre formacao e transformacio da cultura, comuni Besinterculturais eresolucio de confits (. 36 Mauro 38 exata eve em sete pontos esto se mas nfo se tinha no, nao vinha le ser da abordagem centra uma técnicé ica de um cc perspectiva de vida de modo geral positiva screditar que el a acreditar na vi ata de uma constatagio ~ com base em a fé, A £6 € anterior diversi ACP como al se levar em conta ju Aideologia. A 2) Uma crenga numa tendéncia formativa direcional ). ocompreensio, de , diante da ele consiste? ROGERS: ¢ xidade das tendéncias que (© importante € que quando uma pessoa est’ ionando plenamente, no ha barreiras, inibigh {que impegam a vivércia integral do que quer que esteja presente no organism, Esta pessoa esti se 1ovimentando em directo & ineireza, 4 integracSo, & vida unifcada. A consciéncia est participando dessa tendéncia formativa, mais ampla @ criatva (Rogers, 1983, p. 46-7). disposigées dio na des 40 amaTuzal 41 a voltado para a aglo, ou que se traduz em ages diferenciadas, conforme a situasio ou as circunstincias, Nao é um modo de agir (isso seria um método ou uma técnica), mas um modo de ser voltado para aagio eficaz, E se tal modo vale para situagées fem que 0 desafio é a mudanga em direg2o 20 crescimento (Cerapia, grupo, dinamismo evolutive), por que no valeria ‘quando se trata de mudanga no conhecimento ou na pesquisa? O proprio conhecimento passa, entio, a ser encarado como ‘uma ago evolutiva. A ACP inspira priticas terapéuticas ow evolutivas, inclusive no campo do conhecimento, E um modo de servoltado para o mais ser, em qualquer que sejao campo. 4) Um respeito pelo individue e por sua autonomia

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